Ler "A Cadeira de Prata" Online
C. S. LEWIS
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
VOL. VI
A Cadeira de Prata
Tradução
Paulo Mendes Campos
Martins Fontes
São Paulo 2002
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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As Crônicas de Nárnia são constituídas por:
Vol. I – O Sobrinho do Mago
Vol. II – O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa
Vol. III – O Cavalo e seu Menino
Vol. IV – Príncipe Caspian
Vol. V – A Viagem do Peregrino da Alvorada
Vol. VI – A Cadeira de Prata
Vol. VII– A Última Batalha
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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Para Nicholas Hardie
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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ÍNDICE
1. ATRÁS DO GINÁSIO
2. A MISSÃO DE JILL
3. A VIAGEM DO REI
4. UMA REUNIÃO DE CORUJAS
5. BREJEIRO
6. AS TERRAS AGRESTES DO NORTE
7. A COLINA DOS FOSSOS ESTRANHOS
8. A CASA DE HARFANG
9. UMA DESCOBERTA QUE VALEU A PENA
10. VIAGEM SEM SOL
11. NO CASTELO ESCURO
12. A RAINHA DO SUBMUNDO
13. O SUBMUNDO SEM RAINHA
14. O FUNDO DO MUNDO
15. O DESAPARECIMENTO DE JILL
16. REMATE DE MALES
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ATRÁS DO GINÁSIO
Era um dia tristonho de outono e Jill Pole
estava chorando atrás do ginásio de esportes.
Chorava porque alguém andara mexendo
com ela. Como não vou contar uma história de
escola, tratarei de falar o mais depressa possível
sobre o colégio de Jill, assunto que não é nada
simpático.
Era um “colégio experimental” para
meninos e meninas. Os diretores achavam que as
crianças podiam fazer o que desejassem.
Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze da
turma que só queriam atormentar os outros. Lá
acontecia de tudo: coisas horríveis que, numa
escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas
ali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia
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feito, o responsável não era expulso nem
castigado. O diretor achava que se tratava de
“interessantes casos psicológicos” e passava horas
conversando com tais alunos. E estes, se
encontrassem uma resposta adequada para dizer
ao diretor, acabavam se tornando privilegiados.
Por isso Jill estava chorando naquele dia
tristonho de outono, na alameda úmida que vai do
fundo do ginásio de esportes à mata de arbustos.
Ainda não tinha acabado de chorar quando, assoviando,
um menino surgiu do canto do ginásio,
mãos nos bolsos, quase dando um tropeção nela.
– Está cego? – perguntou Jill.
– Opa, desculpe... também não precisava...
– e aí notou a cara da menina. – Ei, Jill, o que há
com você?
Jill só fez uma careta, a careta que a gente
faz quando quer dizer alguma coisa, mas sente
que vai acabar chorando se falar.
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– Só podem ser eles, como sempre – disse o
menino, carrancudo, afundando ainda mais as
mãos nos bolsos.
Jill concordou com a cabeça. Não era
preciso falar mais nada. Já sabiam de tudo.
– Olhe aqui – disse o menino –, de nada
adianta que nós...
Falava como quem começa um sermão. Jill
irrompeu numa crise de nervos (o que é comum
acontecer às pessoas quando são interrompidas
durante um acesso de choro).
– Deixe-me em paz e cuide da sua vida.
Ninguém lhe pediu para meter o bico. Você é
mesmo muito bacana para me ensinar o que eu
devo fazer. Vai dizer, na certa, que a gente deve
chaleirar eles, fazer o que eles quiserem, como
você faz.
– Caramba, Jill! – disse o menino,
sentando-se na relva espessa e pulando logo, pois
a relva estava toda molhada. Seu nome
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infelizmente era Eustáquio Mísero; mas não era
um mau sujeito.
– Jill, você está sendo injusta. Por acaso eu
fiz alguma coisa ruim este ano? Não fiquei do
lado do Daniel no caso do coelho? E não guardei
segredo no caso da Gabriela... mesmo debaixo de
torturas? E não fiquei...
– Não sei, nem quero saber! – soluçou Jill.
Eustáquio, vendo que ela ainda não estava bem,
ofereceu-lhe uma pastilha de hortelã e começou a
chupar outra. Jill já enxergava tudo com mais
clareza.
– Desculpe, Eustáquio. Confesso que só
falei aquilo de maldade. Você foi muito
bonzinho... este ano.
– Então, esqueça o ano passado. Admito
que já fui um sujeito muito diferente. Puxa vida!
Como eu era chato!
– Para ser franca, era mesmo.
– Acha que eu mudei?
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– Acho, e não sou só eu que acho. Todo
mundo diz o mesmo. Ainda ontem no quarto,
Eleonor ouviu Adélia dizer que você está mudado
e que iam pegá-lo no ano que vem.
Eustáquio sentiu um tremor. Todos no
Colégio Experimental sabiam o que era ser pego
pela turma da pesada.
– Por que você era tão diferente no ano
passado?
– Aconteceram comigo coisas
estranhíssimas – disse Eustáquio, misterioso.
– Como assim?
Ele ficou calado durante um tempão.
– Escute, Jill, tenho ódio deste lugar, mais
do que uma pessoa pode ter ódio de qualquer
coisa. Você também, não é?
– Ora, se tenho!
– Assim sendo, acho que posso ter toda
confiança em você.
– Quanta gentileza!
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– Pois é, mas acontece que é um segredo
para lá de assustador. Jill, você é boa de acreditar
em coisas... quer dizer... nas coisas que fariam os
outros aqui cair na gargalhada?
– Nunca me aconteceu... mas acho que sou.
– Iria acreditar em mim, se eu dissesse que
já estive fora deste mundo?
– Não estou entendendo bulhufas.
– Bem, vamos esquecer os mundos.
Suponha que eu dissesse que já estive num lugar
onde os animais sabem falar e onde há... hum...
encantamentos, dragões... bem, essas coisas que
aparecem nos livros de fadas.
Eustáquio sentia-se como um novelo
embaraçado, um novelo vermelho.
– Como você chegou lá? – perguntou Jill,
também um pouco encabulada.
– Da única maneira possível: magia. Eu
estava com dois primos meus. Fomos
simplesmente levados, assim. Eles já tinham
estado lá antes.
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Como tinham passado a cochichar, era mais
fácil acreditar, mas, repentinamente, Jill foi
apanhada por uma tremenda suspeita (tão violenta
que, por um instante, virou uma onça):
– Se eu descobrir que está querendo me
fazer de boba, nunca mais falo com você durante
toda a minha vida! Nunca, nunca, nunca!
– Juro que não estou! Juro por tudo que é
sagrado!
– Está bem, eu acredito.
– E promete não contar para ninguém!
– Quem é que você está pensando que eu
sou?
Estavam muito nervosos. Mas, quando Jill
olhou em torno e reparou o céu tristonho de
outono, com as folhas gotejando, e lembrou-se de
que não havia esperança no Colégio Experimental
(faltavam ainda onze semanas para as férias),
disse:
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– Mas, afinal de contas, de que adianta?
Não estamos lá: estamos aqui. E não há nenhum
jeito de ir para lá. Ou há?
– É por isso mesmo que estamos aqui
conversando. Quando voltei do tal lugar, alguém
disse que os meus dois primos nunca mais iriam
lá. Era a terceira vez que iam, entende? Mas esse
alguém não disse que eu não ia voltar. Se não
disse é porque achava que eu ia voltar. Não me sai
da cabeça a idéia de que nós... poderíamos...
– Dar um jeito para que a magia aconteça
de novo?
Eustáquio fez que sim.
– Quer dizer que a gente podia desenhar um
círculo no chão, escrever umas letras dentro... e
recitar umas fórmulas mágicas?
Eustáquio ficou atento por um instante:
– Estava pensando em coisa parecida. Mas
agora estou vendo que esse negócio de círculo e
de fórmulas não dá certo. Só há uma coisa a fazer:
temos de pedir a ele.
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– Quem é ele?
– Lá naquele lugar ele é chamado de
Aslam. Mas vamos em frente. Ficamos um ao
lado do outro, assim, e estendemos os braços para
a frente com as palmas das mãos viradas para
baixo, como fizeram na ilha de Ramandu...
– Ilha de quê?
– Depois eu conto. Acho que ele gostaria
que olhássemos para o oriente. Onde é o oriente?
– Sei lá.
– Gozado, as mulheres não sabem nada de
pontos cardeais
– Você também não sabe – replicou Jill
indignada.
– Sei, sei e muito bem. É só você não me
interromper. Já vi tudo. Lá é o oriente, onde estão
aquelas árvores. Agora você tem de repetir
minhas palavras.
– Que palavras?
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– As palavras que eu vou dizer, é claro.
Agora... Aslam, Aslam, Aslam!
– Aslam, Aslam, Aslam – repetiu Jill.
– Por favor, deixe que nós dois...
Nesse momento uma voz do outro lado do
ginásio gritou:
– Jill ? Eu sei onde ela está. Só pode estar
choramingando atrás do ginásio. Vou pegar ela.
Jill e Eustáquio entreolharam-se,
mergulharam debaixo das árvores e começaram a
escalar a encosta íngreme da mata de arbustos a
uma velocidade de campeões. (Devido aos
curiosos métodos de ensino do Colégio
Experimental, lá não se aprendia muito
Matemática ou Latim, mas todos sabiam
desaparecer rapidamente e sem ruído, quando eles
estavam atrás de alguém.)
Depois de um minuto de correria,
detiveram-se para ouvir e concluíram que
continuavam sendo perseguidos.
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– Se ao menos a porta estivesse aberta! –
suspirou Eustáquio, e Jill concordou com a
cabeça.
No fim da mata de arbustos havia um alto
muro de pedra, com uma porta que dava para um
terreno relvado. Essa porta quase sempre estava
trancada, mas já fora encontrada aberta uma ou
outra vez. Ou só uma vez, quem sabe. Mas
sempre havia uma grande esperança de que não
estivesse trancada. Seria a oportunidade
maravilhosa para que os alunos, sem ser
percebidos, escapassem dos domínios do colégio.
Jill e Eustáquio, fatigados e desarrumados,
pois tinham corrido quase de gatinhas por debaixo
das árvores, chegaram ofegantes ao muro. A
porta, fechada, como de hábito.
– Não vai adiantar nada – disse Eustáquio,
com a mão na maçaneta, para suspirar em
seguida: – O-o-oh!
A porta abriu-se. E eles, que não desejavam
outra coisa, agora ficaram apalermados, pois
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deram com uma paisagem muito diferente da que
esperavam.
Esperavam encontrar uma encosta cinzenta
indo juntar-se ao céu tristonho do outono. Em vez
disso feriu-lhes os olhos o clarão do sol, que
entrava pelo portal como a luz do verão quando se
abre a porta da garagem. As gotas deslizavam
como contas pela relva. Via-se melhor o rosto de
Jill lambuzado de lágrimas. A luz do sol parecia
chegar de um mundo diferente. Mais macia era a
relva. Umas coisas reluziam no céu azul como
jóias ou borboletas gigantescas.
Apesar de esperar por alguma coisa
parecida, Jill sentiu-se amedrontada. Eustáquio
demonstrava o mesmo dizendo com dificuldade:
– Vamos, Jill.
Será que podemos voltar? Não há perigo?
Uma voz gritou lá de trás, cheia de maldade e
escárnio:
– Já sei que você está aí, Jill. Não adianta se
esconder.
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Era a voz de Edite, que não pertencia à
turma da pesada, mas era subserviente e delatora.
– Depressa! – exclamou Eustáquio. –
Segure minha mão.
Antes que ela soubesse bem o que estava
acontecendo, foi puxada para fora dos domínios
do colégio, dos domínios do seu país, dos
domínios do mundo.
A voz de Edite sumiu de repente como se
apaga a voz de um rádio que se desliga. Outro
som dominou os ares. Vinha das coisas que
reluziam no alto: pássaros, para dizer a verdade.
Faziam um barulho de algazarra, que, no entanto,
parecia música, música de vanguarda, de que a
gente não gosta logo. Contudo, apesar da cantoria,
havia, envolvendo tudo, uma espécie de silêncio
profundo. Este, combinado à leveza do ar, levou
Jill a imaginar se não estariam no cume de uma
alta montanha.
Segurando a mão da menina, Eustáquio
avançava. Arregalavam os olhos para todos os
lados. Arvores imensas, mais altas do que cedros,
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erguiam-se à direita e à esquerda, deixando
abertas algumas brechas para a visão. Sempre a
mesma paisagem: relva lisa, pássaros de cor
amarela, com azulados de libélulas, ou plumagem
de arco-íris e sombreados azuis... e o vazio. Era
uma floresta solitária.
Na frente não havia árvores, só o céu azul.
Caminharam sem falar até que Jill ouviu a voz de
Eustáquio:
– Cuidado! – E viu-se empurrada para trás.
Estavam à beira de um precipício.
Jill era uma dessas meninas felizes que
possuem a cabeça boa para grandes alturas. Podia
parar sem tremer à beira de um abismo. Não
gostou, portanto, do puxão de Eustáquio (“como
se eu fosse uma criança”), e soltou a mão do
companheiro. Notando que ele ficou branco,
chegou a sentir desprezo:
– Que é que há? – E, para mostrar que não
tinha medo, parou na beirinha do precipício (uns
palmos além da própria coragem) e olhou para
baixo.
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Só então percebeu que Eustáquio tinha
razão de ficar branco, pois não há em nosso
mundo um penhasco como aquele. Imagine-se à
beira do precipício mais alto que você conheça.
Imagine-se olhando lá para baixo. Pense agora o
seguinte: o abismo não acaba onde devia acabar,
mas continua, mais fundo, mais fundo, vinte vezes
mais fundo. E lá embaixo você nota umas
coisinhas brancas; à primeira vista parecem
carneiros; olhando melhor, descobre que são
nuvens, nuvens imensas e gordas. Enfiando o
olhar entre as nuvens, você consegue afinal ver
um pouquinho do fundo do abismo, mas é tão
distante que se torna impossível afirmar se é feito
de relva, de árvores, de terra ou de água.
Jill ficou olhando de boca aberta. Não deu
um passo para trás por medo do que Eustáquio iria
pensar. Mas – decidiu logo – “que me importa o
que ele vai pensar?” O jeito era afastar-se daquele
abismo e nunca mais zombar de quem tem medo
de altura. Tentou, mas não conseguiu sair do
lugar. As pernas pareciam feitas de massa. Estava
tudo dançando diante de seus olhos.
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– Que está fazendo, Jill ? Caia fora daí, sua
boboca! – gritou Eustáquio. Mas a voz parecia vir
de muito longe. Sentiu que ele procurava agarrá-
la. Jill, no entanto, não tinha mais o domínio dos
braços e das pernas.
Houve um instante de agonia na ponta do
penhasco. O medo e a tontura impediam que ela
soubesse de fato o que estava fazendo, mas de
duas coisas se lembraria a vida toda, e sonharia
com elas: uma, de que se libertara, com um
safanão, das mãos de Eustáquio; outra, de que
Eustáquio, no mesmo instante, tinha perdido o
equilíbrio, precipitando-se, com um grito de
terror, em pleno abismo.
Felizmente não teve tempo de pensar no
que havia feito. Um imenso animal de cores
brilhantes apareceu à beira do precipício. Estava
deitado e (coisa estranha) soprando. Não estava
rugindo ou bufando: simplesmente soprando com
a boca escancarada, como se fosse um aspirador
de pó trabalhando para fora. Jill estava tão perto
da criatura que podia sentir as vibrações no
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próprio corpo. Por pouco não desmaiou. E até
queria desmaiar, mas o desmaio não depende da
nossa vontade. Por fim, lá embaixo, viu um
pontinho escuro afastando-se do penhasco,
flutuando ligeiramente para cima. A medida que
subia, mais se afastava, movendo-se a grande
velocidade, até que Jill acabou por perdê-lo de
vista. Parecia que a criatura ao lado soprava o
pontinho para longe.
Virou-se e olhou. A criatura era um Leão.
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A MISSÃO DE JILL
Sem olhar para Jill, o Leão levantou-se e
deu uma última soprada. Depois, satisfeito com
seu trabalho, voltou-se e entrou lentamente na
floresta.
– Só pode ser um sonho, tem de ser um
sonho – disse Jill para si mesma. – Vou acordar
agorinha mesmo. – Mas não era sonho. – A gente
nunca devia ter atravessado o portão. Duvido que
Eustáquio conheça melhor este lugar do que eu. E,
se conhecia, não tinha nada que me trazer para cá
sem me dizer antes como era. A culpa não é
minha se ele caiu no abismo. Se tivesse me
deixado em paz, não teria acontecido nada. –
Lembrou-se novamente do berro de Eustáquio ao
cair e debulhou-se em lágrimas.
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Chorar funciona mais ou menos enquanto
dura. Porém, mais cedo ou mais tarde, é preciso
parar de chorar e tomar uma decisão. Ao parar,
Jill sentiu uma sede enorme. Havia chorado de
cara contra o chão, mas agora estava sentada. As
aves não cantavam mais. O silêncio seria total,
não fosse um barulhinho insistente que parecia vir
de longe. Ouviu com atenção e teve quase certeza
de que se tratava de água corrente.
Levantou-se e olhou em torno, atenta.
Nenhum sinal do Leão, mas, com tantas árvores
por ali, podia ser que ele estivesse por perto. A
sede era intolerável e ela juntou coragem para
localizar a água. Na ponta dos pés, escondendo-se
de árvore em árvore, espreitando por todos os
cantos, avançou. A floresta estava tão quieta que
não era difícil descobrir de onde vinha o ruído.
Numa clareira corria o riacho, brilhante como um
espelho. Apesar da visão da água multiplicar sua
sede, não correu logo para beber. Ficou paradinha,
como se fosse de pedra, boquiaberta. Motivo: o
Leão estava postado exatamente à beira do riacho,
cabeça erguida, patas dianteiras esticadas. Não
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havia dúvida de que a vira, pois olhou dentro dos
olhos dela por um instante e virou-se para o lado,
como se a conhecesse há muito tempo e não
precisasse dar-lhe muita atenção.
Ela pensou: “Se eu correr, ele me pega; se
eu ficar, ele me come.”
De qualquer forma, mesmo que tivesse
tentado, não teria saído do lugar. Não tirava os
olhos de cima do Leão. Quanto tempo durou isso
não saberia dizer. Pareciam horas. A sede era tão
forte que chegou a pensar que pouco se importaria
em ser comida pelo animal, desde que desse
tempo de beber um bom gole.
– Se está com sede, beba.
Eram as primeiras palavras que ouvia desde
que Eustáquio falara com ela à beira do abismo.
Por um segundo procurou descobrir quem falara.
A voz voltou:
– Se está com sede, venha e beba.
Lembrou-se naturalmente do que dissera
Eustáquio sobre os animais falantes daquele outro
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mundo e percebeu que era a voz do Leão. Não se
parecia com a voz humana: era mais profunda,
mais selvagem, mais forte. Não ficou mais
amedrontada do que antes, mas ficou amedrontada
de um modo diferente.
– Não está com sede? – perguntou o Leão.
– Estou morrendo de sede.
– Então, beba.
– Será que eu posso... você podia... podia
arredar um pouquinho para lá enquanto eu mato a
sede?
A resposta do Leão não passou de um olhar
e um rosnado baixo. Era (Jill se deu conta disso ao
defrontar o corpanzil) como pedir a uma
montanha que saísse do seu caminho.
O delicioso murmúrio do riacho era de
enlouquecer.
– Você promete não fazer... nada comigo...
se eu for?
– Não prometo nada – respondeu o Leão.
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A sede era tão cruel que Jill deu um passo
sem querer.
– Você come meninas? – perguntou ela.
– Já devorei meninos e meninas, homens e
mulheres, reis e imperadores, cidades e reinos –
respondeu o Leão, sem orgulho, sem remorso,
sem raiva, com a maior naturalidade.
– Perdi a coragem – suspirou Jill.
– Então vai morrer de sede.
– Oh, que coisa mais horrível! – disse Jill
dando um passo à frente. – Acho que vou ver se
encontro outro riacho.
– Não há outro – disse o Leão.
Jamais passou pela cabeça de Jill duvidar
do Leão; bastava olhar para a gravidade de sua
expressão. De repente, tomou uma resolução. Foi
a coisa mais difícil que fez na vida, mas caminhou
até o riacho, ajoelhou-se e começou a apanhar
água na concha da mão. A água mais fresca e pura
que já havia bebido. E não era preciso beber
muito para matar a sede. Antes de beber, havia
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imaginado sair em disparada logo depois de
saciada. Percebia agora que seria a coisa mais
perigosa. Ergueu-se de lábios ainda molhados.
– Venha cá – disse o Leão.
E ela foi. Estava agora quase entre as patas
dianteiras do Leão, olhando-o diretamente nos
olhos.
Mas não agüentou isso por muito tempo e
desviou o olhar.
– Criança humana – disse o Leão –, onde
está o menino?
– Caiu no abismo – respondeu Jill,
acrescentando: –...Senhor. – Não sabia como
tratá-lo e seria uma desfeita não lhe dar
tratamento algum.
– Como foi isso?
– Ele estava querendo me segurar, para eu
não cair.
– Por que você chegou tão perto do abismo,
criança humana?
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– Eu queria fazer bonito, senhor.
– Gostei da resposta, criança. Não faça
mais isso. – Pela primeira vez a face do Leão
mostrou-se um pouco menos severa. – O menino
está bem. Foi soprado para Nárnia. A sua missão é
que ficou mais difícil.
– Qual missão, por favor?
– A missão que me fez chamá-los aqui, fora
do mundo de vocês.
Jill ficou intrigadíssima, achando que o
Leão a tomava por outra pessoa. Não tinha
coragem de revelar isso, apesar de sentir que
podia dar numa confusão medonha.
– Diga o que está pensando, criança.
– Eu estava imaginando... quer dizer... não
está havendo um engano? Acontece que ninguém
chamou a gente aqui. Nós é que pedimos para vir.
Eustáquio disse que devíamos chamar... alguém...
não me lembro do nome... e que esse alguém
talvez nos deixasse entrar. Foi o que fizemos, e
então encontramos a porta aberta.
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– Não teriam chamado por mim se eu não
houvesse chamado por vocês.
– Então o senhor é o Alguém? – perguntou
Jill.
– Sim. Mas ouça qual é a sua missão.
Longe daqui é o reino de Nárnia. Ali vive um
velho rei, que anda em aflição por não deixar um
filho, um príncipe de seu próprio sangue, que
venha a ser rei depois dele. Não tem herdeiro, pois
seu único filho foi seqüestrado há muitos anos.
Ninguém em Nárnia sabe onde está esse príncipe
ou mesmo se continua vivo. Mas está vivo.
Ordeno que vocês procurem o príncipe até
encontrá-lo, para trazê-lo de volta, ou até
morrerem, ou até voltarem a seu próprio mundo.
– Mas como? – perguntou Jill.
– Vou lhe dizer. Estes são os sinais pelos
quais hei de guiá-la na sua busca. Primeiro: logo
que Eustáquio colocar os pés em Nárnia,
encontrará um velho e grande amigo. Deve
cumprimentar logo esse amigo; se o fizer, vocês
dois terão uma grande ajuda. Segundo: vocês
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devem viajar para longe de Nárnia, para o Norte,
até encontrarem a cidade em ruínas dos gigantes.
Terceiro: encontrarão uma inscrição numa pedra
da cidade em ruínas, devendo proceder como
ordena a inscrição. Quarto: reconhecerão o
príncipe perdido (caso o encontrem), pois será a
primeira pessoa em toda a viagem a pedir alguma
coisa em meu nome, em nome de Aslam.
O Leão parecia ter acabado de falar. Jill
achou que devia dizer alguma coisa:
– Certo, muito obrigada.
– Criança – disse o Leão, com a voz mais
amável do que antes –, talvez não esteja tão certo
quanto você imagina. Seu primeiro cuidado é
lembrar-se de tudo. Repita para mim, pela ordem,
os quatro sinais.
Jill não se saiu muito bem. O Leão a
corrigiu e fez com que repetisse outra vez, e mais
outra, e mais outra, até que a menina decorou tudo
direitinho. Mostrava-se pacientíssimo, e Jill teve a
coragem de perguntar:
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– Por favor, como é que eu vou para
Nárnia?
– De sopro. Vou soprá-la para o Oeste,
como soprei Eustáquio.
– Será que eu chego a tempo de contar-lhe
o primeiro sinal? Aliás, acho que isso não tem
importância. Se ele encontrar um velho amigo,
fatalmente irá falar com ele... é ou não é?
– Você não tem tempo a perder. Tem de ir
imediatamente. Venha. Caminhe até a beira do
abismo.
Se não havia tempo a perder, a culpa era de
Jill, e ela sabia disso. “Se eu não tivesse bancado
a boba, Eustáquio e eu teríamos ido juntos, e ele
também teria ouvido as instruções todas.”
Era assustador chegar à beira do abismo,
principalmente porque o Leão não ia na frente,
mas ao lado dela – e sem fazer o menor ruído com
as patas.
Já perto do precipício, ouviu uma voz atrás
de si:
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– Fique quieta. Daqui a pouco soprarei.
Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao
amanhecer, antes de dormir e, caso acordar,
durante a noite. Por mais estranhos que sejam os
acontecimentos, de maneira alguma deixe de
obedecer aos sinais. Em segundo lugar, aviso-a de
que falei, aqui na montanha, com a maior clareza:
não o farei sempre em Nárnia. O ar aqui na
montanha é limpo, e aqui o seu espírito também é
limpo; em Nárnia, o ar será mais pesado. Cuidado
para que o ar pesado não confunda seu espírito.
Os sinais que aprendeu aqui surgirão sob formas
bem diferentes ao depará-los lá. É
importantíssimo conhecê-los de cor e desconfiar
das aparências. Lembre-se dos sinais, acredite nos
sinais. Nada mais importa. Agora, Filha de Eva,
adeus...
A voz tornara-se mais branda ao fim da fala
e agora sumira de todo. Jill olhou em torno. Para
seu espanto viu o penhasco mais de cem metros lá
atrás; o Leão era um pontinho dourado. Ela havia
cerrado os dentes e fechado os punhos, esperando
uma terrível lufada; mas o sopro do Leão foi tão
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delicado que ela nem chegou a notar o momento
em que deixou a terra. Sentiu medo só por um
instante de medo. Era tão longe o mundo lá
embaixo, que não podia ter com ele a menor
relação. Flutuar na respiração do Leão era uma
delícia. Podia deslizar de frente ou de costas,
revirar-se à vontade, como se fosse dentro d’água.
Não havia vento e o ar era cálido. Sem barulho e
sem turbulência, era uma sensação bem diferente
do que a de viajar de avião. Parecia mais com uma
viagem de balão, até melhor, mas Jill nunca
entrara num balão.
Ao olhar para trás pôde avaliar a altura da
montanha onde estivera. Perguntava a si mesma
como uma montanha tão colossal não estava
coberta de neve e gelo. Essas coisas deviam ser
diferentes naquele mundo. Olhando para baixo,
não podia distinguir se estava flutuando sobre o
mar ou sobre a terra, tão alto estava.
– Nossa! Os sinais! – disse subitamente. –
Melhor repeti-los.
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Passou por um estado de pânico durante
dois segundos, mas ainda era capaz de dizer os
sinais com perfeição. Estava tudo bem, pensou,
recostando-se no ar como se fosse um sofá e
dando um suspiro de satisfação.
– Bem – disse Jill para si mesma algumas
horas mais tarde –, devo confessar que dormi.
Dormi no ar, veja só! Será que isso já aconteceu a
alguém no mundo? Acho que não. Ora bolas, vai
ver que o Eustáquio também dormiu! Nessa
mesma rota, só um pouquinho antes de mim. Vou
dar uma espiada lá embaixo.
Parecia uma vasta planície azul-escura. Não
se percebiam montes, mas havia coisas
esbranquiçadas que se moviam devagar. “Devem
ser nuvens”, pensou, “mas muito maiores que as
do abismo; são maiores porque estão mais perto:
devo estar indo para baixo. Que sol chato!”
O sol, que estava lá no alto no começo da
viagem, feria-lhe os olhos, baixando à sua frente.
Eustáquio tinha razão quando disse que Jill (não
sei se as meninas em geral) não era muito
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entendida em pontos cardeais. Se o fosse, ao
sentir o sol nos olhos deveria saber que viajava na
direção oeste.
Olhando a planície azul lá embaixo, notou
que existiam aqui e ali uns pontos bem brilhantes,
mais pálidos. “É o mar”, pensou, “os pontos
devem ser ilhas.” E eram. Teria sentido inveja se
soubesse que Eustáquio já havia apreciado
aquelas ilhas de um navio, e até percorrido uma
ou outra. Mais tarde, começou a observar
pequenas rugas na planura azul; rugas que
deveriam ser ondas imensas se estivesse entre
elas. Juntando-se ao horizonte, estendia-se uma
linha cada vez mais espessa e acentuada. Era o
primeiro sinal da grande velocidade em que
viajava. A linha que se acentuava, ela sabia, só
podia ser a terra.
Súbito, da esquerda (pois o vento era sul),
uma grande nuvem branca veio a seu encontro, na
mesma altura em que ela se achava. Antes de
saber onde se encontrava, mergulhou naquele
nevoeiro frio e úmido. Por um instante nem
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conseguiu respirar. Foi piscando que encontrou,
do outro lado, a luz do sol.
Suas roupas estavam molhadas: vestia um
casaco esporte, suéter, saia-calça, meias e bonitos
sapatos. Foi descendo, descendo, e notou com
surpresa alguma coisa pela qual já devia estar
esperando: ruídos. Até aquele instante viajara em
absoluto silêncio. Agora, pela primeira vez, ouvia
o marulhar das ondas e o grito das gaivotas.
Sentia também o cheiro do mar. A terra estava
cada vez mais próxima, com montanhas à frente e
à esquerda. Eram baías e cabos, campos, matas e
praias. O espraiar das ondas, cada vez mais
intenso, abafava os demais alaridos do mar.
A terra surgiu bem à frente – estava
chegando à desembocadura de um rio. Voava a
poucos metros da água. A crista de uma onda
golpeou-lhe os pés e a espuma molhou seu corpo.
Já perdia velocidade. Deslizava na direção da
margem esquerda do rio.
Havia tanta coisa para ver que era
impossível observar tudo: um lindo relvado, um
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navio tão brilhante que parecia uma jóia imensa,
torres e ameias, bandeiras agitando-se ao vento,
uma multidão, roupas festivas, armaduras, ouro,
espadas, música. Mas viu tudo embaralhado. A
primeira coisa que percebeu com nitidez foi que
estava em pé, sob ramos de árvores, à beira do rio;
a poucos metros, achava-se Eustáquio.
Seu primeiro pensamento foi: “Como
Eustáquio está sujo e desarrumado!” Depois:
“Como estou molhada!”
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3
A VIAGEM DO REI
O que fazia Eustáquio parecer tão
encardido e desalinhado (e Jill também, caso se
visse no espelho) era o esplendor do ambiente.
De uma brecha da montanha, a luz do sol
poente jorrava sobre a relva lisa. Do outro lado da
relva, com seus cata-ventos cintilando, erguia-se
um castelo de numerosas torres, o mais belo que
Jill já havia visto. Perto ficava um cais de
mármore branco; amarrado a este, um navio alto,
com o castelo de proa e a popa empinados, todo
dourado e carmesim, com uma grande bandeira no
mastro central e flâmulas no tombadilho; escudos
prateados enfileiravam-se no cais. A prancha de
embarque fora colocada e um velho preparava-se
para subir a bordo. Usava luxuoso manto
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escarlate, deixando entrever a malha de prata.
Tinha na cabeça uma pequena coroa de ouro. A
barba cor de lã quase batia-lhe na cintura.
Mantinha-se firme, apoiando a mão no ombro de
um senhor ricamente vestido, mais novo que ele.
Muito velho e frágil, parecia que uma lufada de
vento poderia carregá-lo, e trazia os olhos
marejados.
Na frente do rei – que se virará para falar ao
povo antes de embarcar –, havia uma poltrona
sobre rodas, atrelada a um burrinho pouco maior
que um cachorro. Sentado na poltrona estava um
anãozinho gordo, vestido com o mesmo luxo do
rei. Por ser muito gordinho e estar refestelado
entre almofadas, parecia uma trouxa de peles, de
seda e veludo. Era tão velho quanto o rei, porém
mais saudável e animado, de olhos espertos. A
cabeça, sem um fio de cabelo, lembrava uma
grande bola de bilhar banhada pelo crepúsculo.
Mais atrás, os nobres postavam-se num
semi-círculo, com roupagens e armaduras dignas
de se ver. Lembravam mais um canteiro de flores
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do que gente. Mas o que fez Jill abrir mesmo a
boca e arregalar os olhos foi o próprio povo, se é
que povo é a palavra certa. Pois só um em cinco
era gente humana. Os outros eram criaturas que
não vemos em nosso mundo: faunos, sátiros,
centauros. Jill havia visto aquelas figuras em
livros. E havia também anões, e uma porção de
animais que ela conhecia bem: ursos, castores,
toupeiras, leopardos, camundongos, numerosos
pássaros. Pareciam, entretanto, algo diferentes dos
animais que conhecemos por esses nomes. Alguns
eram bem maiores; os camundongos, por
exemplo, erguiam-se nas patinhas traseiras e
mediam meio metro de altura. Mas não só por isso
pareciam diferentes. Pela expressão de suas caras,
via-se que sabiam falar e pensar como nós.
“Que coisa!”, pensou Jill. “Quer dizer que é
tudo verdade! Mas... será que são amigos?”
Acabara de observar nos arredores uns dois
gigantes e outras criaturas que não sabia o que
eram.
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Foi quando se lembrou de Aslam e dos
sinais.
