Ler "A Viagem do Peregrino da Alvorada" Online
C. S. LEWIS
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
VOL. V
A Viagem do Peregrino da
Alvorada
Tradução
Paulo Mendes Campos
Martins Fontes
São Paulo 2002
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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As Crônicas de Nárnia são constituídas por:
Vol. I – O Sobrinho do Mago
Vol. II – O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa
Vol. III – O Cavalo e seu Menino
Vol. IV – Príncipe Caspian
Vol. V – A Viagem do Peregrino da Alvorada
Vol. VI – A Cadeira de Prata
Vol. VII– A Última Batalha
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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Para Geoffrey Barfield
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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ÍNDICE
1. O QUADRO
2. A BORDO DO PEREGRINO DA ALVORADA
3. AS ILHAS SOLITÁRIAS
4. UMA VITÓRIA DE CASPIAN
5. A TEMPESTADE
6. AS AVENTURAS DE EUSTÁQUIO
7. COMO TERMINOU A AVENTURA
8. DOIS SÉRIOS PERIGOS
9. A ILHA DAS VOZES
10. O LIVRO MÁGICO
11. OS ANÕEZINHOS DO MÁGICO
12. A ILHA NEGRA
13. OS TRÊS DORMINHOCOS
14. O PRINCÍPIO DO FIM DOMUNDO
15. AS MARAVILHAS DOMAR DERRADEIRO
16. O FIM DOMUNDO
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O QUADRO
Era uma vez um garoto chamado Eustáquio
Clarêncio Mísero, e na verdade bem merecia esse
nome. Os pais diziam Eustáquio Clarêncio, e os
professores, apenas Mísero. Não posso dizer
como era chamado pelos amigos, pois não tinha
amigos. Não tratava o pai e a mãe por papai e
mamãe, mas por Arnaldo e Alberta. Os pais eram
gente moderna, de idéias abertas. Vegetarianos,
não fumavam nem bebiam, e usavam roupa de
baixo de fabricação especial. Havia muito pouca
mobília em sua casa, pouquíssima roupa de cama
e mantinham sempre as janelas escancaradas.
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Eustáquio gostava de animais,
especialmente de besouros quando estavam
mortos e espetados num cartão. Também gostava
de livros instrutivos, com gravuras em que se
podiam ver armazéns para guardar cereais ou
robustas crianças estrangeiras fazendo ginástica
em escolas-modelo.
Eustáquio não gostava nada mesmo era dos
primos, os quatro Pevensie: Pedro, Susana,
Edmundo e Lúcia. Mas ficou contentíssimo
quando soube que Edmundo e Lúcia vinham
passar uns tempos com ele, pois lá no fundo
adorava bancar o mandão e chatear os outros.
Apesar de ser um molengão, que na hora da briga
não conseguia nem enfrentar Lúcia, e muito
menos Edmundo, sabia que há muitas maneiras de
aborrecer os outros, quando a casa é da gente e
eles são nossos hóspedes.
Edmundo e Lúcia também não sentiam a
menor vontade de ir para a casa do tio Arnaldo e
da tia Alberta, mas não tinham outro remédio.
Naquele verão, o pai arranjara uma vaga como
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professor nos Estados Unidos, durante quatro
meses, e a mãe resolvera ir com ele.
Pedro, que tinha de preparar-se com todo o
afinco para o exame, passaria as férias recebendo
aulas do velho professor Kirke, em cuja casa as
quatro crianças tinham tido aventuras
maravilhosas, já havia muitos anos, na época da
guerra. Se o professor ainda morasse na mesma
casa, os garotos teriam ido para lá; mas, depois
daquela época, ele perdera tudo o que tinha e
vivia agora num chalé, com apenas um quarto
vago.
Como ficaria muito caro levar os filhos
todos para os Estados Unidos, somente Susana
tinha partido com os pais. A gente grande achava
Susana a mais bonita da família. Como era bem
desenvolvida para a sua idade e não tinha grande
queda para os estudos, a mãe dissera que “ela
aproveitaria mais a viagem do que os outros mais
novos”. Edmundo e Lúcia fizeram o impossível
para não sentir inveja de Susana, mas era de fato
horrível ter de passar as férias na casa da tia.
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– Para mim ainda é muito pior – dizia
Edmundo –, porque você terá um quarto separado,
enquanto eu terei de dividir o meu com aquele
nojento do Eustáquio.
A nossa história começa numa tarde em que
Edmundo e Lúcia aproveitavam juntos alguns
minutos preciosos. Como é óbvio, falavam de
Nárnia, nome do país secreto deles. Acho que
quase todos nós temos um país secreto, que, para
a maioria, é apenas um país imaginário. Edmundo
e Lúcia eram bem mais felizes: o país secreto
deles era verdadeiro. Já tinham até visitado Nárnia
duas vezes, de verdade, não sonhando, nem
brincando. É claro que tinham conseguido chegar
lá por Magia, que é a única maneira de atingir
Nárnia. E tinham prometido que lá voltariam
algum dia. Assim, você pode imaginar como eles
falavam de Nárnia, sempre que podiam.
Naquela tarde, estavam sentados na beira da
cama no quarto de Lúcia, olhando para um quadro
pendurado na parede – o único quadro de que
gostavam em toda a casa. Tia Alberta detestava o
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quadro, mas não podia jogá-lo fora, pois fora
presente de casamento de uma pessoa a quem não
queria ofender. Representava um barco
navegando em nossa direção. A proa era dourada
e tinha o formato de uma cabeça de dragão de
boca escancarada. Tinha apenas um mastro e uma
grande vela quadrada de um vivo tom de púrpura.
As laterais do barco, só visíveis onde terminavam
as asas do dragão, eram verdes. Estava
exatamente na crista de uma grande onda azul, e o
côncavo da vaga mais próxima, franjada de
espumas e salpicos, parecia vir para cima da
gente. Via-se que corria ligeiro, impelido por um
vento forte, inclinando-se um pouco para
bombordo. (A propósito, se você está mesmo
resolvido a ler esta história, acho melhor ter em
mente que a esquerda de um barco, quando se
olha de frente, é bombordo, e a direita é
estibordo.) A luz do sol incidia sobre o lado
inclinado do barco e a água estava cheia de tons
verdes e roxos. Do outro lado, o mar era azulescuro,
devido à sombra do barco.
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– Ficar olhando para um navio de Nárnia
sem poder chegar lá é pior ainda! – disse
Edmundo.
– Olhar é sempre melhor do que nada –
respondeu Lúcia. – E esse aí é um verdadeiro
navio de Nárnia.
– Ainda brincam como antes? – perguntou
Eustáquio, que andara escutando atrás da porta e
agora arreganhava os dentes.
No ano anterior, quando estivera em casa
dos Pevensie, conseguira flagrar os primos
conversando sobre Nárnia e adorava aborrecê-los
por causa disso. Achava que eles estavam
imaginando aquilo tudo e, como era bestalhão
demais para imaginar seja lá o que fosse, não via a
menor graça.
– Ora, vá andando, não queremos você aqui
– disse Edmundo secamente.
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– Estou vendo se me recordo de uns
versinhos – disse Eustáquio –, qualquer coisa
mais ou menos assim:
Uns meninos que brincavam de Nárnia
Foram ficando cada vez mais birutas...
– Pra começo de conversa, Nárnia e birutas
não rimam – disse Lúcia.
– É uma rima toante – disse Eustáquio.
– Não pergunte para ele o que é isso! Está
doido para que você pergunte! Não fale nada,
talvez assim ele se mande.
Com uma recepção dessas, qualquer garoto
teria ido embora, mas Eustáquio era diferente.
Continuou a rondar de um lado para outro,
arreganhando os dentes, e de repente voltou a
falar:
– Você gosta deste quadro?
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– Pelo amor de Deus, não deixe ele
começar a falar de arte e outras coisas –
interrompeu Edmundo depressa. Mas Lúcia, que
era de muito boa-fé, já havia dito:
– Adoro!
– É uma porcaria de pintura – disse
Eustáquio.
– Caia fora daqui, que você não vê mais a
porcaria – respondeu Edmundo.
– Por que você gosta dele? – perguntou
Eustáquio a Lúcia.
– Por um motivo especial – respondeu
Lúcia. – Porque o navio parece que está andando,
a água parece mesmo molhada, e as ondas sobem
e descem.
Eustáquio podia dar-lhe meia dúzia de
respostas, mas dessa vez nada disse. Naquele
mesmo instante, ao olhar para as ondas, viu que
realmente elas pareciam em movimento. Só havia
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andado de barco uma vez (uma pequena
distância), mas tinha enjoado pra valer. Ao ver as
ondas do quadro, ficou de novo enjoado. Já estava
quase verde, mas tentou olhar mais uma vez. E aí
as três crianças ficaram estupefatas e
boquiabertas.
O que viram naquele momento é difícil de
acreditar, mesmo nos livros; mas é muito mais
difícil de acreditar quando acontece na vida real.
Tudo no quadro estava em movimento. Não era
como no cinema, não: as cores eram muito mais
reais e vivas, como ao ar livre. A proa do navio
afundava e tornava a subir nas ondas com uma
grande franja de espuma. Quando uma onda
ergueu o navio atrás, viu-se pela primeira vez a
popa e o convés, que desapareceram logo no bojo
da onda seguinte. Nesse mesmo instante, um
caderno, que estava caído sobre a cama de
Edmundo, começou a virar as folhas e foi levado
pelo ar, batendo na parede; o cabelo de Lúcia
enrolou-se em torno do rosto, como num dia de
vento. Era um dia de vento, mas o vento soprava
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do quadro. De súbito, com o vento, vieram os
barulhos... o marulhar das ondas, o bater da água
de encontro ao costado do navio e, mais alto que
tudo, o estrépito do vento e da água. Foi o cheiro
(agreste, salgado) que convenceu Lúcia de que ela
não estava sonhando.
– Acabem logo com isso! – disse
Eustáquio, com uma voz rouca de medo e raiva. –
Que brincadeira mais estúpida vocês arranjaram!
Acabem com isso! Vou falar com Alberta... Oh!
Os outros dois já estavam bastante
acostumados com essas aventuras, mas, no exato
momento em que Eustáquio disse oh, também eles
disseram oh. Pois uma grande rajada de água fria
e salgada saltara do quadro, deixando-os sem
respiração e completamente encharcados.
– Vou arrebentar essa porcaria de quadro! –
gritou Eustáquio. Mas foi logo acontecendo uma
porção de coisas.
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Eustáquio correu para o quadro. Edmundo,
que sabia alguma coisa de magia, saltou atrás,
dizendo que ele não fizesse uma besteira. Lúcia
quis agarrá-lo, mas foi arrastada para a frente. E,
nesse mesmo instante, ou os garotos diminuíram
de tamanho ou o quadro ficou maior.
Eustáquio deu um pulo para ver se retirava
o quadro da parede, mas ficou encravado na
moldura; na sua frente não havia vidro, mas um
mar verdadeiro, com ventos e ondas batendo no
caixilho, como se fosse de encontro a uma rocha.
Perdeu a cabeça e se agarrou aos outros dois que
já tinham pulado para perto dele. Houve um
instante de confusão e gritaria; quando achavam
que tinham recuperado o equilíbrio, surgiu uma
grande onda azul que os fez rodopiar, atirando-os
ao mar.
O grito desesperado de Eustáquio apagouse
quando a água lhe entrou pela boca. Lúcia
havia praticado muita natação nas férias, o que foi
a sua sorte. Talvez até se agüentasse melhor se
desse braçadas mais lentas e se a água não
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estivesse muito mais fria do que parecia no
quadro. Mas não perdeu a serenidade, chegando a
tirar os sapatos – coisa que a gente sempre deve
fazer quando cai vestida dentro de água funda.
Fechou bem a boca e conservou os olhos abertos.
Estavam muito perto do navio e a menina via o
costado verde, erguendo-se lá no alto, e várias
pessoas olhando do convés.
Então, como era de esperar, Eustáquio
agarrou-se a ela, cheio de pavor, e os dois foram
para o fundo. Quando voltaram à superfície, a
menina viu uma figura vestida de branco
mergulhando do costado do navio. Edmundo
estava agora junto dela, bracejando e segurando
os braços de Eustáquio, que não parava de gritar.
De repente alguém cujo rosto lhe era vagamente
familiar passou-lhe o braço por debaixo do corpo.
Do navio gritavam o tempo todo; na amurada
apinhavam-se cabeças e de bordo lançavam
cordas. Lúcia sentiu que Edmundo e o
desconhecido lhe atavam cordas ao corpo.
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Seguiu-se o que lhe pareceu uma longa
espera, durante a qual ficara com o rosto
arroxeado e batendo queixo. Mas na verdade a
espera não foi de fato grande; só estavam
aguardando pelo momento em que poderiam içá-
la para bordo, sem ir de encontro ao costado do
navio. Mesmo com todas essas precauções,
quando finalmente alcançou o convés, toda
encharcada e tremendo de frio, tinha um joelho
machucado. Puxaram depois Edmundo e o infeliz
Eustáquio. Por fim, subiu o desconhecido – um
rapaz de cabelos dourados, alguns anos mais
velho do que a menina.
– Ca... Ca... Caspian – gaguejou Lúcia, logo
que tomou fôlego. Porque era mesmo Caspian, o
jovem rei de Nárnia, a quem haviam ajudado a
subir ao trono quando visitaram aquele país pela
última vez.
Edmundo também o reconheceu.
Cumprimentaram-se os três, dando tapinhas nas
costas uns dos outros, com grande alegria.
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– Quem é o amigo de vocês? – perguntou
logo Caspian, voltando-se para Eustáquio, com
semblante risonho e acolhedor.
Mas Eustáquio, que chorava de maneira
inacreditável para um rapaz da sua idade que não
sofrerá mais do que uma simples molhadela,
apenas gritou:
– Quero ir embora! Não gosto disto!
– Embora para onde? – perguntou Caspian.
Eustáquio correu para a amurada do navio
como se esperasse ver a moldura do quadro
sobre o mar e, quem sabe, até mesmo um
pedacinho do quarto de Lúcia. Mas só viu ondas
azuis e o céu, de um azul mais claro, estendendose
até a linha do horizonte. É compreensível que
tenha ficado em pânico, e logo começou a enjoar.
– Chegue aqui, Rinelfo – disse Caspian
para um dos marinheiros. – Busque vinho
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aromático para Suas Majestades. Precisam de
calor depois desse
mergulho.
Tratava Edmundo e Lúcia por majestades,
porque estes, como Pedro e Susana, haviam sido,
muito tempo atrás, reis e rainhas em Nárnia. O
tempo em Nárnia não corre como em nosso
mundo. Mesmo que passemos cem anos em
Nárnia, voltamos ao nosso mundo exatamente no
mesmo dia e na mesma hora em que partimos.
Mas, se quisermos voltar a Nárnia depois de
termos passado uma semana aqui, podem já ter se
passado mil anos em Nárnia, ou um dia só, ou até
não ter passado tempo algum. Só quando se chega
lá é que se sabe quanto tempo se passou. Assim,
quando os Pevensie haviam estado em Nárnia pela
última vez, na segunda visita, era para os
habitantes de Nárnia como se o rei Artur tivesse
voltado à Grã-Bretanha, como se diz que há de
voltar. E eu digo que o quanto antes melhor!
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Rinelfo apareceu com o vinho aromático,
fumegando num jarro, e quatro taças de prata. Era
justamente disso que precisavam. À medida que
Lúcia e Edmundo iam bebendo, sentiam o calor
percorrer-lhes todo o corpo. Eustáquio é que
começou a fazer caretas e engasgar-se, lançando
tudo fora e ficando ainda mais enjoado.
Recomeçou a chorar e a pedir que lhe dessem um
chá feito com água potável. Ou que o
desembarcassem no porto mais próximo.
– Que companheiro de viagem mais gozado
você nos trouxe! – murmurou Caspian para
Edmundo, rindo-se disfarçadamente.
Porém, Eustáquio irrompeu de novo:
– Opa, Hã... Que troço é aquele? Tirem
daqui essa coisa horrorosa!
Aí ele tinha certa razão de mostrar espanto:
da cabine da popa saíra um ser muito curioso, que
se aproximava deles devagar. Podia-se dizer que
era um rato, e era realmente. Mas um rato com
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cerca de sessenta centímetros de altura,
caminhando apoiado nas patas traseiras. Atada à
cabeça, por baixo de uma orelha e por cima de
outra, exibia uma fina fita dourada na qual se
prendia uma pena vermelha. Como a pele do rato
era muito escura, quase negra, o efeito era
impressionante. Apoiava a pata esquerda no
punho de uma espada quase tão comprida quanto
sua cauda. Seu equilíbrio, ao caminhar
solenemente ao longo do convés que balançava,
era perfeito, e seus modos revelavam que estava
habituado à corte. Lúcia e Edmundo viram logo
quem era. Era Ripchip, o mais valente de todos os
animais falantes de Nárnia, o rato-chefe, que
ganhara glória imorredoura na segunda batalha de
Beruna. Lúcia sentiu uma vontade enorme, como
sempre lhe acontecia, de pegar Ripchip no colo e
acariciá-lo. Mas sabia muito bem que nunca
poderia satisfazer essa vontade, pois ele ficaria
profundamente ofendido. Em vez disso, ajoelhouse
para conversar com ele.
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Ripchip avançou a perna esquerda, afastou
para trás a direita, fez uma reverência, beijou-lhe
a mão, endireitou-se, torceu os bigodes e disse na
sua voz aguda e chiante:
– Sou vosso humilde servo, assim como do
rei Edmundo. (Fez outra reverência.) A esta
maravilhosa aventura faltava apenas a presença de
Vossas Majestades.
– Ai, ai, ai! Tirem-me daqui! – gemeu
Eustáquio. – Tenho horror a rato. Não agüento ver
bicho fazendo palhaçada. São uns idiotas que
gostam de bancar os espertalhões.
– Devo compreender – disse Ripchip a
Lúcia, de pois de olhar demoradamente para
Eustáquio – que essa criatura singularmente
descortês está sob a proteção de Vossa Majestade.
Porque se não for assim...
Lúcia e Edmundo espirraram ao mesmo
tempo.
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– Mas onde estou com a cabeça! Deixei
vocês aqui com a roupa molhada! – exclamou
Caspian. – Vamos descer para mudar de roupa.
Como é natural, Lúcia, cedo-lhe o meu camarote,
mas o que não tenho é vestimenta feminina de
acordo. Ripchip, mostre-lhes o caminho como um
bom sujeito.
– Para servir a uma senhora, mesmo uma
questão de honra pode esperar, pelo menos por
agora... – e Ripchip olhou severamente para
Eustáquio.
Mas Caspian os empurrou e logo Lúcia
entrou por uma portinha para a cabine da popa.
Ficou encantada. Na salinha abriam-se três janelas
quadradas para o mar revolto; bancos baixos e
almo-fadados cercavam os três lados da mesa;
uma lâmpada de prata balançava sobre suas
cabeças (viu logo que era trabalho de anões, pela
delicada perfeição) e, na parede em frente, a efígie
de ouro de Aslam, o Leão, pendurada acima da
porta. Viu tudo isso num relance, pois Caspian
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imediatamente abriu uma porta a bombordo e
disse:
– Este agora vai ser o seu quarto, Lúcia. Só
vou tirar daqui umas peças de roupa para mim – e
enquanto falava remexia as gavetas – e depois
deixo você à vontade. Ponha sua roupa lá fora;
mandarei que a levem para secar.
Lúcia sentia-se tão à vontade no camarote
como se o ocupasse havia semanas. O movimento
do navio não a incomodava nem um pouco, pois
nos velhos tempos em que fora rainha em Nárnia
tinha viajado muito. O camarote era pequeno, mas
muito alegre, com painéis pintados (aves, outros
bichos, dragões vermelhos e trepadeiras), e estava
imaculadamente limpo. As roupas de Caspian
eram demasiado grandes, mas ela conseguiu dar
um jeito. Os sapatos, as sandálias e as galochas é
que eram impossíveis de calçar, por causa do
tamanho, mas Lúcia não se importava de andar
descalça a bordo. Quando acabou de se vestir,
olhou pela janela a água que ia ficando para trás,
em torvelinho, e suspirou profundamente. Tinha a
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certeza de que passaria uma temporada
maravilhosa.
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A BORDO DO PEREGRINO
DA ALVORADA
– Ah, aí vem Lúcia! – disse Caspian. –
Estávamos à sua espera. Este é o meu capitão,
lorde Drinian.
Um homem de cabelos escuros pôs um
joelho em terra e beijou a mão de Lúcia. Os outros
presentes eram só Ripchip e Edmundo.
– Onde está Eustáquio? – perguntou Lúcia.
– Na cama – respondeu Edmundo. – Acho
que não podemos fazer nada por ele. Fica ainda
pior quando tentamos ajudá-lo.
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– Precisamos conversar – disse Caspian.
– É claro – concordou Edmundo. – Antes
de tudo, acerca do tempo. Para nós passou um ano
desde que o deixamos, antes de sua coroação.
Quanto tempo passou em Nárnia?
– Três anos precisamente – respondeu
Caspian.
– Vai tudo bem por lá? – quis saber
Edmundo.
– Iria eu deixar o meu reino e viajar se
alguma coisa não estivesse bem? – respondeu o
rei. – As coisas não podem ir melhor. Não há
agora nenhum problema entre os telmarinos, os
anões, os bichos falantes, os faunos e todos os
outros. E no verão passado demos uma lição tão
grande naqueles turbulentos gigantes da fronteira,
que agora já me pagam imposto. Deixei como
regente, durante minha ausência, uma pessoa
excelente, Trumpkin, o Anão. Lembra-se dele?
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– O meu querido Trumpkin! – exclamou
Lúcia.
– Claro que me lembro. Não podia ter feito
melhor escolha.
– Leal como um texugo e valente como...
um rato – disse Drinian. Estivera para dizer
“como um leão”, mas notara os olhos de Ripchip
fixos nele.
– Para onde se dirigem vocês? – perguntou
Edmundo.
– Ah – respondeu Caspian –, isso é uma
longa história. Talvez ainda se lembrem de que,
quando eu era criança, meu tio Miraz usurpou o
trono e livrou-se de sete amigos de meu pai (para
que não ficassem do meu lado), mandando-os
explorar os Mares Orientais além das Ilhas
Solitárias.
– Sim – disse Lúcia. – E nenhum deles
voltou.
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– Isso mesmo. Pois bem, no dia da minha
coroação, com a aprovação de Aslam, jurei que se
um dia estabelecesse a paz em Nárnia navegaria
durante um ano para encontrar os amigos de meu
pai, ou ter a certeza da morte deles e vingá-los
caso pudesse. Seus nomes eram lorde Revilian,
lorde Bern, lorde Argos, lorde Mavramorn, lorde
Octasiano, lorde Restimar e... oh!... há mais um...
como é mesmo?...
– Lorde Rupe, senhor – acrescentou
Drinian.
– Exatamente, lorde Rupe – disse Caspian.
– Esta é a minha intenção principal. Mas o
Ripchip aqui tem mais altas esperanças. – Todos
os olhos se viraram para o rato.
– Tão altas quanto o meu espírito. Ainda
que, talvez, tão pequenas quanto a minha estatura.
Por que não haveríamos de chegar ao extremo
oriental do mundo? Que poderíamos encontrar lá?
Espero encontrar o próprio país de Aslam! É
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sempre do Oriente, através do mar, que o Grande
Leão vem encontrar-se conosco.
– É uma idéia – comentou Edmundo, em
tom muito respeitoso.
– Mas acha – perguntou Lúcia – que o país
de Aslam é desse jeito, quero dizer, do tipo que se
pode navegar até ele?
– Não sei, minha senhora. Mas repare bem:
estava eu ainda no berço, e uma dríade do bosque
cantou assim:
Onde o céu e o mar se encontram,
Onde as ondas se adoçam,
Não duvide, Ripchip,
Que no Leste absoluto está
Tudo o que procura encontrar.
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– Não sei o que isto significa, mas esse
sortilégio me perseguiu a vida toda.
– E onde estamos agora, Caspian? –
perguntou Lúcia, depois de ligeiro silêncio.
– O capitão poderá informá-la melhor do
que eu. – Drinian puxou o mapa e estendeu-o
sobre a mesa.
– Nossa posição é esta – disse, apontando
com o dedo. – Ou, pelo menos, era, hoje ao meiodia.
Tivemos um vento magnífico desde Cair
Paravel e paramos um pouco ao norte de Galma,
aonde chegamos no dia seguinte. Estivemos no
porto durante uma semana, pois o duque de
Galma tinha organizado um grande torneio em
honra de Sua Majestade, que desmontou muitos
cavaleiros...
– E levei também umas tremendas quedas,
Drinian – observou Caspian. – Ainda tenho as
marcas...
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– ... e desmontou muitos cavaleiros –
repetiu Drinian, com um trejeito. – Pareceu-nos
que o duque teria ficado muito contente se o rei
tivesse casado com a filha dele, mas isso não
aconteceu...
– Tem olhos tortos e sardas – disse Caspian.
– Coitadinha! – exclamou Lúcia.
– Saímos de Galma – continuou Drinian – e
por dois dias pegamos uma grande calmaria que
nos obrigou a remar, mas o vento voltou e
levamos quatro dias para chegar a Terebíntia. Aí,
o rei nos mandou um recado para que não
desembarcássemos, pois havia peste no país.
Assim, dobramos o cabo, ancoramos numa
pequena enseada longe da cidade e recolhemos
água. Tivemos de ficar ancorados três dias nesse
lugar, antes que apanhássemos um vento sudoeste
para seguir a caminho das Sete Ilhas. No fim do
terceiro dia, um navio pirata (de Terebíntia, pela
aparência) alcançou-nos, mas quando nos viu bem
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armados afastou-se, de pois de rápida troca de
flechas...
– Devíamos ter ido atrás deles e liquidado
todos aqueles piolhos – disse Ripchip.
– Cinco dias mais tarde estávamos à vista
de Muil, que, como sabem, é a mais ocidental das
Sete Ilhas. Remamos através dos estreitos e, perto
do anoitecer, chegamos a Porto Vermelho, na ilha
de Brena, onde nos receberam festivamente, e
onde nos abastecemos à vontade de víveres e
água. Deixamos Porto Vermelho há seis dias e
temos navegado com tanta rapidez que esperamos
ver as Ilhas Solitárias depois de amanhã. Em
resumo, estamos no mar há uns trinta dias e já
navegamos mais de quatrocentas léguas desde
Nárnia.
– E além das Ilhas Solitárias? – perguntou
Lúcia.
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– Ninguém sabe, real senhora. A não ser
que os próprios habitantes das ilhas saibam nos
informar.
– Não sabiam na nossa época – respondeu
Edmundo.
– Por isso – disse Ripchip –, é depois das
Ilhas Solitárias que a aventura é pra valer!
Caspian sugeriu que talvez gostassem de
ver o navio antes da ceia, mas a consciência de
Lúcia a afligia muito.
– Acho que vou dar uma olhada em
Eustáquio. Como sabem, o enjôo é uma coisa
terrível. Se tivesse comigo o meu antigo elixir,
poderia curá-lo.
– Pois está aqui – disse Caspian. – Tinhame
esquecido completamente. Como o deixou ao
partir, achei que podia ser guardado como
patrimônio do tesouro real e o trouxe. Se acha que
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deve ser desperdiçado em uma coisa como
enjôo...
– Só vou gastar uma gota – garantiu Lúcia.
Caspian abriu uma gaveta e tirou o
frasquinho de diamante de que Lúcia se lembrava
tão bem.
– Restituo-lhe o que é seu.
Depois voltaram para a luz do sol. Havia no
convés duas grandes escotilhas, sempre abertas
quando o tempo estava bom, uma de cada lado do
mastro, para deixar passar a luz e o ar para o
interior do navio. Caspian conduziu-os por uma
escada que levava à escotilha da frente. Acharamse
em um compartimento onde se enfileiravam
lado a lado bancos para remadores; a luz, entrando
pelo orifício dos remos, dançava no teto.
Claro que o navio de Caspian não se parecia
nada com uma galera movida a remo por
escravos. Só eram usados os remos quando não
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havia vento ou para entrar ou sair de algum porto.
Todos, menos Ripchip, que tinha as pernas curtas
demais, remavam muitas vezes. De cada lado do
barco, debaixo dos bancos, havia um espaço para
os pés dos remadores, e, bem no centro de tudo,
uma espécie de poço que descia até a quilha,
cheio de vasos das mais variadas coisas: sacos de
farinha, tonéis de cerveja e água, barris com carne
de porco, jarros de mel, odres de vinho, maçãs,
nozes, queijos, biscoitos, nabos, fatias de
toucinho. Do teto – isto é, da parte de baixo do
convés – pendiam presuntos e braçadas de cebolas
e, deitados nas suas redes, os vigias que estavam
de serviço.
Depois foram para a popa, chegando a uma
parede de madeira com uma porta, que Caspian
abriu. Entraram numa cabine que ocupava a parte
de baixo da popa e dos camarotes do convés. Não
era tão bonita quanto a outra. O teto era muito
baixo, e as paredes tinham uma inclinação muito
acentuada. Embora de vidro grosso, as janelas não
podiam ser abertas, pois ficavam quase debaixo
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do nível da água. Conforme o navio mergulhava,
pareciam alternadamente douradas, com a luz do
sol, ou verde-escuras, com o mar.
– Eu e você, Edmundo, vamos ficar
alojados aqui – disse Caspian. – Cederemos ao
seu parente o beliche e dormiremos nas redes.
– Rogo a Vossa Majestade... – disse
Drinian.
– Não, meu amigo – replicou o rei –, já
discutimos isso. Você e Rince (Rince era o
ajudante) dirigem o navio e terão muito trabalho
todas as noites, enquanto nós ficaremos a cantar
ou a contar histórias. Por isso, vocês ficam no
camarote superior. O rei Edmundo e eu ficaremos
embaixo comodamente instalados. Como vai indo
o estrangeiro?
Eustáquio, muito esverdeado, fechou a cara
e quis saber se havia indícios de a tempestade
acalmar.
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– Que tempestade? – perguntou Caspian. E
Drinian caiu na gargalhada, dizendo:
– Tempestade, meu jovem?! Não se pode
pedir um tempo melhor!
– Quem é esse cidadão? – perguntou
Eustáquio, irritado. – Mandem que ele se retire. A
voz dele me dá nos nervos.
– Trouxe uma coisa que vai fazer-lhe bem,
Eustáquio – disse Lúcia.
– Ora, deixem-me em paz! – resmungou
Eustáquio. Mas tomou uma gota do frasco. Apesar
de dizer que era uma droga horrenda (o cheiro que
se espalhou pela cabine era delicioso), seu rosto
retomou a cor natural, segundos depois de ter
bebido.
Devia sentir-se melhor, pois, em vez de
queixar-se da tempestade e da cabeça, começou a
pedir que o desembarcassem e a garantir que
haveria de “apresentar queixa” contra todos eles
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ao cônsul britânico, no primeiro porto a que
chegassem.
Quando Ripchip perguntou que queixa era
essa e como se apresentava (Ripchip achava que
era uma nova maneira de arranjar um duelo),
Eustáquio apenas pôde responder:
– Vejam só! Não sabe nem isso!
Por fim conseguiram convencê-lo de que
estavam navegando o mais depressa possível para
a terra mais próxima que conheciam, e que ir para
a Inglaterra ou para a Lua seria a mesma coisa –
impossível!
Acabou consentindo, de cara feia, em vestir
outra roupa e subir para o convés.
Caspian acompanhou-os na visita ao barco,
ainda que já o tivessem visto quase todo. Subiram
ao castelo da proa e viram os vigias num pequeno
compartimento dentro do pescoço dourado do
dragão, olhando pela boca aberta. Dentro do
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castelo da proa estava a galé (ou cozinha do
navio) e os alojamentos do contramestre, do
carpinteiro, do cozinheiro e do arqueiro-mor.
Se você acha estranho que a cozinha esteja
na parte da frente, pensando que o fumo da
chaminé se espalha para trás, por todo o navio, é
porque está imaginando um navio a vapor, onde
há sempre vento de frente. Numa embarcação a
vela o vento vem de trás, e qualquer coisa que
deite cheiro é colocada bem na frente.
Subiram à torre de combate, onde, à
primeira vista, era aflitivo olhar lá embaixo o
convés, tão pequeno e tão longe. Quem caísse
dali, tanto podia cair dentro, no navio, como no
mar. Depois foram levados à popa, onde Rince e
outro homem estavam de serviço na grande roda
do leme, detrás da qual o dragão erguia a cauda de
ouro, formando um pequeno compartimento com
um pequeno banco.
O navio chamava-se Peregrino da
Alvorada. Era uma coisinha à-toa se comparado
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aos nossos navios, e até mesmo às galeras que
havia em Nárnia na época em que Lúcia e
Edmundo ali reinaram, pois quase toda a
navegação havia cessado com os antecessores de
Caspian. Quando seu tio, o usurpador Miraz,
mandou os sete fidalgos para o mar, teve de
comprar um navio galmiano. Mas, agora, Caspian
começara a ensinar aos narnianos a ser de novo
gente do mar, e o Peregrino era o mais bonito dos
barcos que mandara construir, mas tão pequeno
que quase não tinha convés entre o mastro
principal e a escotilha, de um lado, e o galinheiro,
do outro (Lúcia deu de comer às galinhas). Em
seu gênero, era uma beleza, como diziam os
marinheiros, de linhas perfeitas, cores puras, todos
os pormenores feitos com amor.
Não agradava nada a Eustáquio, que não
parava de contar vantagens sobre os
transatlânticos, barcos a vapor, aviões,
submarinos (“Como se entendesse qualquer coisa
disso” – murmurou Edmundo). Mas os outros dois
estavam encantados com o Peregrino. Quando
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voltaram ao camarote para cear e viram o céu todo
iluminado com um imenso pôr-do-sol, e sentiram
o navio estremecer sob os pés, e o gosto de sal nos
lábios, tudo isso aliado à perspectiva de terras
desconhecidas, tiveram tão grande sensação de
felicidade, que Lúcia não conseguiu dizer uma
palavra.
Quanto ao pensamento de Eustáquio, é
melhor sabermos por intermédio de suas próprias
palavras; pois quando lhe devolveram sua roupa
seca, na manhã seguinte, tirou do bolso um
caderninho de capa preta e um lápis e começou a
escrever um diário. Costumava apontar nesse
caderno inseparável suas notas de colégio. Não se
interessava de fato por nenhuma das matérias,
mas adorava tirar boas notas e vivia perguntando
a todos: “Quanto você tirou em Geografia? Eu
tirei nove!” Como não era provável que lhe
dessem boas notas no Peregrino, resolveu iniciar
o diário. Eis o começo:
“7 de agosto. Se isso não é um sonho, já
estou 24 horas neste barco abaixo da crítica.
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Durante todo esse período tem feito um mau
tempo insuportável (ainda bem que não costumo
enjoar a bordo). Ondas imensas avançam
constantemente sobre a parte da frente do barco, e
já o vi em perigo de ir ao fundo inúmeras vezes.
Os outros fingem que não notam, ou por
fanfarronice, ou por fecharem covardemente os
olhos aos fatos (como Arnaldo afirma que fazem
as pessoas medíocres). E uma autêntica loucura
vir para o mar em uma miserável casquinha como
esta. Não é mais espaçosa que um salva-vidas. O
interior, claro, é de todo primitivo. Não tem um
salão, nem rádio, nem banheiros, nem poltronas.
