Ler Online - O Cavalo e Seu Menino

                                                       Ler "O Cavalo e Seu Menino" Online


_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
1
C. S. LEWIS
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
VOL. III
O Cavalo e seu Menino
Tradução
Paulo Mendes Campos
Martins Fontes
São Paulo 2002
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
2
As Crônicas de Nárnia são constituídas por:
Vol. I - O Sobrinho do Mago
Vol. II - O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa
Vol. III - O Cavalo e seu Menino
Vol. IV - Príncipe Caspian
Vol. V - A Viagem do Peregrino da Alvorada
Vol. VI - A Cadeira de Prata
Vol. VII- A Última Batalha
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
3
Para David e Douglas Gresham
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
4
ÍNDICE
1. SHASTA COMEÇA A VIAGEM
2. UMA AVENTURA NA NOITE
3. ÀS PORTAS DE TASHIBAAN
4. SHASTA ENCONTRA OS NARNIANOS
5. O PRÍNCIPE CORIN
6. SHASTA NAS TUMBAS
7. ARAVIS EM TASHIBAAN
8. NA CASA DE TISROC
9. ATRAVÉS DO DESERTO
10. UM EREMITA NO CAMINHO
11. UM VIAJOR SEM AS BOAS-VINDAS
12. SHASTA EM NÁRNIA
13. A BATALHA EM ANVAR
14. LIÇÃO DE SABEDORIA PARA BRI
15. RABADASH, O RIDÍCULO
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
5
1
SHASTA COMEÇA A VIAGEM
Conta-se aqui uma aventura que começou na
Calormânia e foi acabar em Nárnia, na Idade do Ouro,
quando Pedro era o Grande Rei de Nárnia e seu irmão
também era rei, e rainhas suas irmãs.
Vivia naqueles tempos, numa pequena enseada
bem ao sul da Calormânia, um pobre pescador
chamado Arriche; com ele morava um menino que o
chamava de pai. O nome do menino era Shasta. Quase
todos os dias, Arriche saía de manhã para pescar e, à
tarde, atrelava o burro a uma carroça e ia vender os
peixes no vilarejo que ficava cerca de um quilômetro
mais para o sul. Quando a venda era boa, ele voltava
para casa com o humor um pouco melhor e nada dizia
a Shasta. Mas quando a venda era fraca descobria
defeitos no menino e às vezes até o espancava.
Sempre havia motivos para achar malfeitos, pois
Shasta vivia cheio de coisas para fazer: remendar ou
costurar as redes, fazer a comida, limpar a cabana em
que moravam...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
6
Shasta não tinha o mínimo interesse pela vila
onde o pai vendia o pescado. Nas poucas vezes em
que tinha ido lá não vira nada de interessante. Só
encontrara gente parecida com o pai: homens
barbudos, usando mantos sujos e compridos, turbantes
na cabeça e tamancos de pau de bico virado para
cima, e que resmungavam entre si uma conversa mole
e enjoada. Mas tudo o que existia do lado oposto, no
Norte, despertava uma enorme curiosidade em Shasta,
pois ninguém jamais ia para lá, e ele próprio não tinha
permissão para isso. Quanto se sentava à soleira da
porta, remendando as redes, costumava olhar
ansiosamente para aqueles lados.
Às vezes perguntava:
- Pai, o que existe depois daquela serra?
Se o pescador estava mal-humorado, dava-lhe
um sopapo no pé do ouvido e lhe mandava prestar
atenção no trabalho. Se o dia era de boa paz, Arriche
respondia:
- Meu filho, não deixe o seu espírito se perder
em divãgações. E como diz um dos grandes poetas:
“A atenção é o caminho da prosperidade, e os que
metem o nariz onde não são chamados acabam
quebrando a cara no pedregulho da miséria.”
Por essa razão, Shasta imaginava que no Norte,
além da serra, só podia existir um fabuloso segredo,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
7
do qual o pai queria afastá-lo. Mas o pescador nem
sequer sabia onde ficava o Norte. E nem queria saber,
pois era um homem prático.