– Eustáquio! – cochichou, agarrando-lhe o
braço. – Eustáquio, rápido! Está vendo algum
conhecido seu por aí?
– Ah, você de novo? – disse Eustáquio,
com desagrado (tinha certa razão para isso). –
Será que não pode ficar quieta? Quero escutar.
– Deixe de ser pateta, Eustáquio. Não há
tempo a perder. Não está reconhecendo aqui
algum velho amigo? Porque você tem de ir e falar
com ele imediatamente!
– Não estou entendendo nada.
– Foi Aslam... o Leão... que mandou – disse
Jill, aflita. – Estive com ele.
– Ah, esteve com ele? Que é que ele disse?
– Disse que a primeira pessoa que você ia
ver em Nárnia era um velho amigo, e devia falar
com ele imediatamente.
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– Acontece que não há nenhum conhecido
meu aqui; aliás, nem sei ainda se isto aqui é
Nárnia.
– Pensei que você já tinha estado aqui
antes.
– Então pensou errado.
– Pois fique sabendo que você me disse...
– Pelo amor de Deus, vamos ouvir o que
eles estão dizendo.
O rei falava com o anão, mas Jill não podia
ouvir o que dizia. Pelo jeito, o anão não
respondeu, apesar de sacudir a cabeça várias
vezes. O rei ergueu a voz e dirigiu-se a toda a
multidão; mas sua voz era tão velha e trêmula que
ela entendeu pouquíssimo – e ainda por cima ele
falava de pessoas e lugares desconhecidos.
Terminado o discurso, o rei inclinou-se e beijou o
anão nas duas faces, reergueu-se, levantou a mão
direita como se abençoasse o povo, e subiu para o
navio com passadas incertas. Os nobres
demonstravam grande emoção. Agitavam-se
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lenços e ouviam-se soluços por todos os lados. A
prancha foi recolhida, trombetas soaram na popa,
e o navio afastou-se do cais. (Estava sendo
rebocado por um barco de remos, mas Jill não o
viu.)
– Bem, agora... – disse Eustáquio, mas não
prosseguiu, pois naquele instante uma coisa
branca – Jill imaginou que fosse um papagaio de
papel – veio planando e pousou aos pés do
menino. Era uma coruja branca, enorme, da altura
de um anão de bom tamanho.
A coruja piscou os olhos, espreitando como
se fosse míope, a cabeça meio de lado. A voz era
como um pio suave:
– Turru, turru! Quem são vocês?
– Meu nome é Eustáquio, esta é Jill.
Poderia ter a gentileza de dizer onde estamos?
– No reino de Nárnia, no castelo real de
Cair Paravel.
– Foi o rei que embarcou agora mesmo?
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– Turru, turru! – confirmou a coruja,
balançando a cabeça com tristeza. – Mas quem
são vocês? Há alguma coisa meio encantada em
vocês. Eu os vi chegando: voando. Estavam todos
tão entretidos com a partida do rei que ninguém
viu. Só eu. Eu vi.
– Fomos enviados por Aslam – falou
Eustáquio, em voz baixa.
– Turru, turru! – exclamou a coruja,
ruflando as penas. – Isso é demais para mim, e tão
cedo! Minha cabeça não é muito boa antes do
anoitecer.
– Fomos enviados para procurar o príncipe
perdido – informou Jill, que já se achava ansiosa
para entrar na conversa.
– Só estou sabendo disso agora – falou
Eustáquio. – Que príncipe?
– É melhor que vocês venham logo falar
com o lorde regente – disse a coruja. – É aquele
lá, sentado na carruagem com o burrinho; é
Trumpkin, o anão.
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A ave abriu caminho, murmurando para si
mesma: “Turru, turru! Não consigo pensar com
clareza. É cedo demais!”
– Qual é o nome do rei? – perguntou
Eustáquio.
– Caspian X – respondeu a coruja.
Jill não entendeu por que Eustáquio levou
um grande susto e ficou como se se sentisse mal.
Não houve tempo de fazer perguntas; já estavam
perto do anão, que recolhia as rédeas, pronto para
retornar ao castelo. Os nobres, dispersos, seguiam
em grupos na mesma direção, como depois de um
jogo de futebol.
– Turru! Alô! Lorde regente! – chamou a
coruja, abaixando-se um pouco e levando o bico
para perto do ouvido do anão.
– Ei? Que é que há? – perguntou o anão.
– Dois estrangeiros, senhor – respondeu a
coruja.
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– Escoteiros!? Que história é essa? –
estranhou o anão. – Só estou vendo dois filhotes
humanos. Que desejam?
– Meu nome é Jill – disse a menina,
adiantando-se, doida para explicar a importante
missão que os trazia.
– O nome da menina é Jill – disse a coruja,
na voz mais alta possível.
– Que história é essa? Ardil? Quem fez o
ardil?
– Não, meu senhor, não há nenhum ardil. É
uma menina... O nome dela é Jill.
– Fale alto – disse o anão. – Não fique aí
zumbindo no meu ouvido. Quem fez o ardil?
– NINGUÉM – berrou a coruja.
– Calma, calma; não é preciso berrar. Não
sou tão surdo assim. Mas por que você vem me
dizer que ninguém fez um ardil?
– Melhor dizer para ele que o meu nome é
Eustáquio – disse o menino.
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– Este, senhor, é Eustáquio.
– Batráquio? – perguntou o anão, irritado. –
E isso é motivo para trazê-lo aqui? Hein?
– Não é batráquio – disse a coruja –, é
EUSTÁQUIO.
– É eu ou é ele? Não estou entendendo
coisa nenhuma. Vou dizer-lhe uma coisa,
Plumalume... – era o nome da coruja. – Quando
eu era moço, aqui neste país os animais falantes
sabiam falar de verdade. Não era esse blá-blá-blá
confuso. Isso não era permitido, entendeu? Urnus,
traga minha corneta acústica.
O pequeno fauno, que permanecera o
tempo todo quietinho ao lado do anão, estendeulhe
uma corneta de prata. Parecia aquele
instrumento musical chamado serpentão, pois o
tubo tinha de ser enrolado no pescoço do anão. A
coruja, ou Plumalume, cochichou para as
crianças:
– Minha cabeça agora está ficando melhor.
Não digam nada a respeito do príncipe
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desaparecido. Explicarei para ele depois. Agora ia
dar tudo errado, tudo, tudo, turru, turru!
– Bem – disse o anão –, se tem alguma
coisa razoável para falar, Plumalume, pode
começar. Respire fundo e procure não falar
depressa demais.
Com o auxílio das crianças, e a despeito de
um acesso de tosse do anão, Plumalume explicou
que os estrangeiros haviam sido enviados por
Aslam, em visita ao reino de Nárnia. O anão logo
olhou para eles com uma nova expressão.
– Enviados pelo próprio Leão? – disse ele.
– E vieram... hum... daquele Outro Lugar... além
do Fim do Mundo... não é?
– Exatamente, meu senhor – berrou
Eustáquio na corneta.
– Filho de Adão e Filha de Eva, é ou não é?
Mas como no Colégio Experimental não se
falava em Adão e Eva, Jill e Eustáquio não
souberam o que responder. O anão, entretanto,
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não parecia ter notado o pormenor. Segurando as
mãos de ambos, disse:
– Muito bem, meus caros: é uma alegria tê-
los aqui. Se o meu bom rei, bom e infeliz, não
tivesse acabado de partir para as Sete Ilhas, seria
dele a satisfação em recebê-los. A presença de
vocês teria devolvido a mocidade ao meu senhor...
pelo menos por um instante, um pequeno instante.
Bem, já está passando da hora do jantar. Vocês
me dirão o que desejam na reunião do Conselho
amanhã de manhã. Plumalume, providencie
aposentos e roupas próprias e mais o que for
preciso para os nossos convidados de honra. Além
disso, Plumalume, chegue aqui...
O anão colocou a boca perto do ouvido da
coruja, pretendendo falar em segredo; mas, como
acontece com certos surdos, não dominava o
volume de sua voz, e as crianças ouviram o que
disse:
– Providencie também um banho
caprichado para eles.
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Depois disso, o anão tocou o burrinho na
direção do castelo; também muito gordo, o animal
partiu numa pisada que ficava entre o trote e o
bamboleio. O fauno, a coruja e as crianças
seguiram um pouco mais devagar. O sol
escondera-se e o ar começava a ficar frio.
Atravessaram a relva e um pomar na
direção do portão norte de Cair Paravel, que
estava aberto. Dentro estendia-se um pátio
gramado. Viam-se luzes das janelas do grande
salão à direita e de outras salas à frente. Uma
jovem muito simpática foi chamada para cuidar de
Jill. Não era muito mais alta do que ela própria e
bem mais magra, embora fosse totalmente
desenvolvida. Conduziu a menina para um quarto
redondo numa das torres, onde havia uma
banheira embutida no chão, madeiras perfumadas
queimando na lareira e um candeeiro pendurado
da abóbada do teto por uma corrente de prata. A
janela dava para oeste do estranho reino de
Nárnia, e Jill ainda viu reflexos do sol poente
fulgindo atrás de montanhas distantes. Ansiava
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por novas aventuras, sentindo que mal tinha
começado.
Depois de tomar banho, pentear os cabelos
e vestir as roupas que lhe foram separadas (que
além de bonitas eram perfumadas e faziam
barulhinhos gostosos quando ela se
movimentava), Jill teria voltado à janela
deslumbrante, mas foi interrompida por uma
pancada na porta.
– Entre. – E quem entrou foi Eustáquio,
muito bem lavado e magnificamente vestido com
os trajes de Nárnia (dos quais, aliás, parecia não
gostar muito).
Jogando-se numa cadeira, disse, meio
zangado:
– Até que enfim! Estou há um tempão
procurando você.
– Bem, agora já me achou. Não é
formidável, Eustáquio? Nem dá para falar! – Por
um instante ela havia esquecido os sinais e o
príncipe desaparecido.
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– Ah, acha isso? Pois acho que o melhor era
a gente não ter vindo – replicou o menino.
– Mas por quê?
– Não agüento ver o rei Caspian assim
velho e decrépito. É... é apavorante.
– Mas por que você sofre com isso?
– Você não pode entender. Não pode, é
claro. Esqueci de contar-lhe que este mundo tem
um tempo diferente do nosso.
– Troque isso em miúdos.
– O tempo que a gente passa aqui não leva
tempo em nosso mundo. Entendeu? Vou explicar
melhor: mesmo que fiquemos aqui durante muito
tempo, quando voltarmos para o colégio será o
mesmo momento em que saímos de lá...
– Que falta de graça!
– Não amole. E quando você estiver em
casa... em nosso mundo... não saberá quanto
tempo está passando aqui. Pode ser uma pá de
anos em Nárnia e só um ano na Inglaterra. Os
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meus primos explicaram tudo para mim, mas
banquei o bobo e me esqueci. Parece que
passaram setenta anos em Nárnia depois que saí
daqui. Está entendendo agora? É pavoroso voltar
e descobrir que Caspian é um velhinho.
– Ah, quer dizer que o rei era amigo seu! –
disse Jill, fulminada por um pensamento horrível.
– Devo confessar que era – respondeu
Eustáquio, infeliz. – Amigo até demais. Da última
vez, ele era só um pouquinho mais velho do que
eu. Agora encontro aquele velhinho de barba
branca e não me sai da cabeça a manhã em que
capturamos as Ilhas Solitárias. Ou a luta com a
Serpente do Mar. Oh, é de doer! É pior do que se
ele estivesse morto.
– Chega! É ainda muito pior do que você
imagina! – Jill mostrava toda a sua impaciência. –
O caso é que já perdemos o primeiro sinal.
Eustáquio naturalmente não podia entender.
Então Jill contou-lhe toda a conversa com Aslam,
os quatro sinais, a missão de procurar o príncipe.
E concluiu:
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– Agora está entendendo? Você viu um
velho amigo, exatamente como Aslam disse;
devia ter ido falar com ele imediatamente. Ora,
como não foi, tudo está dando errado, desde o
início.
– Mas como eu podia saber?
– Muito simples: se tivesse prestado
atenção quando tentei falar, estaria tudo certinho.
– Ah, é claro! E se você não tivesse
bancado a idiota na beira do abismo, quase me
assassinando... É isso mesmo, assassinando!...
também teria dado tudo certinho...
– Foi ele a primeira pessoa que você viu,
não foi? Deve ter chegado horas antes de mim.
Não viu ninguém antes?
– Cheguei apenas um minuto antes de você.
Ele deve tê-la soprado com mais força. Para tirar
o atraso, o seu atraso.
– Deixe de ser bobão, Eustáquio... Ei, o que
é isso?
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Era o sino do castelo tocando para o jantar.
A briga, que prometia ser das boas, foi logo
interrompida, felizmente. Estavam os dois com
excelente apetite.
Jamais haviam visto uma coisa tão
deslumbrante. O próprio Eustáquio, que já
estivera em Nárnia, passara todo aquele tempo no
mar, e não chegara a conhecer o esplendor e a
hospitalidade dos narnianos em seu próprio reino.
As flâmulas pendiam do teto e as iguarias
entravam com o som de trombetas e tímpanos. As
sopas eram de dar água na boca, sem falar nos
peixes fabulosos, nas finas caças, nas aves raras,
nos pastéis, sorvetes, geléias, frutas, nozes, vinhos
e refrescos. O próprio Eustáquio animou-se
admitindo que era um banquete “pra lá de legal”.
Terminada a imensa refeição, um poeta
cego contou uma história chamada O cavalo e seu
menino, que se passava em Nárnia e no reino dos
calormanos, na Idade de Ouro, quando Pedro era
o Grande Rei em Cair Paravel. (Não tenho tempo
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de contá-la no momento, mas é uma história que
vale a pena ouvir.)
Quando subiram para os quartos,
bocejando, Jill falou:
– Aposto que a gente vai dormir feito uma
pedra.
Isso mostra que jamais temos idéia do que
poderá acontecer-nos daqui a pouco.
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4
UMA REUNIÃO DE
CORUJAS
É engraçado: quanto mais uma pessoa está
com sono, mais tempo leva para cair na cama,
especialmente se existe no quarto o conforto de
uma lareira. Jill pensou que, se não se sentasse um
tempinho diante do fogo, seria incapaz até de tirar
a roupa. Sentou-se e não teve mais vontade de
levantar-se, apesar de repetir para si mesma: “Vá
para a cama, menina!” Foi quando se sobressaltou
com um barulhinho na janela.
Ergueu-se, correu as cortinas, vendo a
princípio só a escuridão lá fora. Depois deu um
salto para trás: uma coisa grande lançava-se
contra a janela, golpeando a vidraça. Passou-lhe
pela cabeça uma idéia muito desagradável:
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“Imagine só se existem mariposas gigantes neste
país! Ai!” Mas a coisa voltou e ela teve quase a
certeza de ter visto um bico, e era este bico que
golpeava a vidraça. “E um passarão”, pensou.
“Será uma águia?” Não estava para visitas, nem
mesmo de uma águia, mas abriu a janela e olhou.
No mesmo momento, com um ruído farfalhante, a
criatura pousou no peitoril, enchendo todo o vão
da janela. Era a coruja.
– Quietinha! Turru, turru! Sem barulho –
disse a coruja. – Agora diga-me: é verdade aquilo
que disse?
– Sobre o príncipe? É, é pra valer. – Pois
lembrava-se agora da cara do Leão, do qual quase
se esquecera durante o banquete e a história de O
cavalo e seu menino.
– Ótimo! – disse a coruja. – Então não
podemos perder tempo. Tem de sair logo. Vou
acordar o outro humano. Volto aqui em seguida.
Melhor trocar essas roupas elegantes e vestir coisa
simples para viajar. Não demoro nada. Turru,
turru! – E, sem esperar resposta, partiu.
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Jill, pouco habituada a aventuras, nem
pensou em desconfiar da coruja: a idéia excitante
de uma fuga à meia-noite fez com que esquecesse
o sono. Vestiu o suéter e a saia-calça – havia no
cinto um canivete que poderia ser útil –,
escolhendo também algumas coisas que havia no
quarto. Pegou uma capa, que lhe batia nos joelhos,
um capuz (“pode chover”, pensou), alguns lenços
e um pente. Sentou-se e ficou à espera. Já estava
sentindo sono de novo, quando a coruja voltou
para dizer:
– Estamos prontos.
– Melhor você ir na frente – disse Jill. –
Ainda não conheço todas as passagens aqui.
– Turru! Está pensando que vamos por
dentro do castelo? Nada disso. Tem de montar em
mim. Vamos voando.
– Oh! – exclamou Jill, de boca aberta, não
gostando nada da idéia. – Sou muito pesada para
você.
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– Turru, turru! Não seja boba. Já carreguei
o outro. Vamos. Mas primeiro apague essa luz.
Apagada a luz, a noite ficou menos escura,
meio cinzenta. A coruja postou-se no peitoril, de
bico para fora, e abriu as asas. Jill teve de ajeitarse
sobre o corpo curto e grosso, apertando os
joelhos sob as asas da ave. As penas eram
quentinhas e macias, mas não havia nada em que
se agarrar. Pensou: “Será que Eustáquio gostou do
vôo?”
Com um assustador mergulho no vazio,
ambas deixaram a janela. As asas abanavam perto
das orelhas de Jill, e o ar da noite, meio frio e
úmido, batia-lhe no rosto.
O céu estava encoberto, mas um fulgor
prateado mostrava as nuvens que tapavam a lua.
Os campos embaixo eram cinzentos; as árvores
pareciam negras. O ar abafado era sinal de chuva.
A coruja deu uma volta e o castelo surgiu
na frente dela. Havia poucas janelas iluminadas.
Passaram por cima e cruzaram o rio. O ar ficava
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mais frio. Jill pensou ter visto o reflexo branco da
coruja na água. Logo voavam sobre a floresta.
A coruja abocanhou qualquer coisa que Jill
não podia ver.
– Por favor! Pare de sacudir desse jeito!
Quase caí.
– Mil perdões. Agarrei um morcego. Não
há nada mais alimentício do que um morceguinho
rechonchudo. Quer que eu pegue um para você?
– Muito obrigada – respondeu Jill com um
arrepio.
Voavam agora mais baixo e uma coisa
escura avultava-se diante delas. Jill só teve tempo
de ver que era uma torre, em parte arruinada e
coberta de hera, pois logo em seguida teve de
abaixar a cabeça para não bater no arco de uma
janela cheia de teias de aranha. Estavam num
lugar escuro e bolorento no alto da torre. No
momento em que deslizou de cima da coruja,
adivinhou (como às vezes acontece) que o local
estava repleto. Vozes começaram a falar de todos
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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os cantos: “Turru! Turru!” Repleto, portanto, de
corujas. Foi um certo alívio quando uma voz
muito diferente disse: – É você, Jill ?
– É você, Eustáquio?
– Acho que já estamos todos aqui – disse
Plumalume. – Vamos dar início à sessão.
– Turru, turru! Quem está certo és tu! Aqui
não tem urubu! – disseram várias vozes ao mesmo
tempo.
– Peço a palavra – disse Eustáquio. – Antes
de mais nada quero dizer uma coisa.
– Turru! Quem está certo és tu! – disseram
as corujas.
E Jill para ele:
– Manda brasa. – Acho que os
companheiros todos aqui... as corujas todas aqui
não ignoram que Caspian X, no tempo da
mocidade, navegou para o Extremo Oriente. Bem,
tive a honra de acompanhá-lo nessa viagem, na
companhia ainda de Ripchip, o rato, do fidalgo
Drinian e muitos outros. Sei que parece difícil de
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acreditar, mas as criaturas não envelhecem em
nosso mundo no mesmo ritmo que no seu mundo.
O que pretendo dizer é o seguinte: sou fiel ao rei,
e se esta reunião de corujas tiver qualquer caráter
subversivo, minha presença aqui é um equívoco.
– Turru, turru! Somos todas fiéis ao rei,
como tu!
– Então, por que motivo estamos aqui? –
indagou Eustáquio.
– Muito simples – respondeu Plumalume. –
Dá-se o seguinte: se o lorde regente, o anão
Trumpkin, souber que vocês pretendem procurar o
príncipe desaparecido, não os deixará partir. E há
de mantê-los confinados, sob vigilância.
– Essa não! – exclamou Eustáquio. – Não
vai dizer que Trumpkin é um traidor? Ouvi muito
sobre ele, nos velhos tempos. Caspian... o rei,
digo... tinha nele uma confiança absoluta.
– Mas não é isso – disse uma voz. –
Trumpkin não é um traidor. O que se passa é o
seguinte: mais de trinta dos nossos melhores
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guerreiros – centauros, bons gigantes e tantos
outros – já empreenderam várias viagens em
busca do príncipe. Nem um só voltou! O rei disse,
por fim, que não permitiria que os mais valentes
narnianos fossem aniquilados por causa de seu
filho. Ninguém mais pode ir: é uma proibição
real.
– Tenho certeza de que nos deixará partir –
disse Eustáquio – se souber quem eu fui e quem
me enviou.
– Quem nos enviou – acrescentou Jill.
– Acredito que sim – ponderou Plumalume.
– Mas o rei está ausente; Trumpkin observará a
letra da lei. Trata-se de um anão verdadeiro como
a verdade, mas é surdo como uma porta e... uma
pimentinha. Não conseguirá convencê-lo de que
agora é o tempo adequado para abrir uma exceção
na lei.
– Não se esqueça – observou alguém – de
que ele prestaria atenção ao que disséssemos, pois
somos corujas, e todos sabem como as corujas são
sábias.
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– É, mas agora ele está tão velho que
simplesmente dirá: “Você não passa de um pinto.
Eu me lembro de quando você era ainda um ovo.
Não venha com lições para cima de mim. Ora
bolas!”
A coruja que disse isso imitou tão bem a
voz de Trumpkin, que foi uma gargalhada geral.
As crianças começaram a perceber que os
narnianos olhavam para Trumpkin como alunos
olham para um professor rabugento, do qual todos
sentem medo, mas de quem no fundo todos
gostam.
– Quanto tempo o rei passará fora? –
perguntou Eustáquio.
– Ah, se eu soubesse! – respondeu
Plumalume. – Há rumores de que o próprio Aslam
foi visto nas ilhas (em Terebíntia, acho). O rei
disse que fará tudo para vê-lo antes de morrer, a
fim de aconselhar-se sobre seu sucessor ao trono.
Mas receamos que ele não encontre Aslam em
Terebíntia e continue a viagem até as Sete Ilhas e
as Ilhas Solitárias... e siga em frente. Ele nunca se
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refere ao assunto, mas sabemos todos que jamais
se esqueceu da viagem ao fim do mundo. No
fundo do coração, deseja ir até lá outra vez.
– Assim sendo, é inútil esperar a volta do
rei – disse Jill.
– Inútil! – concordou a coruja. – Oh, o que
fazer? Se ao menos vocês tivessem falado com
ele! Teria arranjado tudo... talvez mandaria um
exército acompanhá-los.
Jill ficou calada, esperando que Eustáquio
tivesse a gentileza de não contar para as corujas
por que motivo isso não acontecera. Ele andou
perto de contar, resmungando em voz baixa:
“Culpa minha é que não foi.” Mas disse em voz
alta:
– Muito bem. Temos de dar um jeito. Mas
há uma coisa que desejo saber: se esta reunião é
leal e acima de qualquer suspeita, por que tem de
ser tão secreta, numa torre em escombros, na
calada da noite?
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– Turru, turru! – piaram diversas corujas. –
E onde haveríamos de fazer a reunião? E não é só
na calada da noite que as pessoas se encontram?
Plumalume interveio:
– Acontece que a maioria das criaturas aqui
em Nárnia têm hábitos pouco naturais. Fazem
coisas durante o dia, em plena luz do sol (oh!),
quando todos deviam estar dormindo. Resultado:
à noite ficam tão cegas e estúpidas que não se
arranca delas uma só palavra. E por isso que as
corujas têm o bom senso de fazer suas reuniões
nas horas noturnas.
– Já vi tudo – disse Eustáquio. – Está bem,
vamos continuar. Conte-nos tudo sobre o príncipe
desaparecido.
Uma velha coruja, e não Plumalume, foi
quem narrou a história.
Há cerca de dez anos, ao que parece,
quando Rilian, filho de Caspian, era muito jovem,
numa manhã de primavera, foi com a mãe a
cavalo para o norte de Nárnia. Levaram consigo
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numerosos escudeiros e damas de companhia.
Não levaram cães, pois não iam caçar, mas
festejar a primavera. À tarde chegaram a uma
clareira onde jorrava a água pura de uma fonte; aí
descansaram, comeram, beberam e riram. Como a
rainha sentisse sono, estenderam-lhe mantos na
relva; o príncipe Rilian e os outros afastaram-se a
fim de não despertá-la com suas risadas e
conversas. Uma grande serpente surgiu da densa
floresta e picou a rainha na mão. Ao ouvir o grito
de dor, todos correram até ela. Rilian, espada em
punho, partiu no encalço do animal, que era
grande, reluzente e verde como veneno. Mas a
serpente deslizou para dentro das moitas espessas
e desapareceu. Ele voltou para perto da mãe,
encontrando todos aflitos em torno dela. Era tarde
demais.
Rilian, ao vê-la, compreendeu que nenhum
médico do mundo poderia fazer qualquer coisa.
Enquanto lhe restava ainda um pequeno hausto de
vida, a rainha tentou dizer-lhe algo. Mas, incapaz
de articular com clareza, morreu sem transmitir
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sua última mensagem. Tudo não durou mais que
dez minutos.
A rainha morta foi transportada para Cair
Pa-ravel e pranteada dolorosamente pelo filho,
pelo rei e por todo o reino de Nárnia. Fora uma
grande dama, cheia de sabedoria, de graça e
alegria. O rei Caspian trouxera a noiva do
Extremo Oriente. Diziam que corria em suas veias
o sangue da estrelas.
O príncipe sofreu terrivelmente e, a partir
de então, estava sempre a percorrer a cavalo as
fronteiras do Norte, à caça da venenosa serpente.
Ninguém dava grande atenção a isso, apesar de o
príncipe voltar extenuado e agitado de suas
peregrinações. Um mês depois da morte de sua
mãe, entretanto, alguns passaram a notar certa
mudança nele. Trazia nos olhos uma expressão de
quem tivera visões; e, embora passasse todo o dia
fora, seu cavalo não demonstrava se ressentir das
duras caminhadas.
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Seu maior amigo, entre os velhos fidalgos,
era Drinian, que fora capitão do navio de seu pai
na grande viagem para o Oriente.
Uma noite Drinian disse para o príncipe:
– Vossa Alteza deve cessar de caçar a
serpente. Não há vingança em destruir um bruto
irracional. É desperdício de energia.
O príncipe respondeu:
– Drinian, nesta última semana quase me
esqueci por completo da serpente.
Drinian quis saber qual era, então, o motivo
que continuava a atrair o príncipe às matas do
Norte. E ele respondeu:
– Vi nas matas do Norte a criatura mais
bela que jamais existiu.
– Meu bom príncipe – replicou Drinian –,
permita que amanhã eu o acompanhe, para que
também possa ver a bela criatura.
– Com grande prazer – concordou Rilian.
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No dia seguinte, selaram os cavalos e
partiram a galope para as matas, apeando na
mesma clareira na qual a rainha encontrara a
morte. Drinian estranhou que, dentre todos os
lugares, o príncipe escolhesse aquele. Ali ficaram
até o meio-dia, quando Drinian viu a mais bela
criatura que jamais existiu. Estava ao pé da fonte
e nada disse, mas fez um sinal para o príncipe,
como se pedisse que se aproximasse. Era alta,
viçosa, coberta por uma veste verde como veneno.
O príncipe olhava para ela como se estivesse fora
de si. Subitamente, no entanto, a dama
desapareceu, sem que Drinian soubesse como.
Ambos voltaram para Cair Paravel.
Drinian estava convencido de que aquela
mulher fulgurante era maléfica. Pensou muito se
devia ou não contar a aventura para o rei, pois não
queria bancar o intrigante. Mais tarde arrependeuse
muito de ter silenciado o episódio, porque, no
dia seguinte, o príncipe Rilian partiu sozinho e
não voltou. Nunca mais foi visto em Nárnia, nem
nas terras vizinhas. O cavalo e o manto também
não foram encontrados. Penando na sua amargura,
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Drinian procurou o rei e disse-lhe: “Senhor, mateme
logo como grande traidor; pelo meu silêncio,
causei a destruição de seu filho.” E contou-lhe
tudo. Com um machete de guerra, Caspian
precipitou-se sobre ele para matá-lo; Drinian
esperou impassível o golpe mortal. Subitamente,
porém, o rei lançou fora o machete e bradou: “Já
perdi minha rainha e meu filho; devo também
perder o meu amigo?” Caiu nos braços de Drinian
e ambos derramaram lágrimas de dor e verdadeira
amizade.
E essa a história de Rilian. E quando a
coruja terminou de contá-la, Jill foi logo dizendo:
– Aposto que a serpente e a mulher eram a
mesma pessoa.
– Turru, turru! – concordaram as corujas.
– Mas não acreditamos que haja
assassinado o príncipe – disse Plumalume –, pois
não se encontraram ossos...
– Sei disso – falou Eustáquio –, pois Aslam
contou para Jill que ele está vivo em algum lugar.
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– Isso é até pior – disse a mais velha das
corujas. – Significa que ela dispõe do príncipe e
trama algum plano terrível contra Nárnia. Há
muito, muito tempo, no princípio de tudo, uma
feiticeira branca, vinda do Norte, condenou nosso
reino à neve e ao gelo durante cem anos. Essa
outra deve ser da mesma laia.
– Muito bem – disse Eustáquio. – Jill e eu
temos de encontrar o príncipe. Conto com a ajuda
de vocês?
– E vocês sabem por onde começar?
– Sabemos que temos de tomar a direção
norte. E sabemos que devemos atingir a cidade em
ruínas dos gigantes.
Foi um turru-turru-turru por todos os
cantos. As corujas começaram a falar ao mesmo
tempo. Sentiam muito, mas não podiam
acompanhar as crianças: “Vocês viajam de dia e
nós viajamos de noite. Não dá pé, não dá pé.”
Uma coruja chegou a dizer que, mesmo ali
na torre, já não estava tão escuro como no
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princípio. A reunião prolongara-se por muito
tempo. Ao que parece, a mera menção de uma
viagem à cidade em ruínas dos gigantes havia
arrefecido o entusiasmo das aves. Mas Plumalume
interveio:
– Se eles querem ir nessa direção... pela
charneca de Ettin... devemos levá-los até um
paulama. São as únicas criaturas que poderão
ajudá-los de fato.
– Turru, turru! Quem está certo és tu!
– Então, vamos – disse Plumalume. – Eu
levo um. Quem leva o outro? Tem de ser hoje à
noite.
– Eu levo: até a terra dos paulamas! – falou
outra coruja.
– Está pronta? – perguntou Plumalume para
Jill.
– Acho que Jill caiu no sono – disse
Eustáquio.
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5
BREJEIRO
Jill estava mesmo dormindo, depois de ter
bocejado o tempo todo durante a reunião. Não
gostou nem um pouco de ser acordada e de se ver
num campanário empoeirado e escuro, cheio de
corujas. Gostou ainda menos quando ouviu que
deviam partir para algum lugar que não parecia
ser a cama – nas costas da coruja.
– Ora, vamos, Jill – disse Eustáquio. – É
mais uma aventura, afinal de contas.
– Já estou cheia de aventuras – respondeu a
menina, zangada.
Mas acabou subindo em Plumalume, e o
vento frio da noite deixou-a totalmente desperta
(por algum tempo). A lua sumira e não havia
estrelas. Muito atrás, Jill conseguiu distinguir uma
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janela acesa, sem dúvida de uma das torres de
Cair Paravel. Isso lhe deu saudades daquele
quarto maravilhoso. Colocou as mãos sob a capa,
aconchegando-se. Eustáquio, a uma certa
distância, conversava com a sua coruja. “Nem
parece cansado”, pensou Jill, sem saber que o
clima de Nárnia devolvia ao menino a força que
adquirira quando navegara com o rei Caspian
pelos mares orientais.
Jill tinha de dar beliscões em si mesma para
manter-se acordada, temendo escorregar e cair do
dorso de Plumalume. Quando as corujas chegaram
ao fim da viagem, ela pulou para o chão firme.
Soprava um vento danado de frio. Não se via uma
árvore.
– Turru! Turru! – chamava Plumalume. –
Acorde, Brejeiro, rápido. É da parte do Leão.
Por um longo tempo não houve resposta.
Depois, ao longe, surgiu uma luzinha, que
começou a aproximar-se. E uma voz:
– Olá, corujas! O que há? Morreu o rei? Há
inimigo em Nárnia? Enchente? Ou dragões?
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A luz vinha de uma lanterna, mas Jill podia
distinguir muito pouco da pessoa que a segurava.
Parecia alguém feito só de pernas e braços. As
corujas conversavam com ele, mas Jill estava
cansada demais para prestar atenção. Tentou
reanimar-se um pouquinho quando percebeu que
se despediam dela. Nem mesmo mais tarde
conseguiu se lembrar do que acontecera: sabia
apenas que entrara com Eustáquio por uma
portinha e (oh, até que enfim!) pôde estender-se
sobre alguma coisa macia e quente. E de uma voz
que dizia:
– Aí ficam vocês. O melhor que podemos
dar. Chão frio e duro. E até úmido, é de se
esperar. Não dá para tirar uma pestana, é claro,
mesmo que não caia uma tempestade daquelas ou
que a cabana não venha abaixo. Ajeitem-se como
puderem...
Mas Jill caiu no sono antes que a voz
terminasse...
Quando as crianças acordaram no dia
seguinte perceberam que tinham dormido num
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lugar seco e quente, em camas de palha. A
claridade entrava por uma abertura triangular.