Ontem à noite levaram-me quase de rastos para
ver o barco todo, e era de morrer de rir ouvir
Caspian gabar o seu barquinho como se fosse o
Queen Mary. Ainda tentei explicar-lhe como eram
os barcos de verdade, mas é burro demais. E. e L.
não estão de acordo comigo. Acho que L. ainda
não tem consciência do perigo, e E. vive botando
azeitonas na empada de C, como fazem todos
aqui. É chamado de rei. Disse-lhe que eu era
republicano, e perguntou-me o que vinha a ser
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isso!!! Acho que não entende nada de nada. É
desnecessário dizer que me puseram no pior
camarote, um verdadeiro calabouço. À Lúcia
deram um camarote no convés, só para ela. Se o
compararmos com o resto do barco, dir-se-ia que
é quase belo. C. diz que é por se tratar de uma
moça. Tentei explicar-lhe o que Alberta sempre
diz, que esse tipo de coisa inferioriza as moças,
mas não conseguiu entender. Porém, podia bem
compreender que vou adoecer se continuar por
mais tempo neste covil. E. diz que não devemos
queixar-nos porque o próprio C. divide o quarto
conosco, cedendo o seu a L. Como se assim não
ficássemos mais apertados e numa situação ainda
pior. Quase me esquecia de dizer que há também
aqui uma espécie de rato, que trata a todos com a
mais incrível arrogância. Os outros que o
suportem, se quiserem; quanto a mim, dou-lhe um
bom nó na cauda na primeira em que se meter
comigo. A comida também é detestável.”
A questão entre Eustáquio e Ripchip
estourou mais cedo do que se esperava. No dia
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seguinte, antes do almoço, quando os outros já
estavam sentados à mesa esperando (o mar dá um
apetite excelente), Eustáquio entrou correndo,
apertando uma das mãos e gritando:
– Aquele animal quase me matou! Exijo
que seja posto sob vigilância. Eu podia intentar
uma ação contra você, Caspian. Podia até exigir
que executasse o rato!
Ripchip apareceu, espada desembainhada,
bigodes eriçados, mas cortês como sempre.
Edmundo perguntou o que se passava.
– Peço perdão a todos, e especialmente a
Vossa Majestade (referindo-se aqui a Lúcia). Se
soubesse que ele se refugiara neste recinto, teria
esperado melhor ocasião para castigá-lo.
Acontecera o seguinte: Ripchip, que nunca
achava que o barco ia rápido o bastante, gostava
de sentar-se na amurada, na cabeça do dragão,
olhando o horizonte para as bandas do oriente e
cantando na sua vozinha chiante a canção que a
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dría-de lhe dedicara. Nunca se agarrava a nada e,
embora o navio pulasse, conservava facilmente o
equilíbrio. Sua cauda, que se estendia pelo
convés, devia contribuir para essa estabilidade.
Todos a bordo conheciam esse hábito, e os
marinheiros gostavam disso, pois é sempre bom
ter alguém para conversar quando se está de vigia.
A verdadeira razão que levou Eustáquio a ir
escorregando, cambaleando, tropeçando por todo
o caminho até o castelo da proa (ainda não se
acostumara com os balanços do navio) é que eu
nunca soube. Talvez esperasse ver terra, talvez
tenha ido rondar a cozinha do navio para ver se
abiscoitava alguma coisa. De qualquer modo,
assim que viu aquela cauda estendida – realmente
devia ser uma tentação – pensou que seria genial
fazer Ripchip rodopiar preso pela cauda, uma ou
duas vezes, para baixo e para cima, e sair depois
correndo em grandes risadas. A princípio tudo
parecia ir muito bem. O rato era pouco mais
pesado que um gato grande. Eustáquio o fez girar
umas três vezes e achou muito engraçado ver
Ripchip com as patinhas afastadas e a boca aberta.
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Mas, infelizmente, Rip lutara muitas vezes
para defender a vida e não perdeu a cabeça um só
instante. Nem a agilidade. Não é muito fácil
desembainhar uma espada quando se está rodando
no ar, preso pela cauda, mas ele conseguiu.
Dois dolorosos golpes na mão obrigaram
Eustáquio a soltar imediatamente a cauda do rato.
Endireitando-se logo, este saltou para o convés
como uma bola e enfrentou o rapaz; manejava
para a frente e para trás uma coisa comprida,
brilhante, afiada como um espeto, apenas à
distância de cinco centímetros da barriga do
adversário.
– Pare com isso! – berrou Eustáquio. – Vá
embora! Vou contar tudo para Caspian! Aposto
que irão amordaçá-lo!
– Por que não tira a sua espada, covardão? –
chiou o rato. – Tire-a e lute, ou lhe baterei tanto
com a espada que vou deixá-lo roxo.
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– Nunca usei uma espada – disse Eustáquio.
– Sou um pacifista. Não me meto em brigas.
– Quer dizer – disse Ripchip, afastando a
espada e falando com grande severidade – que
não pretende conceder-me uma reparação?
– Não entendo o que quer dizer – disse
Eustáquio, esfregando a mão. – Se você é incapaz
de entender uma brincadeira, não vou perder meu
tempo.
– Então, tome esta – disse Ripchip – e mais
esta, e esta, para aprender a ter modos e a
respeitar um Cavaleiro do Reino e a cauda de um
rato. – E, a cada palavra, castigava Eustáquio com
um golpe lateral de sua pequena espada, que era
fina, de aço forjado por anões, e tão flexível e
eficiente quanto um chicote.
Eustáquio, é claro, estudava em uma escola
em que não havia castigos corporais: a sensação
era completamente nova para ele. Assim, mesmo
não tendo pernas de homem do mar, levou menos
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de um minuto para chegar ao castelo da proa,
cobrindo toda a extensão do convés como um
relâmpago e irrompendo pela porta do camarote
ainda perseguido por Ripchip.
Não houve grande dificuldade em resolver a
questão. Ao perceber que todos aderiram, muito a
sério, à idéia de um duelo (ouviu Caspian
oferecer-lhe sua espada, enquanto Drinian e
Edmundo discutiam as condições que lhe
deveriam impor, visto ser muito mais alto do que
Ripchip), Eustáquio desculpou-se, emburrado.
Depois retirou-se com Lúcia, para que esta
tratasse do seu ferimento. Quando foi dormir, teve
o cuidado de deitar-se de lado.
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3
As ILHAS SOLITÁRIAS
– Terra à vista! – gritou o homem da proa.
Lúcia, que conversava com Rince na popa,
correu escada abaixo e, no caminho, encontrou
Edmundo. Quando chegaram ao castelo da proa,
Caspian, Ripchip e Drinian já estavam lá.
A manhã era fria, com o céu muito pálido e
o mar azul-escuro com pequenas cristas brancas
de espuma. Longe, avistava-se a mais próxima das
Ilhas Solitárias, Felimate, como montanha verde
no meio do mar, e, mais longe ainda, as vertentes
cinzentas de sua irmã Durne.
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– Sempre a mesma Felimate! Sempre a
mesma Durne! – exclamou Lúcia, batendo
palmas. – Oh, Edmundo, faz tanto tempo que
estivemos aqui!
– Nunca entendi por que pertencem a
Nárnia – disse Caspian. – Foram conquistadas
pelo Grande Rei Pedro?
– Não! – respondeu Edmundo. – Já
pertenciam a Nárnia antes disso, desde o tempo da
Feiticeira Branca.
De minha parte, nunca soube por que essas
ilhas afastadas passaram a pertencer à coroa de
Nárnia; se algum dia souber e se a história tiver
realmente interesse, hei de narrá-la em outro livro.
– Vamos lançar âncora aqui? – perguntou
Drinian.
– Acho que não vale a pena desembarcar
em Felimate – disse Edmundo. – Era quase
desabitada no nosso tempo e acho que não mudou.
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O povo vivia principalmente em Durne e um
pouco em Avra, a terceira ilha, que não se vê
daqui.
– Então teremos de dobrar aquele cabo –
disse Drinian – e desembarcar em Durne. Isso
quer dizer que precisamos remar.
– É uma pena que não vamos desembarcar
em Felimate – disse Lúcia. – Gostaria de dar uma
voltinha por lá. Era tudo tão solitário... Uma
solidão linda. Tudo relva, trevo e ar puro do mar.
– Também gostaria de mexer as pernas –
disse Caspian. – Tenho uma idéia: iremos de bote,
e depois o enviamos de volta; atravessamos
Felimate a pé e pegamos o Peregrino do outro
lado da ilha.
Se Caspian já fosse tão experiente como
veio a ser mais tarde naquela mesma viagem, não
teria feito essa sugestão, que, de momento, lhe
parecia excelente.
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– Ótimo! – gritou Lúcia.
– Quer vir também? – indagou Caspian a
Eustáquio, que tinha subido ao convés com a mão
enfaixada.
– Qualquer coisa é melhor do que a droga
deste navio!
– Droga! Que quer dizer com isso? –
perguntou Drinian.
– Num país civilizado, como aquele de
onde vim, os navios são tão grandes que, quando
se entra neles, nem se chega a perceber que andou
no mar.
– Nesse caso podiam ficar sempre em terra.
– disse Caspian. – Drinian, pode mandar descer o
bote.
O rei, o rato, os dois Pevensie e Eustáquio
entraram no bote e foram levados à praia de Felimate.
Quando o bote os deixou e voltou, olharam
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em torno: ficaram surpresos ao ver como o
Peregrino parecia pequenino.
Claro que Lúcia continuava descalça, pois
havia tirado os sapatos para nadar, mas não
achava nada difícil caminhar sobre a relva macia.
Era formidável pisar novamente no chão, sentir o
cheiro da terra e da relva, ainda que a princípio o
terreno parecesse balançar como no barco, o que
acontece normalmente durante algum tempo,
depois de uma viagem por mar. Era mais quente
ali do que a bordo, e Lúcia gostou de pisar na
areia. Uma cotovia cantava.
Subiram a um monte bastante escarpado,
ainda que baixo. No alto, como é natural, olharam
para trás e lá estava o Peregrino brilhando como
um grande inseto reluzente, movendo-se
lentamente para noroeste com os seus remos.
Dobraram a crista do monte e não mais o viram.
Durne estava na frente, separada de
Felimate por um canal com menos de dois
quilômetros; à esquerda ficava Avra.
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Via-se nitidamente a cidadezinha branca de
Porto Estreito, em Durne.
– O que é aquilo? – perguntou Edmundo.
No vale verde, para o qual desciam,
estavam sentados, à sombra de uma árvore, seis
ou sete homens de má aparência, todos armados.
– Não lhes digam quem somos – falou
Caspian.
– Pode-se saber por quê, Majestade? –
perguntou Ripchip, que concordara em ser
transportado no ombro de Lúcia.
– Ocorreu-me agora que talvez ninguém
aqui ouça falar de Nárnia há muito tempo. É bem
possível que já não reconheçam a nossa soberania.
De qualquer forma, não é muito seguro ser
conhecido como rei.
– Temos as nossas espadas – disse Ripchip.
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– Sim, é claro, mas se tivermos de
reconquistar as três ilhas prefiro voltar aqui com
um exército maior.
Já estavam muito perto dos homens, quando
um deles, um homenzarrão de cabelo escuro,
gritou:
– Bom dia!
– Bom dia! – disse Caspian. – Ainda há um
governador nas Ilhas Solitárias?
– Claro que há – respondeu o homem –, o
governador Gumpas. Sua Excelência está em
Porto Estreito. Sentem-se e bebam conosco.
Caspian agradeceu, e, ainda que nem ele
nem os outros gostassem da aparência dos novos
conhecidos, sentaram-se todos. Mal tinham levado
o copo aos lábios, já o homem de cabelo escuro
fazia sinal aos companheiros, e num relâmpago os
cinco visitantes viram-se agarrados por braços
fortes. A luta foi rápida, e logo estavam todos
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desarmados e com as mãos amarradas às costas,
com exceção de Ripchip, que se revirava nas
mãos de seu captor e o mordia furiosamente.
– Cuidado com esse animal, Taco – disse o
chefe. – Não o machuque. Vai alcançar o melhor
preço de todo o lote. Quem haveria de dizer!
– Covarde! Poltrão! – guinchava Ripchip. –
Passe a minha espada e liberte-me, se for homem!
– Puxa! – exclamou o mercador de
escravos, pois era essa sua profissão. – Ele fala!
Nunca pensei!
Quero ser mico de circo se não fizer com
ele duzentos crescentes. (O crescente dos
calormanos, que é a principal moeda da região,
vale cerca de duzentos reais.)
– Então o seu trabalho é esse? – falou
Caspian.
– Raptor de crianças e vendedor de
escravos! Deve sentir-se muito orgulhoso...
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– Ora, não comece com besteiras –
interrompeu o mercador. – Quanto mais
bonzinhos ficarem, melhor será para todos. Não
faço isso por gosto. Tenho de ganhar a vida como
todo o mundo.
– Para onde está nos levando? – perguntou
Lúcia, pronunciando as palavras com dificuldade.
– Para Porto Estreito – respondeu o
mercador.
– Amanhã é dia de feira.
– Existe lá um cônsul britânico? –
perguntou Eustáquio.
– Existe o quê?! – estranhou o homem.
Mas, antes que Eustáquio se cansasse de
explicar, o mercador disse apenas:
– Chega de conversa fiada. O rato é uma
boa mercadoria, mas este aqui fala pelos
cotovelos. Vamos andando, pessoal.
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Os quatro prisioneiros foram amarrados
juntos, não de maneira cruel, mas de modo que
ficassem seguros. Tiveram de caminhar até a
praia. Ripchip era transportado no colo. Tinha
parado de morder, sob a ameaça de lhe
amordaçarem, mas desforrava-se protestando.
Lúcia estava boba de ver como o mercador
agüentava as coisas que o rato lhe dizia. –
Continue! – dizia ele, sem se irritar, sempre que
Ripchip parava para tomar fôlego; e acrescentava
de vez em quando: – Isto é melhor do que ir ao
teatro de marionetes; chego a pensar que sabe o
que está dizendo! Quem o ensinou a falar?
Isso enfureceu tanto Ripchip que ele acabou
sufocado (com tanta coisa para falar ao mesmo
tempo) e calou a boca.
Quando chegaram à praia, que ficava em
frente de Durne, encontraram uma aldeiazinha e,
um pouco mais longe, um barco comprido, que
parecia sujo de lama.
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– Agora, jovens – disse o mercador –, nada
de confusões, para não terem o que lamentar.
Todos a bordo.
Nesse mesmo instante, um homem barbado,
de boa aparência, saiu de uma casa (uma
estalagem, acho) e disse:
– Olá, Pug. Mais um pouco de sua
mercadoria de sempre?
O mercador fez uma profunda reverência e
disse num tom mesureiro:
– Pois é. Vossa Senhoria quer alguma?
– Quanto está pedindo por aquele rapaz? –
perguntou o outro, apontando para Caspian.
– Ah, Vossa Senhoria sempre escolhe o
melhor. Não se deixa enganar com coisa de
segunda classe.
Aquele rapaz, ora essa, é também o meu
preferido. Sinto simpatia por ele. Tenho um
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coração sensível, não devia ter entrado numa
profissão como esta. No entanto, para um cliente
como Vossa Senhoria...
– Diga-me o preço dele, seu verme – disse o
senhor, severamente. – Acha que quero ouvir essa
conversa mole?
– Trezentos crescentes, meu senhor, para a
Vossa honrada Senhoria, mas para qualquer
outro...
– Dou cento e cinqüenta.
– Oh, por favor, por favor! – interrompeu
Lúcia.
– Seja como for, não nos separe. Não sabe
que... – Mas calou-se logo, pois viu que Caspian,
nem mesmo naquela situação, queria ser
reconhecido.
– Cento e cinqüenta! – repetiu o senhor. –
Quanto a você, menina, tenho muita pena, mas
não posso comprar todos. Solte o rapaz, Pug. E
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trate bem os outros enquanto estiverem nas suas
mãos; do contrário, será pior para você.
– Essa é boa! – exclamou Pug. – Quem já
ouviu falar de um cavalheiro, nesse meu ramo de
negócio, que tratasse a mercadoria melhor do que
eu?!
Trato deles como se fossem meus filhos.
– E bem provável que sim – disse o outro,
de modo sombrio.
O momento terrível chegara. Caspian foi
desatado e o seu novo amo lhe disse:
– Por aqui, moço.
Lúcia desandou a chorar, e Edmundo ficou
muito pálido. Caspian, no entanto, olhou por cima
do ombro, dizendo:
– Coragem! Tenho certeza de que no fim
dará tudo certo. Até mais ver.
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– Vamos, menina – disse Pug –, não fique
assim que estraga a sua aparência. Tem de ser
vendida amanhã. Comporte-se, nada de choro.
Entendeu?
Foram levados em um bote a remo para o
barco de escravos e metidos num largo
compartimento, bastante escuro e nada limpo,
onde já se encontravam outros infelizes
prisioneiros. Pug, sem dúvida alguma, era um
pirata e havia naquela ocasião regressado de uma
incursão pela ilha, onde apanhara tudo o que
pudera. As crianças não encontraram nenhum
conhecido; a maior parte dos prisioneiros era de
Galma ou de Terebíntia. Sentaram-se na palha,
imaginando o que estaria acontecendo com
Caspian. E tentando calar Eustáquio, que queria
culpar a todos, menos a si próprio, pelo
acontecido.
Do lado de Caspian, as coisas eram mais
interessantes. O homem o levou por um atalho até
um campo atrás da aldeia.
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– Não precisa ter medo de mim – disse. –
Vou tratá-lo muito bem. Comprei-o por causa de
sua fisionomia. Você me lembra alguém.
– Posso saber quem, meu senhor? –
perguntou Caspian.
– O meu amo, o rei Caspian de Nárnia.
Caspian resolveu então arriscar tudo de uma
vez:
– Meu senhor, eu sou Caspian, rei de
Nárnia.
– Assim é muito fácil. – disse o outro –
Como posso saber se é verdade?
– Em primeiro lugar, vê-se pela minha cara.
Em segundo lugar, porque sou capaz de dizer
quem é você entre seis outros. Você é um dos sete
fidalgos que meu tio Miraz mandou para o mar:
Argos, Bern, Octasiano, Restimar, Mavramorn,
e... e... me esqueci dos outros. Se me der uma
espada provarei, em combate leal, que sou
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Caspian, filho de Caspian, legítimo rei de Nárnia,
Senhor de Cair Paravel e Imperador das Ilhas
Solitárias.
-Justos céus! – exclamou o homem. – É
exatamente a mesma voz e a mesma maneira de
falar do pai. Meu senhor e meu rei!
Ajoelhou-se e beijou a mão de Caspian, que
lhe disse:
– O dinheiro que desembolsou será
restituído pelo nosso tesouro.
– Já não deve estar na bolsa de Pug, senhor
– disse lorde Bern, pois era ele – e, segundo
penso, nunca estará. Já disse centenas de vezes ao
governador para acabar com esse infame
comércio de seres humanos.
– Caro lorde Bern, temos muito o que falar
sobre o que se passa nestas ilhas, mas quero ouvir
primeiro a sua história.
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– É muito curta, senhor. Vim dar aqui com
os meus seis companheiros, gostei de uma moça
destas ilhas e cheguei à conclusão de que havia
andado muito tempo pelo mar. Enquanto seu tio
estivesse no governo não seria possível voltar a
Nárnia; assim, casei-me e aqui tenho vivido desde
então.
– Como é esse Gumpas, o governador?
Ainda reconhece o rei de Nárnia como soberano?
– Aparentemente sim. Tudo é feito em
nome do rei. Mas ele não vai ficar nada satisfeito
ao ver o rei de Nárnia, real e vivo, a pedir-lhe
contas do que fez. Se Vossa Majestade aparecesse
na frente dele sozinho e desarmado, bem... não
negaria vassalagem, mas fingiria não acreditar.
– O meu navio está agora virando o cabo.
Se for preciso combater, somos trinta espadas.
Posso cair sobre Pug com o meu navio e libertar
meus amigos, que ele tem cativos.
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– Não o aconselho a fazer isso – disse Bern.
– Logo que começasse o combate, sairiam de
Porto Estreito dois ou três navios em socorro de
Pug. Vossa Majestade tem de agir fazendo alarde
de um poderio que na realidade não tem e debaixo
do terror produzido pelo nome do rei. Não deve ir
em combate. Gumpas não agüenta uma galinha
pelo rabo e acovarda-se facilmente.
Falaram mais algum tempo e desceram até
a costa, desviando-se para oeste da aldeia; aí,
Caspian fez soar a trompa (não era a trompa
mágica da rainha Susana, que ficara em Nárnia
com o regente Trumpkin, para o caso de alguma
urgência).
Drinian, que estava de vigia à espera de um
sinal, reconheceu logo a trompa real, e o
Peregrino começou a aproximar-se da praia. O
bote foi de novo arriado, e em poucos momentos
Caspian e lorde Bern encontravam-se no convés
explicando para Drinian a situação.
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Este, como Caspian, teria preferido acostar
o navio de escravos e fazer uma abordagem, mas
Bern apresentou a objeção anterior.
– Navegue reto pelo canal, capitão – disse
Bern.
– Vire depois para Avra, onde tenho os
meus domínios. Hasteie o pavilhão azul, suspenda
todos os escudos, mande para a ponte de combate
o maior número possível de homens. Cerca de
cinco tiros de flechas daqui, quando chegar à
entrada do porto, faça alguns sinais.
– Sinais? Para quem? – perguntou Drinian.
– Para os navios que não trouxemos, mas
que é preciso que Gumpas julgue que trouxemos.
– Estou entendendo – respondeu Drinian,
esfregando as mãos. – E eles irão ler os nossos
sinais.
Que vamos dizer? Que a Armada vire ao
sul de Avra e se reúna...
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– No domínio de Bern – completou lorde
Bern.
– Perfeito. Se existissem alguns navios,
toda a travessia se faria fora das vistas de Porto
Estreito.
Caspian sentia pena dos amigos, que
definhavam no barco de escravos, mas não pôde
deixar de achar o resto do dia muito agradável. Já
muito tarde, entraram em um belo porto da costa
sul de Avra, onde as ricas terras de Bern desciam
até o mar.
Os habitantes de Bern, muitos dos quais
trabalhavam no campo, eram todos livres; o
domínio era feliz e próspero. Foram regiamente
recebidos em uma casa baixa, sustentada por
colunas, da qual se via toda a baía. Bern, sua
simpática esposa e suas encantadoras filhas
acolheram os visitantes com alegria.
Depois de anoitecer, Bern enviou um
mensageiro de bote a Durne, para organizar
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alguns preparativos (não disse exatamente quais)
para o dia seguinte.
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4
UMA VITÓRIA DE
CASPIAN
Na manhã seguinte, lorde Bern chamou os
hóspedes bem cedo e pediu a Caspian que
mandasse seus homens vestirem armadura
completa.
– E especialmente – acrescentou – que tudo
esteja tão limpo e reluzente como na manhã de um
grande combate entre nobres reis, com um grande
público assistindo.
Assim fizeram; Caspian com a sua gente e
Bern com alguns de seus homens embarcaram em
três botes com destino a Porto Estreito.
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No cais, Caspian encontrou grande
multidão a recebê-lo.
– Foi isto que mandei preparar na noite
passa da – disse Bern. – São todos meus amigos e
gente de bem.
Logo que Caspian desembarcou, a multidão
rebentou em hurras e gritos: “Nárnia! Nárnia!
Viva o Rei!”
No mesmo instante – também devido ao
mensageiro de Bern –, começaram a tocar os sinos
em vários lugares da cidade. Caspian mandou
avançar seu pavilhão, ordenou que o corneteiro
tocasse, que todos desembainhassem as espadas e
que tivessem no rosto uma expressão de alegre
serenidade. Marcharam de tal modo que toda a rua
estremecia, e as armaduras brilhavam tanto ao sol
da manhã que era impossível olhá-las fixamente.
A princípio, as únicas pessoas que davam
vivas eram as que tinham sido avisadas pelo
mensageiro de Bern, que sabiam o que se passava
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e gostavam disso; mas depois vieram as crianças,
porque estas adoravam os desfiles e tinham visto
ainda muito poucos. Em seguida, foram os garotos
de escola, que também gostavam de desfiles e
achavam que quanto mais barulho houvesse
menor seria a probabilidade de irem à escola
naquela manhã. E depois as velhas começaram a
esticar o pescoço para fora das portas e janelas e a
tagarelar... Um rei ia passar, e o que é um
governador comparado com um rei? Vieram
depois as moças, pela mesma razão, e também
porque Caspian, Drinian e os outros eram muito
simpáticos. E depois os rapazes vieram para ficar
perto das moças. Já era quase a cidade toda
aclamando quando alcançaram os portões do
castelo. Sentado à sua mesa, remexendo contas,
regulamentos e leis, Gumpas ouviu o barulho.
À entrada do castelo, o corneteiro tocou,
gritando em seguida:
– Abram para o Rei de Nárnia, que vem em
visita ao seu fiel servo, o governador das Ilhas
Solitárias.
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Naquela época, tudo quanto se fazia nas
ilhas era com desleixo e de maneira descuidada.
Abriu-se apenas uma portinhola do castelo e
apareceu um homenzinho com um chapéu sujo na
cabeça, em vez de elmo, e um chuço velho e
enferrujado na mão. Pestanejou quando viu as
figuras brilhando na sua frente e, falando de um
jeito que mal se podia entender, disse:
– Não podem ver Sua Excelência. Não se
concede audiência sem hora marcada, exceto das
nove às dez nos segundos sábados de cada mês.
– Tire o chapéu perante Nárnia, cão! –
trovejou Bern, dando-lhe tal pancada com sua
mão imensa que o chapéu saltou-lhe da cabeça.
– Que é isto? – começou o porteiro, mas
ninguém lhe deu importância. Dois dos homens
de Caspian entraram pela portinhola e, depois de
alguma luta com as trancas e ferrolhos (estava
tudo enferrujado), escancararam as duas partes do
grande portão.
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O rei e seu séquito entraram no pátio, onde
cochilavam alguns guardas, e muitos outros
saíram aos tombos de várias portas, ainda
limpando a boca. Apesar de terem as armas em
péssimas condições, aqueles homens poderiam
lutar se fossem levados a isso ou entendessem o
que estava se passando. O momento era na
verdade perigoso, mas Caspian não lhes deu
tempo para pensar.
– Onde está o capitão? – perguntou.
– De certo modo sou eu, se é que está me
entendendo – disse um jovem de aspecto
lânguido, sem armadura.
– É nossa intenção – disse Caspian – tornar
a nossa visita um motivo de alegria e não de terror
para todos os nossos leais súditos das Ilhas
Solitárias. Se assim não fosse, teríamos muito que
falar sobre o estado das armas e das armaduras de
seus homens. Por esta vez estão perdoados.
Mande abrir um tonel de vinho para que bebam
todos à nossa saúde. Mas, amanhã, ao meio-dia,
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quero vê-los neste pátio como gente de armas e
não como vagabundos. Providencie para que se
cumpra como ordenamos, sob pena do nosso real
desagrado.
O capitão ficou boquiaberto, mas Bern
gritou logo:
– Três vivas ao Rei! – E os soldados, que
tinham ouvido qualquer coisa acerca de um tonel
de vinho, mesmo sem terem entendido nada mais,
juntaram-se a eles.
Caspian ordenou que a maior parte de seus
homens ficasse no pátio. Ele, Bern, Drinian e mais
quatro outros entraram no salão. O governador
das Ilhas Solitárias sentava-se a uma mesa no
extremo da sala, rodeado de vários secretários.
Era um homem de aspecto doentio, com uma
cabeleira que outrora fora ruiva, mas que estava
agora toda grisalha. Ergueu os olhos quando os
desconhecidos entraram e depois, olhando para os
seus papéis, foi dizendo automaticamente:
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– Não há audiência sem hora marcada,
exceto das nove às dez nos segundos sábados de
cada mês.
Caspian fez um sinal a Bern e afastou-se
para o lado. Bern e Drinian avançaram, e cada um
deles pegou de um lado da mesa. Ergueram-na,
atirando-a de encontro à parede de um dos lados
do salão, espalhando uma cachoeira de cartas,
pastas, tinteiros, canetas, carimbos e documentos.
Depois, delicadamente, mas firmes, como se as
mãos fossem pinças de aço, arrancaram Gumpas
da cadeira e o colocaram no chão, um metro mais
longe. Caspian sentou-se imediatamente na
cadeira e descansou a espada desembainhada
sobre os joelhos. Olhando fixamente para
Gumpas, disse:
– Meu senhor, não tivemos de sua parte a
acolhida que esperávamos. Sou o rei de Nárnia.
– Na correspondência não vejo nada acerca
de sua vinda – disse o governador. – Nem nas
minutas. Não fomos notificados. Tudo isso é
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muito ir regular. Gostaria de considerar o assunto
com mais vagar.
– Estou aqui para inquirir do desempenho
de suas funções. E há especialmente dois pontos
que exijo que me sejam explicados. Em primeiro
lugar, não há qualquer registro que indique ter
sido pago algum tributo por estas ilhas à Coroa...
há cerca de cento e cinqüenta anos.
– Isto é uma questão para ser tratada em
conselho no próximo mês. Se for necessário,
formarei uma comissão de inquérito para apreciar
o panorama financeiro destas ilhas, na próxima
assembléia do ano que vem, e só então...
– E também vejo escrito muito claramente
nas nossas leis – continuou Caspian – que, se o
tributo não for entregue, todo o débito terá de ser
pago pelo governador das ilhas de sua bolsa
particular.
Aí Gumpas começou a tomar interesse
verdadeiro pelo assunto.
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– Oh, mas isso é inadmissível. É
financeiramente impossível. Vossa Majestade
deve estar brincando.
Lá no fundo, estava imaginando de que
modo poderia ver-se livre daqueles visitantes
indesejáveis. Se soubesse que Caspian só tinha
um navio, teria pronunciado naquela ocasião
palavras muito melífluas, esperando que a noite
caísse para cercá-los e matá-los todos. Mas tinha
visto um navio de guerra atravessar o estreito no
dia anterior, fazendo sinais, conforme supunha,
para outros navios. Não havia reconhecido o
navio do rei, pois não havia vento suficiente para
desenrolar a bandeira e tornar visível o leão de
ouro, e assim esperara pelos acontecimentos.
Julgava agora que Caspian tinha uma armada
completa no domínio de Bern. Gumpas nunca
seria capaz de supor que alguém entrasse em
Porto Estreito para tomar as ilhas com menos de
trinta homens; não era de modo algum uma coisa
que ele mesmo tivesse coragem de fazer...
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– Em segundo lugar – disse Caspian –,
gostaria de saber por que permitiu que se
desenvolvesse aqui esse ignominioso tráfico de
escravos, contrariando antigos usos e costumes de
nossos domínios.
– Não foi possível ser de outro modo –
respondeu Sua Excelência. – Posso assegurar-lhe
que é uma parte essencial do desenvolvimento
econômico das ilhas. O nosso presente estado de
prosperidade depende disso.
– Mas que necessidade tem dos escravos?
– Para exportação, Majestade. São vendidos
especialmente para a Calormânia. E temos outros
mercados. Somos um grande centro comercial.
– Em outras palavras, não precisa deles.
Tem outra finalidade além de encher os bolsos de
um tal de Pug?
– Os verdes anos de Vossa Majestade –
disse Gumpas com um sorriso que pretendia ser
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paternal – impedem-no de compreender o
problema econômico daí resultante. Mas eu tenho
estatísticas, gráficos, tenho...
– Por mais verde que seja a minha idade,
acho que entendo tanto de comércio de escravos
quanto Vossa Excelência. O tráfico não traz para a
ilha carne, pão, cerveja, vinho, madeira, couve,
livros, instrumentos musicais, armaduras ou
qualquer outra coisa. Mas, mesmo que trouxesse,
não pode ria continuar.
– Isso seria o mesmo que impedir o relógio
de marcar o tempo – articulou a custo o
governador.
– Não faz idéia do que seja o
desenvolvimento, o progresso?
-Já vi essas duas coisas num saco só. Em
Nárnia chamamos a isso ir de mal a pior. Esse
negócio tem de acabar.
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– Não assumo a responsabilidade por essa
medida – disse Gumpas.
– Então, muito bem! Está desobrigado de
seu encargo. Lorde Bern, venha cá. – E, antes que
Gumpas compreendesse o que ia acontecer, Bern
ajoelhava-se como governador das Ilhas
Solitárias, segundo os antigos costumes de
Nárnia. E Caspian disse:
– Acho que já tivemos governadores demais
– e assim concedeu a lorde Bern o título de duque,
Duque das Ilhas Solitárias.
– Quanto ao senhor – falou Caspian para
Gumpas –, está perdoado pela dívida do tributo.
Mas, antes do meio-dia, o senhor e os seus
homens todos têm de sair do castelo, que é agora
residência do duque.
– Um momentinho – disse um dos
secretários de Gumpas –, tudo isto está muito
divertido, mas que tal se os senhores acabassem
com a brincadeira e começássemos a tratar de
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negócios?... A questão que temos realmente
perante nós é que...
– A questão é saber – disse o duque – se
você e o resto da canalhada vão embora com
açoites ou sem açoites! Podem escolher.
Quando tudo ficou satisfatoriamente
resolvido, Caspian mandou buscar cavalos (havia,
mas muito maltratados) e partiu com Drinian,
Bern e alguns outros para a cidade, dirigindo-se
ao mercado de escravos. Era um prédio baixo e
comprido perto do porto. O espetáculo lá dentro
era muito parecido com o de qualquer outro
leilão: uma grande multidão e Pug no estrado,
bradando com voz rouca:
– Agora, meus senhores, lote 23. Um belo
agricultor de Terebíntia, próprio para minas e
galés.
Menos de vinte e três anos. Bons dentes.
Um rapaz sadio e forte. Tire a camisa dele, Taco,
para que estes senhores possam ver melhor! Aqui
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os senhores têm músculos para servi-los! Olhem
para este peito! Dez crescentes para aquele senhor
ali do canto. Está brincando, cavalheiro? Quinze!
Dezoito! Arremata-se o lote 23 por dezoito? Vinte
e um. Muito obrigado. Arrematado por vinte e um
crescentes.
De repente Pug calou-se e ficou de boca
aberta ao ver as figuras vestidas de cota de malha
que subiam ao estrado.
– Todos de joelhos perante o Rei de Nárnia!
– clamou o duque.
Ouvia-se lá fora o relinchar de cavalos, e
muitos que ali estavam já tinham ouvido rumores
sobre o desembarque e os acontecimentos no
castelo. A maioria obedeceu. Os que não
obedeciam eram empurrados pelos vizinhos.
Alguns davam vivas.
– A sua vida me pertence, Pug, por ter
ousado ontem pôr as mãos na minha real pessoa –
disse Caspian. – Mas perdôo sua ignorância. O
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comércio de escravos foi abolido em nossos
domínios há quinze minutos. Declaro livres todos
os escravos deste mercado.
Levantou a mão para deter as aclamações
dos escravos e perguntou:
– Onde estão os meus amigos?
– A graciosa mocinha e o bonito rapaz? –
perguntou Pug, com um sorriso bajulador. – Ah,
já foram levados...
– Estamos aqui, estamos aqui, Caspian –
gritaram Lúcia e Edmundo ao mesmo tempo. – E
às suas ordens, Majestade – chiou Ripchip do
outro lado.
Tinham sido todos vendidos, mas os seus
“proprietários” continuavam a dar lances. A
multidão afastou-se para deixar passar os três, e
houve grandes apertos de mão e saudações entre
eles e Caspian.
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Dois comerciantes da Calormânia
aproximaram-se imediatamente. Os calormanos
têm rostos escuros e longas barbas. Usam vestes
amplas e turbantes cor-de-laranja e são um povo
sábio, rico, cortês, cruel e antigo. Inclinaram-se
polidamente perante Caspian e endereçaram-lhe
grandes saudações, falando em fontes da
prosperidade que irrigam o jardim da prudência e
da virtude – e outras coisas desse tipo –, mas o
que pretendiam na verdade era o dinheiro que
haviam pago pelos escravos.