– Estamos em terra? – perguntou Jill.
– Na cabana de um paulama – respondeu
Eustáquio.
– Na cabana de quem?
– Um paulama. Não me pergunte o que é
isso. Não consegui vê-lo ontem à noite. Vamos
procurá-lo.
– Como é chato acordar hoje com a roupa
de ontem – disse Jill, sentando-se.
– Engraçado: eu estava pensando como é
bom a gente não ter de se vestir.
– Nem de se lavar, na certa – replicou Jill,
com ar de pouco caso.
Mas Eustáquio já estava de pé, bocejando e
espreguiçando-se, e logo caiu fora da cabana. Jill
fez o mesmo. O que encontraram lá fora era bem
diferente do pedacinho de Nárnia visto na
véspera. Estavam num terreno muito plano, cheio
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de inumeráveis ilhazinhas, cortadas por
incontáveis canais. As ilhas eram cobertas de
capim e cercadas de juncos. Nuvens de aves
pousavam e revoavam dos juncos: marrecos,
narcejas, galinholas e garças. Viam-se por ali
muitas cabanas iguais àquela em que passaram a
noite, mas separadas a uma boa distância umas
das outras, pois os paulamas apreciam muito a
privacidade. A não ser a floresta, a muitos
quilômetros de distância, não se via uma só
árvore. Para o leste, o alagadiço estendia-se na
direção de pequenas colinas arenosas. Ao norte
ficavam outras colinas esmaecidas. O resto era
alagadiço plano. Um lugar de dar tristeza numa
tarde de chuva. Visto ao sol matinal, com um
vento refrescante, o ar repleto com os pios das
aves, era ainda um lugar solitário, mas tinha seus
encantos.
As crianças ficaram mais animadas. Jill
perguntou:
– Onde andará esse tal de paralama!
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– Paulama – respondeu Eustáquio,
orgulhoso de saber o nome certo. – Acho... olhe
lá, só pode ser ele.
Viram logo o paulama, sentado de costas
para eles, a uns cinqüenta metros, pescando. Não
era fácil distingui-lo, assim tão quietinho e por ser
quase da mesma cor do alagadiço. Disse Jill :
– Acho que o melhor é bater um papo com
ele.
Sentiam-se um pouco nervosos, mas
Eustáquio concordou. A medida que se
aproximavam, a figurinha virou a cabeça,
mostrando um rosto magro e comprido, sem
barba, bochechas encovadas, boca apertada e
nariz pontudo. Usava chapéu alto, pontudo como
uma torre de igreja, de abas enormes. O cabelo, se
é que se pode chamar de cabelo, caído sobre as
grandes orelhas, tinha uma tonalidade cinzaesverdeada,
e os tufos lisos lembravam juncos
miúdos. A expressão era solene: via-se logo que
levava a vida a sério.
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– Bom dia, meus hóspedes. É verdade que
quando eu digo bom dia não estou querendo dizer
que não vá chover... ou nevar... ou trovejar.
Aposto que vocês não conseguiram dormir nem
um pouco.
– Pois dormimos muito bem – respondeu
Jill. – Passamos uma noite maravilhosa.
– Ah! – replicou o paulama, sacudindo a
cabeça. – Sei que você está querendo bancar a
durona. Faz muito bem. Aprendeu a sorrir na
desventura.
– Qual é o seu nome, por favor? —
perguntou Eustáquio.
– Brejeiro. Mas não tem a menor
importância se esquecerem. Não me custa nada
continuar dizendo que meu nome é Brejeiro.
As crianças sentaram-se a seu lado,
percebendo então que as pernas e os braços dele
eram compridíssimos; apesar de o tronco não ser
muito maior que o de um anão, ele devia ser, em
pé, mais alto que a maioria dos homens altos.
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Seus dedos das mãos eram ligados por uma
membrana, como os dedos de um sapo, e do
mesmo jeito eram seus pés descalços, que ele
balançava dentro da água lodosa. Usava roupas da
cor da terra, que eram muito folgadas para ele.
– Estou tentando pegar umas enguias para
fazer um cozido, mas acho que não vou pegar
coisa alguma. E, mesmo que pegasse, vocês não
iam gostar de enguias.
– Por que não? – perguntou Eustáquio.
– Ora, como é que vocês poderiam gostar
da nossa comida? De qualquer maneira, enquanto
fico aqui tentando, os dois podiam tentar acender
o fogo; não custa nada tentar! Tem lenha detrás da
cabana. Deve estar danada de úmida. Podem
acender o fogo dentro da cabana e chorar com a
fumaceira, ou podem acender o fogo do lado de
fora, e aí a chuva chega e apaga tudo. Aqui está a
minha binga; suponho que não saibam mexer com
isso?
Mas Eustáquio aprendera essas coisas em
sua aventura anterior. As crianças apanharam a
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madeira (que estava sequinha) e fizeram fogo
mais depressa do que se costuma. Enquanto
Eustáquio atiçava as chamas, Jill foi passar uma
água no rosto no canal mais próximo. Depois foi a
vez do menino. Sentiam-se muito melhor, mas
com uma fome daquelas.
O paulama juntou-se a eles. Apesar do
pessimismo, trouxe uma dúzia de enguias, já
limpas. Pôs uma panela grande no fogo e acendeu
um cachimbo. Os paulamas fumam um tabaco
muito forte e esquisito (misturado com lama,
dizem), e as crianças notaram que a fumaça não
subia, pelo contrário, espalhava-se pelo chão
como um nevoeiro. A fumaça escura fez
Eustáquio tossir.
– Bem – disse Brejeiro –, essas enguias vão
levar um tempo enorme para cozinhar; vocês são
capazes de desmaiar de fome. Conheci uma
menina... mas é melhor não contar essa história.
Coisa que eu não gosto é de deprimir os outros.
Para disfarçar a fome, podemos também falar dos
nossos planos. Querem?
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– Queremos! – gritou Jill. – Você pode
ajudar-nos a encontrar o príncipe Rilian?
O paulama fez uma careta, encovando
ainda mais as bochechas:
– Bem, não sei se vocês chamam isso de
ajuda. Acho que ninguém é capaz de ajudar
propriamente. O lógico é a gente não ir muito
longe numa viagem para o Norte logo nesta época
do ano, com o inverno na porta, e outras coisas
mais... Mas não devem desanimar por causa disso:
com tantos inimigos, e montanhas imensas, e rios
caudalosos, e a dificuldade de achar o caminho
certo, e a falta de comida, ora, com tanta coisa
desagradável, nem vamos dar atenção ao frio de
matar. Afinal de contas, se a gente não chegar
muito longe, também não vai precisar voltar
correndo.
As crianças notaram que ele falava “nós” e
não “vocês”. Perguntaram então ao mesmo tempo:
– Você vem com a gente?
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– Oh, vou, naturalmente, é preciso. Acho
que jamais veremos o rei de novo em Nárnia,
agora que partiu para o exterior. E estava tossindo
muito. E depois tem o Trumpkin, que já está
bastante decadente. E vocês hão de ver: após este
verão de fogo, a colheita só poderá ser muito
ruim. E para mim não será nenhuma surpresa se
um inimigo nos atacar. Podem escrever o que
digo.
– E como a gente começa? – perguntou
Eustáquio.
A resposta veio com muita lentidão:
– Bem... todos os outros que procuraram o
príncipe Rilian começaram pela mesma fonte
onde lorde Drinian viu a dama. Quase todos foram
para o Norte. Ora, como nenhum deles voltou, não
podemos saber o que se passou.
– Devemos começar – falou Jill –
encontrando uma cidade de gigantes, em ruínas.
Foi o que disse Aslam.
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– Começar encontrando, não é? –
perguntou Brejeiro. – Será que não é permitido
começar procurando a cidade?
– Foi exatamente o que eu quis dizer.
Depois de achada a cidade...
– Ah, depois! – exclamou Brejeiro com
secura.
– Ninguém sabe onde fica a cidade? –
perguntou Eustáquio.
– Eu não sei de ninguém. Mas não vou
dizer que nunca ouvi falar dela. Não precisam
partir da fonte; vão pela charneca de Ettin. É onde
fica a cidade em ruínas, se é que fica em algum
lugar. Mas já fui bem longe nessa direção, como
quase todo mundo, e nunca topei com ruína
alguma.
– Onde fica a charneca de Ettin? –
perguntou Eustáquio.
– Lá para as bandas do Norte – respondeu
Brejeiro, apontando com o cachimbo. – Estão
vendo aqueles montes e aquelas lascas de
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penedos? Pois lá é o começo de Ettin. Mas daqui
para lá há um rio no meio, o rio Ruidoso. Não há
pontes, é claro.
– Espero que a gente consiga vadeá-lo –
falou o menino.
– Bem, já foi vadeado – admitiu o paulama.
– E talvez encontremos em Ettin quem
possa ensinar-nos o caminho – disse Jill.
– Perfeito! Quem possa!...
– Que espécie de gente vive lá? – indagou
Jill.
– Não cabe a mim afirmar que eles não
estão certos, ao modo deles – respondeu Brejeiro.
– Mas o que são eles? – insistiu Jill. – Há
tanta gente esquisita neste país! Estou
perguntando se são animais, passarinhos, anões ou
sei lá o quê.
O paulama deu um longo assovio:
– Fiu! Você não sabe? Pensei que as
corujas tinham contado... São gigantes.
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Jill estremeceu. Jamais se dera bem com
gigantes, mesmo nos livros, e já se encontrara
com um durante um pesadelo. Notando depois a
cara de Eustáquio bastante esverdeada, achou que
ele estava pior do que ela (o que a fez sentir-se
mais corajosa).
– O rei há muito me disse – falou Eustáquio
–, quando andei com ele pelos mares, que
derrotara esses gigantes e os forçara à submissão.
– Verdade – confirmou Brejeiro. – Não
estão mais em guerra conosco. Desde que
fiquemos do lado de cá do rio Ruidoso, não
tocarão em nós. Mas do lado de lá... Sempre pode
haver um jeito. Se não chegarmos muito perto
deles, se algum deles não perder a cabeça, se não
formos vistos, poderemos caminhar um bom
pedaço.
– Olhe aqui – disse Eustáquio, perdendo o
controle, como costuma acontecer com as pessoas
amedrontadas. – Não acredito na metade do que
está falando; as camas da cabana também não
eram tão duras nem a lenha estava molhada.
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Aslam não nos teria enviado se o risco fosse tão
grande.
Esperou que o paulama lhe respondesse
enraivecido, mas não:
– É isso aí, Eustáquio. E assim que se fala.
É ver a coisa pelo lado melhor. Só que devemos
ter muito cuidado com os nervos, já que teremos
de atravessar tantas dificuldades juntos. Não
adianta brigar, pelo menos não desde já. Sei que
as expedições desse tipo acabam em geral desse
modo: um esfolando o outro antes da hora.
Quanto mais tempo a gente suportar...
– Bem, se é tão pouca sua esperança –
interrompeu o menino –, é melhor ficar. Jill e eu
podemos ir sozinhos...
– Não banque o burro, Eustáquio – atalhou
a menina, apavorada com a idéia de que o
paulama pudesse tomar as palavras dele ao pé da
letra.
– Não tenha receio – falou Brejeiro. – E
claro que eu vou. Não posso perder essa
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oportunidade. Só irá me fazer bem. Eles sempre
dizem... os outros paulamas dizem... que eu sou
muito volúvel; que não levo a vida muito a sério.
Já disseram milhões de vezes: “Brejeiro, você é
todo empáfia e fanfarronada, um brincalhão.
Precisa aprender que a vida não é só rã e enguia
na barriga, e mais nada. Precisa achar algo que lhe
sofreie um pouco. Estamos falando pelo seu
próprio bem, Brejeiro.” É o que dizem sempre.
Pois aí está a minha sorte: uma jornada para o
Norte, na hora em que o inverno está começando!
À procura de um príncipe que provavelmente não
se encontra lá! Passando por uma cidade em
ruínas que ninguém nunca viu!... Não podia ser
melhor! Se uma aventura dessas não consertar um
sujeito, é porque não tem mesmo conserto.
E esfregou as mãos de sapo como se
estivesse falando em ir a uma festa ou ao circo.
– E agora – acrescentou –, vamos ver como
estão aquelas enguias.
Pois foi uma refeição gostosíssima. No
começo o paulama não acreditou que eles
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poderiam gostar; quando comeram tanto que não
podia haver mais dúvida, começou a achar que
aquilo poderia não lhes cair bem.
– Comida de paulama, veneno para gente
humana. Está na cara.
Depois tomaram chá em latas, como os
operários bebem café na estrada, e Brejeiro deu
umas boas goladas numa garrafa preta e quadrada.
Perguntou se as crianças queriam provar, mas a
coisa parecia repugnante.
O resto do dia foi empregado em
preparativos para a partida na manhã seguinte,
cedinho. Brejeiro, sendo de longe o mais alto,
carregaria três cobertores, com um bom pedaço de
toucinho enrolado dentro. Jill devia levar as
sobras das enguias, uns biscoitos e a binga.
Eustáquio carregaria duas capas, a dele e a dela,
quando não precisassem vesti-las. Eustáquio (que
aprendera a atirar um pouco na viagem ao
Oriente) levou o arco número dois de Brejeiro,
que ficou com o melhor, dizendo que mesmo
assim (com aquele vento, com as cordas úmidas,
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na luz de inverno, os dedos gelados) a
possibilidade de acertarem em alguma coisa era
uma em cem.
Ele e Eustáquio levavam espadas.
Eustáquio trouxera a que deixaram para ele no
quarto em Cair Paravel. Jill teve de contentar-se
com um canivete. Ia saindo briga por causa disso,
mas o paulama, esfregando as mãos, foi logo
dizendo:
– Já sabia disso; é o que acontece em geral
quando as aventuras começam.
Calaram-se logo. E foram dormir cedo na
cabana. Dessa vez a noite para as crianças não foi
de fato excelente. Pois Brejeiro, depois de dizer
“acho que ninguém vai fechar o olho esta noite”,
começou na mesma hora a roncar alto e sem
parar. Quando Jill conseguiu por fim adormecer,
sonhou o resto da noite com perfuratrizes de
asfalto, cachoeiras e trens expressos atravessando
túneis.
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6
AS TERRAS AGRESTES DO
NORTE
Na manhã seguinte, às nove horas, três
figuras solitárias podiam ser vistas procurando o
caminho através do rio Ruidoso sobre pedras e
baixios. Era um riacho raso e barulhento; nem
mesmo Jill chegou a molhar mais do que o joelho
quando atingiram a outra margem. Uns cinqüenta
metros além, começava uma elevação de terra
pedregosa e penhascos.
– Acho que é este o nosso caminho – disse
Eustáquio. E apontou para a esquerda, para onde
um regato descia por um desfiladeiro raso.
O paulama balançou a cabeça:
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– É na encosta desse desfiladeiro que os
gigantes costumam viver. Para eles, o desfiladeiro
é como uma rua. Melhor seguirmos em frente,
apesar de ser um pouco íngreme.
Acharam um lugar por onde podiam subir
agarrando-se às pedras e, em dez minutos,
chegaram ofegantes lá em cima. Deitaram um
olhar saudoso para o vale de Nárnia e viraram-se
para o Norte. A vasta e solitária charneca
estendia-se em todas as direções. À esquerda o
terreno era mais rochoso. Puseram-se a caminho.
Era uma terra boa para caminhar ao sol
mortiço do inverno. A medida que adentravam na
charneca, a solidão crescia: ouviam-se pios de
pássaros e via-se um ou outro falcão. Na metade
da manhã, pararam para descansar perto de um
riacho, e Jill começou a imaginar que, afinal de
contas, as aventuras podiam ser divertidas. E disse
isso.
– Ainda não tivemos aventura alguma! –
falou o paulama.
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Caminhadas depois do primeiro descanso –
assim como as manhãs na escola depois do recreio
ou as viagens de trem depois da baldeação –
nunca são como eram antes. Quando se puseram
outra vez a caminho, Jill observou que a borda
rochosa do desfiladeiro estava mais próxima. E as
pedras eram menos achatadas, mais verticais,
como se fossem pequenas torres. E tinham formas
muito engraçadas!
“Acho”, pensou ela, “que essa história
sobre os gigantes começou com essas rochas
engraçadas. Se a gente chegasse aqui ao
escurecer, seria facílimo tomar aquelas pedras por
gigantes. Olhem aquela ali! Não custa imaginar
que aquele bola de pedra em cima é uma cabeça.
Uma cabeça grande demais para o corpo, mas que
não ficaria de todo mal num gigante horroroso. E
aquelas moitas desgrenhadas – devem ser ninhos
de pássaros – passariam por cabelos e barba. E
aquelas coisas penduradas de cada lado parecem
mesmo orelhas. Orelhas monstruosamente
grandes, mas gigante deve ter mesmo orelhas de
elefante. E... ooooh!”
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Ficou gelada. A coisa se mexia.
Era de fato um gigante. Não havia mais
dúvida: tinha virado a cabeça. Jill chegara a
perceber a cara estúpida e bochechuda. Eram
gigantes, não eram rochas, aquelas coisas. Uns
quarenta ou cinqüenta, enfileirados. Tinham os
pés pousados no fundo do desfiladeiro e os
cotovelos apoiados na borda, como fazem os
preguiçosos na beirada de um muro depois do
almoço.
– Em frente! – cochichou Brejeiro, que
também os notara. – Não olhem para eles!
Aconteça o que acontecer, não corram! Cairão em
cima de nós como um raio.
E assim continuaram, fingindo que não
tinham visto os gigantes. Era como atravessar o
portão de uma casa onde houvesse um cachorro
feroz, só que muito pior. Os gigantes não
demonstravam raiva... nem bondade... nem o
menor interesse. Nem davam sinal de que tinham
notado os viajantes.
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Aí – zim, zim, zim –, um pesado objeto veio
zunindo e um grande calhau explodiu uns vinte
passos na frente deles. Depois – pimba! – caiu um
outro, cinco metros atrás.
– Estão apontando para nós? – perguntou
Eustáquio.
– Não – respondeu Brejeiro –, e estaríamos
mais seguros se estivessem. Estão tentando acertar
ali, naquele monte de pedras à direita. Não vão
acertar nunca. Têm uma pontaria desgraçada.
Passam a manhã quase toda brincando de
pontaria. É a única brincadeira que são capazes de
entender.
Foi um mau pedaço. A fila de gigantes
parecia não acabar nunca, e não paravam de dar
pedradas. E, além do perigo real, as caras e os
vozeirões já eram suficientes para apavorar
qualquer um. Jill fez tudo para não olhar.
Depois de quase meia hora, os gigantes,
pelo jeito, começaram a brigar. Foi o fim do
concurso de pontaria, mas não é nada agradável
estar a um quilômetro de gigantes brigando.
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Agridem e escarnecem uns dos outros com
palavras sem sentido, de vinte sílabas cada uma.
Berram, espumam e saltam enfurecidos, fazendo a
terra estremecer. Ferem-se uns aos outros na
cabeça com martelões de pedra. As cabeças são
tão duras que os martelos saltam, e os monstros
deixam cair o martelo e uivam de dor com os
dedos machucados. Mas são tão estúpidos que
voltam a repetir a mesma coisa um minuto depois.
De qualquer forma foi bom, pois depois de
uma hora os gigantes estavam tão machucados
que se sentaram e começaram a chorar. Sentados,
ficaram com a cabeça abaixo da borda do
desfiladeiro, e assim não foram mais vistos. Mas,
mesmo um quilômetro à frente, Jill continuava a
ouvi-los uivar e abrir o berreiro, como se fossem
bebês enormes.
Acamparam naquela noite em plena
charneca. Brejeiro ensinou às crianças como fazer
o melhor uso dos cobertores, dormindo uma de
costas para a outra. (De costas, uma aquece a
outra, e podem-se jogar os dois cobertores por
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cima.) Mas estava gelado mesmo assim, e o chão
era duro e encaroçado. Disse-lhes o paulama que,
para se sentirem melhor, bastaria lembrar que
seria ainda muito mais frio quando se
aproximassem mais do Norte. Mas isso não serviu
de consolo.
Caminharam através de Ettin por muitos
dias, poupando o toucinho e alimentando-se
principalmente de aves (não eram, naturalmente,
aves falantes) que Eustáquio e o paulama
derrubavam. Jill chegava a invejar a habilidade de
Eustáquio. Como havia riachos sem conta pelo
caminho, água é que não faltava. Jill lembrou-se
de que nos livros, quando as pessoas se alimentam
de caça, nunca se faz referência ao trabalho
malcheiroso, demorado e sujo que é depenar e
limpar uma ave abatida. O melhor é que não
tinham encontrado mais gigantes. Um deles os
viu, mas deu uma gargalhada gigantesca e
continuou a tratar da vida.
Por volta do décimo dia, chegaram a um
lugar no qual a paisagem mudava. Tinham
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atingido a borda norte da charneca, que dava para
um território mais íngreme e penoso. No fundo de
uma encosta havia penhas: além destas, uma terra
de montanhas altas, negros precipícios, vales
pedregosos, abismos tão fundos e estreitos que
ficavam escuros, e rios que jorravam de gargantas
ressoantes para o fundo de sinistros
despenhadeiros. Não é preciso dizer que foi
Brejeiro quem apontou para um punhado de neve
nas encostas mais distantes.
– Mas haverá mais neve para o Norte, sem
dúvida – acrescentou.
Levaram algum tempo para atingir o sopé
da encosta. Olharam então do alto dos penhascos
para um rio que corria embaixo, de oeste para
leste. Ladeado de precipícios, era verde e
sombrio, pontilhado de rápidos rios e cachoeiras.
O rugido das águas estremecia a terra.
– O melhor de tudo – disse Brejeiro – é
que, se quebrarmos o pescoço ao descer do
penhasco, estaremos salvos de morrer afogados no
rio.
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– E aquilo ali? – disse Eustáquio de
repente, apontando rio acima, à esquerda. Todos
olharam e viram o que menos esperavam – uma
ponte. E que ponte! Era um vasto e único arco
transpondo o abismo e firmado no topo de dois
penhascos. O ponto culminante do arco elevava-se
acima dos topos à mesma altura que está da rua a
abóbada de uma catedral.
– Puxa! Só pode ser uma ponte de gigantes!
– exclamou Jill.
– Ou de feiticeiras, é mais provável –
replicou Brejeiro. – Precisamos estar atentos aos
feitiços num lugar como este. Parece uma
armadilha. Aquilo pode virar névoa e sumir
quando estivermos no meio da travessia.
– Oh, francamente, deixe de bancar o pé-
frio – falou Eustáquio. – Por que diabo aquilo não
pode ser uma ponte de verdade?
– E você acha que algum dos gigantes que
vimos até agora teria cabeça para construir uma
ponte como aquela? – perguntou Brejeiro.
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– E não poderia ter sido construída por
outros gigantes? – perguntou Jill. – Quer dizer:
por gigantes que existiram há séculos e tinham
muito mais cabeça que os modernos? Só podem
ser os mesmos que construíram a cidade
gigantesca que andamos procurando. Se é assim,
devemos estar no caminho certo: a velha ponte
leva à cidade velha!
– Grande idéia, Jill – disse Eustáquio. – Só
pode ser isso. Vamos.
Quando chegaram em cima, verificaram
que a ponte era sólida. As pedras eram enormes e
deviam ter sido talhadas por bons pedreiros,
embora o tempo as tivesse rachado e
desconjuntado. A balaustrada já devia ter sido
coberta de entalhes, dos quais restavam alguns
traços: gigantes, minotauros, lulas, centopéias e
divindades medonhas. Brejeiro, apesar de
continuar desconfiado, decidiu atravessá-la com
as crianças.
A subida até o ponto mais alto do arco era
longa e penosa. Em muitos lugares as grandes
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pedras tinham caído, abrindo buracos apavorantes
pelos quais se via, lá embaixo, o rio a espumejar.
Uma águia passou voando sob os pés deles.
Quanto mais subiam, mais frio sentiam, e o vento
era tão forte que dificultava a caminhada. Parecia
sacudir a ponte.
Do alto viram na encosta à frente os restos
de uma estrada que se dirigia para o coração das
montanhas. Diversas pedras do pavimento tinham
desaparecido; tufos de capim cresciam entre as
que ficaram. E na direção deles, a cavalo, vinham
pela velha estrada duas figuras do tamanho de um
adulto humano.
– Continuemos – disse Brejeiro. – Num
lugar como este todo mundo deve ser inimigo,
mas não devemos dar demonstração de medo.
Quando chegaram ao fim da ponte e
pisaram na relva, as duas figuras estranhas
estavam bem próximas. Uma era um cavaleiro
com armadura completa e a viseira abaixada. A
armadura e o cavalo eram negros; não havia
emblema no escudo, nem flâmula na lança. A
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outra era uma dama montada num cavalo branco,
um cavalo tão bonito que dava logo vontade de
beijar-lhe o focinho e oferecer-lhe um torrão de
açúcar. Mas a dama, que montava de lado e usava
um comprido e esvoaçante vestido verde, era
ainda mais bonita.
– Bom dia, estr-r-angeiros – murmurou a
dama numa voz mais doce que o canto dos
pássaros, trilando os “erres” gostosamente. –
Alguns de vocês são peregrinos nesta terra
agreste?
– Pode ser, madame – respondeu Brejeiro,
muito empertigado, em posição defensiva.
– Estamos procurando a cidade arruinada
dos gigantes – declarou Jill.
– A cidade ar-r-ruinada? – fez a dama. –
Que idéia! Que pretende fazer, se encontrá-la?
– Precisamos encontrá-la... – começou Jill,
logo interrompida por Brejeiro.
– Com o seu perdão, madame. Acontece,
porém, que não a conhecemos, nem a senhora,
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nem o seu companheiro... sujeito calado, hein... e
a senhora também não nos conhece. Assim,
melhor não confiar a estranhos nossos negócios.
Parece que vai chover, não é mesmo?
A dama riu o riso mais comunicativo, mais
musical que se pode imaginar:
– Muito bem, meus filhos, parabéns pelo
guia sábio e solene que possuem. Não lhes quero
mal por fechar seu coração, mas eu abrirei o meu
para vocês. Já ouvi muitas vezes referências à
gigantesca cidade arruinada, mas jamais encontrei
quem me ensinasse o caminho para lá. Esta
estrada conduz ao burgo do castelo de Harfang,
onde vivem gigantes amáveis. São tão bonzinhos,
educados e sensatos como os de Ettin são bobos,
perversos, selvagens e dados a bestialidades. Em
Harfang talvez vocês possam saber qualquer coisa
sobre a cidade arruinada, talvez não; de qualquer
forma, lá encontrarão bons alojamentos e
anfitriões amáveis. Seria mais sensato passar aí
todo o inverno ou, pelo menos, permanecer alguns
dias para que descansem e se recuperem. Lá
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encontrarão banhos de vapor, caminhas macias,
grandes lareiras; e o que há de bom, assado ou
cozido, doce ou salgado, estará na mesa quatro
vezes por dia.
– Que beleza! – exclamou Eustáquio. – Só
de pensar em dormir de novo numa cama!
– Pois é... e banho quente?! – acrescentou
Jill. – Será que eles nos convidam? Nós nem os
conhecemos...
– É simples – respondeu a dama. – Digalhes
que Ela, a Dama do Vestido Verde, manda
lembranças e duas crianças do Sul para a Festa do
Outono.
Jill e Eustáquio ficaram comovidos:
– Muito obrigado, muito obrigado... quanta
gentileza...
– De nada, meus anjos. Mas tomem um
cuidado: não cheguem tarde demais em Harfang;
eles fecham os portões poucas horas depois do
meio-dia e não abrem para ninguém.
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As crianças agradeceram mais uma vez,
com os olhos a luzir, e a dama acenou-lhes adeus.
O pau-lama tirou o chapéu pontudo e fez uma
reverência, muito empertigado. O cavaleiro calado
e a dama conduziram os cavalos para a entrada da
ponte com um grande tropel de cascos.
– Pois muito bem! – falou Brejeiro. – Daria
um saco de rãs para saber de onde ela vem e para
onde vai. Não é o tipo que a gente espera
encontrar nas vastidões dos gigantes, não é? Não
pode ser boa coisa!
– Besteira! – disse Eustáquio. – Mulher
fabulosa. Pense numa comida quentinha... quartos
aquecidos. Só espero que Harfang não esteja
muito longe.
– Também acho – disse Jíll. – E que vestido
esplêndido! E o cavalo!
– E daí? – fez Brejeiro. – Se a gente
soubesse um pouquinho mais sobre ela não seria
nada mau.
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– Pois eu ia perguntar! – disse Jill. – Mas
como é que eu poderia fazer isso se você não quis
contar-lhe nada a nosso respeito?
– Isso mesmo – concordou Eustáquio. –
Você ficou aí feito um pedaço de pau, bancando o
antipático! Não gostou deles?
– Deles? Eles quem? – estranhou o
paulama. – Só vi uma pessoa.
– Vai dizer que não viu o cavaleiro? –
perguntou Jill.
– Vi uma armadura. Se era ele, por que não
abriu a boca?
– Deve ser tímido – explicou Jill. – Pode
ser também que ele fique satisfeito só de olhar
para ela, só de ficar ouvindo aquela voz linda de
morrer. Eu faria o mesmo se fosse ele.
– Pois eu – replicou Brejeiro – estou só
imaginando o que a gente veria levantando a
viseira do elmo e olhando lá dentro.
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– Deixe disso – atalhou Eustáquio. – Não
viu a forma da armadura? Só podia ter uma coisa
lá dentro: um homem.
– E não poderia ser um esqueleto? –
perguntou o paulama, com uma entonação
lúgubre. – Ou talvez, nada. Nada que fosse
visível. Um alguém invisível.
– Francamente, Brejeiro – falou Jill num
sobressalto. – Você tem cada idéia.
– Deixe-o para lá – disse Eustáquio. – Ele
está sempre esperando o pior, e está sempre
errado.
Vamos pensar nos gigantes amáveis e
chegar em Harfang o mais cedo possível. Gostaria
de saber a distância que nos separa do castelo.
E quase acabaram caindo numa daquelas
brigas previstas por Brejeiro: Jill e Eustáquio já
tinham estado às turras antes, mas agora o
desentendimento era de fato sério. Brejeiro não
queria ir para Harfang de maneira nenhuma. Não
sabia (disse) o que significava ser “amável” na
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cabeçorra de um gigante. Além disso, segundo os
sinais de Aslam, nada havia a respeito de
hospedar-se com gigantes, amáveis ou
desagradáveis. Por sua vez, as crianças (cansadas
de ventanias, de chuvaradas, de aves assadas nos
acampamentos, do chão duro) estavam
indiscutivelmente decididas a uma visita aos
gigantes amáveis. Por fim, Brejeiro acabou
concordando, mas sob uma condição: os dois
tinham de prometer de pedra e cal que, a não ser
que a proibição fosse levantada, jamais revelariam
aos gigantes de onde vinham e que estavam à
procura do príncipe Rilian. A promessa foi feita e
eles prosseguiram.
Depois da conversa com a dama, as coisas
pioraram de duas maneiras: o caminho era muito
mais áspero e cruzava vales estreitos, onde o
vento norte os castigava; nada se encontrava que
pudesse ser usado como lenha e não havia bons
lugares para passar a noite; o terreno era todo
pedregoso, causando dores nos pés durante o dia e
dores no corpo todo durante a noite.
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Em segundo lugar, fosse qual fosse a
intenção da dama ao referir-se às delícias de
Harfang, o efeito sobre as crianças não foi nada
bom. Não pensavam em outra coisa, só em camas
quentes, banhos, jantares, aconchego. Já nem
falavam mais em Aslam ou no príncipe perdido.
Jill deixou de repetir os sinais todas as noites e
manhãs. A princípio, dizia para si que estava
cansada demais; depois, simplesmente se
esqueceu de tudo. A idéia de passar uma boa vida
em Harfang, em vez de mantê-los mais felizes e
animados, produziu o efeito contrário: aumentoulhes
a insatisfação, tornando-os mais impacientes
e irritados.
Uma tarde chegaram finalmente a um lugar
onde o desfiladeiro abria-se e escuros abetos
erguiam-se de cada lado. Tinham atravessado as
montanhas. Diante deles estendia-se uma planície
deserta e pedregosa; além, montanhas distantes,
cobertas de neve. E entre eles e as montanhas
longínquas elevava-se uma pequena colina com
uma chapada irregular.
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– Olhem! Olhem! – gritou Jill, apontando
para além da planície.
Lá, na penumbra do crepúsculo, todos
viram luzes. Luzes! Não a luz da lua, nem a luz de
fogueiras, mas uma acolhedora fileira de janelas
iluminadas. Quem nunca atravessou dias e noites
numa terra deserta, dificilmente poderá saber o
que eles sentiram.
– Harfang! – bradou Eustáquio, triunfante.
– Harfang! – gritou Jill, excitada.
– Harfang – repetiu Brejeiro numa
entonação sombria e aborrecida. – Mas
acrescentou logo: – Oba! Gansos selvagens!
Puxou o arco do ombro num segundo e
derrubou um ganso gordo. Era tarde demais para
ter a esperança de alcançar Harfang naquele dia.
Assim, comeram carne quente ao pé do fogo e
entraram na noite mais animados. Quando o fogo
se extinguiu, a noite ficou fria de doer; ao
despertarem na manhã seguinte, os cobertores
estavam endurecidos pela geada.
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– Não se preocupem – disse Jill, batendo os
pés. – Hoje à noite tem banho quente.
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7
A COLINA DOS FOSSOS
ESTRANHOS
É inegável que foi um dia pavoroso. No
alto, um céu sem sol, abafado por nuvens pesadas
de neve; embaixo, uma geada escura, e um vento
que soprava como se fosse arrancar-lhes a pele.
Ao chegarem à planície, perceberam que esse
trecho da velha estrada estava em condições muito
piores. Tinham de achar passagem entre grandes
blocos partidos, entre calhaus e pedregulhos. Dura
caminhada para pés doloridos. E, por mais
cansados que ficassem, o frio era demais para um
descanso.
Lá pelas dez horas os primeiros flocos
miúdos começaram a cair nos braços de Jill. Dez
minutos mais tarde caíam com mais intensidade.
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Mais vinte minutos e o chão ficara branco. No fim
de meia hora, uma boa tempestade de neve
fustigava-os, ofuscando-lhes a visão e prometendo
durar o dia todo.
Para que se entenda bem o que se segue, é
preciso lembrar que eles não enxergavam quase
nada. E não tinham nenhuma visão panorâmica da
colina que os separava do lugar onde as janelas
iluminadas haviam aparecido. Tudo o que
conseguiam enxergar eram uns passos adiante, e
assim mesmo arregalando os olhos. Desnecessário
dizer que seguiam em silêncio.
Quando atingiram o sopé da colina,
perceberam qualquer coisa como rochas de ambos
os lados. Se tivessem olhado atentamente, o que
ninguém fez, teriam notado que se tratava de
pedras quadradas. Estavam todos atentos a um
rebordo que lhes barrava o caminho. Devia ter
mais de um metro. O paulama, com suas pernas
compridas, não teve dificuldades de subir o
obstáculo, ajudando depois os outros – um
problema para estes, pois a neve acumulava-se
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sobre o ressalto. Avançaram com dificuldade –
Jill caiu uma vez – por uma extensão de uns cem
metros, chegando a um segundo rebordo. Havia
quatro deles a intervalos bastante irregulares.
Quando se esforçavam para transpor o
quarto, não tiveram dúvida de que haviam
alcançado a chapada da colina. Até ali a própria
encosta servia-lhes de certa proteção; agora
pegavam de cara o vento furioso. Pois a colina,
por estranho que possa parecer, era mesmo tão
plana quanto parecera ao longe: como se fosse
uma mesa enorme açoitada à vontade pelo
temporal. Em muitos lugares o gelo ainda não
estava bem assentado, e o vento atirava-lhes
punhados de neve no rosto. Piorando tudo, a
superfície era cruzada e entrecruzada de valas,
que precisavam ser transpostas.
Lutando valentemente, capuz na cabeça
abaixada, mãos enfiadas no capote, Jill percebia
outras coisas estranhas no alto da colina – coisas à
direita e à esquerda, que lembravam vagamente
chaminés de fábricas e penhascos mais eretos do
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que os penhascos devem ser. Mas não estava nem
um pouco interessada e não deu a isso a menor
atenção. Só pensava nas próprias mãos
enregeladas (no nariz, nas orelhas, no queixo) e
em banhos quentes e camas em Harfang.
De repente escorregou, deslizando,
horrorizada, por uma fenda escura e estreita.
Menos de um segundo depois, havia chegado ao
fundo de uma espécie de trincheira ou fosso de
um metro de largura. Apesar de estremecida pela
queda, uma das primeiras coisas que sentiu foi
alívio, pois livrara-se da ventania, protegida pelas
paredes do fosso. Notou em seguida, é claro, as
expressões aflitas de Eustáquio e Brejeiro, com os
olhos arregalados lá em cima.
– Está machucada, Jill ? – gritou Eustáquio.
– No mínimo com as duas pernas quebradas
– berrou Brejeiro.
Jill se pôs em pé e explicou que estava bem,
mas teriam de dar-lhe um puxão para sair do
buraco.
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117
– Onde você caiu? – perguntou Eustáquio.
– Numa espécie de fosso, talvez numa
espécie de corredor ou coisa parecida.
– E a coisa vai para o norte – falou
Eustáquio.
– Será um caminho? Se for, a gente se livra
deste vento maldito. Há muita neve aí no fundo?
– Muito pouca.
– O que existe mais na frente?
– Um segundinho. Vou dar uma espiada –
disse Jill, avançando ao longo do fosso. A
passagem virava-se bruscamente para a direita.
– Aonde vai dar essa curva?
Mas Jill não sentia a menor vontade de
percorrer escuros labirintos subterrâneos,
sobretudo depois de ouvir a voz de Brejeiro:
– Cuidado, Jill. Este lugar está com cara de
caverna de dragão. Além disso, em terra de
gigantes devem existir minhocas gigantescas ou
gigantescas baratas.
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– Acho que isso aqui não vai muito longe,
não – falou Jill, voltando apressada.
– Tenho de dar uma olhada – disse
Eustáquio. – O que você quer dizer com não vai
muito longe?
Ele sentou-se à borda do fosso (já estavam
todos muito molhados, assim não fazia a menor
diferença ficar um pouco mais) e saltou lá para
dentro. Empurrou Jill para trás e, embora não
dissesse nada, percebeu que ela estava apavorada.
Ela acompanhou Eustáquio, tendo o cuidado de
não lhe passar à frente.
O esforço acabou em decepção. Dobraram
o cotovelo e avançaram uns passos. Aqui havia
uma alternativa: seguir ainda em frente ou virar à
direita.
– Não adianta – falou Eustáquio,
examinando a entrada para a direita. – Esse
caminho nos levará em sentido contrário.
E seguiu em frente, encontrando logo
depois um segundo caminho para a direita. A essa
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altura já não havia como escolher: o fosso não
tinha saída.
Jill não perdeu tempo, recuando logo. O
paulama, com seus braços compridos, não teve a
menor dificuldade em alçá-los para fora. Mas era
horrível estar lá em cima de novo. Lá embaixo, as
orelhas de ambos já começavam a descongelar e
por um instante puderam enxergar direito, respirar
com facilidade, falar sem ser aos gritos. Era uma
desgraça retornar ao frio devastador. Brejeiro
escolheu justamente esse momento para dizer:
– Você ainda sabe de cor aqueles sinais,
Jill? O que devemos procurar agora?
– Ora, faça-me o favor. Os sinais que se
danem – protestou a menina. – Creio que é
qualquer coisa sobre alguém mencionando o
nome de Aslam. Mas não estou nem um pouco
disposta a dar um recital de declamação aqui.
Como se vê, ela invertera a ordem dos
sinais, pois deixara de repeti-los todas as noites.
Se fizesse um esforço, ainda seria capaz de dizê-
los: só não sabia mais a lição na ponta da língua, a
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ponto de ir falando os sinais sem pestanejar. A
pergunta de Brejeiro aborreceu-a, pois, no fundo,
já estava aborrecida consigo mesma por não saber
a lição do Leão tão bem quanto deveria.
– Você deve estar embaralhando os sinais –
insistiu Brejeiro. – Bem, acho que vale a pena dar
uma olhada nesta colina...
– Não! – retorquiu Eustáquio. – Esta não é
uma boa hora para se olhar a paisagem! Vamos
em frente, caramba!
– Oh! Olhem, olhem, olhem! – gritou Jill.
Na direção norte, bem acima do lugar onde
estavam, via-se uma fileira de luzes. Não havia
mais dúvidas; tratava-se de janelas, janelinhas que
os faziam pensar nas delícias de um quarto, e
janelonas que os faziam pensar em espaçosos
salões com lareiras crepitantes, sopa quente e
lombos fumegantes.
– Harfang! – exclamou Eustáquio.
– Perfeito! – comentou Brejeiro. – Mas eu
estava dizendo...
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– Oh, cale a boca! – replicou Jill, zangada.
– Não temos um minuto a perder. Não se lembra
do que disse a dama? Temos de chegar cedo,
temos e temos. Vai ser de morte, mesmo, se
ficarmos do lado de fora numa noite como esta.
– Ainda não é bem noite... – iniciou
Brejeiro. Mas as duas crianças começaram a
seguir aos
trambolhões, tão depressa quanto possível.
O paulama ia atrás, falando sempre, embora não
fosse mais possível entender o que dizia. E nem
queriam. Pensavam em banhos, camas e bebidas
quentes. A idéia de um atraso era insuportável.
Apesar da pressa, levaram longo tempo
para cruzar o topo da colina. Depois tiveram de
descer para o outro lado. Só então tiveram a
oportunidade de ver o que era Harfang.
Harfang ficava no alto de um elevado
rochedo. Apesar de possuir muitas torres, parecia
mais uma casa enorme que um castelo. Era
evidente que os gigantes amáveis não receavam
um ataque. Havia janelas no paredão externo
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quase rentes ao chão – coisa que não encontramos
em fortalezas sérias. Havia até umas bizarras
portinhas, aqui e ali, que permitiam entrar no
castelo sem ter de atravessar o pátio. Isso
melhorou o moral de Jill e Eustáquio. O lugar
parecia mais amistoso e menos proibitivo.
A princípio, o rochedo alto e íngreme os
assustara, mas reparavam agora que existia um
caminho mais suave à esquerda. Foi uma escalada
penosa depois da longa jornada, e Jill quase
chegou a desistir; Eustáquio e Brejeiro tiveram de
ajudá-la nos últimos cem metros. Finalmente
pararam diante do portão do castelo. A porta
levadiça estava erguida e a entrada era franca.
Por mais cansados que estejamos, é preciso
ter nervos de aço para entrar na morada de um
gigante. E, apesar de todas as suas advertências
anteriores sobre Harfang, foi Brejeiro quem
demonstrou mais coragem.
– Agora, agüentem a mão. Não mostrem
sinal de medo, de jeito nenhum. Já fizemos a coisa
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mais imbecil do mundo vindo até aqui. Mas... já
que aqui estamos, temos de fazer cara de valentes.
Com essas palavras o paulama parou
debaixo do arco do portão, onde o eco poderia dar
uma ajuda a sua voz, e gritou com o resto de suas
energias:
– Ei! Porteiro! Gente buscando pousada!
Enquanto esperava que alguma coisa
acontecesse, tirou o chapéu, sacudindo da aba
uma grossa camada de neve. Eustáquio cochichou
para Jill :
– Ele pode ser um pé-frio... mas não há
dúvida de que é ousado.
Abriu-se a porta, deixando passar um
delicioso brilho de fogo, e o porteiro apareceu. Jill
mordeu os lábios para não dar um berro. Não era
um gigante propriamente enorme, quer dizer, era
mais alto do que uma macieira, mas menor do que
um poste. Cabelos vermelhos, eriçados, uma
túnica de couro com aplicações de metal, joelhos
de fora (muito cabeludos) e coisas parecidas com
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perneiras. Inclinando-se, esbugalhou os olhos para
Brejeiro:
– E que tipo de criatura é essa?
Jill tomou coragem, gritando para o
gigante:
– A Dama do Vestido Verde saúda o rei dos
gigantes amáveis: aqui manda duas crianças do
Sul e este paulama (o nome dele é Brejeiro) para a
Festa do Outono. Caso não haja, é claro, alguma
inconveniência...
– Oooh! – respondeu o porteiro. – Agora é
outra história. Entrem, pequeninos, entrem, por
favor. Fiquem na portaria enquanto mando um
recado para Sua Majestade.
E olhou para as crianças com curiosidade,
acrescentando:
– Caras azuis... Não sabia que existiam
caras dessa cor.
– Nossa cara está azul assim é de frio –
disse Jill. – Essa não é a nossa cor de verdade.
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– Então entrem e se aqueçam. Entrem,
camarõezinhos.
A porta fechou-se atrás, e isso não foi nada
agradável; mas tudo esqueceram ao depararem
com o que mais desejavam ver desde a ceia da
noite anterior – uma lareira! E que lareira! Era
como se quatro ou cinco árvores inteiras ardessem
lá dentro, tão quente que não foi possível dar mais
do que uns passos. Deixaram-se cair pesadamente
no chão de tijolos, dando grandes suspiros de
alívio.
– Garoto! – disse o porteiro para um
gigante que estava sentado no fundo da sala com
os olhos a saltar das órbitas. – Leve correndo esta
mensagem ao aposento real. – E repetiu as
palavras de Jill.
O jovem gigante, depois de dar uma olhada
final nas crianças e soltar uma grande risada, saiu
correndo. O porteiro dirigiu-se ao paulama:
– Cá para nós, seu Sapo, acho que você está
querendo algo quentinho. — E apareceu com uma
garrafa preta muito parecida com a do próprio
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Brejeiro, só que vinte vezes maior. – Espere aí,
espere aí. Se eu lhe der um cálice você vai morrer
afogado. Espere aí. Este pequeno saleiro vai
resolver. Mas não comente isso lá dentro.
O saleiro não se parecia muito com os
nossos e serviu bem como cálice, ao ser colocado
no chão do lado de Brejeiro. As crianças achavam
que este ia recusar, tal era sua falta de confiança
nos gigantes amáveis. Porém ele murmurou:
– É tarde demais para tomar precauções,
agora que estamos presos aqui dentro. – E cheirou
a bebida. – Não cheira mal. Mas isso não quer
dizer nada. Melhor provar. – Deu uma golada. –
Bom. Mas pode ser só o primeiro golpe. – Deu
uma golada maior. – Ah! Será a mesma coisa até
o fim? – Outra golada. – Lá no fundo deve ser
horrível, é claro. – E bebeu o resto. Lambeu os
beiços e observou para as crianças: – Isso é um
teste, estão entendendo? Se eu ficar torto, ou
estourar, ou virar lagartixa, ou qualquer coisa
parecida, aí vocês não devem aceitar nada aqui
dentro.
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O gigante, que estava muito em cima para
ouvir os cochichos de Brejeiro, deu uma
gargalhada gigantesca e disse:
– Boa, seu Sapo, bebeu feito um homem!
– Homem coisa nenhuma! Paulama! –
respondeu Brejeiro numa voz meio sumida. – E
nem sapo! Paulama!
A porta abriu-se e o jovem gigante entrou:
– Eles devem ir imediatamente para a sala
do trono.
As crianças puseram-se de pé, mas Brejeiro
permaneceu sentado, a resmungar:
– Paulama. Paulama. Um paulama de
respeito. Um paulespeito.
– Mostre a eles o caminho, garoto – disse o
porteiro. – É melhor carregar o seu Sapo. Ele
bebeu um pouco mais do que podia.
– Bebi coisa nenhuma! Estou bem –
protestou Brejeiro. – Sapo coisa nenhuma!
Paulespeito.
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Mas o jovem gigante o agarrou pela cintura
e fez sinal para que as crianças o seguissem.
Assim, sem muita dignidade, cruzaram o pátio.
Brejeiro, preso na mão do gigante, dando uns
vagos chutes no ar, parecia mesmo um sapo.
Entraram no portal do castelo principal com
o coração a pular. Depois de vários corredores,
percorridos em acelerado, a fim de acompanhar as
passadas gigantescas, entraram piscando na
luminosidade de uma sala enorme, onde lâmpadas
cintilavam e o fogo crepitava na lareira,
refletindo-se tudo no teto dourado.
Gigantes, que não era possível contar no
momento, estavam em pé, à direita e à esquerda,
todos suntuosamente vestidos. No fim da sala, em
dois tronos, estavam sentadas duas coisas
imensas, que deviam ser o rei e a rainha.
A uns cinco metros do trono, pararam.
Eustáquio e Jill fizeram reverências
desajeitadíssimas; o jovem gigante,
cuidadosamente, colocou Brejeiro no chão, onde o
paulama ficou mais amontoado do que sentado.
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Com suas pernas e braços muito compridos,
parecia, para dizer a verdade, uma enorme aranha.
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8
A CASA DE HARFANG
– Vá em frente, Jill, e faça o que é preciso –
murmurou Eustáquio.
Ela estava com a boca tão seca que não
pôde articular uma palavra. Acenou rispidamente
com a cabeça apontando para Eustáquio.
Achando que jamais a perdoaria, Eustáquio
passou a língua nos lábios e gritou para o rei
gigante:
– Com licença de Vossa Majestade, a Dama
do Vestido Verde, por intermédio de nós, manda
saudações e diz que Vossa Majestade apreciaria a
nossa participação na Festa do Outono.
O rei e a rainha olharam um para o outro
com um ar de inteligência e sorriram de um jeito
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que não foi do total agrado de Jill. Estava
gostando mais do rei que da rainha. Ele usava
uma bela barba encaracolada, tinha um nariz de
águia e, para um gigante, sua aparência até que
era boa. A rainha era horrendamente gorda, tinha
um queixo gordo e duplo e uma cara gorda toda
empoada – o que normalmente já não é bonito,
ficando dez vezes pior numa pessoa dez vezes
maior. O rei botou a língua de fora e lambeu os
beiços. Todo mundo faz isso: acontece porém que
a língua dele era tão grande e vermelha, e pulou
para fora tão inesperadamente, que a pobre Jill
levou um susto.
– Oh, que boas crianças! – disse a rainha.
“Vai ver, ela é que é simpática”, pensou Jill.
– Verdade, verdade! – replicou o rei. –
Excelentes, excelentes crianças! São bem-vindas à
minha corte. Apertem a minha mão.
Estendeu a mãozona, muito limpa e cheia
de anéis, mostrando, no entanto, umas unhas
pontudas. Não foi possível um aperto de mão.
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– E que coisa é esta? – perguntou o rei,
mostrando Brejeiro.
– Res..pei..to..la..ma – protestou Brejeiro.
– Oh! – gritou a rainha, juntando a saia até
os tornozelos. – Que coisa mais horrível! Está
viva!
– É uma pessoa de bem, Majestade, dou-lhe
a minha palavra – interveio Eustáquio, afobado. –
Gostará mais dele quando o conhecer melhor.
Tenho certeza.
Espero que você não fique desapontado
com Jill se eu lhe disser que, nesse momento, ela
começou a chorar! Tinha seus motivos, coitada:
seus pés, mãos, orelhas e nariz estavam
começando a degelar; neve derretida encharcava
suas roupas; não tinha comido praticamente nada
durante aquele dia; e as pernas doíam tanto que
ela mal se agüentava em pé. De qualquer modo,
parece que foi o melhor que poderia ter feito
naquele momento, pois a rainha interveio:
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– Ah, coitadinha! Senhor meu rei, é uma
maldade o que estamos fazendo com nossos
hóspedes, deixando-os aqui em pé. Servos!
Levem-nos. Precisam de comida, de vinho e de
banho. Consolem a menininha com pirulitos e
bonecas, tudo o que for bom – morangos com
creme, bombons, passas, cantigas de ninar,
brinquedos. Não chore, meu benzinho, você assim
vai ficar feia para a Festa do Outono.
Jill ficou indignada com aquela referência
aos brinquedos. E, embora bombons e morangos
com creme não fossem nada maus, torceu para
que alguma coisa mais substanciosa fosse servida.
Mas a intervenção gaiata da rainha deu excelentes
resultados, pois Brejeiro e Eustáquio foram
imediatamente erguidos por serviçais; coube a Jill
uma gigantesca dama de honra. Foram carregados
para os quartos.
O de Jill era mais ou menos do tamanho de
uma igreja e seria mesmo um pouco sombrio se
não dispusesse de uma crepitante lareira e de um
grosso tapete escarlate. Coisas deliciosas
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começaram a acontecer. Foi entregue aos
cuidados da velha ama da rainha, que, do ponto de
vista dos gigantes, era só uma mulherzinha
vergada pelo tempo; do ponto de vista humano,
era uma giganta que não chegava a bater com a
cabeça no teto. Eficiente era, e muito. Jill só ficou
desejando que ela parasse de falar coisas assim:
“Que bebê mais lindo!” – “Levante o bracinho.” –
“Mais um instantinho só, minha bonequinha
adorada.”
Ajudou a colocar Jill na banheira.
Felizmente a menina sabia nadar e aproveitou ao
máximo o banho tépido. Quanto às toalhas
gigantescas, por um pouquinho ásperas que sejam,
também valem a pena, pois são metros e metros
de pano. Nem é necessário enxugar-se nelas: basta
enrolar-se e ir aproveitar as delícias da lareira. As
roupas que ela vestiu, limpas, quentinhas e lindas,
eram meio grandes, mas, sem dúvida nenhuma,
tinham sido talhadas para gente humana e não
para gigantes. O que fez Jill pensar: “Se a Dama
do Vestido Verde freqüenta o palácio, eles devem
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estar acostumados com hóspedes do nosso
tamanho.”
Viu pouco depois que estava certa a esse
respeito, pois mesa e cadeira de dimensões
normais para uma criatura humana adulta foram
trazidas para ela; garfos, facas e colheres eram
igualmente da medida humana.
Que maravilha sentar-se, sentindo-se
agasalhada e limpa! De pés ainda descalços, era
uma delícia andar pelo tapete gigante. Mergulhou
nele até os tornozelos e não podia existir coisa
melhor para pés doloridos. A refeição – que talvez
deva ser chamada de jantar – consistiu em caldo,
carne de peru, pastelão, castanhas assadas e frutas,
à vontade.
Só houve uma coisa aborrecida: a ama
entrava e saía a todo momento, trazendo de cada
vez um gigantesco brinquedo, bonecas imensas
(maiores do que a própria Jill ), um cavalo de pau
sobre rodas (do tamanho de um elefante), um
tambor (que parecia uma caixa-d’água), um
carneiro de lã... Eram grosseiros, muito malfeitos
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e tingidos de cores berrantes. Jill, que os
detestava, disse inúmeras vezes que não os queria.
Mas a ama respondia:
– Tuc-tuc-tuc. Meu benzinho vai gostar de
brincar quando estiver descansadinha. Sei disso,
sei disso. Tic-tic-tuc. Agora caminha, bonequinha
linda.
Não era uma cama gigante, apenas uma
dessas camas esquisitas que ainda podem ser
vistas nos hotéis fora de moda. Parecia minúscula
no enorme aposento. Jill pulou alegremente para
cima dela, perguntando:
– Ainda está nevando?
– Não, minha graça. Agora está chovendo.
A chuva vai acabar com essa neve horrorosa.
Amanhã a bonequinha vai poder brincar lá fora. –
A ama ajeitou as cobertas de Jill e deu boa-noite.
Não há nada pior do que ser beijada por
uma giganta, ficou pensando Jill, mas não por
muito tempo, pois logo adormeceu.
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A chuva caiu durante a noite toda,
chicoteando as janelas do castelo. A menina não
ouviu nada, dormindo profundamente até meianoite.
Quando chegou essa hora morta e só os
camundongos faziam um pouco de barulho na
casa dos gigantes, teve um sonho. Sonhou que
tinha acordado naquele mesmo quarto, com o
clarão da lareira iluminando o enorme cavalo de
pau. E, por conta própria, o cavalo veio rodando
em cima do tapete, parando perto de seu rosto. E
já não era mais um cavalo, mas um leão tão
grande quanto o cavalo. Depois não era mais um
leão de brinquedo, mas um leão de verdade, o
Leão de Verdade, tal qual o vira na montanha
além do fim do mundo. Um cheiro bom encheu o
quarto. Mas Jill estava confusa, embora não
soubesse por quê, e lágrimas correram por seu
rosto, molhando o travesseiro. O Leão disse-lhe
que repetisse os sinais, mas ela os esquecera
completamente. Foi tomada de horror. Aslam
agarrou-a com as mandíbulas (ela sentia seus
lábios e sua respiração, mas não os dentes) e
levou-a até a janela. A lua brilhava. Em letras
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grandes, estampadas no mundo ou no céu (não
sabia dizer ao certo), estavam estas palavras:
DEBAIXO DE MIM. Aí, o sonho desapareceu.
Acordou bem tarde na manhã seguinte e já não se
lembrava mais do que sonhara.
Já havia tomado a primeira refeição quando
a ama abriu a porta e anunciou:
– Aqui estão os amiguinhos para brincar
com a bonequinha.
Entraram Eustáquio e o paulama.
– Bom dia — disse Jill. — Dormi umas
quinze horas. Estou me sentindo muito melhor, e
vocês?
– Eu também – respondeu Eustáquio –, mas
Brejeiro queixou-se de dor de cabeça. Ei, sua
janela tem um banco para olhar a vista... Se
subirmos nele poderemos dar uma olhada lá fora.
E foi o que fizeram. Ao deparar com aquela
visão, Jill exclamou:
– Ai, que coisa assustadora!
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O sol brilhava e a neve tinha sido quase
completamente lavada pela chuva. Embaixo,
estendida feito um mapa, estava a chapada que
tinham percorrido com tanta dificuldade na
véspera. Vista do castelo, não podia haver dúvida
de que se tratava das ruínas de uma cidade
gigantesca. Parecera lisa porque ainda conservava
um pouco da velha pavimentação. As bordas
laterais eram o que sobrava das paredes de
imensos edifícios, certamente palácios e templos
no passado. Um pedaço de parede, com mais de
cento e cinqüenta metros de altura, ainda
permanecia em pé; era o que tinham tomado por
um penhasco. O que parecera chaminés de
fábricas eram colunas enormes, partidas em
diferentes alturas; os fragmentos jaziam perto das
bases como monstruosas árvores tombadas. Os
rebordos que tinham galgado no lado norte da
colina eram os restos dos degraus de uma escada
de gigantes. Para completar, em letras grandes e
escuras ao longo da pavimentação, estavam
escritas estas palavras: DEBAIXO DE MIM.
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Os três entreolharam-se desapontados.
Depois de dar um assovio curto, Eustáquio disse o
que todos estavam pensando:
– Segundo e terceiro sinais pifados.
Foi então que, de repente, Jill se lembrou
do sonho. E disse, desesperada:
– A culpa é minha... Parei de repetir os
sinais na hora de dormir. Se tivesse prestado
atenção a eles, teria visto logo que isso aí era uma
cidade, mesmo com aquela neve toda.
– Pois eu sou pior ainda – disse Brejeiro. –
Eu vi que era... ou quase... Parecia mesmo uma
cidade em ruínas.
– Você é o único que não tem culpa alguma
– disse Eustáquio. – Tentou fazer com que a gente
parasse.
– Não tentei com bastante força – replicou
o paulama. – Devia ter feito isso, ora essa! Como
se não fosse fácil segurar vocês!
– A verdade é a seguinte – disse Eustáquio:
– A gente estava tão ansioso para chegar aqui, que
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não demos bola para mais nada. Eu, pelo menos.
Desde o momento em que encontramos aquela
mulher com o cavaleiro que não dizia bulhufas,
não pensamos mais em coisa nenhuma. E quase
esquecemos o príncipe Rilian.
– Para mim – comentou Brejeiro –, era isso
o que a mulher estava querendo.
– O que não entendo direito – disse Jill – é
a gente não ter visto o letreiro. Será que ele só
apareceu depois? Será que Aslam não o colocou
aí durante a noite? Tive um sonho tão esquisito!
E contou a eles o sonho. Eustáquio
exclamou:
– Sua boboca! Nós vimos o letreiro! Nós
andamos no letreiro. Entramos na letra E de
DEBAIXO lá onde você caiu. Andamos no fundo
do E, viramos primeiro à direita, a primeira
perninha, depois viramos outra vez para a direita,
a perninha do meio, depois fomos até o fim do E e
voltamos. Como somos idiotas!
Eustáquio deu um chute e continuou:
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– Nada feito, Jill. Sei o que você estava
pensando porque eu estava pensando a mesma
coisa. Você estava pensando como seria bom se
Aslam só tivesse colocado as instruções nas
pedras da cidade em ruínas depois que a gente
tivesse passado. Assim, a culpa seria dele, e não
nossa. Ótimo, não é? Nada disso. Temos de
aceitar as coisas como elas são. A gente tinha
somente quatro sinais para seguir e já falhamos
nos três primeiros.
– Está querendo dizer que eu falhei! –
replicou Jill. – E é a pura verdade. Estou
estragando tudo desde que você me trouxe para
cá. Desculpe, desculpe, desculpe, mas, de
qualquer jeito, quais são as instruções?
DEBAIXO DE MIM não faz muito sentido.
O paulama interveio:
– Faz! O sentido é este: devíamos ter
procurado o príncipe debaixo da cidade.
– Mas como fazer isso? – perguntou Jill.
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– Aí é que está – respondeu Brejeiro,
esfregando as mãos de sapo. – Como fazer isso
agora? Se a gente estivesse com a cabeça no lugar
ao passar pela cidade em ruínas, teríamos achado
um jeito, uma portinha, uma gruta ou um túnel;
teríamos encontrado alguém que nos ajudasse.
Pode ser que até o próprio Aslam, quem sabe. O
fato é que a gente teria entrado de qualquer
maneira debaixo daquelas pedras. As instruções
de Aslam sempre funcionam: nunca houve uma
exceção. Como fazer isso agora, é um caso
completamente diferente.
Jill falou:
– Bem, já que é assim, acho que temos de
voltar...
– Facílimo! – ironizou Brejeiro. – Para
começar, é só tentar abrir aquela porta...
Olharam todos para a porta e viram logo
que nenhum deles poderia alcançar a maçaneta. E,
mesmo que pudesse, não iria ter força suficiente
para virá-la.
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– Quem sabe eles nos deixam sair... se
pedirmos? – disse Jill.
Ninguém respondeu nada, mas todos
pensaram: “E se não deixarem?”
Não era uma idéia simpática. Brejeiro tinha
verdadeira repulsa por qualquer idéia que os
levasse a contar aos gigantes o verdadeiro motivo
da sua visita. Sem contar, não teriam decerto
permissão para ir lá fora. Contar não podiam, por
causa da promessa. E todos concordavam que não
haveria jeito de escapar do castelo durante a noite.
Com as portas dos quartos fechadas, seriam
prisioneiros até o amanhecer. Poderiam, é claro,
pedir que deixassem a porta aberta, mas isso iria
despertar suspeitas.
– Nossa única chance – disse Eustáquio – é
tentar cair fora durante o dia. Será que os gigantes
não gostam de tirar uma soneca durante a tarde?
Será que na cozinha não existe uma portinha
aberta?
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– Isso não é bem o que eu chamo de uma
chance – replicou o paulama. – Mas é a única que
temos.
Na verdade, o plano de Eustáquio não era
tão despropositado quanto se pode pensar. Se a
gente pretende sair de uma casa sem ser visto,
durante a tarde é de certo modo melhor do que
durante a noite. É mais provável encontrar janelas
e portas abertas. Se você for apanhado, sempre
pode fingir que não pretende ir longe e que está aí
à toa. Mas é muito difícil fazer um gigante ou uma
pessoa» grande acreditar nisso, se você for
apanhado em cima da janela depois da meia-noite.
– Temos primeiro de desfazer as
desconfianças
– falou Eustáquio. – Devemos fingir que
adoramos estar aqui e que estamos ansiosos pela
Festa do Outono.
– A festa é amanhã à noite – informou
Brejeiro.
– Ouvi um deles dizendo isso.
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– Já vi tudo! – exclamou Jill. – Devemos
fingir que não pensamos noutra coisa. É ficar
perguntando sobre a festa o tempo todo, encher de
perguntar. Eles vão pensar que somos mesmo
crianças, e assim ficará mais fácil.
O paulama suspirou:
– Alegres! É isso: devemos bancar os
alegrões! Como se não tivéssemos a menor
preocupação. Os brincalhões. Vocês dois nem
sempre estão de bom humor. Já notei. Eu mostro
como é ser alegre. Assim, ó... – E fez uma cara
sinistra de enterro. – Se prestarem atenção em
mim, não custarão a aprender. Aliás, eles já me
acham muito divertido, é ou não é? Também
vocês, aposto que me acharam um tiquinho
bêbado ontem... Pois dou minha palavra que eu
estava... bem, em grande parte... representando.
Senti que isso de algum modo poderia ter
utilidade.
As crianças, ao se referirem mais tarde a
essas aventuras, nunca tiveram certeza de que a
afirmação de Brejeiro fora realmente sincera. Mas
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estavam certas de uma coisa: na hora, Brejeiro
estava crente de que dizia a verdade.
– Perfeitamente: alegria é a palavra de
ordem – arrematou Eustáquio. – No momento, o
problema é encontrar alguém que abra aquela
porta. Enquanto estivermos representando e
bancando os inocentes, devemos descobrir tudo o
que for possível.
Nesse exato instante a porta se abriu. A
ama entrou toda espalhafatosa:
– Então, meus bonecos, que tal ir ver o rei e
sua corte partirem para a caça? É uma beleza!
Não perderam tempo: deixando a ama no
quarto, desceram a primeira escada que apareceu.
Pelo barulho dos cães de caça, das trompas e das
vozes gigantescas, acharam logo o caminho do
pátio. Os gigantes estavam a pé, pois não há
cavalos gigantes naquelas bandas do mundo. Os
cães eram do tamanho comum. Jill, não
encontrando cavalos, ficou a princípio muito
decepcionada, pois sabia que a rainha gordalhona
de maneira alguma participaria de uma caçada a
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pé, e não seria nada promissor tê-la em casa o dia
todo. Mas, em seguida, viu a rainha recostada
numa espécie de liteira sobre os ombros de seis
jovens gigantes.
Vinte ou trinta gigantes, inclusive o rei,
estavam reunidos, prontos para a caça, falando e
rindo numa algazarra de ensurdecer. A altura de
Jill, mexendo os rabinhos, latindo, fungando,
estavam os cachorros.
Brejeiro estava para assumir uma daquelas
poses que só ele mesmo achava irresistivelmente
alegres e descontraídas (o que poderia ter
entornado o caldo), quando Jill “ligou” o seu mais
adorável sorriso infantil e correu para a liteira da
rainha, berrando:
– A senhora não vai embora, não é?... A
senhora vai voltar?
– Claro, querida, volto logo à noitinha –
respondeu a rainha.
– Oh, que bom! – gritou Jill. – E nós
também iremos à festa amanhã, não é? Mal posso
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esperar. Que bonito aqui! rainha, enquanto a
senhora estiver passeando, a gente pode correr aí
pelo castelo? Por favor!
A rainha disse “pode”, mas a gargalhada
dos nobres quase abafou sua voz majestosa.