– É absolutamente justo, senhores – disse
Caspian. – Todos os que compraram escravos,
hoje, têm de receber de volta o dinheiro. Pug,
entregue a eles tudo o que ganhou.
– Vossa Majestade quer levar-me a pedir
esmolas na rua da amargura? – gemeu Pug.
– Você viveu a vida toda à custa de
corações despedaçados. Ainda que peça esmola na
rua da amargura, sempre é melhor do que ser
escravo.
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Mas onde está meu outro amigo?
– Oh, aquele! Leve-o e faça bom proveito.
Ainda bem que me livro dessa droga! Nunca vi
nada pior. Já estava pedindo por ele só cinco
crescentes e mesmo assim ninguém queria...
Entrou como gratificação em outros lotes e nem
assim... Nem olhavam para ele. Taco, traga aqui o
Resmungão.
Trouxeram Eustáquio, que tinha de fato um
ar taciturno, pois, ainda que ninguém goste de ser
vendido como escravo, mais doloroso ainda é não
encontrar comprador. Caminhou ao encontro de
Caspian para dizer:
– Estou vendo que, como de costume, você
andou por aí se divertindo, enquanto estávamos
prisioneiros. Acho que ainda nem procurou o
cônsul britânico, é claro!
Naquela noite houve uma grande festa no
castelo.
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– Amanhã vão recomeçar realmente as
nossas aventuras! – disse Ripchip, ao despedir-se
de todos para ir deitar-se. Mas não seria no dia
seguinte que partiriam.
O Peregrino da Alvorada foi descarregado
e puxado para terra, sobre rodas, por oito cavalos.
Cada pedacinho do navio foi examinado pelos
mais hábeis construtores navais. Depois, lançado
de novo ao mar, foi abastecido de mantimentos e
água – o que dava para trinta dias. Mesmo assim,
conforme notou Edmundo desapontado, só lhes
permitia navegar durante quinze dias para oeste;
depois teriam de abandonar a busca.
Enquanto se tratava de tudo isso, Caspian
interrogava os capitães mais velhos para saber se
tinham conhecimento ou tinham ouvido falar de
terras mais afastadas para os lados do oeste.
Despejou muitos jarros de cerveja do castelo para
homens sedentos, de barbas grisalhas e olhos
azuis, ouvindo em troca muitas histórias incríveis.
Os mais dignos de confiança não conheciam terra
para além das Ilhas Solitárias. Muitos pensavam
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que, se navegassem demasiado para oeste,
chegariam às ondas de um mar sem terras que
rodava perpetuamente em torno da crosta do
mundo.
– E foi lá, acho, que os amigos de Vossa
Majestade afundaram.
Os restantes só contavam histórias de terras
habitadas por homens sem cabeça, ilhas
flutuantes, trombas marítimas e um fogo que ardia
em cima das águas. Para alegria de Ripchip, pelo
menos um disse:
– E mais para longe fica o país de Aslam.
Mas está além do fim do mundo, e lá não podem
chegar.
Contudo, quando insistiram com ele, apenas
soube dizer que ouvira seu pai contar a história.
Bern só podia informá-los de que vira os
seus companheiros navegarem para oeste e que
nada mais soubera deles. Dissera isso numa
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ocasião em que se encontrava com Caspian no
ponto mais alto de Avra, olhando lá embaixo para
o oceano oriental.
– Venho aqui muitas vezes pela manhã –
disse o duque – ver o sol sair do mar. Penso nos
meus amigos e no que existe realmente além
daquele horizonte. O mais provável é que não
exista nada, mas sempre fiquei envergonhado de
ter ficado para trás. Preferia que Vossa Majestade
não partisse. Podemos precisar de sua ajuda aqui.
O fechamento do mercado de escravos pode criar
novos casos. Desconfio que vamos ter guerra com
os calormanos. Pense bem, meu soberano.
– Fiz um juramento, meu duque – disse
Caspian. – Além disso, que iria eu dizer a
Ripchip?
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A TEMPESTADE
Três semanas após o desembarque, saía o
Peregrino da Alvorada de Porto Estreito. As
despedidas foram solenes; juntou-se grande
multidão. Houve aclamações e lágrimas quando
Caspian dirigiu-se pela última vez aos ilhéus e ao
despedir-se do duque e sua família. Quando o
barco se afastou, todos ficaram silenciosos, vendo
a vela purpurina tremular e ouvindo a trompa de
Caspian. A vela inflou, e sob o Peregrino da
Alvorada rolou a primeira onda das grandes,
dando-lhe de novo vida. Os homens que estavam
de folga desceram, e Drinian fez a primeira
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inspeção à popa, enquanto o navio virava para
leste, contornando o sul de Avra.
Seguiram-se dias deliciosos. Lúcia sentia-se
a garota mais feliz do mundo quando acordava e
via os reflexos do sol dançando no teto do
camarote e olhava as lindas coisas que trouxera
das Ilhas Solitárias – galochas, botas altas, capas,
xales. Subia depois ao convés e olhava do castelo
da proa para o mar, de um azul cada vez mais
brilhante, e aspirava o ar cada dia mais quente.
Depois chegava o café da manhã, e era aquele
apetite que só se tem nas viagens por mar.
Lúcia passava um tempão na popa jogando
xadrez com Ripchip. Era engraçado vê-lo pegar
com as duas patas as peças muito grandes para ele
e esticar-se na ponta dos dedos quando tinha de
fazer jogadas no centro do tabuleiro. Era um bom
jogador e, quando prestava atenção ao que estava
fazendo, era certo e sabido que ganhava. Às
vezes, porém, Lúcia ganhava, pois o rato fazia
coisas incríveis, pondo um cavaleiro em perigo
por causa de uma dama ou de um castelo. De
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repente, esquecia-se de que estava jogando
xadrez, julgando-se em um combate real,
obrigando o cavaleiro a proceder como ele faria se
estivesse no seu lugar. Pois tinha o espírito cheio
de arrebatamentos de outros tempos, de missões
de morte ou glória, de decisões heróicas.
Não durou muito essa felicidade. Uma tarde
em que Lúcia olhava sonhadoramente para o sulco
ou esteira, viu amontoar-se com grande rapidez
uma enorme massa de nuvens para os lados do
oeste. As nuvens rasgaram-se num buraco e nele
apareceu o sol, derramando os últimos raios
amarelos do poente. As ondas atrás do navio
tomavam formas nunca vistas, e o mar estava com
uma cor castanha ou amarelada, como se estivesse
sujo. O ar ficou mais frio. O navio parecia moverse
com dificuldade, como se sentisse o perigo
perseguindo-o. A vela esticava-se toda e ficava
lisa durante um minuto, para no minuto seguinte
enfunar-se bruscamente. A menina reparava em
tudo isso, perplexa com a sinistra mudança que se
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havia operado, quando Drinian gritou, dominando
o barulho do vento:
– Todos ao convés!
Num instante começaram todos a trabalhar
freneticamente. Fecharam-se as escotilhas,
apagou-se o fogo da cozinha, e homens subiram lá
no alto para recolher a vela. Antes de acabarem,
caiu sobre eles a tempestade. Lúcia teve a
impressão de que se cavara enorme vale atrás da
proa e que se precipitavam num abismo incrível.
Uma grande montanha de água, muito maior do
que o mastro, arrojou-se sobre eles; a morte
parecia certa, mas foram impelidos para cima da
onda. Nessa altura o navio começou a rodopiar.
No convés derramava-se uma catarata de água; a
popa e o castelo da proa pareciam duas ilhas
separadas por um mar tempestuoso. Os
marinheiros esticavam-se lá no alto, tentando
dominar a vela. Uma corda arrebentada estalava
com o vento, dura e rija como um cabo de ferro.
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-Já para baixo, minha senhora! – bradava
Drinian, e Lúcia, sabendo que a gente da terra é
um estorvo para a tripulação, tentava obedecer,
mas não era nada fácil.
O Peregrino inclinava-se terrivelmente para
estibordo, e o convés parecia o declive do telhado
de uma casa. Ela teve de subir agarrada ao
corrimão, esperar um pouco, para deixar dois
homens subirem, e depois descer do melhor jeito
que pôde. Foi uma sorte continuar firmemente
agarrada, pois, ao chegar ao fim da escada,
atingiu-a uma onda que a deixou ensopada.
Sentindo frio, atirou-se de encontro à porta do
camarote e fechou-se lá dentro, tentando esquecer
a cena do convés, a velocidade com que corriam
para a escuridão. Só não podia deixar de ouvir
aquela horrível confusão de estalos, lamentos,
pancadas, bramidos e estampidos, ainda mais
alarmantes ali do que na popa.
A tempestade durou o dia todo, e o dia
seguinte e mais outros. Demorou tanto a passar
que já nem se lembravam do que acontecera antes.
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Havia sempre três marujos agarrados ao leme,
vendo se descobriam uma rota. Trabalhavam nas
bombas sem parar. Quase não havia descanso para
ninguém. Não se podia cozinhar, nem secar roupa,
um homem caíra no mar, e o sol sumira
completamente. Quando por fim veio a bonança,
Eustáquio escreveu em seu diário:
“3 de setembro. É o primeiro dia, desde há
muito, em que posso escrever. Fomos arrastados
por um furacão treze dias e treze noites. Sei que
são treze porque os contei bem, embora os outros
digam que foram só doze.
Que ótimo fazer uma viagem assim
perigosa com gente que nem sabe contar! Passei
um tempo horroroso: ondas enormes, para baixo e
para cima, horas a fio, sempre molhado até os
ossos, sem nunca se darem ao trabalho de fornecer
refeições decentes. Como não temos rádio, nem
foguetões, é impossível pedir socorro. Tudo isso
prova o que estou sempre proclamando, que é a
maior loucura viajar numa porcaria de banheira
como esta. Já seria detestável com gente normal, o
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que se dirá com demônios em forma de gente.
Caspian e Edmundo são uns brutos comigo. Na
noite em que perdemos o mastro (agora só temos
um toco), apesar de eu não me sentir nada bem,
obrigaram-me a subir ao convés e a trabalhar
como um escravo. Lúcia puxava pelo remo e dizia
que Ripchip tinha muita vontade de remar, mas
que não podia por ser muito pequeno. Será que ela
não percebe que tudo o que esse animal faz é só
para impressionar? Na idade dela já se deve ter
mais bom senso. Hoje este navio diabólico está
finalmente direito e discutimos todos o que temos
de fazer. Há comida que chega para dezesseis
dias, mas é quase tudo intragável (a criação caiu
toda no mar, mas mesmo que não caísse a
tempestade teria impedido que as galinhas
pusessem ovos). O pior é a água. Arrombaram-se
dois barris, que ficaram vazios (mais uma vez se
põe à prova a eficiência de Nárnia). Ainda temos
água para doze dias, distribuindo rações de meia
caneca a cada pessoa. (Há ainda muito vinho, mas
até eles, que não sabem nada, compreendem que,
se bebessem, ficariam ainda com mais sede.)
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O mais sensato seria virarmos para leste, se
fosse possível, e voltarmos às Ilhas Solitárias.
Mas levamos dezoito dias para chegar aqui,
correndo como uns loucos, impelidos por um
furacão. Mesmo que apanhássemos vento leste,
demoraríamos muito tempo para regressar. Neste
momento não há qualquer sinal de vento leste...
Para dizer a verdade, não há vento nenhum. Não
podemos voltar a remo, pois ainda levaria mais
tempo, e Caspian diz que os homens não podem
remar com uma ração de meia caneca de água por
dia. Tentei explicar-lhe que a transpiração refresca
os corpos e que os homens não necessitariam de
tanta água se trabalhassem. Não deu a menor
importância – que é a sua maneira de proceder
quando não sabe o que responder. Todos os outros
votaram para que se vá em frente, na esperança de
encontrar terra. Era meu dever chamar-lhes a
atenção para o fato de não sabermos se existe terra
mais adiante e tentar fazê-los compreender os
perigos da sua precipitação. Em vez de elaborar
um plano melhor, tiveram a cara de me perguntar
o que eu sugeria. Expliquei-lhes, com a minha
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habitual calma e firmeza, que havia sido raptado e
trazido à força para esta viagem estúpida, não
sendo portanto minha obrigação tirá-los dos
apertos.
“4 de setembro. O tempo continua calmo.
Rações muito pequenas para todos e para mim
menos do que para os outros. Caspian é muito
esperto ao servir-se, mas julga que eu não o vejo!
Lúcia, não sei por que razão, quis reconciliar-se
comigo e ofereceu-me da ração dela, mas o
intrometido do Edmundo não deixou. O sol está
quentíssimo. Tive uma sede horrível a tarde toda.
“6 de setembro. Dia pavoroso. Acordei de
noite sentindo-me febril e tive de beber um copo
de água. Qualquer médico teria me receitado isso.
Sabe Deus que eu seria a última pessoa a tentar
prejudicar os outros, mas nunca imaginei que o
racionamento de água atingisse também um
doente. De fato eu devia era ter acordado alguém
para pedir-lhe água, mas não quis ser egoísta. Por
isso levantei-me na ponta dos pés, peguei o meu
copo e saí deste buraco escuro, tendo o máximo
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cuidado de não incomodar Caspian e Edmundo,
pois dormem mal desde que o calor e a escassez
de água se fizeram sentir. Tenho grande
consideração pelos outros, sejam ou não amáveis
comigo. Fui direto à sala grande, se é que se pode
chamar aquilo de sala, onde estão os bancos dos
remadores e as bagagens. A água está no lado de
cá. Corria tudo às mil maravilhas, mas antes que
conseguisse encher um copinho de água... quem
haveria de me apanhar senão o espião do Rip!
Quis explicar-lhe que viera tomar um pouco de ar
no convés (a questão da água não era da conta
dele), mas me perguntou por que estava de copo
na mão. Fez tanto barulho que o navio todo se
levantou. Trataram-me escandalosamente.
Perguntei, como qualquer um faria, por que o
Ripchip andava farejando em volta do barril de
água em plena noite. Disse que era tão pequeno
que não tinha qualquer serventia no convés, e que
tomava conta da água todas as noites para que
assim mais um homem pudesse dormir. E agora
torna-se óbvia a tremenda má vontade: todos
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acreditaram nele. Como se pode lutar contra
isso?!
“Tive de pedir desculpa para que o
monstrozinho não caísse de espada em cima de
mim. E então Caspian revelou toda a sua faceta de
tirano, dizendo alto, para todos ouvirem, que
quem fosse
apanhado “roubando” água, dali em diante,
levaria “duas dúzias”. Eu não sabia o que isso
queria dizer, mas Edmundo me explicou. Aparece
nos livros que esse tolos vivem lendo.
“Depois desta covarde ameaça, Caspian
mudou de tom, começando a tomar uns ares
protetores. Disse que tinha muita pena de mim,
mas que todos se sentiam tão febris quanto eu,
que tínhamos de agüentar da melhor maneira
possível a situação, etc. Requintado pedante!
Fiquei hoje na cama o dia todo!
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“7 de setembro. Hoje houve um pouco de
vento, mas ainda de oeste. Fizemos algumas
milhas para leste só com uma parte da vela,
colocada em um mastro improvisado que Drinian
chama de guindola – o gumpés é posto na vertical
e amarrado ao toco do verdadeiro mastro.
Continuo morrendo de sede.
“8 de setembro. Continuamos navegando
para leste. Passo agora o dia todo no meu buraco e
não vejo ninguém, a não ser Lúcia, até que os dois
diabos vão dormir. Lúcia deu-me um pouco da
sua ração de água. Disse que as meninas não
sentem tanta sede quanto os meninos. Já sabia
disso, mas os outros a bordo também deviam
saber.
“9 de setembro. Terra à vista: uma
montanha muito alta, lá longe a sudoeste.
“20 de setembro. A montanha está maior e
mais nítida, mas ainda muito longe. Pela primeira
vez, já não sei há quanto tempo, hoje vimos
gaivotas.
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“2 2 de setembro. Pegamos uns peixes,
comidos no jantar. Lançamos âncora às sete da
noite numa baía desta ilha montanhosa. O idiota
do Caspian não nos deixou ir a terra porque já
estava escurecendo e tinha medo de selvagens e
animais ferozes. Tivemos esta noite uma ração
extra de água.”
O que iria acontecer na ilha dizia mais
respeito a Eustáquio do que a qualquer outro, mas
não podemos sabê-lo por suas palavras, pois a
partir de 11 de setembro não escreveu mais no
diário.
Certa manhã, muito quente, com um céu
pesado e cinzento, os aventureiros se achavam em
uma baía rodeada de rochas e penedos, lembrando
um fiorde norueguês. Em frente da baía elevavase
um terreno cheio de árvores frondosas,
parecendo cedros, no centro das quais se
precipitava uma impetuosa corrente.
O bosque estendia-se por uma ladeira
íngreme, indo terminar numa cordilheira
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denteada, através da qual se vislumbrava ao longe
a indecisa escuridão de montanhas, cujos cimos
desapareciam no meio de nuvens baças. As rochas
mais próximas estavam riscadas aqui e ali de fitas
brancas, que todos sabiam ser quedas-d’água, mas
que, àquela distância, pareciam imóveis, sem
fazer qualquer ruído. A água lisa como vidro
refletia o perfil das rochas. Numa pintura a
paisagem poderia ser bonita, mas na vida real era
opressiva. Aquela terra não acolhia os visitantes
de braços abertos.
A tripulação desembarcou toda em dois
botes, indo lavar-se e beber, deliciada, a água do
rio. Depois comeram e descansaram, tendo
Caspian mandado para bordo quatro homens para
guardarem o navio. Só então começaram os
trabalhos do dia. Tinham de trazer os barris para
terra, consertá-los, se possível, e tornar a enchê-
los de água. Era preciso derrubar uma árvore, de
preferência um pinheiro, para fazer um mastro
novo, e as velas precisavam ser remendadas.
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Um grupo partiu à procura de qualquer caça
que a terra pudesse oferecer. Havia roupa para
lavar e coser, e um sem-número de reparações a
serem feitas a bordo. O próprio Peregrino não era
mais o mesmo navio elegante que partira de Porto
Estreito. Parecia um casco velho e desconjuntado,
um resto de barco. Os oficiais e a tripulação não
tinham melhor aspecto – desfigurados, pálidos,
esfarrapados, com os olhos avermelhados devido
às noites em claro.
Quando Eustáquio, deitado sob uma árvore,
ouviu os planos, seu sangue gelou. Não iriam
então dar uma boa descansada? O dia de repouso
em terra, tão desejado, iria ser tão cansativo como
os dias no mar. Então ocorreu-lhe uma idéia
genial. Ninguém estava olhando. Falavam todos
sobre o navio, como se gostassem mesmo daquela
coisinha. Por que não haveria de dar uma fugida?
Dar um passeio pelo interior da ilha, tirar uma
soneca num lugarzinho sombreado, voltando só
depois de terminado o trabalho dos outros... Bela
idéia! Só teria de ter cuidado para não perder de
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vista a baía e o navio, podendo assim achar o
caminho de volta! Não seria nada divertido ficar
ali sozinho.
Pôs imediatamente seu plano em ação.
Levantou-se com muita calma e caminhou por
entre as árvores, de um modo natural e lento: se
alguém o visse, pensaria que ele estava só dando
uma voltinha. Ficou admirado ao ver que o
barulho da conversa morria atrás dele e o bosque
se tornava logo escuro, silencioso e quente. Daí a
pouco achou que já podia andar mais depressa,
deixando em breve o bosque. O terreno começava
a ficar íngreme. Com as mãos agarrava-se à relva
seca e escorregadia. Apesar de gemer e ter de
limpar o suor da testa, ia conseguindo avançar. De
certo modo, isso demonstrava que a sua nova vida
lhe fazia bem, pois o antigo Eustáquio de Arnaldo
e Alberta teria desistido dez minutos depois de ter
começado a subir. Parando muitas vezes para
descansar, atingiu a crista do monte. Ali esperava
ver o interior da ilha, mas as nuvens tinham
descido mais e estavam mais próximas,
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misturando-se com ondas de nevoeiro. Sentou-se
e olhou para baixo.
Tinha alcançado um ponto tão alto que a
baía, lá embaixo, parecia bem pequena, e viam-se
milhas e mais milhas de mar em torno. O nevoeiro
fechou-se em volta dele, denso, mas não frio.
Deitou-se, virando-se para um lado e para o outro,
procurando uma posição confortável para
descansar. Mas não por muito tempo, pois, pela
primeira vez na sua vida, começou a sentir
solidão. A princípio a solidão foi aumentando aos
poucos, mas, de repente, ele começou a
preocupar-se com as horas. Não se ouvia nada.
Quem sabe já estaria deitado havia várias horas?
Talvez, até, os outros já tivessem partido! Talvez
tivessem feito aquilo de propósito, para que
ficasse na ilha! Deu um pulo, cheio de pânico, e
começou a descer. Com a pressa, escorregou e
caiu quase de um metro de altura. Notou que a
queda o levara para a esquerda, pois, quando
subira, vira precipícios daquele lado.
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Subiu de novo, quase até o cimo, e
recomeçou a descida, desviando-se agora para a
direita. As coisas pareciam correr melhor. Ia
cautelosamente, pois não via um palmo adiante do
nariz. O silêncio era completo. Mas era difícil
andar com tanta cautela quando uma voz lá dentro
gritava sem parar: Depressa! Rápido! Corre!
Se conhecesse bem Caspian e os primos,
teria a certeza de que eles não fariam uma coisa
daquelas, mas estava convencido de que eram
como demônios.
– Até que enfim! – exclamou depois de ter
descido por uma ladeira de pedras soltas (seixos é
o nome que lhes dão) e ao achar-se em terreno
plano. – Mas onde estão as árvores que eu vi? Há
algo escuro ali na frente. Parece que o nevoeiro
está sumindo.
E estava mesmo. A claridade aumentava a
cada passo, fazendo com que ele piscasse os
olhos. O nevoeiro desaparecera. Estava num vale
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desconhecido, e não se via o mar em parte
alguma.
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6
AS AVENTURAS DE
EUSTÁQUIO
Naquele mesmo instante os outros lavavam
o rosto e as mãos no rio, preparando-se para
comer e descansar. Os três melhores arqueiros
tinham subido a montanha na parte norte da baía e
voltaram com duas cabras selvagens, que agora
estavam sendo assadas no fogo. Caspian mandou
buscar um tonel de vinho, vinho forte, que tinha
de ser misturado com água, e assim daria para
todos. O trabalho ia em bom andamento e a
refeição decorria animada. Só depois de servir-se
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de carne pela segunda vez, Edmundo perguntou
por Eustáquio.
Enquanto isso, Eustáquio olhava ao redor,
no vale desconhecido. Era tão estreito e profundo,
e os precipícios em volta tão a pique, que mais
parecia uma fossa enorme. O chão era relvado,
apesar de semeado de pedras. Aqui e ali viam-se
trechos de terreno negro e queimado, como se
costuma ver em verões muito quentes nos vaiados
de estradas de ferro. Cerca de quinze metros mais
longe havia uma lagoazinha de águas claras e
mansas. A princípio nada mais havia no vale, nem
um animal, nem mesmo um inseto. O sol descia,
projetando na orla do vale as sombras de picos
medonhos.
Eustáquio viu logo que, com o nevoeiro,
tinha descido o desfiladeiro pelo lado errado, por
isso voltou-se imediatamente para ver como havia
de sair dali. Mas, ao olhar, estremeceu. Ao que
parecia, tivera uma sorte espantosa ao descer pelo
único caminho existente – uma comprida língua
de terra, muito íngreme e estreita, com precipícios
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dos dois lados. Não havia nenhum outro caminho
para voltar. Como subir, no entanto, agora que
sabia como era o caminho? Ficava zonzo só de
pensar nele.
Voltou-se de novo, achando que de
qualquer modo era melhor beber primeiro um
bom gole de água da lagoa. Mal se voltou, antes
de dar o primeiro passo, ouviu um barulho. Era
um ruído leve, mas soou muito alto naquele
silêncio enorme. Durante um segundo ficou feito
um morto, frio e paralisado. Depois virou a
cabeça e olhou.
Na base do rochedo, havia um buraco baixo
e escuro – talvez a entrada de uma caverna. Lá de
dentro saíam duas finas colunas de fumaça. As
pedras soltas à entrada do buraco moviam-se (era
o tal barulho) como se alguma coisa rastejasse no
escuro atrás delas.
Algo rastejava – ou, pior ainda, saía do
buraco.
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Edmundo e Lúcia (e você também) teriam
percebido logo o que era, mas Eustáquio não tinha
lido os livros que lhe convinham.
O ser que saía da caverna era algo que ele
nunca imaginara existir – focinho comprido corde-
chumbo, olhos vermelhos e tristes, sem penas,
nem pêlo, corpo longo e flexível que se arrastava
pelo chão, pernas com as articulações mais altas
que as costas (feito aranha), unhas ferozes, asas de
morcego raspando pelas pedras, metros de cauda.
As duas linhas de fumo saíam das narinas.
Eustáquio nunca dissera com os seus botões a
palavra dragão, mas, se tivesse dito, não haveria
de melhorar a situação. No entanto, se soubesse
alguma coisa acerca de dragões, teria ficado um
tanto admirado com o comportamento daquele.
Não se sentava, agitando as asas, nem
lançava torrentes de chamas pela boca. O fumo
que lhe saía das narinas era o de um fogo que está
quase apagado. Nem parecia ter reparado em
Eustáquio. Andava muito devagar para a lagoa,
parando muitas vezes. Apesar de todo o medo,
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Eustáquio notou que se tratava de um animal
velho e triste. O menino perguntava a si mesmo se
não era a hora de sair correndo escarpa acima.
Mas, se fizesse qualquer barulho, o animal
poderia virar-se. Podia ser até que estivesse
fingindo. Além disso, valia a pena sair correndo
de um animal que também voava?
O bicho chegara à lagoa e estendia a
queixada escamosa sobre o cascalho para beber,
mas, antes que pudesse fazê-lo, soltou um grito e,
depois de algumas contrações e reviravoltas, caiu
de lado e ficou completamente imóvel, com as
garras viradas para cima. Da boca escancarada
saía-lhe um fio de sangue escuro. O fumo das
narinas ficou negro um instante e desapareceu no
ar. E não mais saiu.
Durante muito tempo Eustáquio não teve
coragem de mexer-se. Talvez fosse um truque do
animal. Mas não podia esperar eternamente.
Aproximou-se dois passos, depois mais dois,
parou de novo. O dragão continuou imóvel, e o
rapaz reparou que o fogo vermelho desaparecera
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de seus olhos. Chegou perto. Tinha quase certeza
de que estava morto. Com um arrepio chegou a
tocar-lhe, e nada aconteceu.
O alívio foi tão grande que Eustáquio quase
riu alto. Começou a ter a sensação de haver lutado
com o dragão, de ter matado o dragão. Passou por
cima dele e foi beber água na lagoa, sentindo um
calor insuportável. Não ficou surpreso ao ouvir o
barulho do trovão. O sol desapareceu daí a pouco
e, antes que tivesse acabado de beber, caíram
grandes gotas de chuva.
O clima da ilha era muito desagradável. Em
menos de um minuto ele estava molhado até os
ossos e meio cego com a chuvarada. Enquanto
durasse a chuva, não poderia sair do vale. Correu
para o único abrigo à vista, a caverna do dragão.
Lá dentro deitou-se e tentou acalmar a respiração.
Quase todos nós já sabemos o que se pode
encontrar numa toca de dragão, mas, como eu já
disse, Eustáquio só lera livros que não servem
para nada. Falavam de exportações e importações,
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de governos e de canos de esgoto, mas eram
muito fracos em questão de dragões. Assim,
achou esquisito o chão em que estava deitado. Em
certos lugares era demasiado espinhoso para ser
de pedra, e em outros sentia uma porção de coisas
redondas e lisas, que chocalhavam quando ele se
mexia. A luz que entrava pela porta da caverna
era suficiente para ver de que se tratava. Qualquer
um de nós teria pensado muito antes que ele
acabara de descobrir um tesouro. Coroas (era o
que picava), moedas, braceletes, barras de ouro,
taças, pratas, pedrarias.
Eustáquio, ao contrário dos outros meninos,
nunca tinha pensado muito em tesouros, mas
começou logo a imaginar que vantagem poderia
tirar daquele mundo no qual caíra tão
estupidamente, por causa do quadro do quarto de
Lúcia, lá longe, na Inglaterra.
– Aqui, ao menos, não cobram impostos;
não temos de dar nada ao Estado. Com uma parte
dessa mercadoria, passo uma boa temporada –
talvez no país dos calormanos. Acho que é o
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melhor por aqui. Mas quanto poderei levar? Este
bracelete aqui – as pedras nele devem ser
diamantes, pensou – ponho logo no pulso. É
grande demais, mas acima do cotovelo dá bem.
Encho agora os bolsos com diamantes: são mais
fáceis de transportar que ouro.
Não faço idéia de quando vai passar esta
chuva!
Ajeitou-se em uma parte do tesouro que lhe
parecia mais confortável e ficou à espera. Mas,
quando se leva um grande susto, sobretudo um
susto daqueles, fica-se horrivelmente cansado. E
Eustáquio logo adormeceu. Enquanto ressonava
profundamente, acabavam os outros de almoçar,
já seriamente alarmados com a sua ausência.
Gritavam:
– Eustáquio! Eustáquio!
Quando ficaram roucos, Caspian fez soar a
trompa.
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– Se estivesse perto, já teria ouvido – disse
Lúcia, branca como cera.
– Que sujeito idiota! – exclamou Edmundo.
– Por que foi tão longe?
– Temos de fazer alguma coisa – falou
Lúcia. – Pode ter-se perdido, ou caído num
barranco, ou ter sido apanhado por selvagens.
– Ou devorado por animais ferozes – disse
Drinian.
– Até que não era má idéia – murmurou
Rince.
– Senhor Rince – retrucou Ripchip –,
jamais em sua vida falou outras palavras que tanto
o inferiorizassem. A pessoa em questão não é das
minhas relações amigáveis, mas, sendo do mesmo
sangue da rainha, e pertencendo ao nosso grupo, é
nosso dever de honra encontrá-lo para vingar a
sua morte, se tiver morrido.
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– Claro que temos de encontrá-lo (se
pudermos) – falou Caspian, aborrecido. – Aí é que
está a chateação. Temos de destacar um grupo de
homens para procurá-lo e enfrentar uma
infinidade de complicações. Mas que sujeito
inoportuno, esse Eustáquio.
Eustáquio dormia, dormia e tornava a
dormir. Só acordou por causa de uma dor no
braço. A lua brilhava na boca da caverna, e a
cama feita no tesouro parecia muito mais
confortável; nem mesmo a sentia.
Primeiro ficou intrigado com a dor no
braço, mas depois se lembrou do bracelete, que
agora estava estranhamente apertado. O braço
devia ter inchado enquanto ele dormia (era o
braço esquerdo).
Começou a mexer o braço direito para ver
se sentia o mesmo que no esquerdo, mas estacou,
mordendo os lábios de terror, antes de movê-lo
um centímetro. Na sua frente, um pouco à direita,
num ponto em que o luar batia em cheio no chão
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da caverna, viu uma forma hedionda. Era uma
garra de dragão. Tinha-se movido quando ele
mexera a mão e ficara quieta quando ele parará.
“Fui um completo maluco!”, pensou
Eustáquio. “O animal tinha um companheiro, que
está deitado aos meus pés.”
Durante alguns minutos não ousou mexer
um só músculo, e via as duas tênues colunas de
fumaça, elevando-se escuras, contra a luz da lua,
na frente de seus olhos – o mesmo fumo que saíra
do focinho do outro dragão, ao morrer. Era tão
aflitivo que suspendeu a respiração. As duas
colunas de fumo desapareceram, mas, quando
respirou de novo, o fumo reapareceu numa
torrente. Nem mesmo assim compreendeu o que
se passava. Resolveu virar-se muito
sorrateiramente para a esquerda e rastejar para
fora da caverna. Talvez o monstro estivesse
adormecido. Fosse como fosse, era a única
solução. Mas, antes de caminhar para a esquerda,
olhou para aquele mesmo lado, e... oh! cúmulo
dos horrores! Lá estava uma outra garra de
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dragão! Não se pode condenar Eustáquio por ter
começado a chorar naquele momento.
Ficou bobo com o tamanho de suas
lágrimas, quando as viu cair sobre o tesouro à sua
frente. Pareciam estranhamente quentes e
soltavam vapor.
Mas chorar não resolvia coisa alguma.
Tinha era de tentar passar entre os dois dragões.
Começou a estender o braço direito. A pata da
frente do dragão, à sua direita, fez exatamente o
mesmo movimento.
Resolveu experimentar com o braço
esquerdo, mas a pata do dragão que estava
daquele lado também se moveu. Dois dragões, um
de cada lado, imitando tudo o que ele fazia! Seus
nervos não agüentaram mais! E ele se jogou com
tudo para fora.
Houve um barulho tal, estrondos tais,
tinidos tais e um tal esmagar de pedras, quando
saltou da caverna, que julgou que ambos o
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perseguiam. Nem ousou olhar para trás. Correu
para a lagoa. A forma contorcida do dragão
morto, à luz da lua, seria o bastante para
aterrorizar qualquer pessoa, mas ele nem reparou.
Sua idéia era meter-se dentro da água.
Ao chegar à beira da lagoa duas coisas
aconteceram. Primeiro: reparou que tinha corrido
de gatinhas... Por que diabo agora andava assim?
Segundo: ao debruçar-se sobre a água, julgou ver
outro dragão que o olhava da lagoa. De repente,
apercebeu-se de toda a verdade.
A cara de dragão na lagoa era o seu próprio
reflexo. Sem dúvida. Mexia-se quando ele se
mexia, abria e fechava a boca quando ele abria e
fechava a dele.
Tinha se transformado num dragão
enquanto dormia. Ao dormir sobre o tesouro de
um dragão, com pensamentos gananciosos, típicos
de um dragão, ele próprio acabara se
transformando em dragão.
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Tudo estava explicado. Nunca haviam
estado junto dele dois dragões na caverna. As
garras à sua direita e à sua esquerda eram a sua
pata direita e a sua pata esquerda; as duas colunas
de fumo haviam saído de seu próprio nariz.
Quanto à dor que sentia no braço esquerdo (ou no
que havia sido o braço esquerdo), podia ver o que
acontecera virando o olho esquerdo. O bracelete,
que servira tão bem no braço do rapazinho, era
agora demasiado pequeno para a gorda pata
dianteira do dragão. Enterrava-se profundamente
na carne escamosa, que tinha agora um inchaço de
cada lado da jóia. Mordeu com os seus dentes de
dragão, mas não conseguiu tirar o bracelete.
Apesar da dor, sua primeira sensação foi de
alívio. Não precisava ter medo de mais nada. Ele
próprio era agora uma coisa que metia medo.
Nada neste mundo, exceto um cavaleiro (e nem
todos!), ousaria atacá-lo. Podia mesmo fazer
frente a Caspian e Edmundo...
Ao pensar nisso, viu que não tinha vontade
de fazê-lo; preferia ser amigo dos dois. Desejava
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voltar para junto dos humanos, falar, rir e
compartilhar com eles todas as suas coisas.
Chegou à conclusão de que era um monstro,
separado do resto da humanidade. Caiu sobre ele
uma tristeza tremenda: via agora que os outros
não eram tão maus como imaginara. E começou a
pensar se ele próprio teria sido realmente aquela
excelente pessoa
que sempre julgara ser. Tinha saudades de
ouvir o som das suas vozes. Agradeceria agora
uma palavra amável, mesmo de Ripchip.