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9
UMA DESCOBERTA QUE
VALEU A PENA
Os outros concordaram mais tarde que Jill
tinha sido mesmo maravilhosa naquele dia. Assim
que o rei e os outros caçadores partiram, ela
começou a fazer uma visita “turística” pelo
castelo, indagando tudo, mas de um jeito tão
inocente e criançola que ninguém poderia
suspeitar de uma intenção secreta. Apesar de falar
sem parar, não se deve afirmar que conversava:
tagarelava e ria infantilmente. Fez agradinhos a
todo mundo: lacaios, porteiros, mucamas, damas
de honra, velhos lordes gigantes que já não
caçavam mais. Agüentou os beijos e os agarros de
várias gigantas, muitas das quais, parecendo sentir
pena dela, suspiravam “coitadinha”, sem no
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entanto explicar o porquê. Ficou especialmente
amiga do mestre-cuca e descobriu o fato
importantíssimo de que havia uma porta dando da
copa para fora do castelo; não era preciso
atravessar o pátio ou passar pelo grande portão de
entrada.
Na cozinha bancou a gulosa, comendo
todos os beliscos e raspas que o cuca e os
ajudantes lhe ofereciam com satisfação. Lá em
cima, entre as damas, perguntava sobre que roupa
usar na grande festa, até que hora poderia ficar, se
devia dançar com algum gigante pequenininho.
Depois (ficava vermelhinha quando se lembrava
disso mais tarde), inclinava a cabeça para um
lado, toda boboca (os adultos, gigantes ou não,
acham isso muito engraçadinho), e, enrolando os
cachinhos e fazendo um trejeito, perguntava: “Ah,
eu queria tanto que a festa fosse amanhã mesmo;
você não? Vai demorar muito para chegar?” E as
gigantas todas achavam isso um amor; algumas
tapavam os olhos com o lenço como se fossem
chorar.
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– Eles são uma gracinha, nessa idade –
disse uma giganta para outra. – Chega a ser uma
pena...
Eustáquio e Brejeiro também se esforçaram
muito, mas a verdade é que as meninas fazem esse
tipo de representação muito melhor que os
meninos. E os meninos ainda fazem melhor que
os paulamas.
Na hora do almoço aconteceu uma coisa
que os deixou ainda mais ansiosos para dar o fora.
Almoçaram no grande salão numa mesinha
especial, perto da lareira. Numa mesa enorme, um
pouco adiante, comiam também uns seis gigantes.
A conversa deles era tão barulhenta que as
crianças deixaram de prestar atenção ao que
diziam, do mesmo modo que a gente se “desliga”
da barulhada do tráfego na rua. Estavam comendo
carne fria, uma caça que Jill nunca tinha provado
antes, mas estava gostando.
De repente Brejeiro virou-se para os dois, e
a cara dele estava tão pálida que era possível
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enxergar a palidez sob o aspecto enlameado de
sua fisionomia.
– Parem de comer – disse ele –, nem mais
uma garfada!
– Que está acontecendo? – perguntaram.
– Não estão ouvindo o que os gigantes
estão dizendo?”Que bom pernil macio”, disse um.
“Então aquele cervo era um mentiroso”, disse o
outro. “Por quê?”, perguntou o primeiro. “Ué,
quando foi agarrado, ele implorou: ‘Não me
matem, minha carne é muito dura, vocês vão
detestar’.”
Jill só entendeu tudo quando Eustáquio
arregalou os olhos e exclamou:
– Epa! Estamos comendo um cervo falante!
A descoberta não produziu sobre os três um
efeito idêntico. Jill, que era novata naquele
mundo, sentiu pena do pobre cervo e pensou
horrores dos gigantes que o haviam matado.
Eustáquio, que lá estivera antes e que fizera pelo
menos uma grande amizade com um bicho
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falante, ficou indignado com aquele crime a
sangue-frio. Mas Brejeiro, narniano de nascença,
sentiu-se muito mal, como se sentiria um ser
humano que tivesse almoçado um bebê.
– Provocamos a ira de Aslam – disse ele. –
É o que acontece quando não obedecemos aos
sinais. Pesa sobre nós uma maldição. O melhor
que poderíamos fazer era cravar estas facas em
nossos corações – se isso nos fosse concedido.
Pouco a pouco, até Jill passou a aceitar esse
ponto de vista. Uma coisa foi certa: ninguém quis
comer mais.
Estava chegando a hora decisiva da qual
dependeria a esperança de fugir. Todos se
encontravam nervosos. Postaram-se na passagem
e esperaram. Os gigantes ficaram ainda um bom
tempo no salão, depois de terminado o almoço. O
careca contava um caso. Ao final, os três, como
quem não quer nada, foram caminhando
devagarzinho para a cozinha. Ainda havia uma pá
de gigantes na copa, lavando e arrumando as
coisas. Foi de morte esperar que terminassem o
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trabalho. Por fim lavaram as mãos e se foram, um
atrás do outro. Só ficou na cozinha uma velha
giganta, que mexia numa coisa, mexia em outra,
até que os três compreenderam, horrorizados, que
ela não tinha a intenção de sair.
– Bem, meus amorecos – disse ela –,
façam-me um favorzinho: vejam se a porta da
copa está aberta.
– Está – respondeu Eustáquio.
– Ótimo. Assim o gatinho pode entrar e sair
quando quiser.
A giganta sentou-se numa cadeira, pôs os
pés sobre uma banqueta, dizendo:
– Acho que vou dar um cochilo. Se a droga
daquela caçada não acabar cedo demais...
As crianças se animaram quando ela se
referiu ao cochilo, mas ao ouvi-la mencionar a
volta dos caçadores quase desfaleceram.
– A que horas eles costumam voltar? –
perguntou Jill.
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– Ninguém sabe. Mas fiquem quietinhos, só
um pouco, meus amorecos.
Os três foram para o fundo da cozinha, de
onde teriam deslizado para a copa se a giganta não
abrisse os olhos para espantar uma mosca.
– Só depois que ela estiver dormindo
mesmo! – murmurou Eustáquio.
Agrupados num canto, ficaram observando.
A idéia de que os gigantes poderiam chegar a
qualquer momento era de arrepiar. E a giganta se
revirava sem parar!
“Não agüento mais isso”, pensou Jill,
procurando com os olhos alguma coisa que a
distraísse. Bem em frente, estava uma mesa limpa
com duas travessas e um livro aberto em cima.
Travessas gigantescas, é claro. Jill achou que uma
delas daria uma boa cama. Subiu no banco ao lado
da mesa e deu uma espiada no livro. Leu o
seguinte:
PATO ASSADO – Esta ave realmente
deliciosa pode ser feita de várias maneiras.
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“Um livro de receitas”, refletiu Jill sem
maior interesse e espiou por cima do ombro. Os
olhos da gigante permaneciam fechados, mas não
demonstravam que ela estivesse de fato dormindo.
Jill deu outra espiada no livro, que era escrito em
ordem alfabética. Acima de pato assado, estava
uma receita que fez seu coração ficar gelado.
PASTELÃO HUMANO – Este elegante
bipedezinho há séculos é apreciado pela
delicadeza de seu paladar. Constitui uma
tradição da Festa do Outono e é servido
entre o peixe e o assado. Para temperar
pastelão humano...
Não conseguiu ir adiante. Virou-se. A
giganta sofria um acesso de tosse. Jill deu uma
cotovelada nos outros dois e apontou o livro.
Ambos subiram no banco e curvaram-se sobre as
páginas imensas. Eustáquio estava ainda lendo
como fazer de um homem um delicioso pastelão,
quando Brejeiro mostrou o que vinha logo abaixo:
PAULAMA SUPERCOZIDO – Grandes
mestres da culinária não recomendam este
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animal para o consumo dos gigantes, por
causa de sua consistência fibrosa e do
sabor de lama. No entanto, esse sabor pode
ser reduzido...
Jill fez aos dois um sinal. A boca da giganta
estava meio aberta e de seu nariz saía um barulho
que, naquele momento, era mais doce do que a
música mais linda: ela roncava.
A questão agora era andar na ponta dos pés,
não se afobar, respirar leve, passar pela copa
(copa de gigante cheira muito mal) e ganhar a luz
fraquinha de uma tarde de inverno.
Chegaram ao alto de um caminho agreste
que descambava numa ladeira. Do lado direito do
castelo, felizmente, podia-se ver a cidade em
ruínas. Em poucos minutos encontravam-se de
novo na estrada larga e íngreme que descia do
portão principal do castelo. Podiam ter uma vista
completa das janelas daquele lado. Se fossem
umas poucas janelas teriam alguma chance de não
serem vistos, mas o caso é que eram umas
cinqüenta. Também percebiam agora que a
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estrada e toda aquela extensão do terreno entre
eles e a cidade em ruínas não poderiam servir de
proteção nem a uma raposa; era tudo pedra e
capim. Para piorar, usavam as roupas arranjadas
pelos gigantes – menos Brejeiro, para quem nada
servira. Jill usava uma veste verde, de tonalidade
viva, com um manto escarlate debruado de pelica
branca. Eustáquio ia de calção escarlate, túnica e
manto azuis, uma espada de punho– dourado e um
gorro emplumado.
– Que cores mais lindas! – resmungou
Brejeiro. – O pior arqueiro do universo não erraria
os dois. Por falar nisso, vamos sentir falta dos
nossos arcos muito em breve. Meio leves também
estas roupas, não?
– Levíssimas, estou tiritando de frio –
respondeu Jill.
Poucos minutos antes, lá na cozinha, ela
achava que, se conseguissem escapar do castelo,
estaria tudo resolvido. Agora compreendia que
estava apenas no começo da parte mais perigosa
da aventura.
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– Ânimo firme! – falou Brejeiro. – Não
olhem para trás. Sem pressa. Aconteça o que
acontecer, não corram. Vamos fingir que só
estamos dando uma voltinha; se encontrarmos um
gigante, não é de todo impossível que ele não
desconfie de nada. Mas, se parecer que estamos
fugindo, estaremos fritos.
A distância até a cidade em ruínas parecia
maior. Ouviram um barulho. Jill perguntou o que
era.
– Trompas de caça – cochichou Eustáquio.
– Nada de correr! – falou Brejeiro. – Só
quando eu mandar.
Jill não resistiu à vontade de dar uma
olhadela para trás. A menos de um quilômetro, os
caçadores retornavam, à esquerda.
Continuaram a passo. De repente ouviu-se
um grande clamor de vozes e gritos. Brejeiro
bradou:
– Já nos viram: corram!
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Jill juntou as saias compridas – “Que coisa
mais chata fugir desse jeito!” – e correu. Não
havia engano possível. Já podia distinguir a
melodia das trompas. Ouvia a voz do rei,
berrando: “Peguem, peguem, não deixem fugir
meus pastelões.”
Era a última na corrida, atrapalhada com o
vestido, escorregando em pedras soltas, os cabelos
entrando na boca, o peito doendo. E as trompas
cada vez mais próximas. Tinha agora de subir a
colina, galgando a encosta pedregosa que
conduzia ao primeiro degrau da escada dos
gigantes. Não sabia o que poderiam fazer
chegando lá, mas não adiantava pensar nisso.
Sentia-se uma caça: com a cachorrada atrás dela,
tinha de correr até não poder mais.
O paulama ia na frente. Chegando ao
primeiro degrau, deu uma parada, olhou à direita,
e entrou velozmente por uma fenda; as
compridíssimas pernas, quando desapareceram,
fizeram lembrar outra vez uma aranha. Eustáquio,
depois de certa hesitação, sumiu atrás dele. Jill,
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cambaleando e ofegante, chegou ao local um
minuto depois. A fenda nada tinha de convidativa:
aberta entre a terra e a pedra, tinha menos de um
metro de comprimento e pouco mais de trinta
centímetros de altura. Era preciso raspar o chão
para entrar. Levava algum tempo. Jill tinha a
certeza de que seu calcanhar seria agarrado por
um cachorro antes de chegar lá dentro.
– Rápido. Pedras. Tampem a saída.
Era a voz de Brejeiro no escuro, a seu lado.
Só chegava ao buraco a luz cinzenta que coava
pela fenda. Jill ainda conseguia ver as pequenas
mãos de Eustáquio e as grandes mãos de sapo de
Brejeiro a empilhar grandes pedras com a rapidez
do desespero. Entendeu logo a importância
daquilo e começou a ajudar. Antes que os cães
começassem a latir e ganir, a boca da fenda estava
tampada. Agora, naturalmente, a luz se fora.
– Mais adiante, depressa – comandou a voz
de Brejeiro.
– De mãos dadas – gritou Jill.
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– Boa idéia – falou Eustáquio, mas não foi
muito fácil encontrar as mãos no escuro.
Os cães já fungavam lá fora.
– Vamos ver se podemos ficar em pé –
sugeriu Eustáquio.
Podiam. Brejeiro estendeu a mão para trás a
Eustáquio, este estendeu a mão para Jill, que teria
preferido mil vezes ser a do meio, e não a última.
Começaram a avançar experimentando o chão
com os pés e tropeçando para a frente na
escuridão. Brejeiro deu com uma parede de rocha.
Viraram-se um pouco para a direita e
prosseguiram. Existiam outras curvas e voltinhas.
Jill não tinha o menor senso de direção, ignorando
por completo onde ficara a boca da caverna.
Ouviu-se a voz de Brejeiro:
– O problema é saber o que seria melhor:
voltar (se for possível) e proporcionar um grande
prazer aos gigantes; ou enfrentar os dragões que
devem existir neste buraco. De minha parte...
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Tudo aconteceu num átimo. Ouviu-se um
grito selvagem, um ruído de pedras despencando,
e Jill viu-se a escorregar, escorregar, escorregar
sem esperança, cada vez mais velozmente, por
uma descida cada vez mais íngreme. E não era
uma descida macia e firme, mas feita de pedrinhas
e detritos. Ia escorregando mais deitada do que em
pé. E quanto mais os três deslizavam para baixo,
mais coisas se desconjuntavam, mais barulhento,
mais empoeirado, mais precipitado ficava aquele
escorregar sem fim. Jill pensou que as pedras que
ela ia descolando ao passar deviam estar
machucando horrivelmente Eustáquio e Brejeiro.
Deslizando a uma velocidade espantosa, estava
certa de que se partiria em pedacinhos quando
chegasse ao fundo.
Nem tanto. Ela tinha ferimentos por todo o
corpo, é verdade, e a coisa espessa e úmida em
seu rosto parecia sangue. Havia tanta terra, tanta
pedra e tanta coisa ao redor dela, e até em cima,
que não conseguiu levantar-se. A escuridão era
tanta que dava no mesmo abrir ou fechar os olhos.
Silêncio absoluto.
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Foi o pior momento da vida de Jill, que se
pôs a imaginar se estaria ali sozinha... se os
outros...
Percebeu movimentos perto. Os três
começaram, com a voz trêmula, a verificar se
alguém tinha quebrado algum osso.
– A gente não vai ficar em pé nunca mais –
disse a voz de Eustáquio.
– Já notaram como está quentinho aqui? –
Era a voz de Brejeiro. – Devemos ter escorregado
um bocado, um quilômetro, por aí.
Depois de um silêncio, voltou a voz de
Brejeiro:
– Minha binga sumiu.
Nova longa pausa. A voz de Jill :
– Estou com uma sede danada.
Nenhuma sugestão. Não havia nada a fazer:
isso era óbvio. Por enquanto, não se sentiam tão
horrorizados quanto seria de se esperar: é porque
se encontravam exaustos.
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Muito tempo depois, sem o menor aviso,
ouviu-se uma voz completamente estranha.
Sentiram logo que não era a única voz no mundo
pela qual secretamente esperavam: a voz de
Aslam. Era uma voz escura, monótona e
cavernosa, que perguntou:
– Que fazem aqui, criaturas do Mundo de
Cima?
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VIAGEM SEM SOL
– Quem está aí? – bradaram os três.
– Sou o guardião do Submundo e comigo
estão armados cem terrícolas – foi a resposta. –
Digam logo: quem são vocês e qual a missão que
os traz ao Reino Profundo?
– Caímos aqui sem querer – disse Brejeiro,
com toda a sinceridade.
– Muitos caem e poucos retornam às terras
ensolaradas – replicou a voz. – Preparem-se: irão
comigo à rainha do Reino Profundo.
– Ela deseja alguma coisa de nós? –
perguntou Eustáquio, cauteloso.
– Não sei – respondeu a voz. – A ela não
fazemos perguntas: obedecemos.
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Enquanto dizia essas palavras, ouviu-se o
barulho de uma pequena explosão, e uma luz fria,
cinzenta e um tanto azulada invadiu a caverna. A
esperança de que o porta-voz estivesse só
contando vantagem a respeito dos cem homens
armados morreu no momento. Jill viu-se de olhos
pregados numa multidão compacta. Eram de todos
os tamanhos, desde pequenos gnomos que mal
chegavam a trinta centímetros de altura a figuras
imponentes, mais altas que um homem. Todos
carregavam forcados e eram horrendamente
pálidos e imóveis quais estátuas. Afora isso eram
todos diferentes: alguns tinham rabo, outros não;
alguns usavam grandes barbas; outros tinham o
rosto redondo e liso, grande como uma abóbora.
Havia narizes compridos e pontudos, narizes
moles e compridos como pequenas trombas e
narigões embolotados. Vários deles tinham um
chifre no meio da testa. Mas, sob um aspecto,
eram todos parecidos: ninguém seria capaz de
imaginar expressões tão tristes. Eram tão tristes
que, depois do primeiro susto, Jill quase se
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esqueceu de ter medo deles. Sentia até certa
vontade ou obrigação de animá-los um pouco.
– Bem! – interveio Brejeiro, esfregando as
mãos. – É disso que estou precisando. Se esses
caras não me ensinarem a levar a vida a sério, não
sei quem seria capaz disso. Olhem só aquele ali
com bigode de foca... ou aquele outro...
– Sentido! – comandou o chefe dos
terrícolas. Não havia mais nada a fazer. Os três
viajantes perfilaram-se e tocaram-se nas mãos.
Precisamos encontrar uma mão amiga num
momento como esse. Os terrícolas cercaram-nos,
pisando com pés grandes e moles; alguns pés
tinham dez dedos, outros doze, outros nenhum.
– Marchem – comandou o guardião. E eles
marcharam.
A luz fria vinha de uma grande bola na
ponta de um varapau, conduzido à frente do
batalhão pelo mais alto dos gnomos. Sob essa luz
nada estimulante, puderam reparar que se
encontravam numa gruta natural, cujas paredes e
teto se retorciam em mil formas fantásticas.
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O chão pedrento ia descendo à medida que
avançavam.
Era pior para Jill que para os outros: ela
tinha horror a escuridão e a grutas. Então, quando
a caverna ficou mais baixa e mais estreita, e o
porta-luz colocou-se de lado, enquanto os anões
agachavam-se (todos, menos os menorzinhos) e
desapareciam numa pequena fenda escura, ela
sentiu que não ia agüentar mais.
– Não posso entrar aí! Não posso! Não
posso! Não entro! – gritou.
Os terrícolas nada disseram, só apontaram
as lanças para ela.
– Agüente firme, Jill – falou o paulama. –
Esses caras maiores não iam entrar nesse buraco
se ele não se alargasse mais adiante. E há uma
vantagem nessa coisa de subterrâneo: chuva não
teremos.
– Oh, você não entende; eu não posso.
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– Lembre-se do que eu senti naquele
penhasco, Jill – falou Eustáquio. – Você vai na
frente, Brejeiro, e eu vou atrás dela.
– Perfeito – respondeu o paulama, pondo-se
de joelhos e mãos no chão. – Você toca em meus
calcanhares, Jill, e Eustáquio toca nos seus. Assim
nos sentiremos mais seguros.
– Seguros! – exclamou Jill entrando afinal
na fenda.
Que lugar mais repugnante! Foi preciso
quase arrastar o rosto no chão por um tempo que
pareceu meia hora, embora não tivesse sido de
fato mais do que cinco minutos. E como era
quente ali; Jill sentiu-se sufocada. Por fim uma
luzinha apareceu à frente; o túnel foi ficando mais
largo e mais alto e eles chegaram, sujos e
avermelhados, a uma caverna tão vasta que nem
parecia uma caverna.
Era banhada por uma luminosidade vaga e
modorrenta; já não precisavam da estranha
lanterna dos terrícolas. O chão, com uma espécie
de musgo, era macio, e dele cresciam muitas
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formas estranhas, altas e cheias de ramos como as
árvores, mas com a consistência de cogumelos. A
luz, cinza-esverdeada, parecia irradiar dessas
formas e do musgo, e não dava para iluminar o
teto da gruta, que devia estar muito lá no alto.
Seguiam agora por esse lugar macio e sonolento.
E muito triste, mas de uma tristeza que traz
quietude, como certas músicas suaves.
Passaram por dezenas de animais esquisitos
estendidos sobre a relva, mortos ou adormecidos.
Muitos lembravam dragões e morcegos, mas
Brejeiro não sabia distingui-los.
– Esses bichos são daqui mesmo? –
Eustáquio perguntou ao guardião. Este mostrou-se
muito surpreso por lhe terem dirigido a palavra,
mas respondeu:
– Não. São bichos que chegaram aqui
através de abismos e grutas, vindos do Mundo de
Cima para o Reino Profundo. Muitos descem até
cá, mas poucos retornam às terras ensolaradas.
Dizem que todos despertarão ao final do mundo.
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Ao dizer isso, sua boca selou-se; no grande
silêncio da gruta, as crianças sentiram que não
teriam a audácia de falar outra vez. Os pé
descalços dos anões, palmilhando o musgo
espesso, não faziam o menor ruído. Os estranhos
animais não produziam o menor som ao respirar.
Depois de terem andado vários quilômetros,
chegaram a uma parede de pedra com um arco
que dava para uma outra gruta. Mas era bem
melhor do que a última entrada. Penetraram numa
caverna menor, comprida e estreita, com a mesma
forma e o mesmo tamanho de uma catedral. Aí,
tomando quase todo o espaço, estava um homem
imenso a dormir profundamente. Era muito maior
do que qualquer um dos gigantes, mas o rosto não
era igual ao dos gigantes: era nobre e belo. Seu
peito arfava um pouco sob a barba de neve que o
cobria até a cintura. Uma luz prateada (ninguém
viu de onde vinha) caía sobre ele.
– Quem é este? – perguntou Brejeiro. Havia
tanto tempo que ninguém dizia uma palavra, que
Jill ficou a imaginar como ele tivera coragem.
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– Este é o velho Pai Tempo, que já foi rei
do Mundo de Cima – respondeu o guardião. –
Agora está mergulhado aqui no Reino Profundo,
sonhando com as coisas que são feitas no mundo
superior. Muitos caem aqui, mas poucos retornam
às terras ensolaradas. Dizem que despertará no
fim do mundo.
Passaram em seguida a uma outra gruta,
depois a uma outra, e outra, tantas que Jill perdeu
a conta, mas sempre descendo. E cada gruta era
mais baixa que a precedente, até que só de
pensarem no peso e na profundidade da terra
acima deles sentiam-se sufocados.
Chegaram finalmente a um lugar no qual o
guardião ordenou que o varapau de luz fosse de
novo aceso. Entraram numa gruta tão larga e
escura que nada podiam enxergar, a não ser, à
direita, uma pálida faixa de areia cercando uma
água parada. Perto de um pequeno caís estava um
barco sem mastro e sem velas, mas cheio de
remos. Foram obrigados a embarcar na proa, num
espaço vago à frente dos bancos dos remadores.
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– Uma coisa eu gostaria de saber... –
observou Brejeiro. – Se alguém de nosso mundo...
lá de cima, quero dizer... já fez esta viagem.
– Muitos já tomaram o barco das praias
pálidas – replicou o guardião – e...
– Já sei – interrompeu Brejeiro –, poucos
retornaram às terras ensolaradas. Não precisa
mais dizer isso. Você é um sujeito de idéia fixa,
não?
As crianças chegaram-se para mais perto de
Brejeiro, uma de cada lado: tinham dito lá em
cima que se tratava de um pé-frio, mas ali
embaixo ele era o seu único conforto.
A lanterna pálida foi pendurada no meio da
embarcação; os terrícolas pegaram os remos e o
barco começou a deslizar. A lanterna pouco
adiantava: nada avistavam à frente; só água, lisa e
escura, a desmaiar na escuridão total.
– Que será de nós? – perguntou Jill,
agoniada.
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– Não se deixe abater agora, Jill – disse o
pau-lama. – Há uma coisa da qual você deve
sempre se lembrar: estamos de novo seguindo o
texto. Devíamos ir por baixo da cidade em ruínas,
e cá estamos. Estamos novamente de acordo com
as instruções.
Serviram-lhes então comida – uma espécie
de bolacha que não tinha gosto de nada. Depois
um a um pegaram no sono. Quando acordaram,
tudo continuava na mesma: os anões remando, o
barco deslizando, a escuridão. Quantas vezes
acordaram e dormiram, e comeram e dormiram de
novo, nenhum deles seria capaz de dizer. E o pior
era isto: parecia agora que tinham passado a vida
inteira naquele barco, naquela escuridão, sem
saber se o sol, o céu azul, o vento e os pássaros
não passavam de um sonho.
Já estavam quase desistindo de ter
esperança ou medo de qualquer coisa, quando
viram luzes à frente: luzes sinistras como aquela
da lanterna. Uma luz de repente aproximou-se e
perceberam que estavam cruzando um outro
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barco. Encontraram vários outros. Depois,
arregalando os olhos até doer, viam que algumas
luzes iluminavam o que parecia um conjunto de
cais, muros, torres e gente a caminhar. Ainda
assim, quase nada se ouvia.
– Caramba! – exclamou Eustáquio. – Uma
cidade!
Uma estranha cidade. Tão poucas as luzes e
tão distanciadas umas das outras, que mal dariam
para iluminar umas poucas casas em nosso
mundo. Os pequenos trechos iluminados
lembravam lampejos de um grande porto
marítimo. Num lugar, havia vários barcos sendo
carregados ou descarregados; em outro, fardos de
mercadorias e armazéns; num terceiro, paredes e
colunas que sugeriam grandes palácios e templos.
E, onde caísse a luz, viam-se centenas de
terrícolas acotovelando-se em silêncio através de
ruas estreitas, praças largas, ou galgando lanços
de escada. O movimento contínuo produzia uma
espécie de ruído macio à medida que o barco se
aproximava. Música nenhuma. Nem som de sino.
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Nem o ruído de uma roda. A cidade era tão quieta
e quase tão escura quanto o interior de um
formigueiro.
Depois que o barco parou à beira do cais, os
três foram levados para terra e conduzidos à
cidade. Multidões de terrícolas (não existiam dois
iguais) roçavam por eles nas ruas, exibindo caras
tristes e grotescas. Nenhum deles demonstrou o
menor interesse pelos estrangeiros. Os anões
pareciam tão ocupados quanto tristes, embora Jill
não conseguisse entender o que faziam. Mas a
movimentação continuava, com pressa, com
empurrões, com o macio ruído – pá-pá-pá – das
passadas.
Chegaram finalmente ao que parecia um
grande castelo, embora poucas luzes estivessem
acesas. Cruzaram um pátio e subiram por
numerosas escadarias, chegando a uma sala
sombriamente iluminada. Mas a um canto – que
alegria! – havia uma arcada com uma luz bem
diferente: a luz cálida, amarelada e honesta das
lâmpadas usadas pelos homens. A luz mostrava o
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patamar de uma escada que subia em caracol entre
paredes de pedra, e parecia vir do alto. Dois
terrícolas postavam-se nos dois lados do arco
como sentinelas ou lacaios.
O guardião caminhou até os dois e falou,
como se fosse uma senha:
– Muitos mergulham no Subterrâneo.
Os dois responderam em coro a contrasenha:
– E poucos retornam às terras ensolaradas.
Depois conversaram até que um dos anões de
guarda disse:
– Já lhe afirmei que a rainha saiu daqui em
sua grande missão. Melhor conservar esses
viajantes na prisão até que ela volte. Poucos
retornam às terras ensolaradas.
Nesse momento a conversa foi
interrompida pelo que pareceu a Jill o mais
maravilhoso ruído do mundo. Vinha de cima, do
alto da escadaria, e era uma clara e ressoante voz
humana, a voz de um homem jovem.
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– Que confusão você está fazendo aí
embaixo, Mulungu? Ah! Mundanos de Cima! Que
venham aqui imediatamente!
– Queira Vossa Alteza ter a fineza de
recordar – começou a dizer Mulungu, mas foi
bruscamente interrompido.
– Minha Alteza gosta antes de tudo de ser
obedecido, seu velho resmungão. Traga-os
imediatamente.
Mulungu balançou a cabeça, fez um sinal
para que os três o seguissem, e começaram a
subir. A cada degrau a intensidade da luz
aumentava, mostrando reflexos dourados através
de delicadas cortinas no alto da escada. Os
terrícolas abriram as cortinas e se colocaram dos
lados. Os três entraram. Acharam-se numa bela
sala, ricamente atapetada, com uma lareira
crepitante e uma mesa onde reluziam uma garrafa
de vinho vermelho e cristais. Um jovem de
cabelos louros levantou-se para cumprimentá-los.
Era de bonita aparência e parecia ao mesmo
tempo destemido e bom, embora algo em sua
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expressão revelasse que havia alguma coisa
errada. Vestia-se de preto.
– Bem-vindos! – bradou. – Mas esperem
um momentinho! Perdão! Já vi vocês, as duas
crianças, e este outro aí, antes. Não eram vocês
que estavam na ponte de Ettin quando passei a
cavalo com a minha dama?
– Oh... você era o cavaleiro negro que não
falava nada! – exclamou Jill.
– E era aquela dama a rainha do
Subterrâneo? – perguntou Brejeiro, em tom não
muito amistoso.
Eustáquio, que estava pensando a mesma
coisa, explodiu:
– Nesse caso, foi uma sujeira da parte dela
ter mandado a gente para um castelo de gigantes
que pretendiam colocar-nos no cardápio. Que mal
fizemos a ela, era o que eu desejava saber...
– Como? – disse o cavaleiro negro,
franzindo a testa. – Se você não fosse um
guerreiro tão jovem, rapaz, íamos decidir esta
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afronta num duelo de morte. Não tolero uma só
palavra contra a honra da minha dama. Mas de
uma coisa pode estar seguro: ela jamais diria uma
palavra com má intenção. Você não a conhece. É
um poço de virtudes, de verdade, de clemência, de
constância, de coragem, de bondade, de tudo.
Digo aquilo que sei. Só a bondade dela para
comigo, que jamais poderei retribuir-lhe, daria
uma linda história. Mas vocês aprenderão a
conhecê-la e a amá-la. Agora lhes pergunto: que
missão os traz às Terras Profundas?
Antes que Brejeiro a impedisse, Jill soltou o
verbo:
– Por favor, estamos procurando o príncipe
Rilian, de Nárnia. – E só então se deu conta do
quanto se arriscara. Mas o cavaleiro não se
mostrou interessado, dizendo vagamente:
– Rilian? Nárnia? Que país é este? Nunca
ouvi falar neste nome. Deve estar a milhares de
quilômetros das partes do Mundo de Cima que eu
conheço. Mas que idéia estranha a de procurar,
como é mesmo o nome?... o príncipe Bilian?
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Trilian?... no reino da minha dama. Tanto quanto
eu saiba, esse homem não está por aqui. – E deu
uma risada alta ao dizer isso.
Jill disse para si mesma: “Acho que é isso
que está errado na cara dele! Será que ele é meio
maluco?”
– Disseram-nos para procurar uma
mensagem nas pedras da cidade em ruínas –
informou Eustáquio. – E lá encontramos as
palavras DEBAIXO DE MIM.
O cavaleiro riu-se ainda com mais vontade.
– Pois estão completamente errados. Essas
palavras não significam nada para a busca de
vocês. Se tivessem perguntado à dama, ela lhes
teria aconselhado melhor. Pois essas palavras são
o que resta de um texto mais longo, que, nos
velhos tempos, como ela bem se lembra, consistia
nestes versos:Sob a Terra agora destronado estou,
Embora tenha tido, quando vivo,
A Terra inteira debaixo de mim.
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– Conclui-se claramente – continuou o
cavaleiro – que algum grande rei dos antigos
gigantes, que ali jaz enterrado, ordenou que esse
epitáfio fosse talhado na pedra; com o tempo,
sobraram apenas três palavras. Engraçado é terem
acreditado que essas palavras pudessem ter sido
escritas para vocês.
Foi como jogar água fria em Eustáquio e
Jill, pois parecia-lhes agora muito improvável que
as palavras tivessem alguma coisa a ver com a sua
peregrinação; tudo não passava de um acaso.
– Não liguem para ele – disse Brejeiro. –
Não existem acasos. Nosso guia é Aslam; e ele
estava presente quando o rei ordenou que as letras
fossem gravadas; e já sabia todas as coisas que
viriam, inclusive esta.
– Esse guia de vocês deve ter vivido um
bocado, meu amigo – disse o cavaleiro com mais
uma das suas risadas, que Jill já começava a achar
um pouco irritantes.
– Pois me parece, Alteza – observou
Brejeiro –, que a sua dama também deve ter
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vivido um bocado, já que se lembra dos versos
como foram gravados.
– Muito perspicaz, Cara de Sapo! – disse o
cavaleiro, dando um tapinha no ombro de Brejeiro
e caindo outra vez na risada. – E a verdade é que
acertou no alvo. Ela é de raça divina, acima da
velhice e da morte. Por isso mesmo ainda sou
mais reconhecido a ela, ao conceder a um
miserável mortal como eu a sua infinita bondade.
Pois saibam que sou um homem atormentado por
estranhas aflições, e ninguém, a não ser a rainha,
teria paciência comigo. Prometeu-me um grande
reino no Mundo de Cima, e, quando eu for rei, ela
me dará a mão em casamento. Mas é uma história
longa demais para ser ouvida em pé e em jejum.
Ei, servos! Tragam vinho e comidas de Cima para
os meus convidados. Sentem-se, por obséquio.
Sente-se nesta cadeira, gentil senhorita. Vocês
saberão de tudo.
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11
NO CASTELO ESCURO
Quando a refeição foi servida (pombo,
presunto, salada e doces), e todos começaram a
comer, o cavaleiro negro prosseguiu:
– Vocês antes de tudo precisam saber, meus
amigos, que nada sei sobre quem fui desde que
cheguei a este Mundo Escuro. Não me lembro de
qualquer outro tempo no qual não estivesse
morando, como agora, na corte desta celestial
rainha; tenho a impressão de que ela me salvou de
algum feitiço e para cá me trouxe em virtude de
sua inexcedível bondade. (Meu amigo Pé-de-
Sapo, sua taça está vazia. Permita, por favor, que
eu lhe sirva.) Isso me parece muito provável, pois
até o momento sou vítima de um encantamento,
do qual só a minha dama tem o poder de livrar___________________________________
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me. Há uma hora, todas as noites, na qual o meu
espírito transforma-se horrivelmente e, logo
depois, o meu corpo. Pelo espírito, passo por uma
crise de fúria, que me faria precipitar-me sobre o
melhor amigo para matá-lo, caso não me
amarrassem. Depois, tomo a forma de uma grande
serpente, esfomeada, venenosa, mortal. (Por
favor, jovem cavalheiro, queira servir-se um
pouco de pombo.) Assim me dizem, e deve ser
verdade, pois a minha dama diz a mesma coisa.
Quanto a mim mesmo, não sei de nada, pois,
passada a hora, desperto esquecido de meu vil
acesso, em perfeitas condições físicas e
espirituais... apenas um tanto ou quanto fatigado.
(Senhorita, prove um desses bolos de mel que
vieram de uma terra bárbara do extremo sul do
mundo.) A rainha sabe, por virtude de sua arte
sobrenatural, que me libertarei do encantamento
quando ela mesma me fizer rei de uma terra do
Mundo de Cima. Essa terra já está praticamente
escolhida, assim também como o lugar da nossa
ultra-passagem para Cima. Os terrícolas
trabalham dia e noite cavando o acesso, e tão
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adiantados estão que os habitantes superiores
estão pisando poucos metros acima do Mundo
Escuro. A hora e vez desses habitantes superiores
está próxima. Ela própria visita a escavação esta
noite, e só aguardo um recado para ir encontrá-la.
O delgado teto de terra que me separa do meu
reino será rompido; com ela servindo-me de guia
e mil homens à minha retaguarda, avançarei no
meu cavalo para cair de chofre sobre os meus
inimigos; eliminarei os principais cabeças,
dominarei as praças fortes e, sem dúvida, serei
coroado rei em vinte e quatro horas.
– Que sorte a deles! – exclamou Eustáquio.
– Ah, que perspicácia tem este rapaz! –
exclamou por sua vez o cavaleiro. – Palavra de
honra, nunca tinha pensado nisso antes. Estou
entendendo o que você quer dizer. – Por um
momento o cavaleiro pareceu levemente, muito
levemente, perturbado; mas seu rosto logo se
desanuviou e rompeu numa daquelas sonoras
risadas: – Que coisa mais cômica e ridícula pensar
que eles continuam na vidinha deles, sem lhes
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passar pela cabeça que debaixo de seus campos
tranqüilos, ali pertinho, está um grande exército
pronto a irromper da terra como água de uma
fonte! Nunca suspeitaram de nada! Mas, logo que
passar a dor da derrota, eles próprios acabarão
achando graça no que aconteceu.
– Pois eu não vejo a graça – disse Jill. –
Para mim você será apenas um cruel tirano.
– Hein? – fez o cavaleiro, rindo-se ainda e
dando palmadinhas nervosas na cabeça da
menina. – A senhorita por acaso dedica-se à
política? Nada receie, minha graça. Governarei
essa terra sob a constante orientação da minha
dama, que será aliás a minha rainha. Sua palavra
será a minha lei, assim como a minha palavra será
a lei do povo por nós conquistado.
– No lugar de onde eu venho – disse Jill,
cada vez gostando menos dele –, não é grande
coisa a reputação dos homens mandados pelas
mulheres.
– Pois vai pensar diferente quando tiver o
seu homem – disse o cavaleiro, achando isso
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engraçadíssimo. – Com a minha dama é diferente.
Ficarei contente de obedecer a quem me salvou de
milhares de perigos. Mãe alguma no mundo fez
para o filho o que ela fez para mim. Vejam só:
apesar de todas as suas obrigações e trabalhos,
várias vezes percorreu comigo o Mundo de Cima,
para habituar meus olhos à luz do Sol. Vou na
minha armadura, com a viseira abaixada, a fim de
que homem algum veja o meu rosto e eu não fale
com ninguém. Por arte mágica ela descobriu que
isso criaria dificuldades à conjuração do sortilégio
que pesa sobre mim. Assim, pois, não se trata de
uma dama digna do culto fanático de um homem?
– Parece mesmo uma dama fora de série –
falou Brejeiro, com uma inflexão que significava
exatamente o oposto.
Já estavam cheios daquela conversa antes
que o prato de sopa esvaziasse. Brejeiro pensava:
“Gostaria de saber qual a jogada que essa
feiticeira está tramando com esse jovem tolo.”
Eustáquio pensava: “Que crianção, francamente;
amarrado à roda da saia daquela mulher, o
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bobão.” E Jill pensava: “Esse aí é o sujeito mais
bobo, mais metido a besta, mais egoísta que vi nos
últimos anos!”
Mas quando terminou a refeição, os modos
do cavaleiro negro haviam mudado. A risada
desaparecera.
– Meus amigos – falou ele –, minha hora
está próxima. Apesar do meu horror de ficar
sozinho, tenho vergonha de que me vejam agora.
Eles vão entrar e amarrar meus pés e minhas mãos
naquela cadeira. Que se há de fazer? Pois em meu
acesso (dizem), eu destruiria tudo o que estivesse
ao meu alcance.
– Entendo – falou Eustáquio – e sinto muito
pela sua maldição, é claro, mas o que esses caras
farão conosco quando chegarem para amarrá-lo?
Falavam em trancar a gente na cadeia. E não
apreciamos muito aquelas escuridões. Preferimos
muito mais ficar aqui até que você... se sinta
melhor... se for possível...
– Bem pensado – respondeu o cavaleiro. –
O costume é ninguém ficar comigo durante a
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minha hora, a não ser a rainha. Não admitiria que
outros ouvissem as palavras que pronuncio
durante o acesso. O problema é convencer os
gnomos. Acho que já estão subindo a escada.
Entrem por aquela porta e se escondam. Fiquem lá
até que voltem e me desamarrem; ou, se quiserem,
voltem para cá e assistam ao meu delírio.
Os três aceitaram a sugestão. A porta,
felizmente, dava para um corredor iluminado.
Experimentaram várias portas e encontraram (o
que lhes fazia muita falta) água corrente e até um
espelho. Disse Jill :
– Ele nem para nos oferecer uma pia antes
da ceia. Egoísta sujo!
– Quero saber uma coisa – disse Eustáquio.
– Vamos ficar aqui ou vamos assistir ao
encantamento?
– Acho melhor ficar aqui – disse Jill, sem
dominar, no entanto, a própria curiosidade.
– Nada disso: iremos para lá – falou
Brejeiro. – Podemos obter uma informação
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qualquer. Não ponho a mão no fogo por aquela
rainha; só pode ser uma bruxa, uma inimiga.
Aqueles terrícolas não vão demorar a nos dar uma
paulada na cabeça. Há um cheiro forte de perigo e
de mentira, de mágica e de traição nesta terra; um
cheiro que nunca senti em minha vida. Olho vivo,
orelha em pé!
Voltaram ao corredor e empurraram
levemente a porta.
– Tudo bem – disse Eustáquio, querendo
dizer que os terrícolas não estavam mais por lá.
Voltaram todos assim para a sala onde
tinham ceado.
A porta principal agora estava fechada,
escondendo a cortina pela qual tinham entrado. O
cavaleiro negro estava sentado numa estranha
cadeira de prata, à qual se achava amarrado pelos
tornozelos, joelhos, cotovelos, pulsos e cintura.
Com a testa gotejada de suor, mostrava um rosto
angustiado.
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– Entrem, meus amigos – disse ele,
erguendo depressa os olhos. – Ainda não chegou o
acesso. Não façam barulho, pois falei para o
fofoqueiro do camareiro que vocês estavam
dormindo. Agora... estou começando a sentir.
Depressa! Escutem enquanto sou dono de mim.
Durante o acesso, pode ser que eu lhes implore,
que os ameace para que me desamarrem. Dizem
que faço isso. Posso pedir em nome do que há de
mais sagrado e do que há de mais horrível. Mas
não me obedeçam. Fechem o coração e os
ouvidos. Enquanto eu estiver amarrado, estarão
salvos. Mas se eu me livrar desta cadeira, terei
primeiro um ataque de fúria e depois – ele
estremeceu – serei transformado em monstruosa
serpente.
– De nossa parte pode ficar tranqüilo –
disse Brejeiro –, ninguém irá soltá-lo. Não
estamos com a menor vontade de enfrentar um
homem selvagem e muito menos uma serpente.
– Isso mesmo – disseram Eustáquio e Jill ao
mesmo tempo.
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– De qualquer jeito – acrescentou Brejeiro
num cochicho –, é melhor não ficarmos tão
confiantes. Já estragamos outras coisas. Ele vai
ficar astuto quando a coisa começar, podem crer.
Podemos confiar uns nos outros? Vamos prometer
todos que, aconteça o que acontecer, não
tocaremos nessas cordas. Prestem atenção:
aconteça o que acontecer, diga ele o que disser!
– Claro! – disse Eustáquio. E Jill :
– Não existe neste mundo nada que ele diga
que me faça mudar de opinião.
– Silêncio. Está acontecendo alguma coisa
– disse Brejeiro.
O cavaleiro começava a gemer. Seu rosto
estava pálido como cal. O corpo se contorcia nas
amarras. Por compaixão dele ou por outro motivo
qualquer, Jill o achava agora melhor pessoa do
que antes.
– Ah – gemeu o cavaleiro – o
encantamento... as teias geladas, duras e viscosas
da magia negra. Arrastado pelas profundezas da
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terra, pela negra escuridão... há quantos anos? Há
quanto tempo estou na fossa? Há dez anos? Há
mil anos? Estas larvas humanas que me rodeiam
por todos os lados! Oh, piedade! Quero sair, quero
voltar. Quero sentir de novo o vento e contemplar
o céu... Havia um poço. Quando eu olhava lá
dentro via as árvores de cabeça para baixo, tão
verdes, e mais abaixo, no fundo profundo, o céu
azul.
Falava em voz baixa, mas ergueu a testa e
fixou os olhos neles, dizendo com voz clara:
– Depressa! Estou bem agora. Todas as
noites é assim. Se pudesse livrar-me desta cadeira,
continuaria bem para sempre. Seria outra vez um
homem. Todas as noites eles me amarram, e todas
as noites a minha esperança se desfaz. Mas vocês
não são inimigos. Não sou prisioneiro de vocês.
Depressa! Cortem as amarras.
– Não se mexam! – comandou Brejeiro.
– Imploro que me ouçam – disse o
cavaleiro, esforçando-se para falar com
serenidade. – Disseram que se eu me libertar da
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cadeira iria matá-los e virar uma serpente? Pela
expressão de vocês, foi o que disseram. É
mentira! Agora, neste momento, é que estou em
minhas condições normais: durante o resto do
tempo vivo enfeitiçado. Vocês não são terrícolas,
nem a menina é uma feiticeira. Vão ficar do lado
deles? Cortem as amarras, por obséquio.
– Não se mexam! Não se mexam! –
disseram os três.
– Corações de pedra – disse o cavaleiro. –
Acreditem em mim: contemplam um desgraçado
que já sofreu mais do que um mortal poderia
suportar. Que mal lhes fiz? Por que ajudam o
inimigo a manter-me nesta infelicidade? Os
minutos correm. Agora poderão salvar-me.
Terminada a hora, ficarei novamente sem juízo...
voltarei a ser o brinquedo, o cachorrinho, o
instrumento de uma diabólica feiticeira que
planeja a desgraça dos humanos. E logo hoje, que
ela não está, vocês me privam de uma chance que
poderá jamais reaparecer!
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– Isso é de matar! Teria sido melhor se a
gente tivesse ficado lá dentro até que terminasse o
acesso – disse Jill.
O prisioneiro começou a esganiçar.
– Soltem-me! Quero a minha espada!
Minha espada! Durante mil anos os terrícolas se
lembrarão da minha vingança!
– O delírio está começando – disse
Eustáquio. – Espero que estes nós agüentem o
repuxo.
– Pois é – disse Brejeiro. – Vai ficar com a
força duplicada. E eu não sou muito bom na
espada. Ele vai nos liquidar primeiro e Jill ficará
para enfrentar a serpente.
O prisioneiro estava tão tenso que as
amarras lhe cortavam os pulsos e tornozelos.
– Cuidado! – disse ele. – Cuidado! Uma
noite parti as amarras. Mas a feiticeira estava
aqui. Livrem-me agora, e serei seu amigo. Do
contrário, serei um inimigo mortal.
– Esperto, hein? – falou Brejeiro.
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– De uma vez por todas – bradou o
prisioneiro –, peço que me libertem. Em nome de
todos os terrores, em nome de todos os amores,
em nome dos céus luminosos do Mundo de Cima,
em nome do grande Leão, do próprio Aslam, eu
ordeno...
– Oh! – gritaram os três como se doesse.
– É o sinal – disse Brejeiro.
– A palavra anunciada pelo sinal – replicou
Eustáquio, mais cauteloso.
– E agora? – clamou Jill.
Terrível problema. De que valia ter
prometido jamais libertar o cavaleiro, se o
fizessem agora? Por outro lado, de que valia ter
aprendido o valor dos sinais caso não
obedecessem a eles? Aslam desejaria que eles
soltassem qualquer um... mesmo um doido
varrido... que pedisse em seu nome? Ou poderia
ser uma coincidência? E se a rainha do
Submundo, sabendo a respeito dos sinais, tivesse
ensinado ao cavaleiro o nome de Aslam para
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atraí-los à armadilha? Mas, supondo que fosse de
fato o sinal... Já tinham falhado em três; seria
demais deixar fugir o quarto.
– Se a gente pelo menos soubesse! –
suspirou Jill.
– Acho que sabemos – disse Brejeiro.
– Acha que dará tudo certo se o
desamarrarmos? – perguntou Eustáquio.
– Não, isso eu não sei – respondeu Brejeiro.
– Vejam: Aslam não contou para Jill o que
aconteceria. Disse apenas o que fazer. Esse sujeito
vai ser a nossa morte, não tenho a menor dúvida.
Mas, mesmo assim, não podemos deixar de
obedecer aos sinais.
Miraram-se com os olhos luzindo e assim
ficaram durante aqueles detestáveis instantes.
– Pronto! – gritou Jill subitamente. –
Vamos logo. Adeus, pessoal! – Despediram-se,
enquanto o cavaleiro começava a berrar e a botar
espuma pela boca.
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201
– Vamos, Eustáquio – disse Brejeiro.
Puxaram as espadas e caminharam até o cativo.
– Em nome de Aslam – disseram, passando
imediatamente a cortar as amarras.
Ao ver-se livre, o cavaleiro negro cruzou a
sala decidido e empunhou a própria espada (que
estava sobre a mesa).
– Você em primeiro lugar! – bradou,
atacando a cadeira de prata.
Devia ser uma excelente espada. A prata
cedeu a seu gume, e num momento só uns
fragmentos brilhantes da cadeira restavam no
chão. Mas, ao ser destroçada, a cadeira soltou um
clarão, trovejando; um cheiro nauseabundo
percorreu a sala.
– Fique aí, imundo instrumento de feitiçaria
— disse ele –, para que jamais sirva ao tormento
de outra vítima.
Observou então seus salvadores; o que
havia de errado na sua expressão, fosse o que
fosse, desaparecera.
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202
– Não me diga! – bradou, ao dar com
Brejeiro. – Será que estou vendo na minha frente
um paula-ma... um paulama de verdade, um
narniano?
– Ah, enfim já ouviu falar de Nárnia?! –
disse Jill.
– Tinha me esquecido quando enfeitiçado.
Bem, agora esta e outras artes do diabo chegaram
ao fim. Conheço bem Nárnia, estejam bem certos,
pois sou Rilian, príncipe de Nárnia, filho de
Caspian, o Grande.
– Real Alteza – murmurou Brejeiro,
vergando um joelho (e as crianças o imitaram) –,
aqui viemos apenas para buscá-lo.
– E quem são os outros dois libertadores? –
perguntou o príncipe, voltando-se para Eustáquio
e Jill.
– Fomos enviados por Aslam de além do
fim do mundo para que o encontrássemos, Alteza
– respondeu Eustáquio. – Meu nome é Eustáquio.
Viajei com seu pai até a Ilha de Ramandu.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
203
– Tenho para com os três uma dívida que
jamais poderei pagar – disse o príncipe. – Mas...
meu pai... ainda está vivo?
– Viajou para o Oriente antes que
deixássemos Nárnia, meu senhor – informou
Brejeiro. – Mas Vossa Alteza deve considerar que
o rei está muito idoso. Tem uma possibilidade em
dez de sobreviver à viagem.
– Está velho, diz você. Por quanto tempo
então estive sob o poder da bruxa?
– Há mais de dez anos que Vossa Alteza se
perdeu na floresta ao norte de Nárnia.
– Dez anos! – exclamou o príncipe, levando
a mão ao rosto como se quisesse limpar-se do
tempo. – Acredito. Pois agora que sou eu mesmo
posso me lembrar de minha existência encantada,
embora não pudesse saber quem eu era quando
vivia sob a maldição. E agora, meus amigos... um
momento! Ouço as passadas deles nos degraus.
Não é de enlouquecer essa pisada de novelo de lã?
Feche a porta, rapaz. Não, espere. Tenho uma
idéia melhor. Vou tapear esses terrícolas, se
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
204
Aslam me ajudar. Representem de acordo com o
que eu fizer.
Caminhou resolutamente e escancarou a
porta.
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205
12
A RAINHA DO
SUBMUNDO
Dois terrícolas surgiram, mas não entraram
na sala; postaram-se nos lados da porta e fizeram
uma grande reverência. Foram seguidos logo pela
última pessoa que os quatro esperavam ou
desejavam ver: a Dama do Vestido Verde. A
rainha do Submundo estacou imobilizada no
portal. Podiam ver seus olhos se movimentando
enquanto ela se inteirava de toda a situação: os
três estranhos, a cadeira de prata em frangalhos, o
príncipe solto, de espada em punho.
Ficou branquíssima, de um branco (pensou
Jill) que sobe à face de certas pessoas, não quando
estão com medo, mas quando estão furiosas. Por
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206
um instante fixou os olhos no príncipe, olhos de
quem vai matar. Depois pareceu mudar de idéia.
– Saiam – ordenou aos terrícolas. – Não
quero ser perturbada até que eu chame, sob pena
de morte.
Os gnomos saíram com suas passadas fofas
e a rainha-bruxa trancou a porta.
– Como está, meu príncipe? Seu acesso
noturno ainda não veio, ou será que passou
depressa? Por que está aí desamarrado? Quem são
estes estrangeiros? Foram eles que destruíram sua
cadeira, a sua única salvação?
O príncipe Rilian estremeceu. E não é de se
admirar, pois não é fácil libertar-se em meia hora
de um sortilégio que nos escravizou durante dez
anos. Falando com grande esforço, disse ele:
– Senhora, não há mais necessidade desta
cadeira. E a senhora, que me falou cem vezes
sobre a compaixão que sentia por mim, vítima de
horrendas feitiçarias, saberá com alegria que estas
acabaram para sempre. Houve, parece, certo erro
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207
na sua maneira de tratá-las. Estes, meus amigos
sinceros, libertaram-me. Agora, em perfeitas
condições de juízo, há duas coisas que gostaria de
dizer-lhe. Primeiro: quanto ao seu desejo de
enviar-me à frente de um exército para submeter o
Mundo de Cima pelas armas e coroar-me rei de
uma nação que jamais me fez o menor mal,
assassinando seus chefes e derrocando o trono
como um tirano sanguinário, agora que sou eu
mesmo, devo declarar que me repugna
completamente tal vilania. Segundo: sou filho do
rei de Nárnia, Rilian, o filho único de Caspian X,
e que alguns chamam de Caspian, o Navegador.
Assim sendo, senhora, é meu dever partir
imediatamente da corte de Vossa Majestade,
seguindo para minha pátria. Queira conceder
salvo-conduto a mim e a meus amigos, e alguém
que nos guie em seu reino de sombras.
A bruxa nada disse, mas andou
vagarosamente pela sala, conservando os olhos
fixos no príncipe. Ao chegar a uma arca não longe
da lareira, abriu-a, apanhando lá dentro um
punhado de pó verde, que atirou ao fogo. Não fez
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208
o fogo arder muito, mas um aroma muito doce e
inebriante encheu a sala. Durante a conversa que
se seguiu o cheiro foi ficando mais intenso,
dificultando o ato de pensar. Em seguida, ela
pegou um instrumento meio parecido com um
bandolim e começou a tocar um repenicado
monótono que se fez despercebido depois de
poucos minutos. Também isso atrapalhava o
raciocínio. Depois de ter tocado por algum tempo,
com o aroma doce cada vez mais forte, começou a
dizer numa voz macia:
– Nárnia? Nárnia? Ouvi Vossa Alteza
pronunciar esse nome durante os delírios. Querido
príncipe, você está muito doente. Não há nenhuma
terra chamada Nárnia.
– Há sim, madame – interrompeu Brejeiro.
– Eu mesmo passei lá minha vida inteira.
– Que interessante! – disse a bruxa. – Mas
diga-me por favor uma coisa: onde é essa terra?
– Lá em cima – respondeu Brejeiro,
decidido, apontando para o teto. – Mas onde fica
exatamente, não sei.
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– Como assim? – perguntou a rainha, com
uma risadinha musical. – Existe então um país lá
em cima, no meio das pedras e do reboco do teto?
– Não – respondeu Brejeiro, respirando
com certa dificuldade. – O país fica por cima. É o
Mundo de Cima.
– E onde fica... como é o nome... esse
Mundo de Cima?
– Oh, deixe de bancar a boba – disse
Eustáquio, que lutava contra o encantamento
produzido pelo doce aroma e o repenicar do
bandolim. – Como se não estivesse cansada de
saber! É lá em cima, lá onde você pode ver o céu,
o Sol e as estrelas. Esta é boa! Você já esteve lá!
Nós nos encontramos lá!
– Peço seu perdão, irmãozinho – riu-se a
bruxa, uma delícia de riso. – Não me lembro desse
encontro. Quando sonhamos é que costumamos
encontrar os nossos amigos em lugares estranhos.
Mas, a não ser que sonhemos o mesmo sonho, não
é razoável pedir que se lembrem.
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– Senhora – disse o príncipe gravemente –,
já lhe disse que sou filho do rei de Nárnia.
– E será, meu amigo – disse a rainha numa
voz ciciante, como se estivesse acalmando uma
criança –, será rei de muitas terras imaginárias.
– Também estivemos lá – falou Jill com
impertinência. Estava furiosa por perceber que o
feitiço ia tomando conta dela.
– E você também é rainha de Nárnia, não é,
minha belezinha? – disse a feiticeira, na mesma
voz insinuante, mas meio zombeteira.
– Negativo – respondeu Jill, batendo com o
pé. – Nós somos de outro mundo.
– Ah, que maravilha! Diga-me, senhorita,
onde fica esse outro mundo? Quais os navios e
carruagens que fazem o transporte de lá para cá?
Uma cachoeira de lembranças caiu sobre
Jill : o Colégio Experimental, sua casa, aparelhos
de rádio, automóveis, aviões, engarrafamento,
filas. Mas pareciam imagens apagadas e distantes.
(Drum-drim-drim, repenicava o bandolim.) Jill
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não conseguia lembrar-se das coisas de nosso
mundo. E dessa vez não lhe ocorreu que estava
sendo enfeitiçada, pois a magia atingira o auge.
Surpreendeu-se dizendo (e era um alívio dizê-lo)
o seguinte:
– Acho que o outro mundo deve ser um
sonho.
– Claro. O outro mundo é um sonho – disse
a bruxa, sempre repenicando.
– Um sonho – repetiu Jill.
– Nunca existiu esse mundo – disse a
feiticeira. Jill e Eustáquio falaram ao mesmo
tempo:
– Nunca existiu esse mundo.
– Só existe um mundo – continuou a bruxa
–, o meu.
– Só existe o seu mundo – disseram eles.
Brejeiro ainda tentava resistir:
– Não sei direito o que você entende por
um mundo – disse, como alguém que não respira
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ar suficiente. – Mas pode tocar essa rabeca até que
seus dedos caiam no chão; mesmo assim nunca
vou me esquecer de Nárnia. E nem do Mundo de
Cima. Imagino que nunca mais o veremos, pois é
bem provável que o tenha obscurecido como fez a
este mundo. Mas vou saber sempre que estive lá.
Já vi o céu cheio de estrelas. Já vi o Sol nascendo
no mar e sumindo atrás das montanhas ao cair da
noite. E vi também o Sol ao meio-dia, cujo brilho
nos fere a vista.
As palavras de Brejeiro tiveram um efeito
estimulante. Os outros três respiraram de novo e
se olharam como pessoas que despertam.
– Que Aslam abençoe o nosso bom
paulama – disse o príncipe. – Estivemos
sonhando. Como iríamos esquecer? Todos nós já
vimos o Sol.
– É claro que sim! – gritou Eustáquio. –
Muito bem, Brejeiro. Você é o único aqui que não
perdeu o juízo.
E mais uma vez se ouviu a voz da feiticeira
arrulhando como uma pomba-rola no alto da
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213
árvore de um velho quintal, às três horas de uma
sonolenta tarde de verão:
– De que sol vocês estão falando? Essa
palavra significa alguma coisa?
– Significa muito! – respondeu Eustáquio.
– Poderiam contar-me como é o sol?
(Drum-drim-drum.)
– Por obséquio, Majestade – disse o
príncipe, com fria polidez. – Vê aquela lâmpada
redonda e amarela iluminando a sala? O que
chamamos Sol é parecido, só que é muito maior e
muito mais brilhante e ilumina todo o Mundo de
Cima. E em vez de estar preso no teto, está solto
no céu.
– Solto onde? – E enquanto pensavam na
resposta, ela prosseguiu, com uma de suas
risadinhas melodiosas: – Estão vendo? Quando
vocês procuram saber o que deve ser realmente o
tal de sol, não conseguem. Só sabem dizer que
parece uma lâmpada. O sol de vocês é um sonho,
e não há nesse sonho nada que não tenha sido
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copiado de uma lâmpada. A lâmpada é real; o sol
não passa de uma invenção, uma história para
crianças.
– Ah, sim, é verdade – disse Jill com uma
voz pesada e sem esperança. – Deve ser isso
mesmo. – E acreditava que estava sendo muito
sensata.
Lenta, gravemente, a feiticeira repetia:
“Não há Sol.” E eles nada mais diziam. “Não há
Sol” – ela repetia, com a voz mais branda e
profunda. Depois de uma pausa e de um conflito
em seus espíritos, todos os quatro disseram:
“Certo. Não há Sol.” Era um alívio desistir e
reconhecer que o Sol nunca existira.
Nos últimos minutinhos Jill sentira que
havia alguma coisa da qual, a todo custo, tinha de
se lembrar. E agora conseguia. Era entretanto
tremendamente difícil dizê-la. Sentia como se
enormes fardos pesassem em sua boca. Por fim,
com um esforço que pareceu exauri-la, disse:
– Aslam existe.
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– Aslam? – disse a feiticeira, apressando
ligeiramente o repenicado de seu instrumento. –
Que lindo nome! Que significa Aslam?
– Aslam é o grande Leão que nos chamou
de nosso mundo – disse Eustáquio – e aqui nos
enviou em busca do príncipe Rilian.
– Leão, o que é um leão? – perguntou a
bruxa.
– Ora, não amole – respondeu Eustáquio. –
Não sabe? Como é que eu vou descrever um leão?
Já viu um gato?
– Claro, adoro gatos – respondeu a
feiticeira.
– Bem, um leão é um pouquinho... só um
pouquinho, hein... parecido com um gato enorme
com uma juba. E é amarelo. E é incrivelmente
forte.
A feiticeira balançou a cabeça:
– Acho que o leão de vocês vale tanto
quanto o sol. Viram lâmpadas, e acabaram
imaginando uma lâmpada maior e melhor, a que
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deram o nome de sol. Viram gatos, e agora
querem um gato maior e melhor, chamado leão. É
puro faz-de-conta, mas, francamente, já estão
meio crescidos demais para isso. Já repararam que
esse faz-de-conta é copiado do mundo real, do
meu mundo, que é o único mundo? Já estão
grandes demais para isso, jovens. Quanto ao meu
príncipe, um homem feito, que vergonha!
Brincando depois de grande! Venham. Esqueçam
essas fantasias infantis. Tenho trabalho para vocês
no mundo real. Não há Nárnia, não há Mundo de
Cima, não há céu, nem Sol, nem Aslam. Agora,
cama. E vamos começar vida nova amanhã.
Primeiro, cama. Dormir. Dormir bem, um
travesseirinho macio, um sono sem sonhos bobos.
O príncipe e as duas crianças estavam de
cabeça caída, as faces coradas, os olhos
semicerrados; fugira-lhes toda a energia, o
sortilégio era quase total. Mas Brejeiro, juntando
desesperadamente o resto de suas forças,
caminhou até a lareira. E praticou então uma
proeza de rara coragem. Sabia que não doeria
tanto quanto em um ser humano, pois seus pés
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(sempre nus) eram membranosos, duros e frios
como pés de pato. Mas sabia que iria doer
bastante; mesmo assim o fez: espezinhou as
brasas, apagando um pouco o fogo. Três coisas
aconteceram.
Primeiro: o doce e pesado aroma diminuiu
muito. O cheiro de paulama assado, que não é
inebriante, predominou na sala. O cérebro de
todos ficou mais limpo. O príncipe e as crianças
ergueram as cabeças e abriram os olhos.
Segundo: a feiticeira, num tom terrível,
completamente diferente da voz doce que havia
usado até então, deu um berro:
– O que está fazendo? Se ousar tocar no
meu fogo outra vez, porcalhão imundo, vou
transformar em fogo o sangue de suas veias!
Terceiro: a própria dor esclareceu
completamente a cabeça de Brejeiro, pois não há
nada como um impacto doloroso para desfazer
certas espécies de magia.
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– Uma palavrinha, dona – disse ele,
mancando de dor –, uma palavrinha: tudo o que
disse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo de
saber tudo para enfrentar o pior com a melhor cara
possível. Não vou negar nada do que a senhora
disse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foi
falada. Vamos supor que nós sonhamos, ou
inventamos, aquilo tudo – árvores, relva, sol, lua,
estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos:
ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um
bocado mais importantes do que as coisas reais.
Vamos supor então que esta fossa, este seu reino,
seja o único mundo existente. Pois, para mim, o
seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que
estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem.
Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que
a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças
brincando podem construir um mundo de
brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo
real. Por isso é que prefiro o mundo de brinquedo.
Estou do lado de Aslam, mesmo que não haja
Aslam. Quero viver como um narniano, mesmo
que Nárnia não exista. Assim, agradecendo
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sensibilizado a sua ceia, se estes dois cavalheiros
e a jovem dama estão prontos, estamos de saída
para os caminhos da escuridão, onde passaremos
nossas vidas procurando o Mundo de Cima. Não
que as nossas vidas devam ser muito longas,
certo; mas o prejuízo é pequeno se o mundo
existente é um lugar tão chato como a senhora diz.
– Boa! Viva! Cem por cento, Brejeiro! –
gritaram Eustáquio e Jill.
Mas ouviu-se de súbito a voz do príncipe:
– Vejam! A feiticeira!
Quase ficaram de cabelos em pé.
O instrumento caíra-lhe das mãos. Os
braços pareciam ter entrado para dentro do corpo.
As pernas estavam entrelaçadas. Os pés tinham
desaparecido. A cauda do vestido foi-se
engrossando e acabou sólida, juntando-se com a
coluna de suas pernas entrelaçadas. E essa coluna
era mole, revirando-se, como se não possuísse
articulações. Sua cabeça era empurrada para trás,
enquanto o nariz ia ficando mais comprido, mais
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comprido; as outras partes do rosto foram
sumindo, menos os olhos, agora uns olhos
imensos e chamejantes, sem sobrancelhas nem
cílios. Tudo isso exige tempo para ser escrito, mas
aconteceu tão depressa que só houve tempo de
ver. Antes que se pudesse fazer qualquer coisa, a
transformação estava completa: a grande serpente,
verde como o veneno, grossa como a cintura de
Jill, já enrolara três anéis de seu repulsivo corpo
nas pernas do príncipe. Rápida como um
relâmpago, deu um outro bote, tentando agarrar o
braço que segurava a espada. Mas Rilian ergueu
os braços, safando-se; o nó vivo apertou seu peito,
pronto para partir-lhe as costelas.