Pensando assim, o dragão (que tinha sido
Eustáquio) começou a chorar alto. Um poderoso
dragão debulhando-se em lágrimas ao luar, num
vale deserto, é uma cena rara de ver e ouvir.
Por fim resolveu voltar à praia.
Compreendia agora que Caspian jamais partiria
sem ele. E tinha a certeza de que, de uma forma
ou de outra, havia de dar-lhe a entender quem era.
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Bebeu demoradamente e depois (parece
chocante, mas se você pensar bem verá que não)
comeu quase todo o dragão morto. Já tinha
comido mais da metade quando reparou no que
estava fazendo, pois o entendimento era de
Eustáquio, mas o gosto e o aparelho digestivo
pertenciam ao dragão. E não há nada de que um
dragão goste mais do que dragão fresco. É por
essa razão que raramente se encontra mais de um
dragão na mesma área.
Depois começou a subir o vale. Quando
quis saltar, viu que voava. Tinha-se esquecido
completamente de que possuía asas, e foi uma
grande surpresa – a primeira surpresa agradável
em muito tempo. Elevou-se no ar e viu uma
infinidade de picos de montanha, estendendo-se lá
embaixo à luz da lua. Avistou a baía como uma
lousa de prata, o Peregrino da Alvorada ancorado,
a fogueira do acampamento ardendo no bosque
perto da praia. Com um simples impulso lançouse
lá do alto na direção da fogueira.
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Lúcia dormia profundamente, pois ficara
esperando a volta do grupo de busca, na esperança
de receber boas novas de Eustáquio. O grupo,
chefiado pelo rei, tinha regressado muito tarde e
extremamente cansado. Tinham encontrado um
dragão morto no vale, mas nem sinal de
Eustáquio. Tentaram encarar a situação da melhor
maneira possível e asseguravam uns aos outros
que era muito improvável existirem outros
dragões por ali, e o que morrera naquela tarde,
mais ou menos às três horas (quando o tinham
encontrado), dificilmente teria matado alguém
poucas horas antes.
– A menos que tenha comido o rapazinho e
morrido por causa disso. Veneno não lhe faltava –
disse Rince, mas entre os dentes, e ninguém o
ouviu.
Naquela mesma noite, mais tarde, Lúcia foi
acordada suavemente por Caspian; estavam todos
reunidos em torno da fogueira cochilando.
– Que há? – perguntou ela.
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– Temos de ter muita coragem – respondeu
Caspian. – Agora mesmo um dragão voou sobre
as árvores e foi pousar na praia. Temo que esteja
entre nós e o navio. As setas nada valem contra
dragões, e eles não têm o menor medo do fogo.
– Se Vossa Majestade me permite... –
começou Ripchip.
– Não, Rip – disse o rei com firmeza. –
Você não vai travar combate com ele. E, se não
prometer solenemente obedecer-me, terei de
mandar amarrá-lo. Temos de ficar vigilantes e,
mal nasça o dia, vamos atacá-lo na praia. Eu
assumo o comando. O rei Edmundo fica à minha
direita e Drinian à esquerda. Daqui a uma hora
comemos alguma coisa e bebemos o que resta do
vinho. E que tudo se faça no maior silêncio.
– Talvez ele vá embora – disse Lúcia.
– Seria ainda pior – respondeu Edmundo –
por que não saberíamos mais onde está. Quando
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um marimbondo entra no meu quarto, gosto de
saber onde ele está.
O resto da noite foi horrível. Na hora de
comer, a maioria não teve apetite. As horas
pareceram intermináveis, até que a escuridão
diminuiu e os passarinhos começaram a chilrear e
a saltar nos ramos. O ar ficou mais frio e úmido.
Caspian disse:
– Vamos a ele, amigos!
Levantaram-se todos com as espadas
desembainhadas e formaram uma massa
compacta, com Lúcia no centro, levando Ripchip
ao ombro. Era preferível lutar a ficar esperando.
Sentiam-se todos mais amigos uns dos outros do
que em circunstâncias normais.
Já estava mais claro quando chegaram à
orla da floresta. Deitado na areia, enorme,
pavoroso e corcunda, lá estava o dragão como um
gigantesco crocodilo flexível ou uma serpente
com pernas.
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Mas quando os viu, em vez de se levantar e
lançar chamas e fumo, recuou (quase que se
poderia dizer cambaleando) em direção às águas
pouco profundas da baía.
– Para que ele está abanando a cabeça? –
perguntou Edmundo.
– E agora está fazendo sinais – disse
Caspian.
– Tem uma coisa saindo dos olhos dele –
disse Drinian.
– Não está vendo? – disse Lúcia. – São
lágrimas. Está chorando.
– Não se fie nisso, minha senhora. Os
crocodilos também choram para apanhar os
incautos – observou Drinian.
– Abanou a cabeça quando você disse isso –
notou Edmundo. – Como se quisesse dizer não.
Olhe, fez de novo.
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– Acho que ele entende o que dizemos –
falou Lúcia.
O dragão acenou energicamente com a
cabeça. Ripchip saltou do ombro de Lúcia e
lançou-se à frente.
– Dragão! – fez a voz chiante. – Entende o
que falamos?
O dragão acenou que sim.
– Sabe falar?
Ele abanou a cabeça negativamente.
– Então é perda de tempo perguntar o que
lhe aconteceu – continuou Ripchip. – Mas, se
quiser fazer um pacto de amizade, levante a pata
esquerda sobre a cabeça.
O dragão assim fez, mas desajeitadamente,
pois estava com a pata esquerda dolorida e
inchada por causa do bracelete.
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– Olhe só! – exclamou Lúcia. – Está com
alguma coisa na pata. Pobre bichinho! Vai ver que
é por isso que estava chorando. Quem sabe quer
que a gente faça com ele como Androcles fez com
o leão...
– Cuidado, Lúcia – disse Caspian. – É um
dragão muito inteligente, mas pode ser um
mentiroso.
Mas Lúcia já se adiantara, seguida por
Ripchip, e atrás deles, é claro, os outros.
– Mostre-me a pata – disse Lúcia. – Talvez
possa curá-lo.
O dragão-que-fora-Eustáquio ergueu a pata
doente, todo satisfeito, lembrando-se de como o
elixir de Lúcia havia curado o seu enjôo. Mas
ficou desapontado. O líquido mágico reduziu o
inchaço e diminuiu um pouco a dor, mas não
dissolveu o ouro.
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Estavam todos em torno para observar o
tratamento, quando Caspian, subitamente, reparou
no bracelete:
– Olhem!
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7
COMO TERMINOU A
AVENTURA
– O quê? – perguntou Edmundo.
– Reparem no brasão gravado no ouro –
disse
Caspian. – Um pequeno malho com um
diamante por cima, como uma estrela.
– Ei, já vi isto em algum lugar! – exclamou
Drinian.
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– Claro que já viu – respondeu Caspian. – E
a insígnia da grande Casa de Nárnia. Este
bracelete era do lorde Octasiano.
– Canalha! – gritou Ripchip para o dragão.
– Você devorou um fidalgo de Nárnia.
Mas o dragão abanou a cabeça com energia.
– Quem sabe – aconselhou Lúcia – se ele é
o próprio lorde Octasiano transformado em
dragão por encantamento.
– Nada disso – disse Edmundo. – Todos os
dragões gostam de armazenar ouro. Mas acho que
não estou muito longe da verdade se disser que
Octasiano não passou desta ilha.
– Você é o lorde Octasiano? – perguntou
Lúcia ao dragão. Ao vê-lo abanar a cabeça
tristemente, acrescentou: – É alguém encantado,
isto é, alguém
humano?
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O dragão abanou a cabeça com toda a força.
Aí alguém perguntou – mais tarde se discutiu
quem, se Edmundo ou Lúcia:
– Você... você não é... por acaso, você não é
o Eustáquio, é?
Eustáquio acenou com a cabeça de dragão e
bateu com a cauda na água; todos tiveram de dar
um salto para trás (alguns marinheiros
exclamaram coisas que eu não escreverei aqui)
para evitar as lágrimas enormes e ferventes que
lhe caíram dos olhos.
Lúcia fez tudo para consolá-lo e chegou a
beijar a face escamosa para levantar-lhe o ânimo.
Quase todos diziam “Que azar!”, e muitos
asseguravam a Eustáquio que ficariam junto dele
e haveriam de achar um jeito para desencantá-lo.
Dentro de um dia ou dois ele ficaria bem...
Claro, estavam todos ansiosos para ouvir a
sua história, mas ele não podia falar. Nos dias
seguintes tentou escrever na areia, sem consegui__________________________________
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lo. Antes de tudo, Eustáquio (como nunca tinha
lido livros adequados) não sabia contar uma
história direito. Por outro lado, os músculos e os
nervos das patas de dragão, que teria de usar,
nunca tinham aprendido a escrever, nem eram
feitos para escrever. Assim, antes mesmo que
chegasse ao fim, a maré vinha e lavava toda a
escrita, exceto os pedaços que ele já tinha pisado
ou que haviam sido apagados acidentalmente com
a cauda. E tudo quanto conseguiram ler foi o
seguinte (os pontos indicam os espaços
apagados):
EU DORM... CAVERNA DORAG...
QUERO DIZER DRAGÕES... ESTAVA
MORTO E CHOR... ACORDEI... TIRAR MEU
BRAÇO... DOÍA...
Todos perceberam que o temperamento de
Eustáquio havia melhorado muito pelo fato de terse
transformado em dragão. Estava ansioso por
ajudar. Voou sobre toda a ilha e descobriu que era
formada só por montanhas e habitada por cabras
selvagens e manadas de porcos bravos. Trouxe
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muitos deles para a provisão do navio. Era um
matador bondoso, pois liquidava o animal só com
uma pancada da cauda, de modo que este não
sabia (e provavelmente ainda não sabe) que tinha
morrido. Claro que também comia alguma coisa,
mas sempre sozinho. Como dragão, apreciava
comida crua e não gostava que os outros
assistissem às suas refeições nojentas. Um dia,
voando devagar e com dificuldade, mas em
grande triunfo, trouxe para o acampamento um
grande pinheiro que tinha arrancado pela raiz num
vale distante e que podia servir de mastro.
Se a noite estava úmida, o que acontecia
sempre depois de chuvas fortes, era um conforto
para todos. Sentavam-se encostados ao seu dorso
quente e ficavam logo aquecidos e secos; uma
assopradela de sua respiração ardente bastava para
acender o fogo mais renitente.
Por vezes, levava um pequeno grupo para
voar nas suas costas, e então podiam ver as
encostas verdes desenrolando-se lá embaixo, os
picos rochosos, os vales estreitos como poços e,
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mais longe, no mar, para os lados do oeste, um
ponto azul mais escuro no azul do horizonte, que
bem podia ser terra.
O prazer (absolutamente inédito) de
gostarem dele e, ainda mais, de ele gostar dos
outros impedia que caísse no desespero. Porque
era horrível ser dragão. Estremecia sempre que, ao
voar, se via refletido num lago. Odiava as
enormes asas de morcego, o dorso denteado e as
ferozes garras recurvadas. Tinha quase medo de
ficar sozinho e, ao mesmo tempo, envergonhavase
de estar acompanhado. A noite, quando não
servia de saco de água quente, escapava do
acampamento e deitava-se como uma serpente
entre o bosque e a água.
Em tais ocasiões, para sua maior surpresa,
era Ripchip o seu companheiro mais fiel. O nobre
rato esgueirava-se do círculo animado que se
reunia em volta da fogueira do acampamento e
sentava-se junto da cabeça do dragão, a favor do
vento, para não receber a respiração fumegante.
Então explicava a Eustáquio que o que lhe
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acontecera era um exemplo notável do girar da
Roda da Fortuna; que, se Eustáquio estivesse em
sua casa em Nárnia (de fato, era um buraco e não
uma casa, no qual nem a cabeça do dragão
caberia), poderia mostrar-lhe mais de cem casos
parecidos, em que reis, duques, cavaleiros, poetas,
apaixonados, astrônomos, filósofos e mágicos
haviam caído da prosperidade para as mais
desgraçadas situações, tendo muitos deles
recobrado a posição anterior e vivido muito
felizes dali em diante. No momento, não era
muito consolador, mas, como a intenção era boa,
Eustáquio nunca se esqueceu disso.
Mas o que pesava sobre todos como uma
nuvem escura era o que haveriam de fazer com o
dragão, quando tivessem de partir. Tentavam não
falar no assunto quando ele estava por perto, mas,
sem querer, ouvia frases como estas: “Caberá num
lado do barco? Temos de pôr toda a carga do
outro para contrabalançar”, ou “Poderíamos levá-
lo a reboque?”, ou “Poderá acompanhar-nos
voando?”, e “Como haveremos de alimentá-lo?”
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E o pobre Eustáquio compreendia cada vez
mais que, desde que entrara no navio, havia sido
um empecilho constante, e agora era um
empecilho maior. Isto lhe doía no espírito como o
bracelete cravado na pata dianteira. Sabia que
ainda era pior roê-lo com os dentes enormes, mas
de vez em quando lá estava a roê-lo,
especialmente nas noites muito quentes.
Certa manhã, Edmundo acordou muito
cedo. Estava ainda escuro; só se viam os troncos
de árvores na direção da baía, e nada se enxergava
em qualquer outra direção. Ao acordar julgou
ouvir uma coisa movendo-se; levantou-se
apoiando-se num braço e olhou ao redor: parecia
que uma figura escura andava na parte do bosque
que dava para o mar. Ocorreu-lhe então uma
idéia: “Será mesmo que não existem habitantes
nesta ilha?” Depois pensou que fosse Caspian (era
quase da mesma estatura), mas não podia ser, pois
Caspian tinha adormecido ao pé dele e ainda não
se mexera do lugar. Certificou-se de que tinha a
espada e levantou-se para investigar.
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Desceu sem fazer ruído até a orla do
bosque, e a figura escura continuava no mesmo
lugar. Via-se agora que era muito pequena para
ser de Caspian e muito grande para ser de Lúcia.
Não fugiu ao vê-lo. Edmundo puxou a espada e já
estava prestes a atacar o estranho, quando este
perguntou em voz baixa:
– É você, Edmundo?
– Sou eu, e quem é você?
– Não está me conhecendo? Sou eu, o
Eustáquio.
– Caramba! É mesmo você, meu caro?...
– Silêncio! – respondeu Eustáquio,
cambaleando como se fosse cair.
– Opa! Que tem você? Sente-se mal?
Eustáquio ficou tanto tempo em silêncio
que Edmundo achou que tivesse desmaiado. Mas
disse por fim:
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– Foi horrível. Você não pode imaginar,
mas agora já me sinto bem. Podemos conversar
um pouco por aí? Não quero, por enquanto,
encontrar-me com os outros.
– Naturalmente, onde você quiser. Vamos
até aquelas rochas lá embaixo. Estou muito
contente de vê-lo de novo. Você deve ter passado
por maus lençóis.
Caminharam para as rochas e sentaram-se
para olhar a baía, enquanto o céu se tornava mais
pálido e as estrelas iam desaparecendo, com
exceção de uma, muito brilhante e muito perto da
linha do horizonte.
– Não vou contar como virei dragão, pois
tenho também de contar para os outros para
acabar de uma vez para sempre com isso tudo.
Aliás, só soube que era dragão quando ouvi você
usar essa palavra medonha naquela manhã em que
voltei.
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Mas vou lhe dizer como deixei de ser
dragão.
– Vá em frente – disse Edmundo.
– Bem, na noite passada eu estava mais
infeliz do que nunca. Este bracelete horrível me
machucava como o quê...
– Não machuca mais?
Eustáquio sorriu – um sorriso diferente
daquele que Edmundo conhecia – e facilmente
deslizou o bracelete para fora do braço.
– Aqui está – disse Eustáquio. – Se alguém
quiser, que fique com ele. Mas, como ia dizendo,
estava ali deitado, pensando na minha vida,
quando de repente... Mas, pense bem, isso pode
ter sido um sonho. Não sei...
– Continue – disse Edmundo, com uma
paciência espantosa.
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– Bem, seja lá como for... Olhei e vi a
última coisa que esperava ver: um enorme leão
avançando para mim. E era estranho porque,
apesar de não haver lua, por onde o leão passava
havia luar.
Foi chegando, chegando. E eu, apavorado.
Você talvez pense que eu, sendo um dragão,
poderia derrubar a fera com a maior facilidade.
Mas não era esse tipo de medo. Não temia que me
comesse, mas tinha medo dele... não sei se está
entendendo o que quero dizer... Chegou pertinho
de mim e me olhou nos olhos. Fechei os meus,
mas não adiantou nada, porque ele me disse que o
seguisse...
– Falava?
– Agora que você está me perguntando, não
sei mais. Mas, de qualquer maneira, dizia coisas.
E eu sabia que tinha de fazer o que me dizia,
porque me levantei e o segui. Levou-me por um
caminho muito comprido, para o interior das
montanhas. E o halo sempre lá envolvendo-o.
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Finalmente chegamos ao alto de uma montanha
que eu nunca vira antes, no cimo da qual havia um
jardim. No meio do jardim havia uma nascente de
água. Vi que era uma nascente porque a água
brotava do fundo, mas era muito maior do que a
maioria das nascentes – parecia uma grande
piscina redonda, para a qual se descia em degraus
de mármore. Nunca tinha visto água tão clara e
achei que se me banhasse ali talvez passasse a dor
na pata. Mas o leão me disse para tirar a roupa
primeiro. Para dizer a verdade, não sei se falou em
voz alta ou não. Ia responder que não tinha roupa,
quando me lembrei que os dragões são, de certo
modo, parecidos com as serpentes, e estas largam
a pele. “Sem dúvida alguma é o que ele quer”,
pensei.
Assim, comecei a esfregar-me, e as escamas
começaram a cair de todos os lados. Raspei ainda
mais fundo e, em vez de caírem as escamas,
começou a cair a pele toda, inteirinha, como
depois de uma doença ou como a casca de uma
banana. Num minuto, ou dois, fiquei sem pele.
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Estava lá no chão, meio repugnante. Era uma
sensação maravilhosa. Comecei a descer à fonte
para o banho. Quando ia enfiando os pés na água,
vi que estavam rugosos e cheios de escamas como
antes. “Está bem”, pensei, “estou vendo que tenho
outra camada debaixo da primeira e também tenho
de tirá-la”. Esfreguei-me de novo no chão e mais
uma vez a pele se descolou e saiu; deixei-a então
ao lado da outra e desci de novo para o banho. E
aí aconteceu exatamente a mesma coisa. Pensava:
“Deus do céu! Quantas peles terei de despir?”
Como estava louco para molhar a pata, esfregueime
pela terceira vez e tirei uma terceira pele. Mas
ao olhar-me na água vi que estava na mesma.
Então o leão disse (mas não sei se falou): “Eu tiro
a sua pele”. Tinha muito medo daquelas garras,
mas, ao mesmo tempo, estava louco para ver-me
livre daquilo. Por isso me deitei de costas e deixei
que ele tirasse a minha pele. A primeira unhada
que me deu foi tão funda que julguei ter me
atingido o coração. E quando começou a tirar-me
a pele senti a pior dor da minha vida. A única
coisa que me fazia agüentar era o prazer de sentir
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que me tirava a pele. É como quem tira um
espinho de um lugar dolorido. Dói pra valer, mas
é bom ver o espinho sair.
– Estou entendendo – disse Edmundo.
– Tirou-me aquela coisa horrível, como eu
achava que tinha feito das outras vezes, e lá estava
ela sobre a relva, muito mais dura e escura do que
as outras. E ali estava eu também, macio e
delicado como um frango depenado e muito
menor do que antes. Nessa altura agarrou-me –
não gostei muito, pois estava todo sensível sem a
pele – e atirou-me dentro da água. A princípio
ardeu muito, mas em seguida foi uma delícia.
Quando comecei a nadar, reparei que a dor do
braço havia desaparecido completamente.
Compreendi a razão. Tinha voltado a ser gente.
Você vai me achar um cretino se disser o que
senti quando vi os meus braços. Não são mais
musculosos do que os de Caspian, eu sei que não
são muito musculosos, nem se podem comparar
com os de Caspian, mas morri de alegria ao vê-
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los. Depois de certo tempo, o leão me tirou da
água e vestiu-me.
– Como?... Com as patas?
– Não me lembro muito bem. Sei lá, mas
me vestiu com uma roupa nova, esta aqui. É por
isso que eu digo: acho que foi um sonho.
– Não, não foi sonho, não – disse Edmundo.
– Por quê?
– Primeiro: a roupa nova serve de prova.
Segundo: você deixou de ser dragão... Acho que
você viu Aslam.
– Aslam! – exclamou Eustáquio. -Já ouvi
falar nesse nome uma porção de vezes, desde que
estou no Peregrino. Tinha a impressão – não sei
por quê – de que o odiava. Mas eu odiava tudo.
Aliás, quero pedir-lhe desculpas. Acho que me
comportei muito mal.
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– Não tem a menor importância. Cá para
nós, você foi menos chato do que eu na minha
primeira viagem a Nárnia. Você apenas foi um
pouco boboca, mas eu banquei o traidor.
– Bem, então não se fala mais nisso. Mas...
quem é Aslam? Você o conhece?
– Ele, pelo menos, me conhece. É o grande
Leão, filho do Imperador de Além-mar. Salvou a
mim e a Nárnia. Nós todos o vimos. Lúcia sempre
o vê. Pode ser que tenhamos chegado ao país de
Aslam.
Nenhum dos dois falou durante algum
tempo. Desaparecera a última estrela. Não viam o
sol, mas sabiam que este surgia, pois tanto o céu
quanto a baía em frente se tingiam de cor-de-rosa.
Uma ave da família dos papagaios gritou no
bosque que ficava atrás; começaram a ouvir
barulho entre as árvores e, por fim, o toque da
trompa de Caspian. O acampamento acordara.
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Houve júbilo geral quando Edmundo e
Eustáquio, este na sua forma primitiva, chegaram
ao círculo dos que tomavam a primeira refeição
junto da fogueira.
Claro que todos ouviram a primeira parte da
história. Imaginava-se se o dragão havia matado
lorde Octasiano alguns anos atrás ou se o dragão
velho havia sido o próprio Octasiano. As jóias
com que Eustáquio atulhara os bolsos na caverna
haviam desaparecido com as roupas que vestira,
mas ninguém sentia vontade de buscar o tesouro.
Em poucos dias, o Peregrino, com mastro
novo, bem sortido de provisões, estava pronto
para partir. Antes de embarcarem, Caspian
mandou inscrever numa rocha macia, virada para
o mar, estas palavras:
ILHA DO DRAGÃO
DESCOBERTA POR CASPIAN X,
REI DE NÁRNIA,
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NO QUARTO ANO DE SEU REINADO. AQUI,
SEGUNDO PARECE,
LORDE OCTASIANO
ENCONTROU A MORTE.
Seria bonito e muito próximo da verdade
dizer que, dali por diante, Eustáquio mudou
completamente. Para ser rigorosamente exato,
começou a mudar. Às vezes tinha recaídas. Em
certos dias era ainda um chato. Mas a cura havia
começado.
O bracelete de lorde Octasiano teve um
curioso destino. Eustáquio não o quis, oferecendoo
a Caspian, que por sua vez o deu a Lúcia. Mas
também esta não tinha grande interesse em
conservá-lo.
– Muito bem, então é de quem pegar – disse
Caspian, atirando a jóia para o alto. Isso se deu no
momento em que estavam todos contemplando a
inscrição na pedra.
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O bracelete volteou no ar, brilhando à luz
do sol, e, caindo, foi ficar pendurado, como uma
ar-gola atirada de propósito, numa saliência na
rocha. Não se podia subir para tirá-lo, nem era
possível apanhá-lo pelo lado de cima.
Assim, lá ficou pendurado e, tanto quanto
eu sei, lá ficará até que o mundo deixe de ser
mundo.
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8
DOIS SÉRIOS PERIGOS
Todos estavam contentes quando o
Peregrino da Alvorada saiu da Ilha do Dragão.
Tiveram logo vento favorável e no dia seguinte,
muito cedo, chegaram à terra desconhecida, que
alguns já tinham visto ao voar sobre as montanhas
nas costas do dragão.
A ilha era baixa e verde, habitada apenas
por coelhos e cabras, mas calcularam já ter vivido
gente lá, não muito tempo atrás, pelas ruínas das
cabanas de pedra e pelos lugares enegrecidos onde
tinham ardido fogueiras. Havia também ossos e
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armas partidas.
– Coisa de piratas – disse Caspian.
– Ou de dragões – disse Edmundo.
A única coisa que encontraram foi um
barquinho de couro encalhado na areia. Era muito
pequeno, com cerca de um metro de
comprimento, e o remo tinha um tamanho
adequado às dimensões do barco. Segundo lhes
parecia, ou o barco fora feito para uma criança ou
aquela terra era habitada por anões.
Ripchip levou o bote para bordo, pois era
do tamanho que lhe convinha. Chamaram à terra
Ilha Queimada e partiram antes do anoitecer.
Durante cinco dias foram empurrados por um
vento sul, sem verem terra, nem peixes, nem
gaivotas. Houve um dia em que choveu forte até a
tarde. Eustáquio perdeu duas partidas de xadrez
para Ripchip e começou a lembrar de novo o
antigo e enjoado menino que fora. Edmundo disse
que teria preferido ir aos Estados Unidos com
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Susana. Lúcia olhou pela janelinha do camarote e
disse:
– Parece que a chuva parou. Mas o que é
aquilo?
Correram todos para a popa e viram que a
chuva tinha cessado; Drjnian, que estava de vigia,
olhava atentamente para uma coisa do lado da
popa. Ou melhor, para várias coisas. Pareciam
pequenas rochas lisas, uma porção delas,
separadas umas das outras cerca de quinze metros.
– Não podem ser rochas – disse Drinian. –
Não estavam lá há cinco minutos.
– Agora mesmo desapareceu uma –
exclamou Lúcia.
– Vem outra subindo – disse Edmundo.
– E mais perto – observou Eustáquio.
– E estão se movendo nesta direção – disse
Caspian.
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– E andam mais depressa do que nós. Daqui
a um minuto baterão no navio – acrescentou
Drinian.
Prenderam a respiração, pois não é nada
agradável ser perseguido em terra ou no mar por
um ser desconhecido. Mas o que estava para
acontecer era muito pior do que suspeitavam.
Subitamente, quase junto a bombordo,
ergueu-se do mar uma cabeça horrível. Toda
verde e vermelha, com manchas purpurinas,
exceto nos lugares a que se agarravam mariscos, e
tinha o feitio da cabeça de um cavalo, mas sem
orelhas. Os olhos eram enormes, feitos para
enxergar nas profundezas escuras do oceano, e na
boca escancarada alinhava-se uma dupla fileira de
dentes, afiados como os dos peixes. A princípio,
pareceu-lhes que a cabeça se apoiava num
comprido pescoço, mas, à medida que emergia
das águas, compreenderam todos que não era o
pescoço, mas o próprio corpo... Viam finalmente
agora o que tanta gente anseia por ver: a grande
Serpente do Mar. As curvas da sua gigantesca
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cauda estendiam-se a uma grande distância,
elevando-se, com intervalos, da superfície do mar.
E sua cabeça agora erguera-se acima do mastro.
Correram todos para as espadas, mas nada
podiam fazer, pois o monstro estava fora do
alcance.
– Atirar, atirar! – disse o arqueiro-mor;
alguns homens obedeceram, mas as flechas
bateram no corpo da serpente como se este fosse
de aço. Durante um angustiante minuto, ficaram
todos em silêncio, olhando aterrados aqueles
olhos e aquela boca, tentando imaginar a que parte
do navio ela se lançaria. Mas não se lançou.
Arremessou a cabeça para a frente cruzando o
barco ao nível da verga do mastro. Sua cabeça
estava agora bem ao lado da torre de combate.
Estendeu-se ainda mais, até ficar com a cabeça
por cima dos costados de estibordo. Depois
começou a baixar, não para o convés apinhado de
gente, mas para a água, de modo que todo o navio
ficou debaixo do arco de
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seu corpo. A seguir, o arco começou a
diminuir; do lado de estibordo, a Serpente do Mar
estava quase tocando o costado do Peregrino.
Eustáquio (que realmente estivera tentando
portar-se bem, até que a chuva e o xadrez o
fizeram recair) praticou o primeiro ato corajoso de
sua vida. Tinha uma espada que Caspian lhe
emprestara. Logo que o corpo da serpente ficou
suficientemente perto do lado de estibordo, saltou
para o costado e começou a golpeá-lo com toda a
vontade. Na verdade nada conseguiu, a não ser
partir em pedaços a melhor espada de Caspian,
mas para um novato foi um feito notável. Ripchip
impediu que os outros atacassem:
– Não lutem! Empurrem!
Não era hábito do rato aconselhar alguém a
não lutar e, mesmo naquele momento terrível,
todos os olhos se voltaram para ele. Quando
saltou para o costado do barco, do lado de lá da
serpente, e encostou o dorso felpudo à enorme
espinha e ao corpo escorregadio e começou a
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empurrar, quase todos compreenderam a sua
intenção e correram para fazer o mesmo.
Momentos depois, a cabeça da serpente
apareceu de novo, desta vez a bombordo, com o
dorso voltado para eles, e aí então não houve
quem não entendesse a idéia do rato. O animal
havia-se enrolado em volta do Peregrino e
começava a apertar o laço com o seu próprio
corpo. Uma vez bem apertado, só haveria pedaços
de madeira no lugar do navio, e a serpente
apanharia um por um os passageiros. A única
salvação era empurrar o laço para trás, até que
deslizasse sob o costado do barco, ou então
(dizendo a mesma coisa mas de outro modo)
impelir o navio para fora do laço.
Para Ripchip, fazer isso sozinho, era o
mesmo que erguer uma catedral, mas quase se
matou tentando, antes que os outros o
empurrassem para o lado. Toda a tripulação,
exceto Lúcia e o rato (que tinha desmaiado),
formava dois longos cordões, cada homem com o
peito apoiado nas costas do que estava na frente,
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de modo que todo o peso da fila vinha concentrarse
no último homem. Era questão de vida ou
morte. Durante alguns penosos segundos, nada
aconteceu. Ossos estalavam, o suor caía, a
respiração era arquejante e rouca. Então sentiram
que o navio se movia e que o laço da serpente
estava mais afastado do mastro do que antes, mas
também mais apertado. O verdadeiro perigo
estava iminente. Haveria tempo de arrojá-lo pela
popa? Ou já era tarde?
O corpo do animal já se apoiava nas
amuradas da popa. Para lá saltaram logo dez ou
mais homens. Era bem melhor. O corpo estava tão
baixo que eles podiam formar um só cordão pela
popa e empurrar uns ao lado dos outros. A
esperança reinou de novo até se lembrarem da
parte alta da ré, a cauda do dragão que o
Peregrino imitava. Era completamente impossível
fazer o animal transpor aquela parte do navio.
– Um machado! – gritou Caspian, com voz
rouca. – E continuem empurrando.
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Lúcia, que sabia onde estava tudo, foi
correndo lá embaixo e apanhou um machado. Ao
atingir o alto da escada da popa, ouviu-se um
estrondo, como de uma árvore que tomba. O
navio estremeceu todo e pulou para a frente.
Naquele mesmo momento, a serpente fora
empurrada com muita força, ou ela mesma
resolvera estupidamente apertar o laço, e esmagou
a ré do navio, libertando-o completamente.
Os outros estavam demasiado exaustos para
ver o que Lúcia viu: a poucos metros, a argola
formada pelo corpo da serpente tornava-se menor
e desaparecia num espadanar de água. Lúcia
sempre disse (pode ter sido imaginação dela, pois
estava muito excitada) que vira na serpente uma
expressão de contentamento imbecil.
O animal era mesmo muito estúpido, pois
em vez de perseguir o navio virou a cabeça e
começou a procurar ao longo do corpo com o
focinho, julgando talvez encontrar os destroços do
Peregrino. Mas este já seguia seu caminho,
impelido por um vento suave. A tripulação
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espalhava-se pelo convés, uns deitados, outros
sentados, gemendo e queixando-se. Breve, já
comentavam o caso e até riam.
Enquanto se distribuía vinho e alimento,
todos começaram a dar vivas e a elogiar a valentia
de Eustáquio (embora nada tivesse feito de
decisivo) e de Ripchip.
Depois desse incidente navegaram três dias
entre céu e mar. No quarto dia o vento virou para
o norte e o mar começou a agitar-se. À tarde, já
era quase um furacão. Foi quando viram terra a
bom-bordo.
– Se Vossa Majestade me permitir – disse
Drinian –, vamos remar para a costa para ficar a
sotavento, ancorados até isto passar.
Caspian concordou, mas só chegaram ao
ancoradouro perto da noite, pois tiveram que
remar uma grande distância contra a maré.
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Ao lusco-fusco entraram num porto natural
e ancoraram, mas naquela noite ninguém
desembarcou. Viram de manhã que estavam numa
baía verde, uma terra bravia e solitária que se
elevava até um maciço rochoso. As nuvens
desciam em torrente do alto maciço, impelidas
pelo vento norte que soprava detrás dele.
Baixaram o bote e encheram-no com alguns barris
vazios.
– Onde vamos buscar água? – perguntou
Caspian, ao sentar-se na popa. – Vêm desaguar
dois riachos na baía.
– Tanto faz – respondeu Drinian. – Acho
que a estibordo fica o riacho mais próximo.
– Vai chover! – avisou Lúcia.
– Já está chovendo! – exclamou Edmundo,
pois já caíam mesmo grandes pingos de chuva. –
Acho melhor irmos para aquele riacho. Vejo
árvores onde
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podemos ficar abrigados.
– Então, vamos – concordou Eustáquio. – A
gente não precisa se molhar mais do que o
necessário.
Mas Drinian insistia em continuar para
estibordo, como as pessoas que teimam em dirigir
a cem quilômetros por hora, apesar de avisadas de
que se enganaram de estrada.
– Eles estão certos, Drinian – falou
Caspian.
– Por que não vira o navio e segue para
outro riacho?
– Como Vossa Majestade quiser – disse
Drinian, um tanto secamente. O dia anterior fora
extrema mente fatigante por causa do mau tempo
e, além disso, ele não gostava de conselhos de
gente de terra. Contudo, mudou de rumo,
verificando-se mais tarde ter sido uma boa
resolução.
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Quando acabaram de recolher água, tinha
cessado a chuva. Caspian, com Eustáquio, os
Pevensie e Ripchip resolveram ir ao cimo do
monte para ver o que podiam avistar de lá. Foi
uma subida difícil pela relva áspera e espinhenta.
Não encontraram nem animais nem gente, apenas
gaivotas. Quando atingiram o cume, viram que se
tratava de uma pequena ilha de poucos
quilômetros. Lá do alto, o mar parecia maior e
mais desolado do que visto do convés ou da torre
do Peregrino.
– É uma completa loucura – disse
Eustáquio a Lúcia, em voz baixa, olhando o
horizonte para os lados do oriente – continuar a
navegar nisso sem
saber aonde vamos parar!
Estava frio demais para continuarem lá no
alto.
– Não vamos voltar pelo mesmo caminho –
sugeriu Lúcia. – Continuamos mais um pouco e
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de pois descemos pelo outro riacho, aonde
Drinian queria ir.
Todos concordaram e, cerca de quinze
minutos mais tarde, encontravam-se na nascente
do segundo rio.
O lugar era mais interessante do que
haviam imaginado; um pequeno lago de montanha
rodeado de penedos, exceto do lado de onde saía
um canal estreito que levava a água para o mar.
Ali, abrigados do vento, sentaram-se todos
no capim para descansar. Mas Edmundo levantouse
logo, de um salto.
– Esta ilha é feita de pedras pontudas? Ah,
peguei... Ei, não é pedra, é um punho de espada.
Que nada, é uma espada inteira, o que a
ferrugem deixou. Deve estar aqui há um tempo
enorme.
– Pelo aspecto, parece de Nárnia – disse
Caspian, quando se juntaram todos para ver.
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– Também me sentei em cima de alguma
coisa – disse Lúcia. – Uma coisa dura! – Eram os
restos de uma armadura. Já todos estavam de
gatinhas, apalpando o capim em todos os sentidos.
Aos poucos, a busca revelou um elmo, uma
adaga e várias moedas. Não eram crescentes da
Calormânia, mas autênticos “leões” e “árvores” de
Nárnia.
– Acho que é tudo que resta de um dos
nossos sete fidalgos – disse Edmundo.
– Estava pensando justamente nisso – falou
Caspian. – Resta saber qual deles. Não há nada na
adaga que o indique. Nem faço idéia de como
morreu.
– Nem de como haveremos de vingá-lo –
acrescentou Ripchip.
Edmundo, o único do grupo que lera
histórias policiais, pôs-se a pensar no caso.
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– Olhem aí: há qualquer coisa de estranho
nisso. Não pode ter sido morto em combate.
– E por que não? – perguntou Caspian.
– Não há aqui nenhum osso – respondeu
Edmundo. – Um inimigo teria levado a armadura
e deixado o corpo. Alguém já ouviu falar de um
sujeito que depois de ganhar um combate leve o
corpo e deixe a armadura?
– Talvez tenha sido comido por um animal
selvagem – observou Lúcia.
– Tinha de ser um animal muito inteligente
– respondeu Edmundo – para tirar a armadura de
um homem.
– Talvez um dragão – disse Caspian.
– Nem por sombra! – exclamou Eustáquio.
-
Um dragão seria incapaz de fazer isso. De
dragão eu entendo!
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– Se vocês estiverem de acordo – propôs
Caspian, levantando-se – acho que não vale a
pena levar nada daqui.
Contornaram o lago e desceram até a
abertura por onde saía a água. Se o dia estivesse
quente, alguns deles teriam tomado um banho.
Eustáquio inclinou-se sobre a água para beber na
concha das mãos, mas antes que pudesse fazê-lo
foi interrompido pelo grito simultâneo de Lúcia e
Ripchip: -Olhem! – Eustáquio deteve-se e olhou.
O fundo do poço era feito de grandes pedras
azul-acinzentadas, a água era completamente
transparente, e no fundo jazia uma figura de
homem, que parecia feita de ouro. Tinha o rosto
virado para baixo e os braços estendidos acima da
cabeça. Enquanto observavam, as nuvens
afastaram-se, deixando brilhar o sol, que iluminou
a figura de ouro por completo. Lúcia pensou que
nunca vira estátua tão bela.
– Puxa! – exclamou Caspian. – Vale a pena
ver isto. Poderemos retirá-la de lá?
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– Podemos mergulhar, senhor – disse
Ripchip.
– Não pode ser – falou Edmundo. – Se for
realmente de ouro, de ouro puro, é muito pesada
para ser puxada. E o poço tem pelo menos uns três
metros de profundidade. Esperem um pouco.
Ainda bem que trouxe minha lança. Vamos ver a
profundidade disso. Segure minha mão, Caspian,
enquanto me debruço.
Caspian agarrou-lhe a mão e Edmundo,
inclinando-se para a frente, começou a mergulhar
a lança na água.
– Acho que não é de ouro – disse Lúcia. –
A luz é que faz aquilo. A lança está da mesma cor
da estátua.
– O que aconteceu? – perguntaram várias
vozes ao mesmo tempo, pois Edmundo deixara
cair a lança de sua mão.
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– Não consegui segurá-la – articulou
Edmundo. – Ficou tão pesada...
-Já está no fundo – disse Caspian. – Lúcia
tem razão. Parece da mesma cor da estátua.
Mas Edmundo, parecendo ter qualquer
problema com suas botas, pois estava inclinado a
espiá-las, endireitou-se de súbito e gritou com
aquela voz cortante que ninguém ousa
desobedecer:
– Saiam da água! Todos! Já!
Todos se afastaram e ficaram olhando para
ele, admirados.
– Olhem as minhas botas – gritou ainda
Edmundo.
– Estão muito amarelas – ia dizendo
Eustáquio.
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– São de ouro, de ouro puro – interrompeu
Edmundo. – Olhem bem. Peguem. Pesam mais do
que chumbo.
– Por Aslam! – exclamou Caspian. – Você
não está querendo dizer...
– Estou querendo, sim. Esta água
transforma tudo em ouro. Transformou a lança e
por isso ela ficou tão pesada. Os meus pés
estavam quase lá dentro (ainda bem que não estou
descalço!), e a parte da frente das botas também
virou ouro. E aquele coitado lá no fundo... bem,
vocês estão vendo.
– Então não é uma estátua – disse Lúcia,
com a voz sumida.
– Não. Agora está tudo claro. Ele veio aqui
num dia quente. Tirou a roupa no alto da rocha,
onde estamos sentados. As roupas devem ter
apodrecido, ou foram levadas pelas aves para
fazer ninhos.
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A armadura ainda está ali. Mergulhou e...
– Não fale mais nada – exclamou Lúcia. –
Que coisa medonha!
– Escapamos por um triz! – disse Edmundo.
– Por um triz! – concordou Ripchip. – Mais
um pouco e a gente enfiava o pé na água, ou os
bigodes, até mesmo a cauda...
– Vamos tirar a prova – falou Caspian.
Arrancou um galho e, com muito cuidado,
ajoelhou-se junto do poço mergulhando a haste.
Foi vegetal o que mergulhou, mas o que tirou da
água era um perfeito modelo de ramo feito de
ouro, pesado e maciço como o chumbo.
– O rei que possuísse esta ilha – disse
Caspian vagarosamente, e ao falar seu rosto se
iluminou – seria em pouco tempo o rei mais rico
do mundo.
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Declaro esta ilha possessão de Nárnia para
sempre! Será chamada Ilha das Águas de Ouro.
Exijo que todos guardem segredo. Nem mesmo
Drinian deve saber. E isto sob pena de morte,
entenderam?
– Mas com quem está falando? – indagou
Edmundo. – Não sou seu súdito. Só se for o
contrário. Sou um dos mais antigos soberanos de
Nárnia, e você jurou fidelidade ao Grande Rei,
meu irmão.
– Ah, é assim, rei Edmundo? – perguntou
Caspian, apoiando a mão no punho da espada.
– Parem com isso – interveio Lúcia. – E o
que dá a gente andar com rapazes. Vocês são uns
valentões bobocas. Oh!... – e a voz morreu-lhe
num espasmo.
E todos viram o que ela havia visto.
Lá no alto, na falda cinzenta do monte,
caminhava em passo lento, sem ruído, sem olhar
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para eles, e brilhando como se estivesse à luz do
sol e não no crepúsculo, o maior leão que olhos
humanos jamais viram.
Mais tarde, Lúcia, ao descrever a cena, diria
“do tamanho de um elefante”, ainda que em outrás
ocasiões dissesse apenas “do tamanho de um
cavalo de circo”.
Mas não era o tamanho que interessava.
Todos sabiam que era Aslam. E nunca ninguém
soube como viera nem para onde ia. Olhavam uns
para os outros, como se tivessem acordado de um
sonho.
– De que estávamos falando? – perguntou
Caspian. – Agi como um imbecil.
– Senhor! – disse Ripchip. – Este lugar está
amaldiçoado. Voltemos para bordo
imediatamente. Se me permitisse dar um nome a
esta ilha, eu a chamaria de Água da Morte.
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– Parece um nome adequado, Rip –
respondeu Caspian. – Ainda que, pensando bem,
nem mesmo eu saiba por quê. O tempo parece ter
melhorado, e
tenho a impressão de que Drinian deve estar
louco para partir. Quanta coisa teremos para
contar!
Mas afinal não lhe contaram grande coisa,
pois os acontecimentos daquela última hora
haviam-se tornado um tanto confusos em suas
mentes.
– Suas Majestades pareciam enfeitiçadas
quando voltaram – disse Drinian a Rince algumas
horas depois, quando o Peregrino já navegava e a
Ilha da Água da Morte desaparecia no horizonte.
– Algo aconteceu a eles naquela terra. A
única coisa que entendi foi que parece terem
encontra do o corpo de um dos fidalgos.
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– Não me diga! – exclamou Rince. – Então
já são três. Só faltam quatro. Nesse ritmo,
estaremos em casa depois do Ano Novo. Ótimo!
Boa noite, senhor!
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A ILHA DAS VOZES
O vento começou a soprar do leste, e todas
as manhãs, quando a luz surgia, a proa recurva do
Peregrino elevava-se na direção do sol.
E navegaram, navegaram, impelidos por
uma brisa suave, mas contínua, e não viram peixe,
nem gaivota, nem barco, nem praia. As provisões
começaram a escassear outra vez, e entrou no
espírito de todos a idéia de que talvez estivessem
navegando por um mar sem fim. Mas, quando
amanheceu o último dia que tinham fixado para
continuar a leste, avistaram entre o navio e o sol
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nascente uma terra baixa e esfumada como uma
nuvem.
Ao meio da tarde aportaram em uma grande
baía e desembarcaram. Era um lugar muito
diferente de todos os que já haviam visto, pois, ao
atravessarem a praia arenosa, depararam com um
silêncio e um vazio totais, como se fosse uma
terra desabitada. Contudo, à frente estendiam-se
campos com relva tão macia e aparada como a
que se costuma encontrar nas grandes casas
inglesas onde trabalham dez jardineiros. As
árvores, em grande quantidade, estavam bem
separadas umas das outras, e não havia no chão
nem ramos partidos nem folhas caídas. Só se
ouvia o arrulhar de pombos. Tomaram um
caminho arenoso, extenso e reto, todo ladeado de
árvores, onde não crescia uma só erva. Na outra
extremidade, vislumbraram uma grande casa
acinzentada, muito sossegada ao sol da tarde.
Lúcia reparou que tinha uma pedrinha no
sapato. Numa terra desconhecida como aquela,
teria sido mais ajuizado pedir que os outros
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esperassem por ela. Mas deixou-se ficar para trás
e sentou-se para tirar o sapato. O cordão tinha um
nó. Antes que tivesse desatado o nó, eles já
estavam a uma distância razoável. Quando tirou a
pedra e amarrava o sapato, já não os ouvia. Quase
ao mesmo tempo ouviu uma outra coisa, mas o
som não vinha do lado da casa.
Era um ruído de batidas, como se dúzias de
robustos trabalhadores estivessem golpeando o
chão com toda a força com grandes pilões de
madeira. E aproximavam-se rapidamente. Ainda
estava sentada e encostada à árvore, mas como
não sabia subir, só lhe restava continuar assim,
muito quieta, comprimindo-se de encontro à
árvore, esperando que não a vissem.
Tump... Tump... Tump... – fosse o que
fosse, estava muito perto, pois ela sentia o chão
tremer. Mas nada via.
A coisa – ou coisas – devia estar bem atrás
dela. De repente ouviu um estrondo no caminho,
bem na sua frente. Compreendeu que era naquele
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lugar, não só por causa do som, como também
porque viu a areia espalhando-se no ar como se
tivesse sofrido uma forte pancada. Depois, todos
os estampidos se reuniram a uns cinco metros de
distância, cessando subitamente. Depois veio a
Voz. Era horrível, porque ainda não tinha
conseguido ver ninguém. Toda aquela região, que
mais lembrava um parque, parecia tão sossegada e
vazia como quando haviam desembarcado. No
entanto, a poucos metros de distância, uma voz
falou:
– Camaradas, eis a nossa oportunidade!
Imediatamente respondeu-lhe um coro de
vozes:
– Ouçam, ouçam. Eis a nossa oportunidade!
Muito bem, chefe. Nunca falou tanta
verdade.
A primeira voz continuou:
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– O que eu acho é que devemos ir para a
praia e ficar entre eles e o navio; e que cada um
cuide de suas armas. Vamos apanhá-los quando
tentarem embarcar.
– É a melhor maneira, sem dúvida alguma –
gritaram as outras vozes todas. – Nunca alguém
fez um plano tão bom, chefe. Nunca se poderá
imaginar um plano melhor do que esse.
– Então, coragem, camaradas, coragem;
vamos a eles – disse a primeira voz.
– Está outra vez cheio e repleto de razão,
chefe – disseram os outros. – É a melhor ordem
que nos podia dar. Exatamente o que estávamos
querendo dizer. Vamos a eles!
O barulho começou forte, a princípio, e
depois cada vez mais fraco, até morrer na direção
do mar.
Lúcia sabia que não era o momento de ficar
ali sentada matutando sobre quem seriam as
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criaturas invisíveis. Cessado o barulho, levantouse
e correu pela alameda atrás dos outros. Tinham
de ser avisados o quanto antes.
Os outros tinham chegado à casa. Era um
edifício baixo – só de dois andares – feito de
bonita pedra esverdeada, com muitas janelas e
parcialmente coberto de hera. Estava tudo tão
silencioso que Eustáquio disse:
– Acho que não vive ninguém aqui! –
Caspian apontou-lhe silenciosamente uma coluna
de fumo que saía da chaminé. Entraram por um
grande portão aberto que dava para um pátio
pavimentado. E foi ali que tiveram o primeiro
indício de que havia qualquer coisa de estranho
naquela ilha.
No meio do pátio havia uma bomba d’água
e, debaixo desta, um balde. Nada havia de
estranho nisso, mas o braço da bomba movia-se
para baixo e para cima, embora parecesse que
ninguém o acionava.
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– Tem magia por aqui – disse Caspian.
– Da mecânica, isto sim! – exclamou
Eustáquio.
– Acho que finalmente chegamos a um país
civilizado.
Nesse momento, Lúcia, vermelha e
ofegante, irrompeu pelo pátio. Em voz baixa
tentou explicar-lhes o que ouvira. E, quando
compreenderam parte do que se passava, nem o
mais valente ficou satisfeito.
– Inimigos invisíveis! – murmurou Caspian.
– E cortam-nos a retirada para o barco. Vai ser
duro descalçar esta bota!
– Você tem alguma idéia de que tipo de
criaturas se trata, Lu? – perguntou Edmundo.
– Como poderia saber, se não os vi?
– Parecia barulho de ser humano ao andar?
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– Não ouvi nenhum barulho de pé, só vozes
e aquele horrível bater, incessante, como um
martelão.
– Estou pensando se não se tornarão
visíveis se lhes espetarmos uma espada na barriga
– disse Ripchip.
– Acho que temos de experimentar – falou
Caspian. – Mas vamos sair deste pátio; ali está um
deles trabalhando na bomba e ouvindo tudo o que
estamos conversando.
Voltaram ao prado, onde as árvores
poderiam escondê-los melhor.
– Isto não adianta nada – falou Eustáquio –,
querer se esconder de gente que não se vê. Podem
estar todos aqui em volta.
– Escute, Drinian – disse Caspian. – Que tal
se deixássemos o bote e fizéssemos sinal ao
Peregri no para que nos recolhesse no fundo da
baía?
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– Não tem profundidade bastante –
respondeu Drinian.
– Iríamos a nado – disse Lúcia.
– Ouçam, Altezas – chiou Ripchip. – É uma
loucura fugir de um inimigo invisível com
subterfúgios e artimanhas. Se essas criaturas estão
resolvidas a dar-nos combate, pode ter a certeza
de que o farão. Prefiro combatê-las frente a frente
a ser agarrado pelas canelas.
– Creio que desta vez Rip tem razão – disse
Lúcia. – Se Rince e os outros do Peregrino nos
vissem combatendo na praia, haveriam de fazer
alguma coisa.
– Não iriam nos ver combatendo, porque
não veriam o inimigo – disse Eustáquio
desconsoladamente. – Julgariam que estamos
brandindo as espadas no ar, de brincadeira.
Foi um silêncio penoso.
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– Bem – disse, por fim, Caspian –, temos de
enfrentá-los. Apertem as mãos. Flechas nos arcos!
Espada desembainhada! Vamos em frente.
Talvez queiram parlamentar.
Era estranho ver os prados e as grandes
árvores tão serenas enquanto marchavam para a
praia. E quando ali chegaram e viram o bote, a
areia macia e deserta, mais de um duvidou se
Lúcia não teria imaginado tudo aquilo que
contara. Mas, antes de chegarem à areia, a voz
falou do ar:
– Não avancem mais, cavalheiros, não
avancem mais. Temos que falar primeiro. Somos
aqui uns cinqüenta de armas na mão.
– Escutem o que ele diz, escutem o que ele
diz – fez o coro. – É o chefe. Vocês dependem do
que ele vai dizer. E ele nunca diz uma mentira,
uma só.
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– Não vejo esses cinqüenta guerreiros –
observou Ripchip.
– Lá isso é verdade, lá isso é verdade –
disse a voz do chefe. – Vocês não podem nos ver,
porque somos invisíveis.
– Isso mesmo, chefe, isso mesmo –
disseram as outras vozes. – Fala como um livro
aberto. Nunca jamais poderia ter melhor resposta
do que esta.
– Calma, Rip – murmurou Caspian; depois
acrescentou em voz mais alta: – Gente invisível,
que querem de nós? Que fizemos para merecer
sua inimizade?
– Queremos uma coisa que essa mocinha
pode fazer – falou a voz do chefe. E as outras
vozes repetiram a mesma coisa.
– Mocinha! – exclamou Ripchip. – Esta
senhora é uma rainha!
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– Não entendemos de rainhas – disse a voz
do chefe. (“Nem nós, nem nós!”, disseram as
outras vozes.) Mas queremos uma coisa que ela
pode fazer.
– O que é? – perguntou Lúcia.
– Se é algo contra a honra ou a segurança
de Vossa Majestade – acrescentou Ripchip –, hão
de ver quantos matamos antes de morrer.
– Olhem aqui, isto é, escutem aqui: a
história é muito comprida. Que tal se nos
sentássemos todos?
A proposta foi acaloradamente aprovada
pelas outras vozes, mas os de Nárnia continuaram
de pé.
– Bem – disse a voz do chefe –, o negócio é
o seguinte: esta ilha pertence a um mágico há uma
infinidade de tempo. Nós todos somos, ou talvez
seja mais exato dizer, fomos servos dele. Para
resumir um pouco, esse mágico, de que eu estava
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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falando, disse-nos para fazer uma coisa de que
não gostávamos. Por quê? Porque não queríamos.
Pois bem, então o tal mágico ficou louco de
raiva.
Era o dono da ilha e não estava habituado a
ser desobedecido. Era um homem muito rude!
Esperem um pouquinho... O que eu estava
dizendo?
Ah, sim, pois esse mágico foi lá para cima
(ele guardava tudo o que era de magia em cima, e
nós vivíamos embaixo). Então ele subiu e nos
colocou um encantamento. Pois é, como eu ia
dizendo... um encantamento que nos deixou feios,
terrivelmente feios! Se nos vissem agora, acho
que agradeceriam a seus deuses por não nos
verem; não acreditariam como éramos antes do
encantamento. Nem acreditariam que fôssemos os
mesmos.
Ficamos tão feios que nem podemos olhar
uns para os outros. Vou contar o que fizemos:
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quando chegou a noite, esperamos até que o
mágico adormecesse, rastejamos pela escada e,
com uma ousadia fora do comum, fomos até o
livro mágico, para ver se era possível dar um jeito
naquela feiúra. Não minto: tremíamos e suávamos
dos pés à cabeça. Acreditem ou não, não
encontramos nenhum sortilégio que curasse a
feiúra. O tempo passando! E nós com um medo
enorme que o homem acordasse de um momento
para outro: eu estava coberto de suores frios,
confesso, não minto; bem, para resumir a história,
não sei se fizemos bem ou mal, mas demos por
fim com um feitiço que tornava as pessoas
invisíveis. E achamos que era preferível sermos
invisíveis a sermos tão feios. Por quê? Questão de
gosto. Então, a minha garotinha, que tem mais ou
menos a idade da sua, e que era uma doce criança
antes de ficar horrorosa, se bem que agora...
quanto menos se falar nisso, melhor... Como ia
dizendo, a minha menina pronunciou as palavras
do encantamento, pois têm de ser ditas por uma
garota ou pelo próprio mágico para produzirem
efeito, entendem? Assim, a minha Clípsia disse as
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palavras mágicas. Já devia ter dito que ela lê
muito bem, e ficamos todos invisíveis, como
vocês agora podem ver, ou não ver. Juro que foi
um alívio não ver mais as caras uns dos outros.
Pelo menos a princípio. Mas acontece agora que
já não agüentamos mais ser invisíveis. E há outra
coisa. Nunca soubemos se o mágico, aquele do
qual eu falava há pouco, também ficou invisível.
Nunca mais o vimos. Não sabemos se está vivo ou
morto, ou se foi embora, se está lá em cima,
sentado e invisível, ou se desceu e está aqui agora,
também invisível. Não há jeito de ouvi-lo, pois ele
anda sempre descalço, mais silencioso do que um
gato. Com franqueza, cavalheiros, os nossos
nervos já não agüentam mais!
Foi essa a história do chefe, mas muito
resumida, porque não incluí o que as outras vozes
disseram. O chefe, de fato, não dizia mais de seis
ou sete palavras sem ser interrompido por
manifestações de aprovação ou encorajamento das
outras vozes, o que levou a turma de Nárnia quase
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a perder a paciência. Quando terminou, foi um
grande silêncio.
– Mas o que temos com isso? Não estou
entendendo! – disse Lúcia, finalmente.
– Que diabo, que diabo! No fim das contas
me esqueci do principal – disse a voz do chefe.
– Esqueceu mesmo, esqueceu mesmo! –
grita ram as outras vozes, com entusiasmo. – Só o
senhor seria capaz de se esquecer tão
completamente de uma coisa tão importante.
Muito bem, chefe!
– Bem – continuou o chefe, acho que não
preciso contar tudo de novo, desde o princípio...
– Não, não mesmo! – disseram Caspian e
Edmundo.
– Para resumir – recomeçou a voz do chefe
–, há muito que esperávamos uma linda menina,
de um país estrangeiro, para ir lá em cima, no
livro mágico, procurar palavras que possam tornar
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a gente de novo visível. Ela terá de pronunciá-las,
depois que encontrá-las. Juramos que os primeiros
estrangeiros que aportassem a esta ilha, trazendo
uma linda menina – pois, se não trouxessem, o
caso seria outro –, não sairiam daqui vivos sem
nos prestar o serviço. Por essa mesma razão,
seremos obrigados a cortar-lhes o pescoço se a
menina não for lá em cima procurar no livro a
fórmula mágica. Como estão vendo, é uma
questão à-toa. Espero que não se ofendam.
– Não vejo as suas armas – disse Ripchip. –
Também são invisíveis?
Mal tinha acabado de pronunciar estas
palavras, quando ouviram um zunido; numa das
árvores cravou-se, vibrando, uma lança.
– É uma lança, é uma lança – disse a voz do
chefe.
– É, chefe, é, pois é! – disseram os outros. –
Não poderia nunca falar tão bem.
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– E fui eu quem atirei! – continuou a voz do
chefe. – Ficam visíveis quando saem da nossa
mão.
– Mas por que desejam que eu faça isso? –
perguntou Lúcia. – Por que não fazem vocês? Não
há moças entre vocês?
– Não somos capazes, não somos capazes –
disseram as vozes todas. – Não iremos lá em cima
de novo.
– Em outras palavras – disse Caspian –,
estão pedindo que a moça enfrente um perigo que
não ousam pedir às suas irmãs ou suas filhas?
– Isso mesmo, isso mesmo – disseram as
vozes, entusiasticamente. – Não poderia ter falado
melhor. O senhor tem cultura, tem. Vê-se.
– É o mais ultrajante... – começou a dizer
Edmundo, mas foi interrompido por Lúcia:
– Tenho que ir lá em cima de dia ou de
noite?
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– Claro que de dia, de dia! – respondeu a
voz do chefe. – Não, de noite não. Ninguém iria
exigir uma coisa dessas. Ir lá em cima de noite?
Nem pensar.
– Muito bem, então vou lá – afirmou Lúcia.
– Não! – disse, virando-se para os outros. – Não
tentem impedir-me. Não percebem que não vale a
pena? Estão aqui dezenas deles. Não podemos
vencê-los. Assim, sempre teremos uma
possibilidade.
– Mas... e o mágico!? – exclamou Caspian.
– Sei, o mágico! – disse Lúcia. – Mas não
deve ser tão mau como o pintam. Vocês já devem
ter percebido que esses invisíveis não são lá muito
valentes...
– Nem muito inteligentes – disse Eustáquio.
– Espere aí, Lu – disse Edmundo –,
francamente, não podemos permitir que faça uma
coisa dessas. Pergunte ao Rip.
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– Mas é para salvar a minha vida também,
não só a de vocês – disse Lúcia. – Não quero,
tanto quanto vocês, ser cortada em pedacinhos por
espadas invisíveis.
– A rainha tem razão – disse Ripchip. – Se
tivéssemos qualquer condição de salvá-la em
combate, o nosso dever seria óbvio. Mas acho que
não temos. E o serviço que se lhe exige não é
contrário à honra de Sua Majestade; é, sim, um
nobre e heróico ato. Se é da vontade da rainha
correr o risco com o mágico, não me pronunciarei
em contrário.
Como ninguém jamais tinha visto Rip ter
medo do que fosse, podia falar assim sem passar
por covarde. Mas os rapazinhos, que já tinham
sentido medo muitas vezes, ficaram vermelhos de
vergonha. Mesmo assim era tão óbvio que tiveram
de ceder.
Os invisíveis rebentaram em grandes
aclamações quando a decisão foi anunciada, e a
voz do chefe, acaloradamente secundada pelas
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outras, convidou os narnianos para jantar e passar
ali a noite.
Eustáquio não queria aceitar, mas Lúcia
disse:
– Tenho a certeza de que não são traidores.
Não são dessa laia – e todos concordaram.
Acompanhados por enorme barulheira de
pancadas, que se tornaram mais fortes ao
atingirem o pátio, onde faziam eco, voltaram
todos para a casa.
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10
O LIVRO MÁGICO
O povo invisível acolheu regiamente seus
convidados. Era muito engraçado ver as travessas
e os pratos virem para a mesa sem ninguém trazê-
los. Já seria engraçado se se deslocassem
mantendo o mesmo nível em relação ao solo,
como seria de esperar que acontecesse, sendo
trazidos por mãos invisíveis. Mas não era assim.
Avançavam pela sala de jantar aos saltos. No
ponto mais alto de cada salto o prato distava do
chão uns três metros, depois descia e parava
subitamente a um metro de distância do chão. Se
o prato continha qualquer coisa como sopa ou
molho, o resultado era desastroso. Eustáquio
murmurou para Edmundo:
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– Estou ficando muito intrigado com essa
gente. Acha que são humanos? Penso que são
gafanhotos gigantescos ou imensas rãs.
– Parecem mesmo algo assim, mas não
meta essa idéia de gafanhoto na cabeça de Lúcia.
Ela não suporta insetos, especialmente enormes
desse jeito.
A refeição poderia ter sido mais agradável
se não fosse toda aquela sujeira, e também se a
conversa não tivesse consistido inteiramente em
aprovações. A gente invisível concordava com
tudo. Aliás, era mesmo difícil discordar da
maioria de suas afirmações:
– É o que eu vivo dizendo: quando uma pessoa
tem fome, gosta de comer. – Ou: Está ficando
escuro; de noite é sempre assim – Ou então:
Vocês vieram pela água; é muito molhada, não é?
Lúcia não podia deixar de olhar para a
bocarra escura da entrada, na base da escada, e
punha-se a imaginar o que iria acontecer quando
subisse na manhã seguinte.
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De qualquer modo, foi uma boa refeição,
com sopa de cogumelos, galinha cozida, fiambre,
groselhas, passas, requeijão, manteiga, leite e hidromel.
Todos gostaram de hidromel, mas
Eustáquio, mais tarde, arrependeu-se de ter
bebido.
Lúcia acordou no dia seguinte como se
fosse manhã de prova ou de dentista. As abelhas
zumbiam, entrando e saindo pela janela aberta, e o
campo lá fora lembrava a Inglaterra. Levantou-se,
vestiu-se e tentou falar e comer com naturalidade
durante o café da manhã.
Depois de ter sido instruída pela voz do
chefe sobre o que não tinha de fazer lá em cima,
despediu-se dos outros, não disse mais nada,
caminhou para o fundo da escada e começou a
subir sem olhar para trás. Felizmente a luz era
boa. No primeiro lance de escada havia uma
janela. Enquanto subia, ouvia o tique-taque de um
relógio antigo, ali embaixo, na entrada. Chegou ao
patamar e virou para a esquerda para subir o lance
seguinte, e não ouviu mais o relógio. Finalmente
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chegou ao alto, vendo um longo corredor com
uma janela no fim. Devia correr por todo o
comprimento da casa. Era todo decorado com
entalhes, painéis e tapetes, e de cada lado havia
muitas portas.
Ficou um instante parada e não ouviu nem o
chiar de um camundongo, nem o zumbir de uma
mosca, nem o abanar de um cortinado, nada
mesmo – a não ser o bater de seu coração.
“A última à esquerda”, disse para si mesma.
Achava uma crueldade ser logo na última porta.
Tinha de passar por todos os quartos. Em qualquer
um deles poderia estar o mágico: adormecido,
acordado, invisível ou até morto. Até morto! Mas
não valia a pena pensar nisso. Começou a
caminhar. O tapete era tão espesso que abafava o
ruído.
“Por enquanto não há nada que meta
medo”, pensou Lúcia. Parecia mesmo um
corredor tranqüilo, banhado de sol, talvez um
pouco tranqüilo demais. Seria mais bonito se não
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fossem aqueles estranhos sinais pintados em
vermelho nas portas: rabiscos complicados e
retorcidos, que tinham obviamente um significado
– significado que não deveria ser lá muito
simpático.
E mais bonito ainda seria se não existissem
aquelas máscaras dependuradas nas paredes. Não
que fossem propriamente feias – ou pelo menos
muito feias –, mas os buracos vazios das órbitas
eram esquisitos, e não seria difícil imaginar que,
mal virasse as costas, as máscaras começariam a
se mexer.
Depois de passar a sexta porta, Lúcia levou
grande susto. Teve quase a certeza de que uma
cara espertinha, com uma barbicha, saltara da
parede e lhe fazia caretas. Obrigou-se a parar e a
olhar para ela. Descobriu que afinal não era uma
cara, mas um pequeno espelho com o tamanho e o
formato de seu próprio rosto, com cabelo no alto e
barbicha pendente, de modo que, ao se olhar no
espelho, o rosto dela ficou ali circunscrito,
parecendo que a barba e o cabelo lhe pertenciam.
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“Foi só o reflexo do meu rosto ao passar”,
disse Lúcia a si mesma. “Não é nada. Não há nada
a temer.”
Mas não gostou de ver a sua própria face
com aquela barba e aquele cabelo. Continuou
andando. “Eu é que não sei para que seria o
espelho com barba e cabelo, pois não sou
mágico.”
Antes de chegar à última porta, Lúcia
começou a imaginar se o corredor não teria
aumentado de tamanho desde que começara a
percorrê-lo e se aquilo não seria uma parte do
encantamento da casa. Por fim chegou lá. A porta
estava aberta.
Era uma sala enorme, com três grandes
janelas, cheia de livros do chão ao teto. Lúcia
nunca vira tantos livros, tantos livros – livros
fininhos, grossões, livros maiores do que qualquer
Bíblia de igreja, todos encadernados em couro e
cheirando a velhice, sabedoria e magia. Mas já
sabia, pelas instruções fornecidas, que não devia
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preocupar-se com qualquer um deles, pois o livro,
o livro mágico, estava numa estante de leitura,
bem no centro da sala.
Viu logo que tinha de ler o livro em pé (não
havia cadeiras) e com as costas voltadas para a
porta. Foi logo fechar a porta. Mas a porta não se
fechou.
Algumas pessoas podem discordar de Lúcia
neste ponto, mas acho que ela tinha razão. Era de
fato desagradável estar num lugar como aquele
com uma porta aberta às costas. Eu sentiria o
mesmo. Mas nada se podia fazer.
O que mais a preocupava era o tamanho do
livro. A voz do chefe não soubera dizer-lhe em
que parte do livro se encontrava a fórmula mágica
para tornar as pessoas visíveis. Ficara até muito
surpreso quando ela o indagara. Lúcia devia
começar pelo princípio e continuar até achar.
Claro que ela nunca pensara haver outro modo de
encontrar uma coisa em um livro.
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“Mas posso ficar nisso dias e até semanas!”,
disse Lúcia, ao olhar para o imenso volume.
“Tenho a sensação de que já estou neste lugar há
séculos!”
Dirigiu-se para a estante de leitura e pôs as
mãos no livro; seus dedos estremeceram como se
o livro estivesse carregado de eletricidade.
A princípio não foi capaz de abri-lo, pois
estava preso por dois fechos de bronze; abriu-se
facilmente depois. Que livro, puxa!
Não era impresso. Estava escrito à mão
numa letra clara e nítida, com as hastes das letras
muito carregadas e as pernas escritas de leve; uma
letra muito maior e muito mais fácil de ler do que
a do jornal e tão bonita que Lúcia ficou algum
tempo encantada, só a olhar, esquecida de ler. Do
papel macio emanava um bom aroma. Nas
margens e em redor das grandes letras com que
começavam os encantamentos, havia desenhos.
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Não tinha página de títulos, nem índice. Os
encantamentos iam logo começando; nos
primeiros nada havia de importante. Eram curas
para ver-rugas (lavar as mãos numa bacia de prata
ao luar), para dores de dentes, para convulsões,
para se ver livre de um enxame de abelhas... A
gravura que representava um homem com dor de
dente era tão viva e real que os dentes
começariam a doer se se olhasse muito tempo
para ela. As abelhas douradas que salpicavam o
princípio do terceiro
encantamento pareciam de repente que
voavam mesmo.
Lúcia custou a passar da primeira página;
quando a virou, viu que a seguinte era tão
interessante quanto a primeira. “Tenho de
continuar”, afirmou para si mesma. E assim
continuou durante mais de trinta páginas. Se
pudesse decorá-las, teria aprendido a achar um
tesouro enterrado, a lembrar coisas esquecidas, a
esquecer coisas aborrecidas, a adivinhar se os
outros dizem a verdade, a evitar e chamar o vento,
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o nevoeiro, a neve, a geada, a mergulhar as
pessoas no sono (como aconteceu ao pobre
Príncipe das Orelhas de Burro). Quanto mais lia,
mais reais e maravilhosas eram as gravuras. Por
fim, chegou a uma página na qual havia tantas
gravuras que quase não se viam os dizeres. Mal se
distinguiam. Mas Lúcia viu logo as primeiras
palavras:
UM FEITIÇO INFALÍVEL
PARA TORNAR MAIS BELA
DO QUE TODOS OS MORTAIS
AQUELA QUE O PRONUNCIAR.
Lúcia observou as gravuras com a face
colada à página e, ainda que antes lhe tivessem
parecido confusas e embaralhadas, eram agora
nítidas.
A primeira representava uma garota lendo
numa estante de leitura um livro enorme. A garota
estava vestida exatamente como Lúcia. Na
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gravura seguinte, Lúcia (pois a garota da gravura
era a própria Lúcia) estava em pé, de boca aberta,
contando ou recitando qualquer coisa, com uma
expressão bastante esquisita. Na terceira gravura,
havia atingido uma tal beleza que passava os
limites dos mortais. Era estranho, considerando
que a gravura lhe parecera pequena a princípio,
que a Lúcia da gravura parecesse agora tão grande
como a verdadeira Lúcia. Olharam-se nos olhos, e
a Lúcia real teve de desviar os seus, de tal modo
ficou ofuscada pela beleza da outra Lúcia, ainda
que visse uma espécie de semelhança consigo
mesma naquela face deslumbrante.