O príncipe agarrou o pescoço da criatura
com sua mão esquerda, tentando apertá-lo até
sufocá-la. A cara da feiticeira (se é que se pode
chamar de cara) estava então a um palmo do rosto
dele. A língua bifurcada tremelicava
horrivelmente para dentro e para fora, sem poder
atingi-lo. Com a mão direita, Rilian puxou a
espada e golpeou com toda a força. Eustáquio e
Brejeiro também puxaram das armas e correram
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em auxílio. Os três golpes foram desferidos
simultaneamente: o de Eustáquio (nem chegou a
ferir as escamas) no corpo da serpente, abaixo da
mão do príncipe; os golpes deste e de Brejeiro, no
entanto, atingiram o pescoço. Não foi suficiente
para matar, mas a coisa começou a soltar as
pernas e o peito de Rilian. Golpes repetidos
deceparam-lhe a cabeça. A medonha coisa
continuou a enroscar-se e a mover-se muito tempo
depois de morta. O chão ficou uma imundície.
O príncipe, quando pôde respirar,
agradeceu a cooperação dos amigos. Os três
vencedores ficaram olhando um para o outro,
arfantes, durante longo tempo, sem uma palavra.
Jill, com muita sabedoria, sentou-se a um canto e
ficou quieta, pensando apenas: “Espero não
desmaiar... não choramingar... nem fazer qualquer
outra coisa idiota.”
– Minha mãe está vingada – disse Rilian
por fim. – Sem dúvida nenhuma, era este o
mesmo verme que persegui em vão perto da fonte
da floresta de Nárnia, há muitos anos. Durante
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todo este tempo fui o escravo da assassina de
minha mãe. De qualquer modo, alegra-me que a
feiticeira tenha tomado a forma de uma serpente.
Não ficaria bem ao meu coração e à minha
dignidade matar uma mulher. Mas vamos ver a
nossa dama.
Referia-se a Jill.
– Senhorita – disse o príncipe, inclinandose
–, louvo a sua grande coragem. Deve correr
sangue nobre em suas veias. Venham, meus
amigos. Temos ainda um pouco de vinho. Vamos
a um brinde e a uma pausa antes de estabelecer
nossos planos.
– Excelente idéia, Alteza – disse Eustáquio.
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13
O SUBMUNDO SEM
RAINHA
Naquele momento, todos sentiam merecer o
que Eustáquio chamou de uma “pausa para um
descanso”. A feiticeira trancara a porta, dizendo
aos terrícolas que não a perturbassem; não havia
assim, por enquanto, perigo de interrupção. O
primeiro problema era naturalmente o pé
queimado de Brejeiro. Duas camisas apanhadas
no quarto do príncipe, desfeitas em tiras e untadas
com manteiga e óleo de cozinha, serviram de
curativo.
Depois sentaram-se para espairecer um
pouco e discutir os planos de fuga.
Rilian explicou que havia muitas saídas
para a superfície; já havia passado por quase todas
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em diversas ocasiões. Mas jamais fora sozinho,
somente com a feiticeira; e sempre alcançara tais
saídas depois de uma viagem de barco através do
Mar sem Sol.
O que os terrícolas diriam se ele fosse até o
cais sem a feiticeira, na companhia de três
estrangeiros, e, sem mais nem menos, pedisse um
barco, ninguém podia imaginar. O mais provável
é que fizessem perguntas embaraçosas. A nova
saída, destinada à invasão do Mundo de Cima, era
do lado de cá do mar, a uns poucos quilômetros.
Estava quase terminada, com pouquíssimos
metros de terra a separá-la do céu aberto. Talvez
até estivesse terminada. Era possível que a
feiticeira tivesse voltado para informar-lhe isso e
preparar o ataque. E, ainda que a obra não
estivesse pronta, eles próprios poderiam acabá-la
em poucas horas, desde que conseguissem atingila
sem serem detidos... e desde que não houvesse
guardas no túnel.
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– Se querem a minha opinião – começou a
dizer Brejeiro, imediatamente interrompido por
Eustáquio.
– Que barulho é esse?
– É o que estou me perguntando já há
algum tempo – falou Jill.
Todos de fato já estavam ouvindo o ruído,
mas este começara e aumentara tão
gradativamente que não sabiam quando o
perceberam. Durante algum tempo fora apenas
como o farfalhar de brisas ou como o barulho do
trânsito ao longe. Depois era como se fosse o mar
se espraiando. Então vieram estrépitos e roncos.
Agora parecia haver vozes e também um bramido
que não era de vozes.
– Pelo Leão – disse o príncipe Rilian –,
parece que esta terra silenciosa aprendeu
finalmente a falar. – Foi à janela e afastou as
cortinas. Os outros juntaram-se em torno.
Um grande clarão vermelho foi a primeira
coisa que notaram. O reflexo produziu uma
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mancha rubra no teto do Submundo a centenas de
metros acima deles, e assim puderam ver um teto
rochoso que talvez estivesse oculto nas trevas
desde que o mundo fora criado. O clarão vinha do
lado mais distante da cidade, de modo que muitos
prédios, imponentes e sinistros, estampavam-se
sombrios. Mas o clarão também iluminava muitas
ruas que se dirigiam para o castelo. Nessas ruas
algo de muito estranho se passava. As multidões
compactas de terrícolas tinham sumido. No lugar
delas, figuras disparavam de um lado para outro,
sós ou em grupos de duas ou três. Comportavamse
como pessoas que não desejavam ser vistas:
emboscando-se na sombra de colunas ou portais e
lançando-se depois, rapidamente, em novos
esconderijos. O mais estranho de tudo, para quem
conhece os gnomos, era o barulho. Gritos vinham
de todas as direções. Do cais chegava um bramido
surdo que foi crescendo a ponto de quase fazer
estremecer toda a cidade.
– O que está acontecendo? – perguntou
Eustáquio. – Estão mesmo berrando?
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– Não creio – respondeu o príncipe. –
Nunca ouvi nenhum desses salafrários ao menos
erguer um pouco a voz em todos esses anos de
cativeiro. Alguma novidade diabólica, não pode
haver dúvida.
– E aquela luz vermelha lá em cima? –
perguntou Jill. – Será que alguma coisa está
pegando fogo?
– Se você me perguntasse – interveio
Brejeiro – eu diria que é o fogo central da terra
irrompendo para produzir um novo vulcão.
Estaremos bem na boca, é claro.
– Vejam aquele barco! – disse Eustáquio. –
Por que vem tão depressa? E não tem remador!
– Olhem, olhem! – bradou o príncipe. – O
barco está em cima da rua! Olhem lá! Todos os
barcos estão entrando pela cidade. O mar está
subindo. Este castelo, louvado seja Aslam, está
bem no alto, mas as águas estão subindo
terrivelmente depressa.
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– Que diabo pode estar acontecendo? –
perguntou Jill. – Fogo e água e aquela gente
esquivando-se pelas ruas.
– Vou dizer-lhes o que se passa – disse
Brejeiro.
– A feiticeira lançou eflúvios mágicos para
que o seu reino fosse destroçado depois de sua
morte. Não se importava muito de morrer, desde
que também morresse queimado, ou enterrado, ou
afogado, aquele que a matasse.
– Acertou no alvo, meu amigo – disse o
príncipe. – Quando nossas espadas deceparam a
cabeça da feiticeira, os golpes puseram fim ao seu
poder de magia: as Terras Profundas estão se
arrastando. Estamos assistindo ao fim do
Submundo.
– Exatamente, Alteza – falou Brejeiro. – A
não ser que seja o fim de todos os mundos.
– Espere aí, gente: vamos ficar aqui...
aguardando? – perguntou Jill.
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– Não por mim – respondeu o príncipe. –
Vou salvar meu cavalo e o da feiticeira (um nobre
animal, que merecia um dono melhor); estão no
está-bulo do pátio. Depois vamos procurar uma
terra mais alta e torcer para encontrar uma saída.
Cada cavalo poderá levar dois; creio que
conseguirão atravessar a correnteza.
– Por que Vossa Alteza não coloca a
armadura? – perguntou Brejeiro. – Não gosto do
jeito daqueles ali – e apontou para a rua. Dezenas
de criaturas (percebiam agora que se tratava de
terrícolas) vinham do caís. Mas não caminhavam
como uma multidão sem objetivo. Agiam como
soldados de uma tropa de assalto, ocultando-se
depois de cada corrida, procurando não ser vistos
das janelas do castelo.
– Não tenho coragem de meter-me outra
vez dentro daquela armadura – disse o príncipe. –
Cavalguei naquilo como se estivesse dentro de um
calabouço ambulante; aquilo cheira mal, a magia
e escravidão. Mas pegarei o meu escudo.
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Deixou a sala e voltou com um estranho
brilho nos olhos:
– Vejam só, meus amigos – e exibiu o
escudo para eles. – Há uma hora este escudo era
negro e não tinha emblema. Vejam agora. –
Brilhava como prata e, mais rubra do que uma
cereja, estampava-se nele a figura do Leão. – Sem
dúvida – continuou o príncipe – isso quer dizer
que Aslam será nosso guia, quer nos reserve a
morte ou a vida. Ajoelhemos primeiramente para
beijar sua imagem; depois apertemos as mãos uns
dos outros, como sinceros amigos que em breve se
despedem. Desceremos em seguida à cidade e
aceitaremos o nosso destino.
O príncipe abriu a porta, e desceram as
escadas: os três com as espadas em punho e Jill
com seu canivete. Os serviçais tinham
desaparecido e a sala estava vazia. As luzes
cinzentas e lúgubres ainda ardiam, não sendo
assim difícil vencer uma galeria depois de outra e
descer as numerosas escadas. Os ruídos do lado de
fora do castelo já não eram tão perceptíveis como
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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antes. Tudo continuava quieto e abandonado. Só
quando dobraram um corredor que dava para o
salão nobre é que encontraram o primeiro terrícola
– uma criatura gorda e esbranquiçada, com uma
cara de leitão, e que estava a deglutir vorazmente
os restos de comida deixados sobre as mesas.
Guinchou (e esse guincho também lembrava a voz
dos porcos), sumiu para debaixo de um banco,
sacudindo a cauda, e antes que Brejeiro o
atingisse, disparou na direção da porta sem que
pudesse ser perseguido.
Do salão passaram ao pátio. Jill, que
freqüentara uma escola de equitação aos
domingos, sentiu o cheiro de estábulo (um cheiro
simpático e familiar quando aspirado num lugar
como o Submundo).
– Caramba! – disse Eustáquio – Olhem ali!
Um belo foguete subia de alguma parte e
estourava em lágrimas verdes.
– Fogos de artifício! – exclamou Jill,
intrigada.
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– Certo – disse Eustáquio –, mas não vá
pensar que esses terrícolas estão se divertindo.
Deve ser um sinal.
– Um sinal vermelho para nós, apesar de
verde – disse Brejeiro.
– Amigos – disse o príncipe –, quando um
homem se lança numa aventura como esta, deve
dar adeus à esperança e ao medo; do contrário,
tanto a morte quanto a libertação podem não
chegar a tempo de salvar-lhe a honra e a razão.
Alô, belezas! – com esta frase, abriu o estábulo. –
Quieto, Carvão! Calma, Floco de Neve!
Os cavalos estavam assustados com as
luzes estranhas e com o barulho. Jill, que se
sentira tão acovardada ao caminhar por um buraco
escuro, aproximou-se sem medo dos bichos
inquietos, ajudando o príncipe a colocar arreios e
rédeas. Estavam lindos ao cruzar o pátio,
meneando a cabeça. Jill montava Floco de Neve
com Brejeiro à garupa. Com um ecoar de cascos,
atravessaram o portão principal e ganharam a rua.
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– Bem, não corremos o risco de morrer
queimados – observou Brejeiro, apontando à
direita. – Gosto de olhar sempre o lado bom das
coisas. – A água batia ruidosamente contra as
paredes das casas.
– Coragem! – disse o príncipe. – Esta rua é
uma boa ladeira. A água subiu apenas até a
metade da colina mais alta. Deve subir muito na
próxima meia hora e pouco nas próximas duas
horas. Tenho mais medo daquilo... – e apontou
com a espada para um comprido terrícola com
focinho de javali, seguido de mais uns seis de
formas sortidas, que tinham deslizado de uma
esquina e se ocultado na sombra.
O príncipe os conduzia, sempre na direção
do clarão avermelhado, um pouquinho mais para a
esquerda. Seu plano era contornar o fogo (caso
fosse fogo) e subir às terras altas, na esperança de
encontrar o caminho do túnel novo. Ao contrário
dos outros três, parecia bem satisfeito. Assoviava
e às vezes cantarolava uma velha balada sobre o
lendário Corin Punhos de Ferro, da Arquelândia.
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A verdade é que estava tão feliz por ter-se
libertado da magia negra, que os perigos do
presente não passavam de uma brincadeira. Para
os outros, é claro, a cavalgada era tenebrosa.
Atrás deles ouvia-se o ruído de barcos
abalroados ou de prédios que desabavam. Acima
via-se a grande mancha de luz lúgubre. À frente, o
misterioso clarão. Da mesma direção chegava um
continuado alarido de gritos, choros, assovios,
risos, guinchos, bramidos. Fogos de artifício
riscavam o ar. Ninguém era capaz de imaginar o
que significavam. Nas cercanias, a cidade era em
parte iluminada pelo clarão e pelas diferentes
luzes dos sinistros lampiões dos gnomos. Mas
existiam muitos lugares sem luz alguma,
mergulhados em treva. Desses lugares ou para
eles é que saíam ou entravam correndo os
terrícolas, sempre de olhos pregados nos quatro,
sempre aflitos em busca de esconderijos. Havia
carinhas e carões, olhões de peixe e olhinhos de
urso. Havia alguns emplumados, outros peludos,
outros com chifres e trombas, alguns com nariz
em tira, outros de queixo tão comprido que batia
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no peito. Às vezes um grupo chegava bem perto.
O príncipe brandia a espada e fingia atacá-los. E
as criaturas, com todos os tipos de pios, guinchos
e cacarejos, mergulhavam nas sombras.
Quando já tinham subido várias ladeiras e
se achavam longe da inundação, quase fora da
cidade, a coisa começou a ficar mais séria.
Estavam próximos do clarão vermelho, embora
ainda não soubessem o que fosse. Os inimigos,
entretanto, podiam ser vistos com mais nitidez.
Centenas – talvez milhares – de gnomos vinham
na direção deles. Mas aproximavam-se em
investidas curtas; quando paravam, encaravam os
quatro cavaleiros.
– Se Sua Alteza me perguntasse – disse
Brejeiro –, eu ia dizer que aqueles caras
pretendem cortar a nossa frente.
– É o que eu também acho. E não
poderemos romper uma coluna tão numerosa.
Vamos levar os cavalos para bem perto daquela
casa. Chegando lá, apeie e corra para a sombra. A
senhorita e eu iremos uns passos adiante. É claro
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que algum desses capetas irá nos seguir; então
você, que tem os braços compridos, pegue um
deles vivo (se conseguir). Podemos arrancar
alguma verdade dele ou saber o que têm contra
nós.
– Mas os outros todos não vão cair sobre
nós para salvar o companheiro? – perguntou Jill,
esforçando-se para que sua voz não saísse
trêmula.
– Se acontecer isso, minha dama,
morreremos em combate para protegê-la;
encomende-se pois à proteção do Leão. Agora,
Brejeiro!
O paulama deslizou para a sombra como
um gato. Os outros continuaram. De repente,
ouviram-se gritos de gelar o coração, misturados à
voz de Brejeiro: “Quieto! Assim você acaba se
machucando. Puxa! Parece um porco entrando na
faca.”
– Boa caçada – exclamou o príncipe,
voltando à sombra da casa. – Eustáquio, por favor,
segure as rédeas de Carvão.
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Apeou. Os três se olharam em silêncio
quando Brejeiro trouxe a presa para a luz. Era um
pobre gnominho com menos de um metro. Tinha
uma espécie de crista de galo no alto da cabeça,
olhinhos rosados, a boca e o queixo tão grandes
que parecia um mini-hipopótamo. Se não
estivessem numa situação tão difícil, teriam caído
na gargalhada.
– Bem, terrícola – disse o príncipe,
mantendo a espada pertinho do pescoço do
prisioneiro. – Agora você vai falar como um
gnomo de bem, para conquistar a liberdade.
Banque o patife conosco e será um terrícola
morto... – e voltando-se para Brejeiro: – Meu
caro, como é que o gnomo poderá falar se você
está lhe tapando a boca?
– E também não poderá morder – disse
Brejeiro. – Se eu tivesse a mão fraca e mole que
vocês humanos têm (com todo o respeito a Vossa
Alteza). Agora já estaria sangrando. Nem mesmo
um paulama agüenta ser tão mastigado.
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– Meu velho – o Príncipe disse para o
gnomo –, uma mordida e você morre. Deixe que
ele abra a boca, Brejeiro.
– Oo-ee-ee – guinchou o terrícola. – Solteme!
Solte-me! Não fui eu. Não fui eu que fiz isso.
– Não fez o quê? – perguntou Brejeiro.
– O que Vossas Senhorias estão dizendo
que eu fiz – respondeu a criatura.
– Diga-me como se chama – disse o
Príncipe – e o que vocês terrícolas estão tramando
hoje.
– Ah, por favor, gentis cavalheiros –
choramingou o gnomo. – Prometam que não
contarão à reverendíssima Rainha nada do que
vou contar.
– A reverendíssima Rainha, como você a
chama – disse o Príncipe, muito sério –, está
morta. Fui eu que a matei.
– O quê? – exclamou o gnomo,
escancarando sua boca ridícula, espantado. –
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Morta? A feiticeira morreu? E pelas mãos de
Vossa Senhoria?
Ele deu um profundo suspiro de alívio e
acrescentou:
– Bem, então Vossa Senhoria é um amigo!
O príncipe puxou a espada um centímetro
ou dois. Brejeiro deixou a criatura ficar de pé. O
gnomo olhou para os quatro viajantes, piscando
seus olhos vermelhos, deu uma ou duas risadinhas
e começou.
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14
O FUNDO DO MUNDO
– Meu nome é Golgo – disse o gnomo. –
Vou dizer tudo o que sei. Há cerca de uma hora,
estávamos todos indo para o trabalho – o trabalho
dela, quero dizer – quietos e tristes como sempre.
De súbito aconteceu um grande estrondo. E cada
um de nós pensou: “Ei, o que é isso? Há anos e
anos que não canto, não danço, nem solto um
buscapé! Eu devia estar encantado. Ora, não vou
carregar mais este peso, dane-se.” E nós todos
atiramos no chão sacos, pacotes, ferramentas. E aí
todos vimos aquele grande clarão vermelho. Todo
mundo pensou: “O que será isso? Qualquer coisa
deve ter-se arrebentado e um belo clarão entrou
aqui vindo da Terra Realmente Profunda, milhares
de metros lá embaixo.”
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– Caramba! – exclamou Eustáquio. – Ainda
existem outros lugares embaixo deste?
– Oh, existem! – respondeu Golgo. –
Lindos lugares; é o que chamamos de Bismo. Este
país, o país da feiticeira, é o que nós chamamos de
Terras Rasas. São muito próximas da superfície.
Puxa! Horrível! É quase como se a gente estivesse
vivendo lá fora. Somos apenas pobres gnomos de
Bismo, trazidos aqui por força dos chamados
mágicos da feiticeira. Ela precisava de mão-deobra.
Tínhamos esquecido de tudo até que o
estrondo quebrou o encantamento. A gente não
sabia mais quem era e de onde era. Só pensava o
que ela punha dentro das nossas cabeças. Durante
estes anos todos só tivemos pensamentos
sombrios e tristes. Cheguei quase a esquecer
como contar uma piada ou dançar. Mas no
instante em que o estrondo aconteceu, e uma
brecha se abriu, e o mar começou a subir, eu me
lembrei de tudo. É claro que buscamos logo o
caminho da brecha para voltar à pátria. Vocês
podem ver os meus companheiros lá em cima
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soltando fogos de artifício. Ficarei muito
agradecido se me soltarem logo.
– Que coisa maravilhosa – exclamou Jill. –
Que bom a gente ter libertado também os gnomos
ao decepar a cabeça da serpente. Que bom saber
que eles não são de fato sinistros, como o príncipe
também não era... bem, aquilo que ele parecia ser.
– Tudo muito certinho, Jill – disse,
cauteloso, Brejeiro. – Mas para mim estes gnomos
não estão apenas fugindo. Parecem mais uma
expedição militar. Olhe bem nos meus olhos, Sr.
Golgo: vocês estão ou não estão se preparando
para uma batalha?
– É claro que estamos – respondeu Golgo. –
Ninguém sabia que a feiticeira estava morta. A
gente acreditava que ela estivesse espiando do
castelo. Estávamos tentando cair fora sem ser
vistos. Quando vocês apareceram a cavalo com as
espadas, todo mundo pensou: “É agora.” Não
sabíamos que vocês não eram a favor da feiticeira.
E estávamos dispostos a lutar até o fim, mas não
desistir da esperança de voltar para Bismo.
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– Juro que aqui está um gnomo honesto –
disse o príncipe. – Pode soltá-lo, Brejeiro. Fique
sabendo, meu bom Golgo, que também estive
encantado como você e seus amigos, e só há
pouco me recuperei. Mais uma perguntinha: sabe
o caminho para as escavações do túnel novo,
aquele por onde a bruxa queria conduzir o
exército?
– Riiii – ganiu Golgo. – Claro; conheço
esse caminho horroroso. Vou lhe mostrar onde
começa. Mas não me peça para ir com vocês:
prefiro a morte.
– Por quê? – perguntou Eustáquio, aflito. –
Que há de tão terrível?
– Perto demais do Sol – disse Golgo, com
um arrepio. – Foi a pior coisa que a feiticeira nos
fez. íamos ser levados para o aberto... para o lado
de fora do mundo. Dizem que lá não existe teto:
só um vasto vazio chamado céu. E as escavações
andam tão adiantadas que mais umas picaretadas
furam o resto do teto. Não quero nem chegar
perto.
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– Oba, oba! – exclamou Eustáquio. – Agora
sim você está falando bonito!
E Jill acrescentou:
– Mas o lugar não é horrível como você
pensa. Gostamos de lá. Moramos lá.
– Sei disso. Mas pensava que só moravam
lá porque não sabiam o caminho para cá. Só não
acredito que gostem mesmo de lá... de viver como
moscas no topo do mundo!
– Que tal se nos mostrasse logo o caminho?
– perguntou Brejeiro.
– Boa idéia – disse o príncipe.
Partiram todos. O príncipe e Brejeiro
subiram no cavalo; Golgo abria o cortejo. À
medida que avançava, ia gritando a boa nova: a
feiticeira estava morta e os quatro cavaleiros do
Mundo de Cima não eram perigosos. Os que
ouviam iam gritando a sensacional notícia para os
outros e, em poucos minutos, todo o Submundo
estava em festa com gritos e vivas; aos milhares,
os gnomos vinham saltando, dando cambalhotas,
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plantando bananeiras, rodeando Carvão e Floco de
Neve. O príncipe teve de contar a história do
encantamento e da libertação pelo menos umas
dez vezes.
Foi assim que acabaram chegando à beira
da fenda. Tinha mais de trezentos metros de
comprimento e uns duzentos de largura. Desceram
dos cavalos e foram olhar da beira da fenda. Um
calor forte bateu-lhes no rosto, misturado a um
cheiro bem diferente de todos os outros
conhecidos: intenso, agudo, excitante, e
provocava espirros. O fundo da brecha era tão
brilhante que a princípio os deslumbrou; nada
puderam ver. Quando se acostumaram puderam
distinguir um rio de fogo e, nas margens deste,
campos e bosques de um fulgor quente e
insuportável – embora fosse fosco, comparado ao
rio. Azuis e vermelhos, verdes e brancos, tudo se
misturava. Pelas laterais ásperas da brecha, como
pontos escuros contra a luz de fogo, centenas de
terrícolas desciam.
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– Meus senhores – disse Golgo (e quando
se viraram para ele nada viram durante alguns
segundos) –, meus senhores, por que não fazem
uma visita a Bismo? Seriam mais felizes lá do que
naquela terra nua e desprotegida lá de cima. Não
precisam demorar, se não quiserem.
Jill estava certa de que ninguém daria
atenção ao convite. Mas, horrorizada, ouviu o
príncipe dizer:
– Está aí, Golgo amigo, já estou meio
inclinado a ir com você. Não devemos perder uma
aventura maravilhosa como esta; talvez nenhum
homem mortal tenha visitado Bismo. E eu não
saberia, à medida que os anos fossem passando,
como agüentar o arrependimento de não ter
experimentado o que estava ao meu alcance:
conhecer as profundezas da Terra. Mas pode um
homem viver lá? Vocês não moram no próprio rio
de fogo?
– Oh, não! Nós, não! Só as salamandras
vivem no próprio fogo.
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– Que espécie de salamandra? – perguntou
o príncipe.
– Difícil dizer de que espécie. Doem na
vista. Parecem uns pequenos dragões. Falam
conosco lá do fogo. São incrivelmente
inteligentes, muito engraçadas e talentosas.
Jill deu uma olhada para Eustáquio. Tinha
certeza de que ele gostaria ainda menos do que ela
da idéia de descer por aquela brecha. Seu coração
gelou quando viu que a expressão dele mudara.
Parecia-se muito mais com o príncipe do que com
Eustáquio do Colégio Experimental. Pois todas as
aventuras que viveu em sua viagem com o rei
Caspian estavam outra vez a excitá-lo.
– Alteza – disse ele –, se aqui estivesse meu
velho amigo Ripchip, ele diria que recusar as
aventuras de Bismo seria desacreditar a nossa
honra.
– Lá embaixo – disse Golgo – posso
mostrar-lhes ouro de verdade, prata de verdade,
diamantes de verdade.
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– Besteira! – disse Jill grosseiramente. –
Como se a gente, mesmo aqui, não estivesse por
baixo das minas mais fundas do mundo...
– Já ouvi falar – disse Golgo – que na
crosta da Terra há uns fiapinhos de metal que
vocês chamam de minas. Mas lá encontraram
somente ouro morto, prata morta, diamante morto.
Em Bismo eles são vivos e crescem. Lá poderão
comer um galho de rubis ou tomar um suco de
diamante. É outra coisa.
– Meu pai foi até o fim do mundo – disse
Rilian pensativo. – Seria uma coisa formidável se
o seu filho fosse até o fundo do mundo.
– Se Vossa Alteza ainda quer apanhar seu
pai vivo – disse Brejeiro –, e acho que ele gostaria
disso, já é tempo de tomar o caminho do túnel
novo.
– Eu, por mim, não vou para aquele buraco
de jeito nenhum – acrescentou Jill.
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– Bem, se querem mesmo voltar para o
Mundo de Cima – disse Golgo –, há um trecho de
estrada um pouquinho melhor.
– Oh, vamos logo, vamos! – implorou Jill.
– Que se há de fazer? – suspirou o príncipe.
– Mas deixo um pedaço de meu coração em
Bismo.
– Por favor! – insistiu Jill.
– O caminho é todo iluminado – disse
Golgo. – Vossa Alteza pode ver o princípio da
estrada do outro lado da brecha.
– Por quanto tempo ainda duram as luzes? –
perguntou Brejeiro.
Nesse instante uma voz cortante e sibilante
como a voz do próprio fogo (ficaram a imaginar
mais tarde se não seria a voz de uma salamandra)
assoviou das profundezas de Bismo:
– Rápido! Rápido! Para o fosso, para o
fosso! A fenda está fechando! Rápido! Rápido!
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Imediatamente, com estrépito, as rochas
estremeceram. A brecha ficara mais estreita. De
todos os lados gnomos atrasados corriam para ela.
Nem esperavam para descer pela rocha; pulavam
de cabeça – ou porque um bafo de ar quente
soprava do fundo, ou por outra razão qualquer, o
fato é que desciam planando como folhas. Eram
tantos que quase ofuscaram o rio de fogo e os
bosques de gemas vivas.
– Adeus para todos, já vou indo – gritou
Golgo, mergulhando.
A brecha agora era da largura de um riacho
e logo depois da largura de uma rachadura na
parede. Por fim, como milhares de trens batendo
em milhares de molas, a boca de pedra fechou-se.
O cheiro quente desapareceu. Estavam sozinhos
num Submundo que agora parecia mais escuro do
que antes. As lâmpadas, pálidas e lúgubres,
assinalavam a direção da estrada.
– Aposto dez contra um – disse Brejeiro –
que já é tarde demais, mas não custa tentar.
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Aposto também que essas lâmpadas não vão
agüentar mais do que cinco minutos.
Puseram os cavalos a galope e seguiram em
bonito estilo pela estrada em penumbra. Mas o
caminho começou a descer, e teriam pensado que
Golgo lhes ensinara errado, caso não avistassem,
do outro lado do vale, a fileira de luzes
estendendo-se para cima. Mas no fundo do vale as
luzes brilhavam sobre a água em movimento.
– Rápido – bradou o príncipe.
Galoparam pela encosta. A maré invadia o
vale aos borbotões. Se tivessem de nadar,
dificilmente os cavalos o conseguiriam. Mas a
água subira somente um meio metro, e puderam
chegar salvos ao outro lado.
Começou aí a lenta e cansativa marcha
colina acima, sem outra coisa à vista a não ser as
luzes que subiam até se perderem na distância.
Atrás, a água se espalhava, transformando em
ilhas as colinas do Submundo. A cada instante
sumia mais uma lâmpada, coberta pelas águas.
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Em breve a escuridão era total, menos na estrada
que percorriam.
Embora tivessem excelentes razões para
galopar, os cavalos não agüentariam sem um
descanso. Pararam. Ouviam no silêncio o bater
ruidoso da água.
– Acho que ele... como é mesmo o nome?...
o Pai Tempo... foi coberto pelas águas – disse Jill.
– E aqueles animais sonolentos.
– Acho que não – disse Eustáquio. – Não se
lembra de quanto tivemos de descer para chegar
ao Mar sem Sol? Acho que a água não chegou à
caverna do Pai Tempo.
– Talvez, talvez – comentou Brejeiro. –
Estou mais interessado nas lâmpadas. Parecem um
pouco fraquinhas, não é mesmo?
– Sempre foram assim – disse Jill.
– Não, agora estão mais verdes – disse
Brejeiro.
– Você não quer dizer que elas vão se
apagar, não é? – perguntou Eustáquio.
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– Bem, não se pode esperar que elas durem
a vida inteira – replicou o paulama. – Mas não se
deixem abater por isso. Estou também de olho na
água, e creio que ela não está subindo tanto
quanto antes.
– Grande consolo, meu amigo – disse o
príncipe –, se a gente não achar a saída. Peço
perdão a todos. A culpa é minha; por presunção e
romantismo atrasei a viagem. Vamos em frente.
Durante algum tempo, Jill ora admitiu que
Brejeiro pudesse estar certo em relação às
lâmpadas, ora que fosse mera imaginação.
O teto do Mundo de Cima estava tão
próximo que, mesmo com aquela luz mortiça,
podia ser avistado. As vastas e enrugadas paredes
do Mundo de Cima já eram visíveis. A estrada os
conduzia de fato para um túnel íngreme.
Passavam por picaretas, pás, carrinhos de mão e
outros sinais de trabalhos recentes. Se tivessem a
certeza de estar saindo do buraco, tudo isso era
muito animador, mas a hipótese de seguir por um
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túnel cada vez mais estreito, mais difícil no caso
de um retorno, era extremamente desagradável.
O teto já estava tão baixo que Brejeiro e o
príncipe lhe batiam com a cabeça. Desceram e
começaram a puxar os cavalos. A estrada ficara
irregular e tinham de pisar com cuidado. Jill notou
a escuridão crescente. Não havia mais dúvida. Os
rostos dos outros pareciam estranhos e lívidos no
palor esverdeado. De repente Jill deu um gritinho.
Uma luz, a primeira em frente, apagara-se. A de
trás também. Estavam na escuridão total.
– Coragem, meus amigos – ouviu-se a voz
do príncipe Rilian. – Vivos ou mortos, Aslam será
nosso guia.
– Perfeitamente, Alteza – era a voz de –
Brejeiro. E sempre se pode lembrar que há uma
vantagem em morrer aqui: não se gasta dinheiro
com enterro.
Jill mordeu a língua. (Quem não quer
mostrar o medo que está sentindo, deve ficar em
silêncio; é a voz que nos denuncia.)
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Brejeiro e Eustáquio seguiram na frente de
braços estendidos, com receio de um encontrão
indesejável; Jill e o príncipe vinham atrás,
puxando os cavalos.
Bem mais tarde ouviu-se a voz de
Eustáquio:
– Ou os meus olhos estão ficando meio
esquisitos ou estou vendo luz lá em cima. Que
acham?
Antes que alguém tivesse tempo de
responder, Brejeiro bradou:
– Parem. Cheguei a um lugar que não vai
mais para frente. E é terra, não é pedra. Que
estava dizendo, Eustáquio?
– Pelo Leão – disse o príncipe –, Eustáquio
está certo. Há uma espécie de...
– Mas não é a luz do dia – falou Jill. – Só
uma luz azul e fria.
– Melhor do que nada – replicou Eustáquio.
– Podemos subir até lá?
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– Não dá – disse Brejeiro. – Jill, que tal se
você subisse nos meus ombros e tentasse chegar
até lá?
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15
O DESAPARECIMENTO DE
JILL
Os outros apenas podiam ouvir, mas não
viam o esforço feito por Jill para subir aos ombros
do paulama:
– Tire o dedo do meu olho... Olhe o pé na
minha boca... Aí... Agora seguro suas pernas...
Firme-se com as mãos na terra...
A sombra de Jill desenhava-se contra a luz.
– Como é? – gritaram todos ansiosos.
– É um buraco – gritou Jill. – Espere um
pouco, Brejeiro: é melhor eu ficar em pé nos seus
ombros, em vez de sentada.
A figura recortou-se mais contra a luz,
pondo-se de pé.
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– Parece... – começou a dizer Jill, mas de
repente ouviu-se um grito, não um grito agudo,
mas como se sua boca estivesse sendo abafada.