O número de gravuras que lhe diziam
respeito começou a aumentar, mais depressa e em
maior profusão. Via-se num alto trono, num
grande torneio em Calormânia, e todos os reis do
mundo lutando por causa de sua beleza. Os
torneios viravam guerras, e toda a Nárnia, a
Arquelândia, Teimar e Calormânia, Galma e
Terebíntia eram devastadas pela fúria dos reis e
dos grandes fidalgos que lutavam em seu favor.
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Depois mudou, e Lúcia, ainda mais bela do
que todos os mortais, estava de volta à Inglaterra,
e Susana, que sempre fora a beleza da família,
voltava dos Estados Unidos.
A Susana da gravura parecia exatamente
com a Susana verdadeira, apenas menos bonita e
com uma expressão menos simpática. Susana
invejava o esplendor da beleza de Lúcia, mas isso
não interessava o mínimo, pois ninguém se
importava agora com Susana.
– Vou dizer as palavras mágicas. Pouco me
importo. Vou dizer! – Dizia que não se importava
por que sentia que seu procedimento estava
errado.
Mas ao olhar para as palavras iniciais do
encantamento viu bem no meio da parte escrita,
onde tinha a certeza de que não existia antes
nenhuma gravura, uma grande cabeça de leão, o
Leão, o próprio Aslam, olhando fixamente para
ela. Estava pintado com um ouro tão brilhante que
parecia saltar da página e vir ao encontro dela.
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Nunca chegou a ter certeza, mais tarde, de
que a gravura não se mexera um pouco. Conhecia
muito bem aquela expressão. O leão rugia e
mostrava os dentes. Ela ficou horrorizada e virou
logo a página. Deu com um feitiço que permitia
saber o que nossos amigos pensam de nós.
Ela desejara ardentemente experimentar o
outro, o que tornava as pessoas mais bonitas que
os outros mortais, e agora achava que podia usar
este, já que renunciara ao primeiro. Depressa, com
medo de mudar de idéia, disse as palavras que
nada me obrigará a revelar. E esperou, vendo o
que acontecia. Como não aconteceu nada,
começou a olhar para as gravuras.
Viu de repente a última coisa que esperava
ver: uma gravura representando um vagão de
terceira classe de um trem, com duas garotas de
escola sentadas lá dentro. Reconheceu-as logo:
Margarida e Ana. Mas agora era muito mais do
que uma gravura. Estava viva. Via os postes
telegráficos passando pela janela e as duas garotas
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rindo e falando. Pouco a pouco, ela começou a
ouvir o que diziam.
– Será que vou vê-la este ano? – perguntou
Ana. – Ou você vai continuar grudada na Lúcia?
– Não sei o que você quer dizer com
continuar grudada – disse Margarida.
– Sabe, sim! No ano passado você estava
doida por ela.
– Estava coisa nenhuma. Não sou nenhuma
boba, Ana. Lúcia não é má menina, mas antes do
fim do ano eu já estava cheia dela.
– Pois quero ver este ano! Você vai ver! –
gritou Lúcia. – Sua falsa!
O próprio som de sua voz lembrou-lhe que
estava apenas falando com uma gravura e que a
verdadeira Margarida estava muito longe, em
outro mundo. Lúcia disse para si mesma: “Achei
que ela fosse melhor. No ano passado eu a ajudei
tanto! Ninguém faria o que eu fiz! E ela sabe
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muito bem disso! E logo com a Ana! Será que as
minhas amigas todas são assim? Há mais gravuras
aqui. Não quero vê-las, não quero, não quero!”
Com grande esforço, virou a página, não
sem uma grande lágrima de raiva.
Na página seguinte, vinha um feitiço para
“refrescar o espírito”. As gravuras eram em menor
número, mas muito bonitas. Lúcia se pegou lendo
qualquer coisa que mais parecia uma história do
que um encantamento.
Antes de chegar ao fim da última página
(eram três), esquecera-se completamente do que
estava lendo. Vivia a história como se fosse real, e
também as gravuras pareciam verdadeiras.
Quando chegou ao fim, disse:
– É a história mais maravilhosa que já li ou
ainda lerei em minha vida. Gostaria de continuar
lendo isso durante dez anos inteiros! Ou pelo
menos ler de novo!
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Aqui entrou em cena um pouco da magia do
livro. Não se podia voltar para trás. As páginas da
direita podiam ser viradas, mas não as da
esquerda.
– Que pena! Gostaria tanto de ler a história
novamente. Bem. Lembrar dela pelo menos eu
posso. Vamos ver: tratava de... de... Oh, não! Está
sumindo tudo. A última página também está
ficando branca. Que livro mais esquisito! Como é
que eu fui esquecer? Falava de uma taça, de uma
espada, de uma árvore, uma colina verde... disso
me lembro bem. Mas não me lembro do resto.
Que hei de fazer?
Nunca mais foi capaz de lembrar, mas,
desde então, quando Lúcia acha que uma história
é boa, é porque lhe lembra a história esquecida do
livro mágico. Foi virando as folhas e, para sua
surpresa, encontrou uma página sem gravuras,
cujas primeiras palavras eram:
FEITIÇO PARA
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TORNAR VISÍVEIS COISAS OCULTAS
Leu com a máxima atenção para ter certeza
de todas as palavras essenciais, e depois disse-as
em voz alta. Viu logo que dava resultado: à
medida que ia falando as palavras, as cores se
convertiam em letras grandes no alto da página e
apareciam gravuras nas margens. Era como
aproximar do fogo alguma coisa escrita com tinta
invisível; as letras foram aparecendo aos poucos,
só que, em vez da cor desbotada do sumo de
limão (a tinta invisível mais fácil de empregar),
estas eram douradas, azuis e escarlates.
As gravuras eram estranhas, com
numerosas figuras de que Lúcia não gostou muito.
E pensou: “Parece que tornei tudo visível, não só
os barulhentos. Num lugar como este, deve haver
uma quantidade imensa de seres invisíveis por
toda parte. Não sei se tenho vontade de ver todos
eles.”
Nesse instante ouviu atrás de si passos
suaves, mas firmes, caminhando ao longo do
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corredor, e logo se lembrou do que ouvira acerca
do mágico e do seu costume de andar descalço,
silencioso como um gato.
É preferível a gente se virar quando sente
alguma coisa caminhando atrás: foi o que Lúcia
fez. E ficou com o rosto iluminado, quase tão
bonita quanto a Lúcia da gravura. Correu com um
gritinho de alegria e os braços abertos.
À porta estava o próprio Aslam, o Leão, o
Supremo Rei de todos os Grandes Reis. Concreto,
real e quente, deixando que ela o beijasse e se
escondesse na sua juba fulgurante. Pelo som cavo
e trovejante que ele emitia, Lúcia ousou pensar
que ronronava.
– Que bom ter vindo, Aslam!
– Estive sempre aqui. Mas você acabou me
tornando visível.
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– Aslam! – exclamou Lúcia, quase com
reprovação. – Não brinque comigo! Como se eu
fosse capaz de fazê-lo visível!
– Pois fez. Acha que eu não obedeço às
minhas próprias leis? – Depois de pequena pausa
falou de novo: — Minha criança, acho que você
anda escutando atrás das portas.
– Escutando atrás das portas?
– Ouviu o que as suas colegas disseram de
você.
– Ah, isso? Não pensei que fosse a mesma
coisa que escutar atrás das portas. Não era magia?
– Espiar as outras pessoas por meio de
magia é o mesmo que espreitá-las pelo buraco da
fechadura. Você julgou mal a sua amiga. Ela é
fraca, mas gosta de você. Tinha medo da outra
mais velha e a acatou dizendo o que não queria.
– Acho que não esqueço mais o que ouvi.
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– Pois é.
– Oh, não! – exclamou Lúcia. – Acabei com
tudo? Quer dizer que poderíamos ter continuado
amigas, e talvez pela vida toda! E agora acabou!
– Minha filha, já não lhe expliquei uma vez
que ninguém sabe o que teria acontecido?
– Sim, Aslam, explicou. Por favor, me
desculpe... Mas...
– Pode falar.
– Poderei ler aquela história outra vez,
aquela de que não me lembro? Conte a história
para mim, Aslam! Conte, conte.
– Conto, sim. Levarei anos a contá-la.
Vamos agora. Temos de encontrar o dono da casa.
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11
OS ANÕEZINHOS DO
MÁGICO
Lúcia seguiu o Leão pelo corredor e viu de
repente, vindo na direção deles, um homem idoso,
descalço e de túnica vermelha.
Coroava-lhe o cabelo branco uma grinalda
de folhas de carvalho, a barba chegava-lhe à
cintura, e ele apoiava-se num bastão todo
trabalhado.
Fez uma reverência profunda ao ver Aslam
e disse:
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– Bem-vindo à mais humilde das casas,
senhor.
– Está aborrecido, Coriakin, por ter de
governar uns súditos tão apalermados como os
que lhe dei?
– Não – respondeu o mágico. – São de fato
muito estúpidos, mas não são perigosos. Já estou
até gostando deles. Algumas vezes perco um
pouco a paciência, esperando o dia em que
poderão ser governados pela sabedoria e não por
esta magia rudimentar.
– Tudo a seu tempo, Coriakin – disse
Aslam.
– Vai aparecer para eles? – perguntou o
ancião.
– Não – disse o Leão com um meio rugido,
que queria dizer (pensou Lúcia) o mesmo que
uma risada. – Ficariam assustados demais. Muitas
estrelas envelhecerão e virão descansar nas ilhas
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antes que o seu povo esteja amadurecido para
isso.
Amanhã tenho de visitar Trumpkin, o anão,
lá no castelo de Cair Paravel, onde conta os dias
até o regresso do seu chefe Caspian. Contarei a
ele tudo o que está acontecendo, Lúcia. E não
fique triste assim. Breve nos encontraremos
novamente.
– Aslam, o que chama de breve? – indagou
Lúcia.
– Para mim, todo o tempo é breve –
respondeu Aslam; e ao dizer isso desapareceu,
deixando Lúcia sozinha com o mágico.
– Lá se foi! – disse este. – É sempre assim,
não conseguimos detê-lo; não é como um leão
domesticado. Gostou do meu livro?
– De algumas coisas, gostei muito mesmo –
respondeu Lúcia. – Sabia que eu estava aqui?
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– Bem, ao permitir que os Tontos ficassem
invisíveis, eu sabia que você apareceria um dia
para libertá-los do encantamento. Não sabia era o
dia certo. E esta manhã, por acaso, nem estava
tomando conta. Eles também me tornaram
invisível, e ficar invisível põe a gente meio
sonolento. Oh... já estou bocejando outra vez. Está
com fome?
– Um pouco, acho – respondeu Lúcia. –
Nem faço idéia da hora.
– Venha. Para Aslam todo tempo é breve,
mas na minha casa a hora da fome é à uma hora.
Conduziu-a pelo corredor e abriu uma
porta. Lúcia achou-se numa sala agradável, cheia
de luz e de flores.
A mesa estava vazia quando entraram, mas,
como era uma mesa encantada, a uma palavra do
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velho mágico a toalha cobriu-se de talheres,
pratos, copos e comida.
– Espero que goste. Tentei oferecer-lhe uma
comida mais parecida com a da sua terra do que a
que tem comido nos últimos tempos.
– E ótima – disse Lúcia, e era realmente:
omelete quente, cordeiro com ervilhas, sorvete de
morango, limonada, um copo de chocolate. Mas o
mágico bebeu apenas vinho e comeu pão. Seu
aspecto não era nada inquietante; em pouco tempo
os dois batiam papo como velhos amigos.
– Quando o desencanto começa a agir? –
perguntou Lúcia. – Os Tontos vão ficar visíveis
outra vez?
– Já ficaram, mas ainda devem estar
dormindo. Sempre fazem a sesta.
– E agora que já estão visíveis vai deixar
que continuem tão feios? Não vão ficar como
antes?
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– Bem, isso é uma questão muito delicada.
Eles é que se julgavam bonitos antes. Dizem que
ficaram feios, mas esta não é a minha opinião.
Muita gente diria que mudaram para melhor.
– São assim tão pretensiosos?
– São. Pelo menos o chefe é, e ensina os
outros a mesma coisa. Acreditam em tudo que ele
diz.
-Já notei isso.
– De certo modo, as coisas seriam melhores
sem ele. Claro que eu podia transformá-lo em
qualquer coisa; ou fazer com que não
acreditassem em mais nada do que ele diz. Mas
não quero fazer isso. Prefiro que eles o admirem a
não admirarem ninguém.
– Não admiram o senhor?
– Admiram nada! Nunca me admirariam.
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– Foi por isso que os pôs assim feios, quero
dizer, o que eles chamam de feios?
– O caso é que não quiseram fazer o que
lhes disse. O trabalho deles é tratar do jardim e
cultivar alimento, não para mim, como imaginam,
mas para eles próprios. Não fariam isso se eu não
os obrigasse. Para tratar um jardim é preciso água.
Há uma bela nascente a cerca de meio quilômetro
daqui. Dessa nascente vem um riacho que passa
pelo meu jardim. Só disse para eles que tirassem a
água do riacho, em vez de subirem até a nascente
com baldes, duas ou três vezes por dia, cansandose
e entornando metade da água pelo caminho.
Mas não quiseram compreender. Por fim,
recusaram-se terminantemente a fazer o que lhes
dizia.
– São estúpidos a esse ponto?
O mágico suspirou:
– Você nem pode imaginar que problemas
tenho tido com eles! Há uns meses estavam
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lavando pratos e facas antes do almoço, porque,
segundo diziam, isso economizava tempo depois.
Outra vez estavam plantando batatas cozidas para
não terem de cozinhá-las quando as colhessem.
Um dia o gato meteu-se na leiteira, e vinte deles
começaram a tirar o leite, em vez de pensar em
tirar o gato. Vamos dar uma olhadela nos Tontos,
agora que você terminou de comer.
Foram para um outro aposento, cheio de
instrumentos polidos e difíceis de entender – tais
como astrolábios, cronoscópios, teodolito –, e
chegaram à janela:
– Lá estão eles, os meus Tontos.
– Não estou vendo ninguém – protestou
Lúcia. – Que são aquelas coisas parecidas com
cogumelos?
As coisas que a menina apontava estavam
todas espalhadas pela relva. Eram mesmo muito
parecidas com cogumelos, mas muito maiores. As
hastes tinham cerca de um metro de altura, e os
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226
chapéus eram quase do mesmo tamanho, de ponta
a ponta. Ao olhá-los com atenção, reparou que as
hastes não se ligavam ao chapéu pelo meio, mas
por um dos lados, o que lhes dava um aspecto de
desequilíbrio. E havia alguma coisa – algo
parecido com pequenas trouxas – junto da base de
cada haste. Na realidade, quanto mais os olhava,
menos lhe pareciam cogumelos. A parte do
chapéu não era realmente redonda como pensara
antes. Era mais comprida que larga, mas
arredondava-se numa das extremidades. Estavam
ali muitos, cinqüenta, talvez mais.
O relógio deu três horas. E aconteceu uma
coisa extraordinária. Os “cogumelos” de repente
viraram-se para cima. As trouxinhas que estavam
no fundo das hastes eram cabeças e corpos, e as
hastes eram as pernas. Não duas para cada corpo.
Cada corpo tinha uma única perna grossa no meio
(não de lado, como a perna de um coxo) e, na
extremidade da perna, um pé enorme, com
grandes dedos recurvados, como uma canoa.
Lúcia os vira deitados com as costas no chão, de
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perna levantada para o ar e o pé enorme tapando
todo o corpo. Soube depois que era assim que eles
descansavam, pois o pé os protegia da chuva e do
sol. Era como se estivessem debaixo de uma
barraca.
– Que gozado, que gozado! – gritou ela,
estourando de rir. – Foi nisso que os transformou?
– Foi. Transformei os Tontos em
Monópodes – disse o mágico. Ria-se tanto
também que as lágrimas lhe corriam pela face. –
Mas repare.
Valia a pena reparar. Aqueles anõezinhos
de um pé só não corriam nem andavam como nós;
andavam aos saltos, como as pulgas e as rãs. E
que saltos! Como se cada pé imenso daqueles
fosse um punhado de molas. E com que força
quicavam quando desciam ao chão! Era o que
produzia aquelas pancadas que intrigaram tanto
Lúcia no dia anterior. Saltavam agora em todas as
direções e gritavam uns para os outros.
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– Oi, camaradas, já somos visíveis outra
vez – disse um de barrete vermelho com borlas,
que era sem dúvida o chefe. – Quer dizer, estou
dizendo que, quando somos visíveis, podemos ver
uns aos outros.
– Genial, isso mesmo, chefe – gritaram
todos. – Ninguém pode ser mais genial. Nunca
jamais poderia falar melhor.
– A mocinha apanhou o velhote dormindo –
disse o chefe. – Ganhamos dele dessa vez.
– É o que a gente ia dizer — retrucou o
coro. – Está mais inteligente do que nunca, chefe!
Continue assim, continue assim.
– Mas como ousam falar assim do senhor?
– perguntou Lúcia. – Pareciam ter tanto medo
ontem. Não sabem que o senhor pode ouvi-los?
– Essa é uma das coisas engraçadas com
relação aos Tontos. Num minuto falam como se
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eu mandasse em tudo, ouvisse tudo e fosse muito
perigoso.
Um minuto depois, julgam que me
apanham em armadilhas nas quais nem uma
criancinha cairia.
– Têm mesmo de voltar à forma antiga?
Não acho que seja maldade deixá-los assim como
estão. Parecem tão felizes! Olhe o salto daquele!
Como eram antes?
– Anõezinhos vulgares. Não tão bonitos
como os de Nárnia.
– É uma pena fazê-los voltar ao que eram
antes. São tão engraçados, são até bonitinhos!
Vale a pena dizer isso a eles?
– Vale, vale, se conseguir com que eles
entendam.
– Vamos experimentar.
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– Não, não; acho que é mais fácil ir sem
mim.
– Muito obrigada pelo almoço – disse
Lúcia, afastando-se rapidamente. Correu pela
mesma escada e foi esbarrar lá embaixo com
Edmundo.
Os outros também estavam à espera. Lúcia
sentiu a consciência doer ao ver aquelas
expressões ansiosas.
– Correu tudo muito bem! – gritou. – Tudo
às mil
maravilhas! O mágico é formidável, e vi
Aslam.
Disse isso e passou por eles correndo como
o vento, entrando no parque. O chão tremia com
os pulos, e o ar agitava-se com os gritos dos
Monópodes.
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– Aí vem ela, aí vem ela! – gritaram. – Três
vivas para a mocinha! Tapeou o velhote
completamente!
– É muito doloroso – disse o chefe dos
Tontos – não podermos dar-lhe o prazer de vernos
como éramos antes de ficarmos feios. Nem
acreditaria na diferença. Sabemos que agora
estamos feios de morrer. Você vê que eu não
menti.
– Estamos horrorosos, chefe, horrorosos –
fizeram os outros em coro, saltando como balões.
– E como diz, exatamente como diz.
– Pois eu não acho – disse Lúcia, gritando
para ser ouvida. – Acho vocês até bem bonitos.
– Escutem o que ela está dizendo, escutem.
A menina está certa. Estamos muito bonitos. Não
há raça mais bonita.
Disseram isso com a maior naturalidade,
sem mesmo notar que tinham mudado de opinião.
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– Ela está falando – disse o chefe – que
éramos bonitos antes de ficarmos feios.
– Isso mesmo, chefe, isso mesmo. Ouvimos
o que ela disse.
– Mas eu não disse isso – gritou Lúcia. –
Disse que estão bonitos agora.
– Foi o que ela disse, foi – continuou o
chefe. – Que éramos muito bonitos antes.
– Escutem o que os dois estão dizendo –
clamaram os Monópodes. – Aí estão duas pessoas
para lá de inteligentes. Têm sempre razão. Não
podiam ter falado melhor.
– Mas estou dizendo justamente o contrário
– berrou Lúcia, batendo o pé com impaciência.
– Pois é, pois é – responderam os
Monópodes.
– Não há nada como o contrário.
Continuem os dois assim.
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– Vocês enlouquecem qualquer pessoa –
disse Lúcia, desistindo de convencê-los. Mas os
Monópodes pareciam tão contentes que ela se
convenceu de que, no final das contas, a conversa
tinha sido um êxito.
Naquela noite, antes de irem para a cama,
aconteceu algo que os deixou ainda mais
satisfeitos com a sua condição de seres de uma
perna só. Caspian e todos os narnianos
regressaram à costa, logo que lhes foi possível,
para darem notícias a Rince e aos outros a bordo
do Peregrino, que já estavam tremendamente
inquietos.
Como é natural, os Monópodes
acompanharam-nos, saltando como bolas de
futebol, concordando uns com os outros aos
gritos, até que Eustáquio disse:
– Seria preferível que o mágico tivesse
tornado os Tontos inaudíveis, em vez de
invisíveis. – Arrependeu-se logo depois de ter
falado, pois teve de explicar que uma coisa
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inaudível é uma coisa que não se ouve. Apesar de
a explicação ter sido uma obra-prima, nunca ficou
muito seguro de que o tivessem compreendido.
Pelo contrário, ficou muito aborrecido ao ouvi-los
dizer:
– Não sabe explicar as coisas como o nosso
chefe. Mas você acaba aprendendo, rapaz. Escute
só quando ele fala. Como explica bem as coisas!
Aquilo é que é orador!
Quando atingiram a baía, Ripchip teve uma
idéia brilhante. Baixou o seu bote e começou a
remar por ali, até que os Monópodes começaram a
ficar profundamente interessados. Ergueu-se lá de
dentro e disse:
– Nobres e inteligentes Monópodes: vocês
não precisam de barcos. Cada um tem um pé que
é uma lancha. Saltem bem devagar para a água e
vejam o que acontece.
O chefe dos Tontos recuou e avisou aos
outros que iam achar a água muito molhada, mas
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um ou dois dos mais novos experimentaram logo;
outros seguiram o exemplo e, por fim, o grupo
todo fez o mesmo. Era perfeito. O único pé dos
Monópodes funcionava como flutuador ou barco
natural. Depois de Ripchip ensinar-lhes a fazer
uns remos toscos, começaram a remar pela baía
em torno do Peregrino, parecendo uma flotilha de
pequenas canoas com um anão gordo sentado na
popa de cada uma.
Fizeram competições, e de bordo desciam
garrafas de vinho que lhes eram oferecidas como
prêmio. Os marinheiros debruçavam-se por todo o
barco, rindo a bandeiras despregadas. Os Tontos
estavam também muito encantados com o seu
novo nome, Monópodes, que lhes parecia
pomposo, apesar de não serem capazes de
pronunciá-lo direito.
– Nós somos – diziam na sua voz rouca –
os Tontópoles pomonodes, podemonos. Já quase
sabíamos isso, que o nosso nome era esse.
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Finalmente decidiram tomar o nome de
Tontópodes, como provavelmente serão chamados
por muito séculos.
Naquela noite juntaram-se todos lá em cima
com o mágico, e Lúcia reparou como lhe parecia
diferente o andar superior, agora que já não sentia
medo. Os misteriosos sinais nas portas
continuavam a ser misteriosos, mas davam a
impressão de que tinham um significado alegre e
simpático. Até mesmo o espelho com barbicha e
cabelo parecia mais engraçado que tenebroso. Ao
jantar, tiveram todos, por meio de magia, aquilo
de que mais gostavam.
Depois do jantar, o mágico executou um
trabalho de magia ao mesmo tempo muito útil e
interessante. Colocou duas folhas de pergaminho
sobre a mesa e pediu a Drinian que lhe desse uma
descrição pormenorizada da sua viagem até
aquela data. À medida que Drinian falava, tudo
quanto dizia ia aparecendo no pergaminho em
linhas seguras e nítidas, até que, por fim, cada
folha era um esplêndido mapa do Oceano
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Oriental, com Galma, Terebíntia, as Sete Ilhas, as
Ilhas Solitárias, a Ilha do Dragão, a Ilha
Queimada, a Ilha da Água da Morte e a própria
ilha dos Tontos, todas colocadas exatamente nos
lugares próprios e nas devidas posições.
Eram os primeiros mapas daqueles mares e
muito melhores do que os outros que se fizeram
depois sem auxílio de magia. Aqueles, que à
primeira vista pareciam mapas vulgares, quando
observados por uma lente mágica que o mágico
emprestou, revelavam imagenzinhas perfeitas de
coisas reais, de modo que podiam ver o próprio
castelo e o mercado de escravos e as ruas de Porto
Estreito, perfeitamente nítidos, ainda que um
pouco distantes, como objetos observados pelo
lado contrário de um binóculo. A única
imperfeição era a de ser incompleta a linha da
costa da maior parte das ilhas, pois o mapa
mostrava somente o que os olhos de Drinian
haviam visto. Quando acabou, o mágico guardou
um dos mapas e presenteou Caspian com o outro,
que ainda hoje existe na Câmara dos Instrumentos
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em Cair Paravel. No entanto, o mágico nada lhes
pôde dizer de mares ou terras existentes para lá
dos lados do Oeste.
Mesmo assim, disse que cerca de sete anos
atrás havia entrado naquelas águas um navio de
Nárnia, trazendo a bordo os fidalgos Revilian,
Argos, Mavramorn e Rupe. Daí os de Nárnia
deduziram que o homem de ouro devia ser lorde
Restimar.
No dia seguinte, o mágico consertou
magica-mente a proa do Peregrino, danificada
pela Serpente do Mar, e encheu tudo de presentes
úteis. A despedida foi extraordinariamente
amigável. Quando o barco partiu, pelas duas da
tarde, todos os Tontópodes o acompanharam
remando até a entrada do porto, gritando até que
nada mais se ouviu.
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12
A ILHA NEGRA
Depois dessa aventura, navegaram para o
sul e um pouco para oeste, durante doze dias. O
vento era suave, o céu quase sempre claro e o ar
quente. Não viam ave ou peixe, mas uma vez
avistaram muito longe o esguicho de baleias.
Lúcia e Ripchip jogaram muito xadrez. No
décimo terceiro dia, Edmundo avistou a
bombordo da torre de combate uma grande
montanha negra, erguendo-se no mar.
Alteraram a rota e dirigiram-se para aquela
terra, quase sempre a remo, pois o vento não
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ajudava a navegação para noroeste. Quando
escureceu, ainda estavam muito distantes da terra
e tiveram de remar toda a noite. No dia seguinte o
tempo estava bom, mas a calmaria era absoluta.
A massa negra estava na frente, mais
próxima e maior, mas ainda muito obscurecida, de
modo que alguns julgaram estar ainda muito
longe, enquanto outros eram de opinião que se
haviam metido no meio do nevoeiro.
Cerca de nove da manhã, repentinamente,
ficou tão perto que puderam ver que não era terra,
nem mesmo, no sentido comum, nevoeiro. Era a
Escuridão. É um tanto difícil de descrever, mas
vocês compreenderão como era, se se lembrarem
da entrada de um túnel – um túnel tão comprido e
dando tantas voltas que não se vê a luz no fim.
Durante alguns metros ainda se vê a linha, depois
chega-se a um ponto em que já é penumbra e,
subitamente, mas sem linha divisória definida,
desaparece tudo numa escuridão macia e densa.
Foi o que aconteceu. Durante alguns metros ainda
viam na frente da proa o ondear da água brilhante.
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Mais para além, já viam a água apagada e
cinzenta como ao cair da noite. Mais longe ainda,
era a escuridão completa, o limiar de uma noite
sem lua e sem estrelas.
Caspian gritou ao contramestre para fazer o
barco parar, e todos, com exceção dos remadores,
correram para a frente e foram olhar da proa.
Nada se via. Atrás deles, o mar e o sol; em frente,
a escuridão.
– Vamos entrar ali? – perguntou, enfim,
Caspian.
– A meu conselho, não – respondeu
Drinian.
– O capitão tem razão – concordaram vários
marinheiros.
– Também acho – disse Edmundo.
Lúcia e Eustáquio nada disseram, contentes
em ver o rumo que as coisas tomavam. Mas a voz
clara de Ripchip irrompeu no meio do silêncio:
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– Por que não? Alguém quer me explicar
por que não continuamos?
Como ninguém estava muito desejoso de
explicar, Ripchip prosseguiu:
– Poderia supor que é covardia, mas espero
que nunca se venha a dizer em Nárnia que um
grupo de pessoas nobres e de linhagem real, na
flor da idade, pôs o rabo entre as pernas porque
tinha medo do escuro.
– Mas qual é a vantagem de nos metermos
naquela escuridão? – perguntou Drinian.
– Vantagem? – replicou Ripchip. –
Vantagem, capitão? Se vantagem é encher a bolsa
e a barriga, confesso que não vejo vantagem
nisso. Tanto quanto sei, não nos fizemos ao mar
para procurar coisas vantajosas, mas para
ganharmos honras e aventuras. Aí está a maior
aventura de que já ouvi falar; se virarmos as
costas, nossa honra ficará manchada.
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Alguns marinheiros disseram, entre os
dentes, coisas como “deixe a honra de lado”, mas
Caspian disse:
– Que bobagem, Ripchip. Era quase melhor
ter deixado você em casa. Pois bem. Já que coloca
as coisas desta maneira, o melhor é ir em frente. A
menos que Lúcia não queira...
Lúcia não queria mesmo, mas pegou-se a
dizer em voz alta:
– Estou com vocês.
– Vossa Majestade quer que se acendam as
luzes?
– Sem dúvida. Trate disso, capitão.
Três lanternas foram acesas: na popa, na
proa e no mastro principal. E Drinian mandou pôr
duas tochas no meio do navio. Mandaram para o
convés todos os homens, fortemente armados,
para ocuparem suas posições de combate, com as
espadas desembainhadas, menos os que estavam
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nos remos. Lúcia e dois arqueiros foram postar-se
na torre de combate com os arcos preparados e as
flechas prontas a partir. Rinelfo estava na proa,
com o prumo pronto para medir a profundidade.
Acompanhavam-no Ripchip, Edmundo,
Eustáquio, Caspian, com as armaduras reluzindo.
Drinian tomou o leme.
– Em nome de Aslam! Para a frente! –
bradou Caspian. – Remadas espaçadas e certas.
Que ninguém fale e mantenham-se todos atentos
às ordens.
Com estalos e rangidos de todo o
cavername, o Peregrino lançou-se para a frente
quando os homens começaram a remar. Lúcia, na
torre de combate, teve a noção exata do momento
em que entraram na escuridão. A proa já havia
desaparecido nas trevas e a luz do sol ainda
brilhava na popa. Viu-a sumir. Num instante a
popa dourada, o mar azul e o céu estavam todos
iluminados pela luz do dia; no instante seguinte, o
mar e o céu desapareceram, e a única coisa que
indicava onde terminava o navio era a lanterna da
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popa. Na frente da lanterna, via-se a silhueta de
Drinian ao leme. Abaixo de Lúcia, duas tochas
iluminavam um pequeno espaço do convés e
refletiam-se nas espadas e nos elmos. Mais
adiante, no castelo da proa, havia outra ilha de
luz. Iluminada pela luz do mastro principal (que
estava exatamente acima de Lúcia), a torre de
combate parecia um pequeno mundo luminoso
flutuando sozinho na escuridão. As próprias luzes,
como acontece sempre que temos de acendê-las a
uma hora triste, pareciam lúgubres e estranhas.
Lúcia notou também que fazia frio.
Ninguém soube quanto tempo demorou a
travessia nas trevas. Só os ruídos dos remos
indicavam que o navio estava andando. Edmundo,
olhando da proa, só via o reflexo da lanterna na
água. O reflexo parecia oleoso, e as ondas
provocadas pelo avançar da proa pareciam
pesadas, pequenas e sem vida. À medida que o
tempo ia passando, todos começaram a sentir frio,
com exceção dos remadores.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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Súbito, sem se saber de onde, veio um grito
não humano. Ou de alguém em tal extremo de
terror que havia perdido a humanidade. Caspian
tentou falar, mas tinha a boca demasiado seca,
quando se ouviu a voz chiante de Ripchip, mais
alta que normalmente, no meio do silêncio.
– Quem chama? Se é um fantasma, não
temos medo de fantasmas; se é amigo, os seus
inimigos aprenderão a ter medo de nós.
– Piedade! – gritou a voz. – Piedade!
Mesmo que vocês sejam um sonho, piedade!
Recolham-me. Levem-me a bordo, mesmo que
seja para me matar! Mas não desapareçam, pelo
amor de Deus, não me deixem nesta terra
horrível!
– Onde está? – gritou Caspian. – Suba a
bordo.
Ouviu-se outro grito, de alegria ou de
medo, e então perceberam que alguém nadava na
direção do navio.
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– Preparem-se para içá-lo – disse Caspian.
Segurando cordas, vários marinheiros
juntaram-se na amurada; um deles, debruçandose,
empunhava uma tocha. Na escuridão da água
apareceu uma cara branca. Após algumas
reviravoltas e puxões, doze mãos amigas içaram o
estranho para bordo.
Edmundo nunca vira homem de aparência
tão selvagem. Embora não parecesse muito velho,
tinha uma touceira de cabelos brancos, a face
escaveirada, e apenas alguns farrapos
dependurados no corpo. Mas o que mais
impressionava eram os olhos, tão abertos que
pareciam não ter pálpebras, e com uma expressão
angustiada de terror. Mal tocou os pés no convés,
gritou:
– Fujam! Virem o navio e fujam! Remem
para longe desta maldita terra! Salvem suas vidas!
– Acalme-se – disse Ripchip – e diga-nos
qual é o perigo. Não temos o hábito de fugir.
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O estranho estremeceu terrivelmente ao
ouvir a voz do rato, no qual ainda não havia
reparado.
– Seja como for, têm de fugir – arquejou. –
Esta é a ilha onde os Sonhos se tornam realidade.
– É a ilha que eu procuro há muito tempo –
disse um dos marinheiros. – Se tivesse
desembarcado aqui, já estaria casado com Alice.
– E eu teria encontrado Tomás vivo – disse
o outro.
– Loucos! – vociferou o homem, batendo
com os pés no chão num acesso de raiva. – Por
causa de disparates como esses vim parar aqui, e
seria melhor ter morrido afogado ou nunca ter
nascido.
Ouvem bem o que digo? Aqui os sonhos
tornam-se vivos e reais. Não os devaneios; os
sonhos.
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Houve um minuto de silêncio. Depois, com
um grande chocalhar de armaduras, toda a
tripulação correu pelas escadas e se atirou aos
remos com toda a energia.
Drinian fez rodopiar o leme, e o
contramestre aumentou o ritmo das remadas.
Tinham levado meio minuto lembrando certos
sonhos que haviam tido, sonhos que nos fazem ter
medo de dormir outra vez... e imaginando o que
seria estar num país onde esses sonhos se
tornassem realidade. Só Ripchip ficou imóvel.
– Majestade, majestade! – clamou. – Vai
permitir esse motim? Essa covardia? Isso é
pânico! Uma perfeita rebelião!
– Continuem a remar – bradou Caspian. –
Remem por suas vidas. Sempre em linha reta,
Drinian. Pode dizer o que você quiser, Rip. Há
coisas que um homem não pode enfrentar.
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– Então agradeço ao destino por não ser um
homem! – replicou Ripchip, empertigando-se
todo.
Lúcia ouviu tudo lá do alto. No momento,
um dos sonhos que tentara intensamente esquecer
viera-lhe à lembrança, tão nítido como se tivesse
acabado de acordar. Era então aquilo que estava à
espera deles, naquela ilha mergulhada na
escuridão? Desejou descer ao convés e ficar junto
de Edmundo e Caspian, mas de que valia isso? Se
era verdade que os sonhos se tornavam realidade,
Edmundo e Caspian podiam transformar-se em
qualquer coisa pavorosa antes que ela chegasse
perto deles. Agarrou-se ao parapeito da torre e
tentou acalmar-se. Agora remavam para a luz com
força total. Tudo estaria bem dentro de alguns
segundos. Que bom seria se tudo estivesse bem
agora!
Ainda que as remadas fizessem bastante
barulho, não conseguiam quebrar o silêncio
absoluto que rodeava o navio. Sabiam todos que
era melhor não dar ouvidos aos sons que vinham
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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da escuridão. Mas ouvir tinham de ouvir e, daí a
pouco, todos ouviam, cada um de modo diferente.
– Estão ouvindo um ruído como... como
uma tesoura enorme a abrir, a fechar... ali? –
perguntou Eustáquio.
– Quieto! – disse Rinelfo. – Estou ouvindo
alguma coisa subindo pelo costado.
– Foi para o mastro! – disse Caspian.
– Ai! – gritou um marinheiro. – Já
começam os sinos! Sabia que isto ia acontecer!
Caspian, que tentava não olhar para
nenhum ponto (especialmente não olhar para trás),
dirigiu-se a Drinian, em voz baixa:
– Quanto tempo remamos até chegar ao
lugar onde apanhamos o homem?
– Talvez cinco minutos – ciciou Drinian. –
Por quê?
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– Porque já levamos mais tempo do que
isso voltando.
Pelo rosto de Drinian corriam bagas de
suor. Ocorria a todos a mesma idéia.
– Nunca mais sairemos daqui! Nunca mais!
– gemiam os remadores. – Não conseguimos ir
para a frente. Andamos em círculo. Nunca mais
sairemos daqui!
O estranho, que jazia enrodilhado no
convés, sentou-se e estourou numa gargalhada
horrenda.
– Nunca mais sairemos daqui! – gritou. –
Isso mesmo. Nunca mais! Fui um louco pensando
que eles me deixariam partir assim tão facilmente.
Não, não, nunca mais sairemos daqui!
Lúcia apoiou a cabeça no beirai da torre e
murmurou:
– Aslam, Aslam, se é verdade que alguma
vez nos amou, ajude-nos agora.
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A escuridão não diminuiu, mas Lúcia
começou a sentir-se um pouquinho melhor.
“Apesar de tudo, ainda não nos aconteceu nada”,
pensou.
– Olhem! – gritou da proa a voz de Rinelfo.
Havia uma tênue luz na frente. Enquanto
olhavam, caiu sobre o navio um largo facho de
luz, proveniente daquele lugar. Não alterou a
escuridão que os rodeava, mas todo o navio ficou
iluminado como por um holofote.
Caspian pestanejou, olhou em torno e viu
os rostos tensos e ansiosos dos companheiros.
Olhavam todos na mesma direção, e detrás de
cada um projetava-se sua sombra escura e
irregular. Lúcia viu alguma coisa no facho de luz.
Primeiro parecia uma cruz, depois um avião,
depois um papagaio e, finalmente, quando passou
sobre suas cabeças, ruflando as asas, viram que
era um albatroz. Deu três voltas em torno do
mastro e depois pousou um instante no dragão
dourado da proa.
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Numa voz alta, forte e doce, pronunciou
algumas palavras, que ninguém entendeu. Abriu
as asas de novo e recomeçou a voar lentamente à
frente do navio. Drinian seguiu a ave, vendo nela
um bom guia.
Só Lúcia soube que ao revolutear em torno
do mastro o albatroz murmurara: “Coragem,
querida!”. Era a voz de Aslam, e o seu hálito
suave roçou-lhe a face.
Dali a momentos, a escuridão dera lugar, lá
adiante, a um nevoeiro acinzentado e, logo depois,
antes mesmo que começassem a ter esperança,
surgiram à luz do sol e sentiram novamente o
mundo cálido e azul. Compreenderam então que
já não tinham nada a temer e que nunca haviam
corrido perigo real. A claridade fazia-os pestanejar.
Olhavam admirados. O brilho do navio
aturdia-os. Tinham chegado a pensar que a
escuridão aderiria aos brancos, dourados e verdes
do navio, sob a forma de espuma suja. Primeiro
um, depois outro, todos desataram a rir.
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– Bancamos os tolos – disse Rinelfo.
Lúcia imediatamente desceu ao convés,
onde encontrou todos reunidos em torno do
recém-chegado.
Durante algum tempo este nada falou, de
tão feliz que estava, limitando-se a olhar para o
mar e o sol e a tocar nas amuradas e nas cordas,
como para certificar-se de que estava realmente
acordado, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas
faces.
– Muito obrigado – disse por fim. –
Salvaram-me de... não quero mais falar no
assunto. Deixem que me apresente. Sou um
telmarino de Nárnia; no tempo em que valia
alguma coisa, chamava-me lorde Rupe.
– Sou Caspian, rei de Nárnia. Estou no mar
para encontrar você e os outros, que eram amigos
de meu pai.
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Lorde Rupe caiu de joelhos e beijou a mão
do rei.
– O senhor é o homem que mais desejaria
ver em todo o mundo. Conceda-me uma graça.
– Diga.
– Não venha mais aqui – respondeu Rupe,
apontando para trás. Olharam todos, mas viram
apenas o céu e o mar, azuis e brilhantes. A Ilha
Negra e a escuridão haviam desaparecido para
sempre.
– Como foi isto? – gritou lorde Rupe. –
Vocês a destruíram?
– Acho que não fomos nós – disse Lúcia.
– Senhor – disse Drinian –, este vento é
bom para seguirmos para sudoeste. Posso mandar
cá para cima aqueles pobres rapazes dos remos e
sol tar as velas? Acho que devem descansar.
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– Perfeito. Mande distribuir vinho para
todos.
Acho que sou capaz de dormir o dia inteiro!
Com grande contentamento, navegaram a
tarde toda para sudoeste, com vento favorável,
mas ninguém reparou quando desaparecera o
albatroz.
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13
OS TRÊS DORMINHOCOS
O vento cada dia se tornava mais leve, a
ponto de as ondas não serem mais que ligeiros
frisos. O barco parecia deslizar num lago. À noite
surgiam constelações que ninguém vira em Nárnia
e que talvez, pensou Lúcia com alegria e temor,
nenhum olhar humano ainda vira. As novas
estrelas eram brilhantes e as noites, quentes.
Dormiam quase todos no convés e entretinham-se
a conversar ou debruçados na amurada, vendo a
dança luminosa da espuma. Numa tarde de
espantosa beleza, com um pôr-do-sol vermelho e
purpurino, avistaram terra a estibordo. Foi-se
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aproximando lentamente. A luz produzia a
sensação de que os cabos e os cumes da nova terra
estavam pegando fogo.
Em pouco navegavam ao longo da costa,
cuja ponta mais oriental se elevava do lado da
popa, escura e afiada, recortada no céu vermelho,
como feita de papelão. A terra não tinha
montanhas, apenas muitas colinas suaves,
ondulando como almofadas. Lançava um cheiro
aliciante – que Lúcia classificou de “aroma
confuso e lilás” e que Edmundo disse (e Rince
pensou) ser bobagem, ao que Caspian respondeu:
– Entendo o que você quer dizer.
Navegaram durante bastante tempo,
passando cabos e promontórios, na esperança de
encontrar um abrigo fundo, contentando-se afinal
com uma ampla baía de águas pouco profundas.
Havia uma forte rebentação junto da praia, não
sendo possível por isso trazer o Peregrino para
tão perto da terra quanto gostariam. Lançaram
âncora bastante longe da praia, e o desembarque
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de bote foi muito movimentado, deixando todos
molhados. Lorde Rupe ficou a bordo: não estava
nada interessado em ilhas. Durante todo o tempo
que ficaram naquele lugar, o barulho do quebrar
das ondas não lhes saiu dos ouvidos.
Deixaram dois homens de guarda no bote, e
Caspian dirigiu-se com os outros para a ilha, não
se afastando muito, pois já era tarde para uma
exploração.
Não foi preciso ir longe para encontrar uma
aventura. No vale além da baía não havia sinal
que indicasse ser a ilha habitada, pois não se via
caminho nem atalho.
A relva era viçosa e salpicada pelo que
Edmundo e Lúcia pensaram ser urzes. Eustáquio,
que sabia de fato um pouco de botânica, disse que
não (e provavelmente ele tinha razão); mas era
alguma planta da mesma espécie.
Haviam andado menos do que um tiro de
flecha da praia, quando Drinian perguntou:
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– Que é aquilo?
Pararam todos.
– Arvores grandes – disse Caspian.
– Acho que são torres – disse Eustáquio.
– Podem ser gigantes – murmurou
Edmundo.
– A melhor maneira de saber é ir ao
encontro deles – disse Ripchip, puxando a espada
e passando à frente de todos.
– Acho que são ruínas – disse Lúcia,
quando se aproximaram um pouco mais.
A suposição da menina era a mais acertada.
Viam agora um grande espaço, lajeado com
pedras macias, rodeado de colunas cinzentas, mas
sem telhado. Dos dois lados havia cadeiras de
pedra ricamente esculpidas, com almofadas de
seda nos assentos. Na mesa estava um banquete
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como nunca se viu, nem mesmo quando Pedro, o
Grande Rei, tinha corte em Cair Paravel.
Faisões, gansos, pavões, cabeças de javali,
carne de veado, empadas com forma de barco ou
de dragões e elefantes, lagostas lustrosas, pudins
gelados, salmão resplandecente, nozes e uvas,
ananases, pêssegos, romãs, melões e tomates.
Havia jarros de prata e ouro, curiosamente
trabalhados, e o perfume da fruta e do vinho caía
sobre eles como uma promessa de felicidade.
– Puxa vida! – exclamou Lúcia.
Aproximaram-se mais, devagarinho.
– E os comensais? – perguntou Eustáquio.
– Podemos providenciar isto, senhor – falou
Rince.
– Olhem! – disse Edmundo, abruptamente.
Estavam agora dentro das colunas, sobre o
pavimento de pedra.
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As cadeiras não estavam vazias, pelo menos
nem todas. Na cabeceira e nos dois lugares
seguintes havia qualquer coisa – ou, mais
exatamente, três coisas.
– Que é aquilo? – perguntou Lúcia, num
sussurro. – Parecem três castores sentados.
– Ou um ninho enorme – disse Edmundo.
– Parece mais um monte de ferro velho –
opinou Caspian.
Ripchip correu para a frente, saltou para
uma cadeira e desta para a mesa e, com a
elegância de um dançarino, percorreu-a entre
taças cravejadas de pedras, pirâmides de frutas e
saleiros de marfim. Foi direto à misteriosa forma
cinzenta lá na cabeceira; espreitou, tocou e por
fim gritou:
– Estes, creio eu, não lutam mais!
Os outros chegaram e viram que nas três
cadeiras se sentavam três homens, ainda que só
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fosse possível reconhecê-los como tal
observando-os muito de perto. Os cabelos
grisalhos tinham crescido tanto que lhes
encobriam os olhos e quase lhes ocultavam o
rosto; as barbas caíam sobre a mesa, subindo e
enrolando-se em pratos e jarros, como espinheiros
numa cerca, e toda aquela mata de pêlos descia da
mesa e tocava o chão. O cabelo pendia-lhes das
cabeças sobre as costas das cadeiras, que estavam
totalmente ocultas. Eram quase só cabelos.
– Mortos? – perguntou Caspian.
– Acho que não, majestade – respondeu
Ripchip, tomando com as patas uma das mãos,
encontrada no matagal de cabelos. – Está quente e
o pulso bate.
– Também este – disse Drinian.
– Estão apenas adormecidos – disse
Eustáquio.
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– Então já dormem há muito tempo –
observou Edmundo –, para o cabelo ter crescido
tanto.
– Deve ser um sono encantado – disse
Lúcia. – Senti logo ao chegar aqui que a terra está
cheia de magia. Será que viemos aqui para
quebrar o encanto?
– Podemos experimentar – disse Caspian,
chacoalhando um dos dorminhocos.
Por um momento, todos julgaram que iria
ser bem-sucedido, pois o homem respirou
pesadamente e murmurou:
– Não vamos mais para o Oriente. Fora com
os remos de Nárnia! – Mas caiu de novo, quase
repentinamente, num sono ainda mais profundo.
A cabeça pesada descaiu alguns centímetros
na direção da mesa, e foram vãos todos os
esforços para levantá-lo outra vez. Com o
segundo aconteceu o mesmo.
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– Não nascemos para viver como animais.
Sigam para o oeste enquanto é possível. Terras
atrás do sol – e tombou a cabeça.
O terceiro disse apenas:
– A mostarda, por favor – e adormeceu
profundamente.
– Fora com os remos de Nárnia? – disse
Drinian. – Acho que chegamos ao fim da busca.
Olhem para aqueles anéis. Não há dúvida de que
são seus brasões. Este é lorde Revilian, este lorde
Argos e este lorde Mavramorn.
– Não podemos despertá-los. Que fazer
agora?
– perguntou Lúcia.
– Com o perdão de Vossa Majestade – disse
Rince –, por que não atacamos imediatamente o
que está em cima da mesa, enquanto discutimos o
problema? Não se vê jantar como este todos os
dias.
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– Nem pense nisso! – exclamou Caspian.
– Tem razão – concordaram alguns
marinheiros. – Há muita magia aqui. Quanto mais
cedo voltarmos, melhor.
– Creio que é por causa dessa comida que
estes fidalgos estão ferrados no sono há sete anos
– falou Ripchip.
– Não toco nisso nem para salvar minha
vida!
– disse Drinian.
– Está escurecendo mais depressa do que o
normal – notou Rinelfo. – Melhor voltar, melhor
voltar.
– Também acho – disse Edmundo. –
Resolveremos amanhã o que fazer com esses três
dorminhocos. Não parece conveniente ficar aqui
durante a noite. Este lugar transpira perigo e
magia por todos os lados.
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– Estou inteiramente com o rei Edmundo –
disse Ripchip – no que diz respeito à tripulação,
mas, quanto a mim, vou sentar-me aqui até o sol
nascer.
– Por quê? – perguntou Eustáquio.
– Porque esta é uma aventura
extraordinária, e para mim não há perigo maior do
que regressar a Nárnia sabendo que, de medo,
deixei de desvendar um mistério.
– Ficarei com você, Rip – disse Edmundo.
– Também eu – concordou Caspian.
– E eu – disse Lúcia. Eustáquio ofereceu-se
também. Era uma grande valentia, pois nunca
tinha lido dessas coisas, nem ouvido falar delas,
até entrar no Peregrino, de modo que para ele era
pior do que para os outros.
– Suplico a Vossa Majestade... – começou a
dizer Drinian.
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– Não, meu senhor: o seu lugar é no navio;
teve um dia cheio de trabalho enquanto nós
passeávamos. – Apesar de todos os argumentos de
lorde Drinian, Caspian fez valer sua vontade. Ao
verem a tripulação caminhar para a praia no
lusco-fus-co, nenhum deles pôde evitar uma
estranha sensação no estômago.
Levaram algum tempo escolhendo os
lugares na perigosa mesa. Provavelmente tinham
todos o mesmo motivo, mas ninguém o disse em
voz alta. Era uma escolha terrível, pois não seria
fácil passar a noite inteira ao lado daqueles
medonhos cabeludos, que, se não estavam mortos,
tampouco estavam vivos, no sentido comum.
Por outro lado, se se sentassem na outra
ponta da mesa, deixariam de ver os dorminhocos,
à medida que escurecesse, e não poderiam saber
se se mexiam. Não! Nem pensar nisso! Andavam
de um lado para o outro, dizendo:
– Que tal aqui?
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– Talvez um pouco mais para lá.
– Aqui não é melhor?
Por fim instalaram-se mais ou menos no
centro, a igual distância dos dorminhocos e da
ponta da mesa.
As estranhas constelações brilhavam no
oeste. Lúcia teria preferido que fossem Leopardo
e Barco e outros velhos amigos do céu de Nárnia.
Enrolaram-se nos agasalhos de bordo e
sentaram-se quietinhos à espera. A princípio ainda
tentaram conversar, mas logo silenciaram.
Ficaram sentados por muito tempo, ouvindo as
ondas na praia. Depois de algumas horas
compridas, viram que tinham adormecido um
pouco e acordado de repente.
As estrelas encontravam-se em posições
completamente diferentes das que haviam
ocupado quando as tinham visto da última vez. O
céu estava negro, exceto no leste, onde havia uma
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tenuís-sima mancha cinza. Tinham frio, estavam
enrijecidos e sentiam sede. Ninguém falou,
porque todos sabiam que se passava alguma coisa.
Além das colunas erguia-se a vertente de
uma pequena colina. Na base desta, abriu-se uma
porta, e uma luz surgiu no limiar. Lá de dentro
saiu uma figura, e a porta fechou-se atrás dela. A
figura trazia uma luz, e era a única coisa que se
via distintamente. Foi-se aproximando devagar,
até que ficou em pé, perto deles.
Era uma moça alta, com uma vestimenta
azul-clara que lhe deixava os braços nus. Os
cabelos louros caíam-lhe soltos pelas costas, e só
quando a viram compreenderam o que era a
verdadeira beleza.
Trazia acesa uma grande vela posta num
candelabro de prata, que ela pousou sobre a mesa.
A chama da vela elevava-se tão serena como se
estivesse dentro de uma casa com as janelas todas
fechadas. A prata e o ouro em cima da mesa
refulgiam com a luz.
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Lúcia reparou num objeto pousado sobre a
mesa, que não notara antes. Era uma faca de
pedra, afiada como se fosse de aço, parecendo
muito antiga e muito perigosa. Ninguém dissera
nada. Ripchip e Caspian levantaram-se, pois
viram logo que se tratava de uma grande senhora.
Disse a moça:
– Viajantes que vieram de tão longe para a
mesa de Aslam, por que não comem e bebem?
– Minha senhora – respondeu Caspian –,
tivemos receio de comer porque julgamos que
foram as iguarias que lançaram nossos amigos
neste sono encantado.
– Eles nunca provaram destes pratos – disse
a moça.
– Então, o que aconteceu a eles? –
perguntou Lúcia.
– Há sete anos aportaram aqui num barco,
com as velas todas rasgadas e as madeiras em
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péssimo estado. Outros vinham com eles e, mal
chegaram a esta mesa, disse um: “Que lugar
maravilhoso!
Vamos parar com esta vida maluca de vela
e remo.
Vamos viver aqui para sempre, em paz.”
Mas disse o outro: “Não, vamos embarcar outra
vez para Nárnia; pode ser que Miraz já tenha
morrido.”
Mas o terceiro, um homem muito altivo,
saltou e disse: “Somos homens e telmarinos, não
somos uns brutos. Só temos uma coisa a fazer:
correr atrás de aventuras. Já não temos muito
tempo de vida; utilizemos o que nos resta
procurando as terras despovoadas que estão além
do sol nascente.” No meio da discussão, pegou a
Faca de Pedra que está aqui na mesa e quis lançarse
com ela sobre os companheiros. Mal os dedos
tocaram o cabo, caiu adormecido, assim como os
outros dois. E até que se desfaça o encantamento
nunca mais acordarão.
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– Que Faca de Pedra é essa? – indagou
Eustáquio.
– Ninguém sabe? – perguntou a moça.
– Acho – disse Lúcia – que já vi algo
parecido antes. Foi com uma faca assim que a
Feiticeira Branca matou Aslam, já há muito
tempo, na Mesa de Pedra.
– É esta mesma – disse a jovem. – Está aqui
para ser preservada enquanto o mundo existir.
Edmundo, que se sentia muito pouco à
vontade nos últimos minutos, falou por fim:
– Espero que não me julgue um covarde,
por não comer desta comida, quer dizer, não
quero ser indelicado, mas já passamos por uma
série de aventuras estranhas, e as coisas nem
sempre são o que parecem. Quando olho para a
senhora, não posso deixar de acreditar no que diz,
mas o mesmo pode acontecer com uma bruxa.
Como podemos saber se é realmente nossa amiga?
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– Realmente não podem – respondeu ela. –
Têm de acreditar ou não.
Ouviu-se a voz de Ripchip:
– Rei Caspian, queira ter a amabilidade de
encher-me a taça com o vinho deste jarro; é
pesado para mim. Quero beber à saúde desta
senhora.
Caspian obedeceu, e o rato, em pé sobre a
mesa, ergueu a taça de ouro entre as patinhas e
disse:
– Minha gentil senhora, levanto esta taça
em sua honra.
Atirou-se em seguida ao pavão frio. Todos
lhe seguiram o exemplo, esfomeados como
estavam. Foi uma ceia excelente.
– Por que disse que esta é a Mesa de
Aslam? – perguntou Lúcia.
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– Foi ele que a mandou para cá, para todos
aqueles que vêm parar nesta terra tão longínqua.
– Como se conserva esta comida? –
perguntou Eustáquio, com seu modo prático de
ver as coisas.
– Todos os dias se come e se torna a pôr a
mesa – disse a moça –, como terão ocasião de
presenciar.
– Que faremos com os dorminhocos? –
perguntou Caspian. – No mundo de onde os meus
amigos vieram existe a história de um príncipe, ou
de um rei, que chega a um castelo onde toda a
gente está adormecida num sono encantado: o
encanta mento só se desfaz depois que ele beija a
princesa.
– Mas aqui é diferente – falou a moça. – Só
se beija a princesa depois de desfeito o encanto.
– Então – replicou Caspian –, em nome de
Aslam, diga-me o que tenho de fazer.
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– Meu pai irá dizer – informou ela.
– Seu pai! – exclamaram. – Quem é ele?
Onde está?
– Olhem! – disse a jovem, virando-se e
apontando para a base da colina. Já se via mais
facilmente, pois não havia mais estrelas, e grandes
clarões de luz branca surgiam no oriente.
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O PRINCÍPIO DO FIM DO
MUNDO
A porta abriu-se e saiu uma figura tão alta e
ereta quanto a jovem, mas não tão esguia. Não
trazia luz, mas parecia irradiar luz. Era um
homem idoso. A barba prateada caía-lhe até os
pés descalços, o cabelo prateado até os tornozelos,
e usava uma túnica que parecia feita de lã de
carneiros de prata. Era uma figura tão suave e
digna, que mais uma vez todos se levantaram, em
silêncio.
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O velho passou pelos viajantes sem falar e
foi postar-se na outra extremidade da mesa, diante
da filha. Ambos ergueram os braços ao alto e
viraram a face para o Oriente. Nessa posição
começaram a cantar. Gostaria de transcrever aqui
a música da canção, mas nenhum dos presentes
foi capaz de se lembrar dela, mais tarde. Lúcia
disse que era uma melodia alta e aguda, mas
muito bonita, “uma canção fria para ser cantada
bem cedo”. Enquanto cantavam, as nuvens
cinzentas se afastavam e os clarões ficavam cada
vez maiores, até tudo ficar branco e o mar
começar a refulgir como prata. Muito mais tarde
(os dois continuavam sempre cantando), o Oriente
começou a avermelhar-se e, por fim, sem nuvens,
o sol surgiu no mar, fazendo incidir seus raios na
mesa, no ouro, na prata, na Faca de Pedra.
Já várias vezes haviam pensando que o sol,
ao nascer naquelas paragens, era maior do que em
Nárnia, mas agora tinham a certeza disso. A
claridade que se refletia no orvalho e na mesa era
muito mais intensa do que em qualquer outra
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manhã. Como Edmundo disse mais tarde: “Apesar
de nos terem acontecido muitas coisas
sensacionais, aquele foi o momento mais
perturbador.” Sabiam agora que tinham chegado
ao princípio do Fim do Mundo.
Do centro do sol saiu algo que veio voando
na direção deles, mas que não podiam identificar,
pois não conseguiam olhar fixamente. O ar estava
cheio de vozes – vozes que entoavam a mesma
canção de pai e filha, mas de um modo mais
suave, numa linguagem desconhecida. Em pouco
tempo apareceram os donos das vozes. Centenas e
centenas de grandes pássaros brancos pousavam
por todos os lados: na relva, na mesa, nos ombros
das pessoas, nas mãos, nas cabeças, até que se
teve a impressão de que caíra uma grande
nevasca. Lúcia, olhando por entre as asas que a
cobriam, viu uma ave voar na direção do velho,
transportando alguma coisa no bico, um fruto ou
um carvão aceso, demasiado brilhante para se
olhar.
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As aves se calaram de repente e começaram
a esvoaçar em torno da mesa. Quando a deixaram,
desaparecera tudo quanto houvera para comer e
beber. Levantaram vôo, levando todos os restos,
ossos, cascas e conchas. Voavam novamente em
direção ao sol mas, agora que não cantavam, o ar
agitava-se com o ruflar das asas. A mesa estava
limpa e vazia. Os três senhores dormiam. Só então
o velho virou-se para os viajantes e lhes desejou
boas-vindas.
– Senhor – disse Caspian –, poderia dizernos
como se desfaz o encantamento destes três
fidalgos de Nárnia?
– Com o maior prazer, meu filho. Para
quebrar o encantamento, vocês têm de navegar até
o Fim do Mundo, ou o mais próximo possível
dele, e regressar depois, deixando lá pelo menos
um de vocês.
– Mas que acontecerá a esse que ficar? –
perguntou Ripchip.
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– Terá de continuar até a parte mais oriental
que existe e nunca mais voltar a este mundo.
– É tudo quanto desejo – suspirou Ripchip.
– E estamos já bem perto do Fim do
Mundo, senhor? – perguntou Caspian. – Sabe
alguma coisa dos mares e das terras que existem
mais para leste?
– Há muito que as vi – respondeu o velho. –
Mas de uma grande altura. Não posso lhes contar
nada que tenha valor para os navegantes.
– Quer dizer que voou? – interrompeu
Eustáquio.
– Estive muito acima do ar, meu filho. Sou
Ramandu. Mas vejo que se entreolham admirados
e percebo que nunca ouviram este nome. Não é
para menos, pois quando deixei de ser estrela
vocês ainda não existiam, e depois disso todas as
constelações mudaram.
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– Caramba! – disse Edmundo entre os
dentes. – É uma estrela aposentada.
– Não é mais uma estrela? – perguntou
Lúcia.
– Sou uma estrela em repouso, minha filha.
Quando era uma estrela velha e decrépita, a tal
ponto que vocês nem podem imaginar, trouxeramme
para esta ilha. Agora não sou tão velho quanto
antes. Todas as manhãs uma ave traz para mim
um fruto de fogo dos vales do Sol, e cada um
desses frutos tira um pouco da minha idade.
Quando estiver jovem feito uma criança que
tivesse nascido ontem, subirei de novo e, uma vez
mais, entrarei na grande dança do espaço.
– No nosso mundo – disse o judicioso
Eustáquio – uma estrela é uma enorme bola de gás
inflamável.
– No nosso também, meu filho, mas isso é
de que uma estrela é feita, não o que ela é. Neste
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mundo vocês encontraram uma estrela, pois,
creio, já estiveram com Coriakin.
– Ele também é uma estrela aposentada? –
perguntou Lúcia.
– Bem, não exatamente – respondeu
Ramandu.
– Não foi para descansar que lhe deram o
governo dos Tontos. Pode-se até dizer que foi por
castigo. Poderia ter brilhado mais milhares de
anos se as coisas tivessem corrido bem.
– Que foi que ele fez, senhor? – perguntou
Caspian.
– Meu filho, não é permitido, a um filho de
Adão, tomar conhecimento das faltas cometidas
por uma estrela. Mas estamos perdendo tempo.
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Estão decididos? Querem navegar mais
para leste e voltar deixando lá um dos seus, e
assim quebrar o encanto? Ou preferem o oeste?
– Não há a menor dúvida, senhor – disse
Ripi-chip. – Não há o que discutir! Faz parte
fundamental da nossa missão libertar esses três
fidalgos.
– Também acho o mesmo – falou Caspian.
– E, mesmo que não fosse por isso, eu ficaria
muito triste de não ir com o Peregrino até o Fim
do Mundo. Mas tenho de pensar na tripulação. Foi
contratada para encontrar os três fidalgos, não
para chegar ao fim da Terra. Se partimos daqui na
direção leste, vamos ao encontro do ponto mais
oriental que existe. E não sabemos quanto tempo
levaremos para chegar. São valentes, mas alguns
deles já estão desejosos de embicar a proa no
caminho de Nárnia. Não me parece que possa
levá-los mais longe sem consultá-los. Além disso,
temos o pobre lorde Rupe. Está tão fraco!
Ramandu interveio:
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– Meu filho! Mesmo que quisesse, não
poderia navegar para leste com homens levados
de má vontade ou ludibriados. Não é assim que
conseguimos desfazer os grandes encantamentos.
Têm de saber para onde vão e por quê. Mas quem
é o homem doente?
Caspian contou a história de Rupe.
Ramandu disse:
– Posso dar a ele aquilo de que mais
precisa.
Nesta ilha há um sono sem limite, e quem o
dormir não terá a mais leve sombra de um sonho.
É só ele sentar-se com os outros três e ficar no
esquecimento até a volta de vocês.
Lúcia achou ótima a idéia.
Drinian e o resto da tripulação
aproximaram-se. Pararam surpresos quando
avistaram Ramandu e a jovem, mas tiraram logo
os chapéus, adivinhando grandes personalidades.
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Alguns marinheiros olharam com desgosto os
pratos e jarros vazios.
– Queira mandar dois homens ao Peregrino
com uma mensagem para lorde Rupe – disse o rei
a Drinian. – Diga-lhe que os seus últimos
companheiros estão aqui adormecidos num sono
sem sonhos, do qual ele poderá participar.
Cumprida essa missão, Caspian pediu a
todos que se sentassem e expôs a situação.
Quando acabou de falar, houve grande silêncio;
depois, conversas em voz baixa; por fim o
arqueiro-mor se levantou e disse:
– Já há muito tempo estávamos para
perguntar a Sua Majestade como havemos de
voltar, daqui ou de outro lugar qualquer. Temos
tido sempre vento oeste e noroeste, tirando
algumas calmarias ocasionais. Se isto não mudar,
gostaria de saber que esperança temos de voltar
para Nárnia. Acho que as provisões não chegarão
para navegarmos este tempo todo.
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– Conversa de homem de terra! –
resmungou Drinian. – Ora, nestes mares há
sempre vento oeste durante todo o fim do verão,
mas muda sempre depois do Ano-Novo. Havemos
de ter muito vento para navegar para o Ocidente,
talvez mais do que precisaremos.
– Isso é verdade – disse um velho marujo,
natural de Gala. – Em janeiro e fevereiro já sopra
um terrível vento de leste. Com a sua licença, se
eu estivesse no comando do navio ficaria aqui o
inverno todo e só retomaria a viagem em março.
– E iriam comer o quê? – perguntou
Eustáquio.
– Esta mesa – respondeu Ramandu – enchese
todos os dias, ao entardecer, com um banquete
digno de um rei.
– Agora sim a conversa está ficando boa! –
exclamaram alguns marinheiros.
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– Majestades, meus senhores e minhas
senhoras – começou Rinelfo –, gostaria apenas de
lembrar uma coisa: ninguém veio obrigado a esta
viagem. Viemos todos por livre e espontânea
vontade. Muitos, que estão agora olhando para
esta mesa como doidos, proclamavam em voz
bem alta, no dia da partida, em Cair Paravel, que
haveriam de correr as mais fantásticas aventuras e
juravam não voltar sem ter chegado ao Fim do
Mundo. No cais ficaram muitos que tudo dariam
para vir conosco.
Não sei se entendem o que quero dizer.
Mas, na minha opinião, aquele que desistir agora,
depois de tantas aventuras por estes mares, será
mais estúpido do que os Tontos. Ora, chegar ao
princípio do Fim do Mundo e não ter a coragem
de prosseguir!
Alguns marinheiros aplaudiram, mas outros
não gostaram nada.
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– Isto não vai ser brincadeira – murmurou
Edmundo para Caspian. – Que iremos fazer se
estes caras não quiserem ir?
– Calma: ainda tenho um trunfo!
– Você não diz nada, Ripchip? – sussurrou
Lúcia.
– Não. Por que acha Vossa Majestade que
devo falar? – respondeu o rato, numa voz que
quase todos ouviram. – Os meus planos estão
traçados.
Enquanto puder, navegarei para o oriente
no Peregrino. Quando o perder, remarei no meu
bote.
Quando o bote for ao fundo, nadarei com as
minhas patas. E, quando não puder nadar mais, se
ainda não tiver chegado ao país de Aslam, ou
atingido a extremidade do mundo, afundarei com
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o nariz voltado para o leste, e outro será o líder
dos ratos falantes de Nárnia.
– Eu digo o mesmo – gritou um marinheiro
–, exceto quanto ao bote, que a mim não me
serviria de nada. – E acrescentou em voz baixa: –
Não posso ser humilhado por um rato.
– Amigos – falou Caspian, dando um salto
–, ainda não entenderam a nossa intenção. Falam
como se estivéssemos chegando até vocês de
chapéu na mão, implorando tripulantes. Nada
disso.
Nós, nossos reais irmãos e fidalgos, e
Ripchip, leal cavaleiro, e lorde Drinian,
demandamos o fim do mundo. Somos nós que
escolhemos os que devem ir, os que são dignos de
ir! Nunca dissemos que iria quem pedisse. Por
isso, ordenamos a lorde Drinian e a mestre Rince
que forneçam uma lista com os nomes dos
homens mais fortes, dos marinheiros mais hábeis,
daqueles de sangue mais valente, dos mais leais à
nossa pessoa e os de costumes e vida mais limpos.
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Fez uma pausa e continuou em voz mais
rápida:
– Pela juba de Aslam! Acham que o
privilégio de ver as últimas coisas é assim tão
fácil de conquistar? Cada homem que nos
acompanhar receberá o título de Peregrino da
Alvorada, para si e seus descendentes, e terá, ao
desembarcar em Cair Paravel, ouro e terras
suficientes para o resto da vida. Dispersem-se
agora e dêem uma volta pela ilha. Daqui a pouco
examinarei os nomes que lorde Drinian achar por
bem trazer-me.
Houve um silêncio parecido ao rumor de
um rebanho; a tripulação espalhou-se em
pequenos bandos, conversando.
– E agora vamos tratar do caso de Rupe –
disse Caspian; ao virar a cabeça, viu que Rupe
havia chegado e estava sentado ao lado de lorde
Argos.
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A filha de Ramandu, junto dele, parecia tê-
lo ajudado a sentar-se, e o velho mágico, em pé,
estendia as mãos sobre a cabeça grisalha de Rupe.
Mesmo com a claridade do dia, via-se uma tênue
luz prateada irradiando das mãos da estrela. Na
face convulsionada de Rupe abriu-se um sorriso.
Estendeu as mãos para Lúcia e Caspian e, por um
momento, pareceu que ia dizer alguma coisa. O
sorriso ficou mais brilhante, como se provasse
uma deliciosa sensação; deu um longo suspiro de
contentamento, a cabeça caiu-lhe para a frente e
adormeceu.
– Pobre Rupe! – falou Lúcia. – Estou feliz!
Deve ter passado coisas horríveis!
O discurso de Caspian produzira o efeito
desejado. Muitos marujos, antes ansiosos para não
continuar a viagem, estavam agora pensando
justamente o contrário. Cada vez que um
marinheiro anunciava que ia pedir permissão para
acompanhar o navio, os outros sentiam-se cada
vez mais como minoria e mais sem jeito ficavam.
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Iam ficando em menor número os
desertores. Daí a meia hora, quase todos estavam
agradando Drinian e Rince, para que estes dessem
boas informações a respeito deles. Restavam
agora três que não queriam ir. Esses três tentavam
convencer os outros a ficar com eles. Pouco
depois, só restava um. Por fim, este mesmo
começou a ter medo de ficar sozinho e mudou de
opinião. E foram em massa até a Mesa de Aslam.