Depois ela começou a gritar alto, mas não
conseguiam entender o que dizia. O foco de luz
por um segundo sumiu; ouviram ao mesmo tempo
um ruído de coisa arrastada e a voz do paulama:
– Depressa! Agarrem as pernas dela!
Alguém está puxando Jill para cima! Já! Não,
aqui! É tarde demais!
A abertura ficou novamente clara. Jill
sumira.
– Jill! Jill! – berraram sem resposta.
– Que droga! Por que você não agarrou os
pés dela? – perguntou Eustáquio.
– Não sei – gemeu Brejeiro. – Já nasci
fracassado. É o destino. Estava escrito que eu
seria a causa da morte de Jill, como estava escrito
que eu tinha de comer carne de Cervo Falante.
Minha culpa, minha culpa!
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259
– Não poderia ter acontecido nada mais
triste e vergonhoso – disse o príncipe. –
Entregamos uma valente senhorita às mãos do
inimigo, e aqui ficamos nós em segurança.
– Será que eu consigo passar por aquele
buraco? – perguntou Eustáquio.
Havia sucedido a Jill o seguinte: assim que
pôs a cabeça para fora, percebeu que estava
olhando como se fosse do alto de uma janela, e
não como se fosse de um alçapão no teto.
Permanecera tanto tempo no escuro que seus
olhos não puderam distinguir logo o que viam, a
não ser que não estava diante do mundo
ensolarado que esperava. O ar parecia
mortalmente gelado e a luz era azul e pálida.
Havia ainda muito barulho e uma porção de
objetos brancos voando. Foi nesse momento que
ela pediu para subir aos ombros de Brejeiro.
Feito isso, pôde ver e ouvir muito mais.
Havia dois tipos de ruído: a batida rítmica de
vários pés e a música de quatro rabecas, três
flautas e um tantã. Percebeu também qual era a
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sua posição. Olhava de um buraco para um
terreno em declive. Tudo era muito branco, e
muitas pessoas se agitavam de um lado para outro.
Aí começou a arquejar. As pessoas eram elegantes
faunos e dríades com os cabelos coroados de
folhas a flutuar. Agitavam-se. Não, dançavam –
uma dança de figuras e passos tão complicados
que era preciso algum tempo para entendê-la.
Súbito ocorreu-lhe que a pálida luz azulada vinha
do luar, e que a matéria branca no chão era neve.
E, naturalmente, as estrelas luziam no céu escuro.
As coisas altas e escuras, além dos dançarinos,
eram árvores. Não tinham chegado a um lugar
qualquer no Mundo de Cima, mas ao coração de
Nárnia. Jill achou que ia desmaiar de prazer. E a
música – uma música agreste e muito suave, mas
também meio fantástica e impregnada de magia
como o repenicado da feiticeira – aumentava o
deslumbramento.
Leva-se tempo para contar, mas curto foi o
tempo de ver tudo isso. Virou-se logo para
transmitir aos outros a mensagem, gritando:
“Parece que está tudo ótimo. Estamos em casa.”
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Não passou do “parece”, e o motivo é o seguinte:
rodeando sem parar os dançarinos, havia um
bando de anões, todos festivamente vestidos,
quase todos de escarlate, com capuzes debruados
de peles, borlas douradas e grandes botas peludas.
Enquanto giravam iam atirando bolas de neve
(eram as coisas brancas que Jill tinha visto a
voar). Não as atiravam nos dançarinos. Atiravamnas
nos espaços vazios, com uma precisão
perfeita. Era a chamada Grande Dança da Neve,
que se realizava em Nárnia na primeira noite de
neve com luar. Era ao mesmo tempo uma dança e
uma brincadeira, pois o dançarino que errasse um
pouquinho recebia uma bolada de neve na cara, e
todos davam risadas. Nas noites mais bonitas,
com o luar, o pio das corujas, o tantan do tambor,
a festa costumava prolongar-se até o raiar do dia.
Jill calou-se depois do “parece” porque uma
bola de neve acertara-lhe em cheio na boca. Não
deu a mínima importância; só que não podia falar,
por mais feliz que se sentisse. Depois de recuperar
a fala, chegou a esquecer-se de que os outros
ainda não sabiam sobre aquelas grandes
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novidades: simplesmente inclinou-se para fora do
buraco e gritou para os dançarinos:
– Socorro! Socorro! Estamos enterrados na
colina!
Os narnianos, que ainda não tinham notado
o buraco, olharam em várias direções, muito
surpresos. Logo que deram com a figura de Jill
vieram correndo e umas dez mãos se estenderam
para ela. Jill pulou para fora e deu uns passos,
para depois dizer:
– Há mais três lá dentro; e um deles é o
príncipe Rilian; cavem, por favor.
Já estava cercada pela multidão quando
disse isso, pois outras criaturas que assistiam à
dança chegaram correndo. Esquilos choveram das
árvores, e também corujas. Ouriços apareceram
correndo, tão depressa quanto lhes permitiam as
curtas perninhas. Uma grande pantera, remexendo
a cauda com inquietação, foi a última a juntar-se
ao grupo.
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Logo que entenderam o que Jill estava
dizendo, entraram em atividade.
– Picaretas e pás, pessoal, pás e picaretas! –
disseram os anões, disparando para os bosques.
– Acordem as toupeiras. São ótimas para
cavar, tão boas quanto os anões – disse uma voz.
– Que foi que ela disse sobre o príncipe
Rilian? – perguntou outra voz.
– Calma! – comandou a pantera. – A pobre
criança está enlouquecida, depois de tanto tempo
perdida dentro da colina. Não sabe o que diz, é
claro.
– Isso mesmo – falou um velho urso. –
Disse que o príncipe Rilian era um cavalo!
– Disse coisa nenhuma! – protestou um
esquilo atrevido.
– Disse sim! – falou outro esquilo, ainda
mais atrevido.
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– É v-v-verdade! Não b-b-banque o b-bbobo!
– disse Jill, falando desse jeito porque seu
queixo batia de frio.
Uma das dríades enrolou-lhe um manto de
pele que um anão deixara cair ao passar correndo
em busca de ferramentas. Um fauno obsequioso
foi até uma gruta no bosque buscar-lhe uma
bebida quentinha. Antes que ele voltasse, os anões
reapareceram com as ferramentas e atacaram a
colina. Então Jill ouviu-os gritar: “Ei, o que você
está fazendo?” – “Abaixe essa espada, rapaz!” –
“Nada disso, menino!” Eustáquio era um pouco
mais pesado e bem mais desajeitado que Jill e
assim, quando olhou para fora, bateu a cabeça
contra o lado da abertura, causando uma pequena
avalancha de neve que caiu na sua cabeça,
tapando-lhe os olhos. Por isso, quando conseguiu
se safar da neve e viu dezenas de pessoas
correndo rapidamente para o seu lado, tentou se
defender.
Jill correu para o local e não sabia se
chorava ou se ria ao dar com a cara de Eustáquio,
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muito pálida e suja; com a mão direita, ele brandia
a espada, ameaçando quem tentasse aproximar-se.
E claro: ele experimentara nos últimos
minutos sensações bem diferentes. Ouvira o grito
que antecedeu o desaparecimento da menina.
Pensou, com o príncipe e Brejeiro, que ela só
podia ter sido agarrada por inimigos. Lá embaixo
não podia saber que a pálida luz azulada era o
luar. Achou que o buraco dava passagem a uma
outra gruta, iluminada por uma fosforescência
fantasmagórica e repleta sabe-se lá de que
criaturas maléficas do Submundo.
Assim, quando colocou a cabeça de fora,
ajudado por Brejeiro, e brandiu a espada, estava
cometendo um ato de bravura. Os outros também
o teriam feito, caso coubessem na abertura.
– Pare com isso, Eustáquio – gritou Jill. –
São amigos, não está vendo? Estamos em Nárnia.
Tudo bem!
Só então ele percebeu o que se passava e
pediu desculpas aos anões.
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– Não há de quê! – responderam os anões,
estendendo as mãozinhas cabeludas para ajudá-lo.
Então Jill enfiou a cabeça na pequena
abertura e gritou as boas-novas para os
prisioneiros. Quando retirava a cabeça, ouviu
Brejeiro resmungar:
– Coitada da Jill! Foi demais para ela: está
começando a ver coisas.
Jill e Eustáquio deram-se as mãos, as duas,
e respiraram profundamente o ar livre da meianoite.
Um manto foi colocado sobre Eustáquio e
bebidas quentes foram trazidas. Os anões quase já
haviam retirado a neve e o capim que rodeavam o
buraco: picaretas e pás dançavam agora no chão
como os pés de faunos e dríades. Dez minutos
apenas! Mas para Jill e Eustáquio já era como se
os perigos passados nas trevas do labirinto fossem
um sonho. Lá fora, no frio, com a lua e as estrelas
no alto (as estrelas de Nárnia, mais próximas do
que as estrelas em nosso mundo, parecem
maiores), e rodeados de tantas carinhas alegres,
era difícil acreditar no Submundo.
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Antes que tivessem acabado de beber, umas
dez toupeiras, recém-acordadas e não muito
satisfeitas, vinham chegando. Logo que souberam
do que se tratava, mudaram de disposição. Até os
faunos ajudaram, carregando a terra em carrinhos.
Os esquilos pulavam e dançavam com grande
animação. Ursos e corujas limitavam-se a dar
conselhos e a perguntar se as crianças não
gostariam de comer alguma coisa no calor da
gruta. Mas os dois faziam questão de esperar os
amigos.
Não há quem faça esse tipo de trabalho
melhor do que anões e toupeiras. Para estes aquilo
nem é trabalho, pois adoram cavar. Não
demoraram, portanto, a abrir na colina uma
grande brecha. O primeiro a emergir do escuro
para a luz da lua foi o paulama; depois, puxando
os cavalos, Rilian, o príncipe em pessoa.
Quando saiu Brejeiro, brados surgiram de
todos os lados:
– Ei, um paulama... Não é o velho Brejeiro?
Aquele Brejeiro da outra banda... Que aconteceu,
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Brejeiro?... Estão buscando você por toda a
parte... Trumpkin espalhou por aí avisos,
prometendo uma recompensa...
Mas ficou tudo em absoluto silêncio de
repente – como acontece no dormitório do colégio
quando o chefe de disciplina abre a porta. Pois
tinham visto o príncipe.
Não duvidaram de quem era ele nem por
um momento.
Muitos bichos, muitas dríades e muitos
faunos ainda se lembravam dele nos velhos
tempos. Os mais velhos até se recordavam de que
seu pai, o rei Caspian, quando jovem, era a cara
do filho.
Apesar de pálido, depois do longo cativeiro
nas Terras Profundas, vestido de preto,
empoeirado e cansado, havia no seu rosto alguma
coisa que não enganaria ninguém. Essa coisa
existia no rosto de todos os verdadeiros reis de
Nárnia, que governam em nome de Aslam,
coroados em Cair Paravel, no mesmo trono de
Pedro, o Grande Rei.
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Todas as cabeças se descobriram, todos os
joelhos se curvaram. Logo depois, vieram os
vivas, e os gritos, e pulos de alegria, e apertos de
mão, e abraços, e beijos. Lágrimas emocionadas
correram dos olhos de Jill. A peregrinação, apesar
de suas durezas e perigos, valera a pena.
– Por favor, Alteza, há uma ceia preparada
naquela caverna para depois da dança...
– Com muito prazer – disse o príncipe; e na
verdade os quatro amigos tinham um apetite
imbatível naquela noite.
A multidão começou a caminhar para a
caverna sob as árvores. Jill conseguiu ouvir
Brejeiro dizer para os que o rodeavam:
– Não, não, a minha história pode esperar.
Não há o menor interesse no que aconteceu
comigo. Eu, sim, quero saber de notícias. E de
uma vez! O navio do rei naufragou? Há guerra
com os calormanos? Apareceram os dragões? –
Todos caíram na risada, comentando:
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– É ainda o mesmo Brejeiro! Não mudou
nem um pouco!
As crianças estavam caindo de fome e
cansaço, mas reviveram com o calor da gruta,
com a beleza do clarão da lareira, que iluminava
as paredes, o guarda-louças, as xícaras, os pires,
os pratos e o chão de pedra lisa.
Mesmo assim, caíram no sono enquanto a
ceia estava sendo preparada. Enquanto dormiam,
o príncipe Rilian contou a aventura para os bichos
e anões mais velhos e sábios. Souberam então que
uma feiticeira perversa (sem dúvida uma do
mesmo tipo da feiticeira Branca, que trouxera
para Nárnia há muitos anos um inverno sem fim)
havia matado a mãe do príncipe e encantado o
próprio Rilian. Souberam também que ela
invadira Nárnia pelo caminho subterrâneo,
planejando subjugar o país por intermédio do
próprio Rilian – que jamais sonhou que o país
onde seria rei (rei só no nome, mas na verdade
escravo da feiticeira) era seu próprio país.
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Souberam também que a feiticeira era aliada dos
perigosos gigantes de Harfang.
– A lição de tudo, Alteza – concluiu o anão
mais velho –, é que essas feiticeiras do Norte
sempre miram o mesmo objetivo: em cada época
da História, mudam apenas de tática.
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16
REMATE DE MALES
Ao acordar no dia seguinte numa gruta, Jill
passou por um momento horrível, pensando que
estava novamente no Submundo. Ao perceber que
se achava deitada num leito de relva coberta por
um manto de pele, ao dar com o fogo crepitante
(recentemente aceso) numa lareira de pedra, e
vendo mais adiante a luz da manhã entrando pela
boca da gruta, recordou-se da venturosa verdade.
Fora deliciosa a ceia, apesar de todo o sono
que sentira antes que ela terminasse. Tinha a vaga
impressão de anões defronte do fogo com
frigideiras quase maiores do que eles, do chiado e
do aroma delicioso de salsichas, e mais salsichas,
e mais salsichas. Não salsichas mixurucas, com
um pedacinho de pão e molho de soja, mas
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salsichas legais, suculentas, temperadas,
estourando de gordas, só ligeiramente tostadas. E
canecões de chocolate espumoso, batatas e
castanhas assadas, maçãs de forno recheadas com
passas; e, depois de tudo, os sorvetes que
refrescavam.
Sentou-se e olhou em torno. Brejeiro e
Eustáquio estavam deitados a pouca distância,
ambos a dormir profundamente.
– Vocês dois aí! – gritou a menina. – Vão
ficar dormindo o resto do dia?
– Psiu! Psiu! – murmurou uma voz de
algum lugar em cima dela. – Hora de dormir. Tire
uma soneca. Não vai fazer turru. Turru!
– Só pode ser – disse Jill, distinguindo um
monte de penas brancas e fofinhas em cima de um
velho relógio –, só pode ser Plumalume!
– Turru, turru! — concordou a coruja,
espichando a cabeça para fora da asa e abrindo um
olho. – Trouxe uma mensagem para o príncipe.
Os esquilos nos levaram a grande notícia.
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Mensagem para o príncipe. Ele já partiu. Vocês
também devem partir. Bom dia... – e a cabeça da
coruja desapareceu.
Como, pelo jeito, não seria possível
arrancar qualquer informação da coruja, Jill
levantou-se e começou a procurar um modo de
lavar o rosto e comer alguma coisa. Quase no
mesmo instante um pequeno fauno entrou
trotando na caverna, fazendo clique-claque com
seus cascos de bode no chão de pedra.
– Ah! Acordou finalmente, Filha de Eva! –
disse o fauno. – Acho que é melhor acordar o
Filho de Adão. Dois centauros se ofereceram para
levá-los até Cair Paravel. – E acrescentou com a
voz mais baixa: – Você deve saber que montar um
centauro é uma honraria especialíssima. Não sei
de mais ninguém que possa dizer o mesmo.
Assim, não ficaria bem fazê-los esperar.
– Onde está o príncipe? – foi a primeira
pergunta de Eustáquio e Brejeiro.
– Foi encontrar-se com o rei, seu pai, em
Cair Paravel – respondeu o Fauno que se chamava
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Orruns. – O navio de Sua Majestade está sendo
esperado no porto a qualquer momento. Parece
que o rei teve um encontro com Aslam... não
posso afirmar se em visão ou se com o próprio
Leão... antes que se afastasse no mar. Aslam
disse-lhe que encontraria o filho perdido a esperá-
lo em Nárnia.
Eustáquio já estava de pé, e Jill começou a
ajudar o fauno a fazer o café. Um centauro,
chamado Mão de Nuvem, famoso curandeiro,
viria tratar de Brejeiro, que permaneceu deitado a
resmungar:
– Já sei, vai cortar minha perna pelo menos
à altura do joelho. Aposto. – Mas era bom
continuar na cama.
O café da manhã consistiu em ovos
mexidos e torradas; e nem parecia que Eustáquio
devorara uma lauta ceia durante a noite.
O fauno, olhando para as valentes garfadas
do menino, observou:
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– Não precisa se apressar tanto, Filho de
Adão. Acho que os centauros ainda não
terminaram a primeira refeição.
– Então esses centauros levantam muito
tarde – disse Eustáquio. – Lá pelas dez...
– Nada disso – respondeu Orruns –,
acordam antes de raiar o dia.
– Ai, ai, ai! Então eles esperam alguém para
fazer a primeira refeição.
– Não, nada disso. Começam a comer no
instante em que acordam.
– Caramba! Então a refeição deles deve ser
enorme.
– Não está entendendo, Filho de Adão? Um
centauro tem um estômago humano e um
estômago de cavalo. E, é claro, os dois estômagos
precisam de alimento. Assim, primeiro de tudo,
eles comem presunto, omeletes, torradas, geléias,
frutas, mingau, café e cerveja. Depois é que
cuidam da parte cavalar, pastando durante uma
hora e arrematando tudo com farinha de malte,
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aveia e um pacote de açúcar. Por isso é que se
trata de uma coisa muito séria convidar um
centauro para passar o fim de semana com a
gente.
Ouviu-se nesse momento um barulho de
cascos a ressoar nas pedras. As crianças olharam.
Os dois centauros (um de barba negra, outro de
barba dourada) estavam a esperá-los na boca da
gruta. Muito educadamente, as crianças
terminaram depressa a refeição.
Um centauro não é nada engraçado quando
à nossa frente. É solene, majestoso, deixando
transparecer toda a sabedoria antiga que aprendeu
das estrelas. Não se alegra nem se irrita
facilmente. Mas, quando se enfurece, sua raiva é
tão terrível quanto um maremoto.
– Adeus, querido Brejeiro – disse Jill,
aproximando-se da cama do paulama. – Desculpeme
por tê-lo chamado de pé-frio.
– Eu também peço desculpas – falou
Eustáquio. – Você foi o maior amigo do mundo.
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– Espero encontrá-lo de novo um dia –
acrescentou Jill.
– Não creio muito nisso – replicou Brejeiro.
– Acho que nem mesmo a minha cabana vou
encontrar de novo. E o príncipe – um ótimo
sujeito, mas vocês acham que ele vai resistir?
Viver debaixo da terra estraga a melhor saúde.
Claro. O príncipe não pode durar muito.
– Brejeiro! – disse Jill –, você no fundo é
um conversa-fiada. Apesar dessa cara de enterro,
tenho certeza de que se sente maravilhosamente
bem. Além do mais, fala como se tivesse medo de
tudo, mas na verdade é valente como... como um
leão.
– Por falar em cara de enterro... – começou
a dizer Brejeiro, mas Jill, para surpresa dele, deulhe
um beijo na face cor-de-barro, enquanto
Eustáquio apertou-lhe a mão.
Em seguida, as crianças correram para os
centauros, e o paulama afundou-se de novo na
cama, dizendo para si mesmo: “Nunca poderia
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imaginar que ela me desse um beijo. Por mais
simpático que eu seja.”
Montar um centauro é mesmo uma grande
honra (concedida provavelmente só aos dois
desde que o mundo é mundo), mas não é nada
confortável. Pois ninguém com amor à vida iria
insinuar que um arreio tornaria a coisa melhor; e
montar em pêlo não é fácil, especialmente (como
no caso de Eustáquio) quando a pessoa nunca
aprendeu a montar.
Os centauros foram muito gentis, apesar de
graves; enquanto trotavam pelas terras de Nárnia,
conversaram com as crianças, sem voltar as
cabeças, discorrendo sobre as propriedades de
ervas e raízes, sobre a influência dos astros, sobre
os nove nomes de Aslam e seus significados, e
outras coisas desse gênero. Apesar de sacolejados
e doloridos, Jill e Eustáquio dariam tudo para que
a jornada não terminasse. Que beleza! As colinas
e as clareiras reluzindo com a neve da véspera!
Encontrar coelhos, esquilos e passarinhos que
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diziam bom-dia! Respirar o ar de Nárnia! Ouvir as
vozes das árvores de Nárnia!
Chegaram finalmente ao rio – que à luz do
sol de inverno fluía azul e brilhante – bem mais
abaixo da última ponte (que fica numa
cidadezinha de telhados vermelhos chamada
Beruna). Ali foram transportados numa barcaça
para o outro lado, sob os cuidados de alguns
paulamas, que quase sempre se encarregam, em
Nárnia, dos assuntos aquáticos.
Quando atingiram a outra margem,
cavalgaram de novo os centauros e logo estavam
em Cair Paravel, onde distinguiram
imediatamente aquele mesmo navio reluzente que
viram ao pisar em Nárnia pela primeira vez.
Parecia um grande pássaro deslizando pelo rio.
Toda a corte, a fim de saudar o rei, estava outra
vez reunida no relvado entre o castelo e o cais.
Rilian, que havia trocado sua roupagem negra por
um manto escarlate sobre uma blusa de malha
prateada, estava à beira do cais, sem chapéu, à
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espera do pai. O anão Trumpkin sentava-se a seu
lado, na cadeirinha puxada pelo burro.
Viram logo as crianças que não haveria
chance de alcançar o príncipe, cercado pela
multidão. Além disso, sentiam-se agora meio
tímidos. Perguntaram então aos centauros se
poderiam ficar montados um pouco mais de
tempo, do contrário nada veriam. Os centauros
não fizeram objeção.
Uma fanfarra de trompas prateadas veio do
convés do navio; os marinheiros lançaram uma
corda; ratos (ratos falantes, naturalmente) e
paulamas puxaram logo o navio, que se encostou
ao cais. Músicos, ocultos pela multidão,
começaram a tocar uma marcha solene e triunfal.
Os ratos estenderam, pressurosos, o portaló.
Jill esperava ver o velho rei descer os
degraus, mas alguma coisa devia estar
acontecendo. Um nobre de rosto pálido desceu ao
cais e ajoelhou-se diante do príncipe e de
Trumpkin. Os três conversaram alguns minutos
com as cabeças quase coladas; nada se ouvia do
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que diziam. A música continuava, mas era
evidente que todos se sentiam um pouco
inquietos. Quatro nobres, carregando algo muito
lentamente, surgiram no convés. Quando
chegaram ao portaló já era possível distinguir o
que conduziam: o velho rei estendido sobre uma
cama, muito pálido e inerte. A cama foi deposta
no chão. O príncipe ajoelhou-se e abraçou o pai.
O rei Caspian ergueu a mão direita e deu a bênção
ao filho. Todos ergueram vivas, mas não eram
ovações muito animadas, pois sabiam que alguma
coisa ia mal. Subitamente a cabeça do rei baqueou
nos travesseiros; os músicos pararam de tocar; o
silêncio era de morte. O príncipe, ajoelhado ao pé
da cama, começou a chorar.
Houve murmúrios e agitações. Todos de
cabeça coberta foram tirando os chapéus, os
gorros, os elmos e os capuzes – inclusive
Eustáquio. Ouviu-se em seguida um farfalhar
acima do castelo: o pavilhão narniano, com o
Leão em ouro, estava sendo hasteado a meio-pau.
Lentamente, implacavelmente, com gemidos de
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cordas e doloridas queixas de trompas, a música
recomeçou: uma ária de cortar o coração.
As duas crianças escorregaram dos
centauros (que nem chegaram a notar).
– Preferia estar em casa – falou Jill.
Eustáquio concordou com a cabeça, sem dizer
nada.
– Aqui estou – disse uma voz profunda
atrás deles.
Era o próprio Leão, tão luminoso, real e
forte, que tudo o mais começou a parecer pálido,
embaçado. Antes que pudesse respirar fundo, Jill
se esqueceu do rei morto de Nárnia e se lembrou
apenas de como causara a queda de Eustáquio no
penhasco, dos sinais esquecidos, das brigas e
impertinências acontecidas. Queria dizer “sinto
muito” mas não conseguia falar. O Leão, com os
olhos, puxou as crianças para perto dele e tocoulhes
os rostos pálidos com a língua. E falou:
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– Não pensem mais nisso. Não me zango o
tempo todo. Vocês cumpriram a missão que lhes
foi confiada.
– Por favor, Aslam – disse Jill –, podemos
ir para casa agora?
– Podem. Vim para levá-los.
Aslam abriu a boca e soprou. Dessa vez não
tiveram a impressão de voar: em vez disso, era
como se estivessem firmes no chão, e o hálito de
Aslam soprasse para longe o navio, o rei morto, o
castelo, a neve, o céu de inverno. Todas essas
coisas flutuavam no ar como anéis de fumaça.
Viram, de súbito, que estavam envolvidos por
uma brilhante luminosidade de verão, em cima de
um gramado, entre árvores grossas, à margem de
um riacho límpido. Perceberam que se
encontravam de novo na Montanha de Aslam,
muito acima e muito além da terra de Nárnia.
Estranho é que a marcha fúnebre do rei Caspian
prosseguia, sem que se pudesse dizer de onde
vinha. Caminhavam à beira do riacho com o Leão
à frente: ele estava tão belo e a música era tão
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angustiante, que Jill não sabia de onde lhe subiam
as lágrimas.
Aslam parou e as crianças olharam para o
riacho. Lá dentro, nos seixos dourados do leito do
rio, estava o rei Caspian, morto, com a água
deslizando por ele como se fosse um cristal
líquido. As longas barbas brancas balouçavam
como plantas aquáticas. Todos os três choraram.
Até o Leão chorou: enormes lágrimas de leão, e
cada lágrima era mais preciosa que toda a Terra,
ainda que esta fosse um imenso diamante. E Jill
observou que Eustáquio não parecia um menino
chorão, mas um homem ferido de dor adulta. Ali,
naquela montanha, as pessoas não pareciam ter
uma idade determinada.
– Filho de Adão – disse Aslam –, vá até
aquele matagal e traga para mim o espinho que
por lá encontrar.
Eustáquio obedeceu. O espinho tinha três
palmos de comprimento e espetava como um
punhal.
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– Enfie este espinho em minha pata, Filho
de Adão – disse Aslam, estendendo uma pata
dianteira para Eustáquio.
– Devo mesmo fazer isso? – perguntou o
menino.
– Sim – respondeu Aslam.
Eustáquio apertou os dentes e enfiou o
espinho na pata do Leão, de onde correu uma
grande gota de sangue, mais vermelha do que se
possa imaginar. E a gota correu e espalhou-se no
riacho sobre o corpo do rei. E este começou a
transformar-se: a barba branca ficou cinzenta,
depois amarela, depois mais curta e desapareceu;
as faces encovadas tomaram cores e formas; as
rugas alisaram-se; os olhos abriram-se; olhos e
lábios sorriram; de repente, o rei ergueu-se,
ficando em pé perto deles. Era um homem muito
jovem, talvez um rapaz. (Não se podia dizer com
certeza, pois as pessoas não têm uma idade
precisa no país de Aslam.) O rei passou os braços
em torno do pescoço de Aslam, dando-lhe beijos
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viris de rei, respondidos com beijos agrestes de
leão.
Por fim Caspian voltou-se para os outros,
rindo-se com espantada alegria:
– Eustáquio! Eustáquio! Quer dizer que
você conseguiu alcançar o fim do mundo! Que
aconteceu com a minha espada que você quebrou
na Serpente do Mar?
Eustáquio deu uns passos na direção dele,
as duas mãos estendidas, recuando logo com uma
expressão perturbada.
– Olhe aqui – gaguejou o menino. – Está
tudo muito bem, mas... é você mesmo? Quero
dizer...
– Não seja tolo – falou Caspian.
– Mas – prosseguiu Eustáquio, olhando
para Aslam – ele afinal não... morreu?
– Morreu – respondeu o Leão
tranqüilamente, quase como se estivesse satisfeito
(foi o que Jill achou). – Ele morreu. Isso acontece
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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muito, como você deve saber. Até eu morri. Há
muitos poucos que não morreram.
– Ah – disse Caspian –, estou entendendo:
você está pensando que eu sou um fantasma ou
outro absurdo qualquer. Mas pense melhor: eu
seria um fantasma em Nárnia, pois de Nárnia não
sou mais. Mas ninguém é fantasma em sua própria
terra. No seu mundo eu seria um fantasma. Será?
Já que estão aqui, talvez aquele mundo também
não seja mais de vocês.
Uma grande esperança alvoroçou o coração
das crianças. Mas Aslam balançou a cabeça
felpuda.
– Não, meus queridos. Quando me
encontrarem aqui outra vez, então ficarão. Agora,
não. Precisam voltar ao mundo de vocês por
algum tempo.
– Senhor – disse Caspian –, sempre quis dar
uma espiada naquele mundo. Estarei errado?
– Você não pode mais querer nada de
errado, agora que morreu, meu filho – foi a
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VI
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resposta de Aslam. – Poderá espiar o mundo deles
durante cinco minutos – cinco minutos do tempo
deles.
Aslam então explicou a Caspian que Jill e
Eustáquio iriam de volta para o Colégio
Experimental, que ele parecia conhecer tão bem
quanto eles.
– Minha filha – disse Aslam para Jill –,
apanhe um galho daquela moita.
Na mão de Jill a vara transformou-se logo
num bonito chicotinho. Aslam prosseguiu.
– Agora, Filhos de Adão, saquem as
espadas, mas não usem as pontas, pois eu os envio
para a companhia de crianças e covardes, não para
enfrentar guerreiros.
– Vem com a gente? – perguntou Jill a
Aslam.
– Eles me verão apenas de costas –
respondeu o Leão.
Foram conduzidos pelo bosque e, pouco
depois, encontravam-se diante do muro do
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Colégio Experimental. Aslam rugiu fazendo com
que o sol tremesse no céu; um pedaço de muro
caiu, abrindo uma brecha. Podiam ver a alameda
da escola e o telhado do ginásio, sempre sob o
mesmo sol tristonho de outono.
Aslam virou-se para Jill e Eustáquio,
soprou-lhes no rosto e passou-lhes a língua na
testa. Depois deitou-se na brecha que havia feito
no muro, dando as costas para a Inglaterra e
dirigindo o olhar senhoril no sentido de sua
própria terra. No mesmo instante Jill percebeu as
carinhas (que já estava cansada de conhecer)
correndo sob as árvores na direção deles.
De repente pararam todos e mudaram de
cara: a mesquinharia, a pretensão, a crueldade, a
baixeza, tudo isso desapareceu quase
completamente das expressões deles, dando lugar
a uma única expressão: de terror. Pois tinham
visto um leão do tamanho de um filhote de
elefante deitado na brecha do muro; e três figuras
armadas, vestidas com roupas rutilantes, partiam
para cima deles. Com a força propiciada por
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Aslam, Jill tacou o chicotinho nas meninas,
enquanto Caspian e Eustáquio castigavam os
meninos com as espadas; em dois minutos os
fanfarrões já estavam correndo feito doidos, aos
gritos.
– Assassinos! Comunistas! Leões! Assim
não vale!
O diretor do colégio (aliás, era uma
diretora) chegou correndo para ver o que se
passava. Ao ver o Leão e o buraco no muro, e
Caspian, Jill e Eustáquio (que ela não
reconheceu), teve um ataque histérico. Voltou ao
gabinete para informar à polícia, pelo telefone,
que um leão devia ter fugido de um circo, que
baderneiros arrebentaram o muro armados de
espadas, que... No meio da confusão, Jill e
Eustáquio entraram calmamente e vestiram roupas
comuns, enquanto Caspian voltava para o outro
mundo. O muro, por graça de Aslam, foi
recomposto. Quando a polícia chegou, não
encontrou leão nenhum, nem brecha no muro,
nem baderneiros. Ali havia somente uma diretora
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que se comportava como uma louca. Um inquérito
foi aberto. Nesse inquérito surgiram cobras e
lagartos a respeito do Colégio Experimental; dez
pessoas acabaram expulsas. Depois disso, os
amigos da diretora perceberam que ela não
prestava para diretora, e nomearam-na inspetorageral.
Quando viram que ela não era também
grande coisa como inspetora-geral, conseguiram
elegê-la para a Câmara dos Deputados, onde ela
viveu para sempre feliz.
Eustáquio enterrou suas bonitas roupagens,
durante a noite, no campo do colégio; Jill preferiu
carregar as suas para casa, pensando numa festa
especial.
A partir daquele dia, as coisas melhoraram
no Colégio Experimental, que acabou virando
uma escola bastante boa. Jill e Eustáquio ficaram
amigos para sempre.
Lá longe, em Nárnia, o rei Rilian fez os
funerais do pai, Caspian, o Navegador, o décimo
com aquele nome. Rilian governou muito bem
uma terra feliz, apesar de Brejeiro (cujo pé ficou
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bom em três semanas) estar sempre dizendo que
tempo bom é sinal de tempestade. A abertura na
colina foi mantida aberta; às vezes, nos dias
quentes, os narnianos costumavam ir lá com
barcos iluminados, e entoavam seus cantos e se
divertiam no escuro mar subterrâneo. E contavam
histórias de cidades que ficavam ainda muito mais
abaixo...
Fim do Vol. VI
Próximo volume:
A Última Batalha
Mto show!!!!!!!!!!
ResponderExcluirAcabei de ler!!!Excelente!! Todos os outros livros dariam execelentes filmes!!!
ResponderExcluirchorei com a morte de Caspian X, me emociana a cada livro! Rumo ao ultimo!!!!
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