Caspian aceitou todos os homens, menos o que
mudara de opinião no último momento. Chamavase
Manteiga Rançosa e ficou na Ilha da Estrela
durante o tempo todo que os outros levaram para
alcançar o Fim do Mundo. Porém, desejaria muito
ter ido, pois não era o tipo de pessoa que sabia
apreciar uma conversa com Ramandu e sua filha.
Além disso, choveu o tempo todo e, ainda
que tivesse havido todas as noites o espetacular
banquete, o marinheiro chegou a perder o apetite.
Dizia que lhe dava arrepios sentar-se
sozinho com os quatro fidalgos adormecidos.
Tinha certa razão.
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Quando os outros voltaram, sentiu-se tão
separado de toda aquela aventura que desertou, na
viagem de regresso, e foi viver na Calormânia,
contando histórias tais acerca de suas façanhas no
Fim do Mundo que, por fim, até ele próprio
acreditava nelas. De certo modo, foi feliz dali em
diante, mas passou a ter horror a ratos.
Naquela noite comeram todos na mesa entre
as colunas, onde o banquete magicamente se
renovava. No dia seguinte, o Peregrino largou
mais uma vez, exatamente na hora em que as
grandes aves vinham fazer a visita matinal.
– Senhora – disse Caspian –, espero voltar a
falar-lhe depois de quebrado o encanto.
A filha de Ramandu sorriu.
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15
AS MARAVILHAS DO
MAR DERRADEIRO
Pouco depois de deixarem as terras de
Ramandu, começaram a sentir que já navegavam
para fora do mundo.
Era tudo diferente. Quase não precisavam
dormir, nem comer, nem falar, a não ser em voz
baixa. Outra coisa era a luz. Havia luz em
demasia. Quando o sol se erguia parecia duas ou
três vezes maior que o seu tamanho normal. E
todas as manhãs (era a sensação mais estranha
para Lúcia) apareciam lá no alto as imensas aves
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brancas, cantando a sua canção com vozes
humanas, numa língua que ninguém sabia,
desaparecendo depois em direção à Mesa de
Aslam. Pouco depois, voavam de regresso e
sumiam no Oriente.
– Como a água é transparente! – exclamou
Lúcia para si mesma, encostando-se na amurada
na tarde do segundo dia.
A primeira coisa em que reparou foi num
pequeno objeto escuro, quase do tamanho de um
sapato, movendo-se com a mesma velocidade do
barco. Durante certo tempo, julgou que se tratava
de algo flutuando, mas a certa altura a coisa
passou por um pedaço de pão que o cozinheiro
atirara da cozinha. Parecia que ia esbarrar no
pedaço de pão, mas não; passou por cima dele, e
Lúcia viu que o objeto escuro não podia estar na
superfície. Logo depois tornou-se muito maior,
voltando momentos depois ao tamanho de antes.
Lúcia já vira algo semelhante em algum lugar,
mas não se recordava onde.
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No esforço de lembrar-se, levou as mãos à
cabeça, franziu o rosto e pôs a língua de fora.
Acabou conseguindo. Claro! Era como um vagão
de trem num dia cheio de sol. A sombra escura do
vagão corre pelos campos na mesma velocidade
que o vagão. Quando se chega a um barranco a
sombra se aproxima mais de nós e fica maior,
correndo pela relva do barranco. Depois passa
aquele barranco e pronto: a sombra fica outra vez
do tamanho normal, correndo de novo pelos
campos.
– É a nossa sombra, a sombra do Peregrinol
-disse Lúcia. – A nossa sombra correndo no fundo
do mar. Quando se torna maior é quando passa
por cima de uma colina. Então é porque a água é
mais clara do que eu pensava. Puxa! Estou vendo
o fundo do mar, lá embaixo!
Compreendeu que toda aquela extensão
prateada que vira (sem reparar) durante algum
tempo era a areia do fundo do mar, e que todas
aquelas manchas, ora escuras, ora brilhantes, não
eram luzes, nem sombras na superfície, mas
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coisas reais lá no fundo. Naquele momento, por
exemplo, passavam sobre uma sedosa massa de
verde com reflexos avermelhados e uma larga
faixa, cinza-claro, serpenteando no meio. Agora
que sabia, reparava melhor. As coisas escuras
eram muito mais altas do que as outras e se
agitavam suavemente. Como árvores batidas pelo
vento. Isso mesmo: uma floresta submarina.
Passaram sobre ela, e à faixa clara veio
juntar-se uma outra. Pensou: “Se estivesse lá
embaixo, aquela faixa haveria de parecer um
caminho pela floresta. E o lugar em que se
juntaram os dois seria uma encruzilhada. Quem
me dera estar lá! A floresta está acabando. Afinal,
a faixa branca é mesmo um caminho. Até se vê a
continuação pela areia. Tem uma cor diferente. E
está marcada com qualquer coisa dos lados;
parecem linhas pontilhadas. Talvez sejam pedras.
Agora está mais larga”. Mas não era verdade: a
faixa estava era mais perto. Percebeu isso pela
velocidade com que a sombra do navio
aproximou-se dela. E o caminho – tinha certeza de
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que era um caminho – começou a ziguezaguear.
Era claro que subia uma colina acidentada.
Quando olhou para trás, foi como se olhasse
do alto de um monte para um caminho cheio de
curvas. Viu até mesmo os raios do sol
atravessarem a profundidade da água e banharem
o vale arborizado. A uma grande distância, tudo
se desvanecia numa neblina verde. Os lugares
batidos de sol, no entanto, eram azuis, de um azul
ultra-marinho.
Não podia perder tempo olhando para trás:
o que lhe surgia na frente era também perturbador.
O caminho agora parecia ter atingido o alto da
elevação, correndo em linha reta, sempre em
frente. Moviam-se nele, de um lado para outro,
pequenas manchas.
De repente avistou algo maravilhoso,
completamente iluminado pelo sol. Algo de
contornos denteados e nodosos, cor-de-pérola ou
marfim. Como Lúcia passava nesse momento por
cima, não pôde distinguir muito bem o que era,
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mas, ao ver a sombra, compreendeu logo do que
se tratava.
A luz do sol incidia nos ombros da garota, e
a sombra dos objetos projetava-se na areia atrás
deles. Pelas formas, viu nitidamente que era uma
floresta de pináculos, minaretes e cúpulas.
– Epa! É uma cidade ou um castelo enorme!
Gostaria de saber por que a construíram naquela
montanha tão alta.
Muito tempo depois, já na Inglaterra, ao
falar com Edmundo encontraram uma razão, e
acho que é a verdadeira: no mar, quanto mais
fundo se desce, mais escuro e frio se torna tudo. É
ali no fundo, na escuridão e no frio, que vivem os
seres perigosos – o Calamar, a Serpente do Mar e
o Monstro Marinho das lendas. No mar, os vales
são lugares selvagens. Os habitantes do mar
sentem nos vales o que nós sentimos nos montes,
e pensam dos seus montes o que pensamos dos
nossos vales. É nas alturas que há calor e paz. Os
caçadores destemidos e os cavaleiros valentes do
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mar descem às profundezas em busca de
aventuras, mas voltam a seus lares nos montes
para o descanso em sossego.
Passaram a cidade, e o fundo do mar
continuava a subir. Estava a uns dois mil metros.
O caminho sumira. Navegavam sobre uma região
aberta e ampla como um parque, salpicada de
maciços de vegetação de colorido brilhante.
Então, de repente – Lúcia quase gritou de
exultação –, ela viu gente: cerca de quinze ou
vinte criaturas montadas em cavalos-marinhos,
não os pequenos, como os do aquário, mas bem
maiores que as criaturas que os montavam. “Deve
ser gente de alta estirpe”, pensou Lúcia, pois
vislumbrava reflexos de ouro na cabeça de alguns,
e serpentinas de esmeraldas e outras pedras corde-
laran-ja flutuavam dos seus ombros na
corrente.
– Que peixes chatinhos! – exclamou ela.
Entre Lúcia e o Povo do Mar viera interpor-se um
cardume de peixes gorduchos, nadando muito
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perto da superfície. No entanto, apesar de lhe
terem tapado a visão, ofereceram-lhe um
espetáculo do maior interesse. E, de súbito, um
peixinho de ar atrevido, de espécie nunca vista,
veio à superfície e voltou a mergulhar, levando na
boca um peixe gorducho.
O Povo do Mar presenciou a cena rindo e
conversando. Antes que o peixe caçador chegasse
junto deles com a presa, já soltavam outro da
mesma espécie.
– É uma caçada! – concluiu Lúcia. – É uma
caçada com falcões. Cavalgam com aqueles
peixes bravos nos pulsos como fazíamos em Cair
Parável com os nossos falcões. Depois deixam
que eles voem, ou melhor, que nadem para caçar
os outros. Como...
Parou porque a cena agora era diferente. O
Povo do Mar notara o Peregrino. O cardume de
peixes se espalhava em todas as direções. Os
cavaleiros dirigiam-se agora para a superfície para
saber o que era aquela coisa escura e grande que
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se metera entre eles e o sol. Estavam tão perto da
superfície que, se estivessem no ar, Lúcia poderia
ter falado com eles. Usavam todos coroas, talvez
de ouro, e muitos tinham colares de pérolas. Não
usavam roupas. Os corpos eram da cor de marfim
antigo, e o cabelo de um tom púrpura bastante
escuro. O rei (só podia ser o rei) olhava orgulhosa
e altivamente para Lúcia, agitando um tridente
que tinha na mão. Os cavaleiros fizeram o mesmo
com as lanças. Os rostos das mulheres mostravam
espanto. Lúcia tinha a certeza de que não haviam
visto antes um navio, nem um ser humano. E
como poderiam ter visto, se aqueles mares
ficavam para lá do Fim do Mundo?
– Para onde está olhando, Lu? – perguntou
uma voz, atrás dela.
Ela estava tão absorvida que se
sobressaltou, notando ao virar-se que tinha o
braço dormente, por ter ficado tanto tempo
encostada na amurada. Drinian e Edmundo
estavam junto dela.
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– Olhem só! – disse.
Olharam ambos, mas Drinian disse em voz
baixa:
– Virem-se imediatamente, Altezas, com as
costas viradas para o mar. E não dêem a
impressão de que conversam algum assunto
importante.
– Por quê? Que história é essa? – disse
Lúcia, obedecendo.
– Os marinheiros não devem ver aquilo –
respondeu Drinian. – Ficariam apaixonados pelas
mulheres do mar e pulariam lá dentro. Já ouvi
falar de casos como este. Dá azar ver aquela
gente.
– Mas nós os conhecemos – disse Lúcia. –
Nos tempos de Cair Paravel, quando meu irmão
era o Grande Rei, vieram à superfície e cantaram
em nossa coroação.
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– Deviam ser de uma raça diferente, Lu –
disse Edmundo. – Viviam tanto no ar quanto na
água. Estes não devem viver no ar. Se pudessem,
já teriam vindo à superfície atacar-nos. Parecem
ferozes.
– De qualquer modo... – começou Driniam,
sendo interrompido pelo ruído de um choque na
água e um grito na torre de combate: – Homem ao
mar!
Todos entraram em ação. Alguns
marinheiros subiram ao mastro para colher a vela,
enquanto outros corriam para os remos. Rince, às
voltas com a roda do leme, procurava chegar ao
homem que tombara. Nessa altura, porém, todos
já sabiam que não era propriamente um homem,
mas Ripchip.
– Diabos levem esse rato! – praguejou
Drinian.
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– Dá mais trabalho do que todo o resto da
tripulação. Se há qualquer encrenca, ele está no
meio.
Devia ser posto a ferros, atado na quilha,
largado numa ilha deserta, ou ter os bigodes
cortados!
Alguém está vendo o engraçadinho?
Na verdade, Drinian gostava de Ripchip.
Por isso estava tão aflito, e, quando ficava aflito,
enchia-se de mau humor. Sua mãe também se
zangaria mais com você do que com um estranho,
se você pulasse na frente de um carro. Ninguém
tinha medo que Ripchip se afogasse, pois era
excelente nadador, mas as três pessoas a bordo
que sabiam o que se passava dentro da água
temiam as lanças cruéis nas mãos do Povo do
Mar.
O Peregrino deu uma volta e eles viram
uma trouxinha escura na água: era Ripchip.
Falava com grande excitação, mas como estava
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com a boca cheia d’água ninguém entendia o que
dizia.
– Vai botar a boca no mundo, se não o fizer
mos calar – disse Drinian.
Para evitar isso, correu para o lado e baixou
ele mesmo uma corda, gritando para os
marinheiros:
– Tudo bem, todos nos seus lugares. Posso
puxar um rato sem precisar de ajuda. – E quando
Ripchip começou a subir pela corda, não muito
agilmente porque o pêlo molhado o fazia mais
pesado, Drinian inclinou-se e sussurrou-lhe:
– Nem uma palavra!
Mas ao chegar ao convés todo encharcado o
rato não parecia nem um pouco interessado no
Povo do Mar.
– Doce – guinchou –, doce, doce!
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– Doce, o quê? – perguntou Drinian,
desconfiado. – E não precisa sacudir-se em cima
de mim.
– Estou dizendo que a água é doce. Não tem
sal.
Por um momento ninguém atentou para a
importância disso. Rip então repetiu a velha
profecia: onde o céu e o mar se encontram, onde
as ondas se adoçam.
– Um balde, Rinelfo – gritou Drinian.
O balde foi descido até a água e puxado de
novo. A água brilhava lá dentro como vidro.
– Talvez Sua Majestade queira ser o
primeiro a provar – disse Drinian a Caspian.
O rei tomou o balde nas duas mãos, bebeu
profundamente e levantou a cabeça com o rosto
transformado. Todo ele parecia mais brilhante.
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– É doce. Esta é a verdadeira água. Tenho
certeza de que não mata, mas escolheria a morte
se soubesse que matava.
– O que você quer dizer? – espantou-se
Edmundo.
– É mais transparente do que tudo que
existe – disse Caspian.
– Perfeito! – disse Ripchip. – Água potável.
Devemos estar muito próximos do Fim do Mundo
agora.
Houve um instante de silêncio. Depois
Lúcia ajoelhou-se no convés e bebeu do balde.
– E a água mais sensacional que já bebi na
vida
– disse, com um suspiro. – Mata a sede e
tira a fome. Não precisaremos comer mais nada.
E todos a bordo beberam. Sentiram-se tão
bem e tão fortes que quase não agüentavam a
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sensação. E então começaram a sentir um outro
efeito.
Desde que tinham deixado a ilha de
Ramandu, sempre houvera luz em demasia, como
já disse. O sol era enorme (mas não muito
quente); o mar, incrivelmente brilhante; o ar, de
uma resplandecência que ofuscava. A luz não
diminuíra -até aumentara, se possível –, mas eles
conseguiam suportá-la. Olhavam de cara para o
sol, sem pes-tanejar. O convés, a vela, suas
próprias faces e corpos, tudo resplandecia. Até as
cordas iam ficando mais brilhantes. Na manhã
seguinte, quando o sol nasceu, cinco ou seis vezes
maior, olharam-no fixamente e distinguiram até as
penas das aves que saíam dele voando.
Durante o dia, quase ninguém falou. Só na
hora do jantar (que ninguém quis, pois a água
bastava como alimento) Drinian disse:
– Não estou entendendo. Não há um sopro
de vento, e a vela está caída como morta. O mar
está liso como um lago. No entanto, navegamos
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tão depressa como se estivéssemos dentro de um
furacão.
– Também notei isso – falou Caspian. –
Pelo jeito fomos apanhados por uma forte
corrente.
– Hum! – fez Edmundo. – Não é lá muito
agradável saber que o mundo tem uma orla e que
estamos chegando perto dela.
– Você quer dizer – perguntou Caspian –
que corremos o risco de ser jogados para fora?
– É, é – gritou Rip, batendo as patas uma na
outra. – Exatamente como imaginei: o mundo é
uma grande mesa redonda, e as águas de todos os
oceanos vão caindo da borda da mesa. O navio
ficará suspenso um momento na orla da Terra e,
depois, sempre para baixo, para baixo, a queda, a
velocidade...
– E o que você acha que estará esperando
por nós lá no fundo? – indagou Drinian.
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– O País de Aslam, talvez – disse Rip com
olhos brilhantes. – Ou talvez nem tenha fundo.
Talvez se caia eternamente. Mas, seja lá o que for,
vale a pena a gente olhar da beiradinha do mundo,
mesmo que por um só instante.
– Isto é uma grande besteira – falou
Eustáquio.
– O mundo é redondo, redondo como uma
bola, não como uma mesa.
– O nosso mundo – disse Edmundo. – Mas
este também será uma bola?
– Ah, é?! – exclamou Caspian. – Quer dizer
que vocês vieram de um mundo redondo feito
uma bola e nunca me disseram nada! Fizeram
muito mal. Temos em nosso país histórias
maravilhosas que falam de mundos redondos.
Nunca acreditei que fossem verdadeiras, mas
gostaria que fossem, e adoraria viver num mundo
redondo. Faria tudo para isso. Por que vocês
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podem vir para o nosso mundo e nós não podemos
ir para o de vocês?
Deve ser fabuloso viver em cima de uma
bola! Já estiveram nos lugares onde as pessoas
andam de cabeça para baixo?
Edmundo abanou a cabeça:
– Não é como você pensa. Não há nada de
fabuloso em viver num mundo redondo.
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16
O FIM DO MUNDO
Ripchip era a única pessoa a bordo, além de
Lúcia, Edmundo e Drinian, que notara o Povo do
Mar. Mergulhou mal vira o rei agitar o tridente,
pois lhe parecera uma espécie de ameaça ou
desafio, e quisera tirar o caso a limpo. Com a
excitação de descobrir que a água não era salgada,
esquecera-se do que ia fazer e, antes de lembrar-se
do Povo do Mar, Drinian e Lúcia tinham pedido a
ele que não contasse nada do que vira.
Navegaram a manhã toda em águas baixas,
com o fundo do mar coberto de capim. Perto do
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meio-dia, Lúcia viu um grande cardume volteando
por entre a erva. Comiam com vontade e moviamse
na mesma direção. “Como um rebanho de
ovelhas”, pensou Lúcia. De repente viu, entre os
peixes, uma donzela do mar, mais ou menos da
sua idade, calma e solitária, com uma espécie de
cajado na mão. Lúcia teve a certeza de que era
uma pastora – uma pastora de peixes – e que o
cardume era um rebanho pastando. Estavam perto
da superfície. No instante em que a menina se
elevava na água pouco funda, Lúcia inclinou-se
na beira do navio. A menina olhou para cima e
fixou atentamente o rosto de Lúcia. A pastora
mergulhou depois e Lúcia nunca mais a viu. Não
parecia assustada, nem zangada, como os outros
habitantes do mar. Lúcia simpatizara com ela, e a
simpatia parecera recíproca. Tinham ficado
amigas num minuto. Seria difícil um novo
encontro, mas se isto acontecesse correriam uma
para outra de braços abertos.
O Peregrino ia sendo levado para o Oriente
por um mar sem ondas, sem sombra de vento ou
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de espuma na quilha. A luz era cada vez mais
brilhante. Ninguém dormia ou comia, mas tiravam
do mar baldes de água brilhante, mais forte do que
o vinho e mais úmida e líquida do que a água
comum, bebendo-a em grandes goles, em silêncio.
Dois marinheiros, que começaram a viagem
já com certa idade, iam ficando cada vez mais
novos. Todos a bordo estavam muito alegres e
animados, mas uma animação silenciosa. Falavam
às vezes, mas apenas por murmúrios. Apossara-se
deles a placidez daquele mar derradeiro.
Um dia Caspian perguntou a Drinian:
– O que está vendo aí em frente?
– Tudo branco.
– É também o que vejo. Não faço idéia do
que seja.
– Se estivéssemos numa latitude alta, diria
que era gelo. Mas aqui não pode ser. Em todo o
caso, acho melhor pôr os homens ao remo e
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agüentar o barco contra a corrente. Não podemos
ir contra aquilo com esta velocidade.
Começaram a navegar lentamente. A
brancura não desvendou seu mistério quando se
aproximaram. Se era uma terra, devia ser uma
terra muito estranha, pois parecia tão macia
quanto a água e no mesmo nível desta.
Perto, Drinian virou o navio para o sul, de
modo que ficasse com ele atravessado na corrente,
e remou um pouco ao longo da orla branca de
espuma. Descobriram que a corrente tinha apenas
uns vinte metros de largura e que o resto do mar
estava tão calmo quanto um lago. A tripulação
alegrou-se imensamente com isso, pois todos
pensavam que seria bem difícil a viagem de
regresso ao país de Ramandu, remando contra a
corrente durante o caminho todo.
Isso explicava por que a pastora
desaparecera tão rapidamente. Não estava na
corrente; se estivesse, teria se deslocado para leste
com a mesma velocidade do navio. Mas ninguém
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conseguira ainda compreender o que era a coisa
branca. Baixaram o bote e resolveram investigar.
Os que ficaram a bordo do Peregrino viram o bote
cortar pelo meio da brancura e ouviram as vozes
dos tripulantes na água em calmaria. Houve uma
pausa, enquanto Rinelfo, na proa do bote, lançava
o prumo. Depois regressaram.
Apinharam-se todos na amurada, curiosos:
– São lírios! – gritou Rinelfo. – Como num
tanque de jardim.
Lúcia ergueu os braços úmidos, cheios de
pétalas brancas e de largas folhas espalmadas.
– Qual é a profundidade, Rinelfo? –
perguntou Drinian.
– Aí é que está, capitão. Ainda é muito
fundo.
– Não podem ser lírios, pelo menos não
aquilo que chamamos de lírios – resmungou
Eustáquio.
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Provavelmente não eram, mas pareciam.
Conferenciaram e lançaram o Peregrino na
corrente, começando a deslizar para leste, pelo
Lago dos Lírios ou Mar de Prata, e aí começou a
parte mais estranha da viagem. O oceano largo
que haviam deixado nada mais era do que uma
estreita fita azul perdendo-se no horizonte.
O mar parecia o Ártico e, se os olhos não
tivessem se tornado tão agudos como os das
águias, seria impossível suportar a visão daquela
brancura, especialmente de manhã cedo. E a
brancura, às tardes, fazia durar mais a luz do dia.
Os lírios pareciam não ter fim. Dias e dias,
elevava-se daquelas léguas de flores um odor que
Lúcia achava quase impossível descrever: doce,
sim, mas não estonteante, nem extremamente
perfumado, um odor fresco, selvagem, solitário.
Parecia entrar no cérebro e dar a sensação de que
se pode galgar montanhas ou brigar com
elefantes. Dizia:
– Sinto que não posso mais agüentar isso e,
no entanto, não quero que acabe.
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Fizeram muitas sondagens, mas só alguns
dias mais tarde a água se tornou menos funda. A
profundidade foi então diminuindo. Até que um
dia tiveram de sair da corrente e avançar a passo
de caracol para sondarem o caminho por onde
seguiam. Tornou-se claro que o Peregrino não
podia navegar mais para o Oriente, e só devido a
manobras hábeis conseguiram evitar que
encalhasse.
– Desçam o bote – gritou Caspian. – Depois
chamem os homens cá para cima.
– Que vai fazer? – perguntou Eustáquio a
Edmundo em voz baixa. – Ele está com uma
expressão esquisita.
– Acho que estamos todos com a mesma
expressão – respondeu Edmundo.
Juntaram-se a Caspian na popa, e toda a
tripulação reuniu-se na base da escada para ouvir
a palavra do rei.
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– Amigos – disse Caspian. – Chegamos ao
fim da nossa missão. Encontramos os sete
fidalgos e, como Sir Ripchip jurou não voltar, sem
dúvida que acharão acordados os fidalgos da ilha
de Ramandu. Entrego-lhe, lorde Drinian, este
navio, com a recomendação de navegarem com a
maior velocidade possível para Nárnia e de não
pararem na Ilha da Água da Morte. Recomende a
Trumpkin, meu regente, que dê a todos os meus
companheiros de viagem as recompensas que lhes
prometi. São bem merecidas. Se eu nunca mais
voltar, é meu desejo que o regente, o Mestre
Cornelius, Caça-trufas, o Texugo, e o lorde
Drinian escolham um rei para Nárnia.
– Senhor – interrompeu Drinian –, vai
abdicar?
– Vou com Ripchip ver o Fim do Mundo.
Um murmúrio abafado de desagrado brotou
entre os marinheiros.
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– Levaremos o bote – disse Caspian. – Não
precisam dele nestes mares tão calmos e podem
fazer outro na terra de Ramandu.
– Caspian – disse Edmundo, rápida e
gravemente –, não pode fazer isso!
– Não pode, senhor, não pode! – confirmou
Drinian.
– Não posso? – disse Caspian, com dureza,
parecendo por um instante seu tio Miraz.
– Perdão, Majestade – disse Rinelfo, lá
embaixo no convés –, mas se algum de nós fizesse
o mesmo isto se chamaria desertar.
– Você está abusando demais dos seus
grandes serviços, Rinelfo – disse Caspian.
– Senhor, ele tem razão – disse Drinian.
– Pela juba de Aslam! Achava que eram
todos meus súditos e não meus chefes!
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– Não sou seu súdito – falou Edmundo. – E
também sou de opinião de que não pode fazer
isso.
– Outra vez não pode! – exclamou Caspian.
– Afinal, o que querem dizer com não pode?
– Se me permite, Majestade – interveio
Ripchip, curvando-se numa profunda reverência –
, queremos dizer que não fará. Não pode lançar-se
em aventuras como qualquer um. Se Vossa
Majestade não nos atender, os homens mais fiéis
ver-se-ão obrigados a desarmá-lo e prendê-lo, até
que recobre o bom senso.
– De acordo – disse Edmundo. – Como
Ulisses quando quis chegar perto das sereias.
A mão de Caspian já segurava a espada
quando Lúcia disse:
– Prometeu à filha de Ramandu que
voltaria... Caspian deteve-se. Depois gritou para
todo o navio:
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– Ganharam! A questão está encerrada.
Voltaremos todos. Puxem outra vez o bote.
– Senhor – disse Ripchip –, não voltaremos
todos. Como já expliquei antes...
– Silêncio! – trovejou Caspian. -Já recebi
minhas lições. Não há ninguém que faça calar
esse rato?
– Vossa Majestade prometeu ser um bom
rei para todos os Animais Falantes de Nárnia –
disse Ripchip.
– Para os Animais Falantes, sim. Não para
os animais que falam o tempo todo.
Precipitou-se pela escada enraivecido,
batendo com a porta do camarote. Mais tarde,
deram com ele completamente mudado. Estava
pálido e tinha lágrimas nos olhos.
– Não valeu a pena ter-me irritado tanto.
Aslam falou comigo. Não quero dizer que esteve
aqui, nem caberia no meu camarote. Mas aquela
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cabeça de leão ali na parede tomou vida e falou
comigo. Foi terrível com aqueles olhos. Não
estava muito zangado, apenas a princípio um
pouco severo. Foi horrível de qualquer modo.
Disse... Oh! Não podia ter dito coisa que doesse
mais! Vocês vão continuar: Rip, Edmundo, Lúcia,
Eustáquio. Tenho de voltar, sozinho. Haverá coisa
pior do que isso?
– Meu bom Caspian – disse Lúcia –, você
sabia que mais cedo ou mais tarde teríamos de
voltar para o nosso mundo...
– Mas nunca pensei que fosse tão cedo –
suspirou Caspian.
– Vai sentir-se melhor quando estiver na
terra de Ramandu – disse a garota.
Caspian animou-se um pouco mais, porém
a separação era dura para ambas as partes e não
insisto em descrevê-la.
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Cerca de duas horas mais tarde, bem
aprovisionados (apesar de acharem que não
precisariam comer ou beber), e levando a bordo o
bote de Ripchip, o bote maior afastou-se do
Peregrino pelo tapete de lírios.
O Peregrino desfraldou todas as suas
bandeiras e dependurou todos os escudos, em
honra à partida dos amigos. Antes de perdê-lo de
vista, viram-no voltar-se e dirigir-se lentamente
para o Ocidente.
Lúcia derramou algumas lágrimas, mas não
sentiu tanto quanto você pode pensar. A luz, o
silêncio, o odor inebriante do Mar de Prata, a
própria solidão eram muito emocionantes.
Não precisavam remar, pois a corrente os
impelia continuamente. Nenhum deles comeu ou
bebeu. Durante toda aquela noite e no dia seguinte
foram arrastados para o Oriente. Na manhã do
terceiro dia – aquela claridade seria insuportável
para nós, mesmo com óculos escuros – viram a
maravilha. Era como se entre eles e o céu se
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erguesse uma parede cinzento-esverdeada,
tremente, vaporosa.
Depois nasceu o sol, e seus primeiros raios,
vistos através da parede, transformaram-se num
deslumbrante arco-íris. Compreenderam que a
parede era de fato uma enorme onda caindo sem
cessar, sempre no mesmo lugar, e produzindo a
mesma sensação de quando se olha da beira de
uma cachoeira. Parecia ter seiscentos metros de
altura, e a corrente os fazia deslizar rapidamente
na direção dela.
Fortalecidos pelas águas do Mar
Derradeiro, agora podiam fitar o sol nascente e
distinguir coisas além dele. A oriente, além do sol,
viam uma cadeia de montanhas, tão altas que seus
cumes não eram visíveis. Deviam normalmente
estar cobertas de gelo, mas eram verdes e quentes,
com cascatas e florestas.
De súbito soprou uma brisa, franjando de
espuma o alto da onda e enrugando a quietude das
águas. Durou um segundo só, mas nenhuma das
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crianças jamais se esqueceu. Trouxe-lhes ao
mesmo tempo um aroma e um som musical.
Edmundo e Eustáquio nunca mais quiseram tocar
no assunto. Lúcia apenas podia articular:
– Era de cortar o coração.
– Por quê? – perguntei eu. – Era assim tão
triste?
– Triste nada!
Nenhum dos que se encontravam no bote
duvidava de estar vendo, além do Fim do Mundo,
a terra de Aslam.
No mesmo momento, com um ruído cavo, o
bote encalhou. Não havia fundura suficiente.
– Daqui em diante – falou Ripchip –
continuo sozinho.
Nem sequer tentaram impedi-lo, pois
sentiam que parecia estar tudo destinado de
antemão ou que já acontecera anteriormente.
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Ajudaram-no a descer o bote pequenino. Então,
puxou a espada:
– Não preciso mais dela! – E lançou-a para
o mar de lírios. Ao cair, ficou virada para cima,
com o punho aparecendo sobre a água. Despediuse
deles, tentando parecer triste, mas estremecia
de felicidade. Lúcia, pela primeira e última vez,
fez o que sempre desejou fazer: tomou Rip nos
braços e o acariciou. Depois, depressa, o rato
pulou para o botezinho e saiu remando, ajudado
pela corrente, muito escuro entre o branco dos
lírios. O bote foi andando cada vez mais rápido,
até que entrou triunfalmente por uma onda.
Durante um escasso segundo viram Ripchip no
topo da onda, depois desapareceu. Desde então
ninguém mais ouviu nada sobre Ripchip, o Rato.
Acredito que tenha chegado são e salvo ao país de
Aslam e que lá vive até hoje.
Quando o sol nasceu, desvaneceu-se a visão
das montanhas. As crianças saíram do bote e
começaram a patinhar para o sul, com a parede de
água à esquerda. Não sabiam por que fizeram
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assim; era o destino. Apesar de a bordo do
Peregrino se sentirem muito crescidos, agora
tinham a sensação contrária e davam-se as mãos
entre os lírios.
Nunca se sentiram tão cansados. A água
estava morna e era cada vez menos funda. Por
fim, caminhavam na areia e depois na relva – por
uma extensa planície de relva rasteira e bela, que
se estendia em todas as direções, quase no mesmo
nível do Mar de Prata.
Como sempre acontece em uma planura sem
árvores, parecia que o céu se juntava com a relva,
lá longe. Quando avançaram mais, tiveram a
estranha sensação de que, pelo menos ali, o céu
descia de fato e unia-se à terra – em uma parede
muito azul, muito brilhante, mas real e concreta,
parecendo vidro. Depois tiveram a certeza total.
Estavam agora muito perto. Entre eles e a base do
céu havia algo tão branco que, até mesmo com
seus olhos de águia, dificilmente poderiam fitar.
Continuaram e viram que era um cordeiro.
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– Venham almoçar – disse o Cordeiro na
sua voz doce e meiga.
Notaram que ardia sobre a relva uma
fogueira, na qual se fritava peixe. Sentaram-se e
comeram, sentindo fome pela primeira vez desde
muitos dias. E aquela comida era a melhor de
todas as que haviam provado.
– Por favor, Cordeiro – disse Lúcia –, é este
o caminho para o país de Aslam?
– Para vocês, não – respondeu o Cordeiro. –
Para vocês, o caminho de Aslam está no seu
próprio mundo.
– No nosso mundo também há uma entrada
para o país de Aslam? – perguntou Edmundo.
– Em todos os mundos há um caminho para
o meu país – falou o Cordeiro. E, enquanto ele
falava, sua brancura de neve transformou-se em
ouro quente, modificando-se também sua forma.
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E ali estava o próprio Aslam, erguendo-se acima
deles e irradiando luz de sua juba.
– Aslam! – exclamou Lúcia. – Ensine para
nós como poderemos entrar no seu país partindo
do nosso mundo.
– Irei ensinando pouco a pouco. Não direi
se é longe ou perto. Só direi que fica do lado de lá
de um rio. Mas nada temam, pois sou eu o grande
Construtor da Ponte. Venham. Vou abrir uma
porta no céu para enviá-los ao mundo de vocês.
– Por favor, Aslam – disse Lúcia –, antes de
partirmos, pode dizer-nos quando voltaremos a
Nárnia? Por favor, gostaria que não demorasse...
– Minha querida – respondeu Aslam muito
docemente –, você e seu irmão não voltarão mais
a Nárnia.
– Aslam! – exclamaram ambos,
entristecidos.
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– Já são muito crescidos. Têm de chegar
mais perto do próprio mundo em que vivem.
– Nosso mundo é Nárnia – soluçou Lúcia. –
Como poderemos viver sem vê-lo?
– Você há de encontrar-me, querida – disse
Aslam.
– Está também em nosso mundo? –
perguntou Edmundo.
– Estou. Mas tenho outro nome. Têm de
aprender a conhecer-me por esse nome. Foi por
isso que os levei a Nárnia, para que, conhecendome
um pouco, venham a conhecer-me melhor.
– E Eustáquio voltará lá? – indagou Lúcia.
– Criança! – disse Aslam. – Para que deseja
saber mais? Venha, vou abrir a porta no céu.
No mesmo instante, abriu-se uma fenda na
parede azul, como se uma cortina fosse rasgada, e
uma luz impressionante brotou do lado de lá do
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
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céu, e sentiram a juba e um beijo de Aslam na
testa. E encontraram-se no quarto dos fundos da
casa da tia Alberta.
Só falta falar de duas coisas. Uma: Caspian
e os seus homens chegaram a salvo à Ilha da
Estrela, onde os quatro fidalgos já tinham
acordado. Foram todos para Nárnia, e Caspian
casou-se com a filha de Ramandu, que se tornou
uma grande rainha, mãe e avó de grandes reis.
Outra: de volta ao nosso mundo, toda gente
começou a dizer que Eustáquio estava
melhorando muito e que não parecia o mesmo
rapaz. Todos gostaram disso, menos a tia Alberta.
Ela achava que Eustáquio se tornara um garoto
muito comum e enfadonho, talvez devido à
influência dos primos.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. V
336
Fim do Vol. V
Próximo volume:
A Cadeira de Prata
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