Um dia chegou do Sul um homem nada parecido
com os outros que Shasta conhecera. Montava um
grande cavalo malhado, de crina esvoaçante, com
estribos e freios de prata. A ponta do elmo saía do
centro do seu turbante de seda, e ele usava uma cota
de malha. Empunhava uma lança e trazia ao lado uma
cimitarra e um escudo de bronze. Seu rosto escuro não
causou a menor surpresa a Shasta, pois todos os
calormanos também são escuros. Surpresa, sim,
causou-lhe a ondulada barba do homem, pintada de
vermelho-carmesim e besuntada de óleo perfumado.
Pela pulseira de ouro que o estrangeiro usava, Arriche
logo viu que se tratava de um tarcaã, isto é, um
senhor de alta linhagem. Ajoelhando-se diante do
cavaleiro, o pescador acenou a Shasta para que fizesse
o mesmo.
O estrangeiro pediu pousada para a noite, coisa
que Arriche jamais teria a coragem de recusar. O que
tinham de melhor foi preparado para a ceia do tarcaã;
coube a Shasta, como sempre acontecia quando o
pescador recebia alguém, um naco de pão. Nessas
ocasiões costumava dormir ao lado do burro, numa
cocheira coberta de palha. Como era cedo demais para
dormir, Shasta, que jamais aprendera que não se deve
ouvir atrás da porta, foi sentar-se de orelha colada a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
8
uma fenda que havia na parede de madeira da cabana.
Estava curioso para saber o que diziam os adultos. Eis
o que ouviu:
- Agora, meu anfitrião - disse o tarcaã -, quero
dizer-lhe que estou pensando em comprar-lhe esse
menino.
- Meu amo e senhor - respondeu o pescador (e
Shasta adivinhou que o pai fazia no momento uma
cara ambiciosa) -, que preço poderia convencer este
seu servo a vender-lhe o seu único filho? Por que
preço tornar escravo quem é carne da minha própria
carne? É como diz um dos grandes poetas: “O
sentimento vale mais do que a sopa, e um filho é mais
precioso que o diamante.”
- É verdade - respondeu o hóspede com secura -
mas um outro poeta também disse: “Quem tenta
enganar o sábio, já está tirando a camisa para receber
chicotadas.” Não encha essa boca murcha de mentiras.
É evidente que esse menino não é seu filho, pois o seu
rosto é escuro como o meu, e o rapazinho é claro e
bonito como os malditos mas belos selvagens que
habitam as distantes terras do Norte.
- Como é certo o ditado - respondeu o pescador -
que diz que “espada não entra em escudo, mas contra
o olho da sabedoria não há defesa!” Saiba então, meu
sublime senhor, que devo à minha extrema pobreza
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
9
não ter tido nem mulher nem filho. Contudo, no
mesmo ano em que o Tisroc - que ele viva para
sempre! - iniciou o seu augusto e generoso reinado,
numa noite de lua cheia, os deuses fizeram a graça de
roubar-me o sono. Levantei-me da enxerga e fui tomar
o ar fresco da praia e contemplar o luar sobre as
águas. Foi quando percebi um ruído de remos na
minha direção e ouvi um choro miúdo. Pouco depois,
a maré trazia à praia uma canoa, onde estavam apenas
um homem vergado de fome e sede e que parecia ter
morrido havia poucos instantes - pois ainda estava
quente -, um cantil vazio... e uma criança, que ainda
vivia. Sem dúvida, pensei, esses desgraçados
conseguiram salvar-se dum naufrágio; por graça dos
deuses, o homem matou-se de fome e sede para
manter a criança viva, perecendo à vista da terra.
Assim, certo de que os deuses nunca deixam de
recompensar aqueles que socorrem os infelizes,
tocado de piedade, pois este seu servo é homem de
coração...
- Pare com esses elogios em causa própria -
interrompeu o tarcaã. - Basta saber que você pegou a
criança, e já recebeu com o trabalho do menino dez
vezes mais do que o pão que lhe deu a cada dia. Isto é
evidente. O que interessa é o seguinte: quanto quer
pelo menino? Estou cheio do seu palavrório.
Arriche respondeu:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
10
- Muito bem o disse, meu senhor: o trabalho do
menino tem sido para mim de inestimável valor. É
importante levar isso em conta ao ajustarmos o preço.
Pois, é claro, se vender o menino, serei obrigado a
comprar ou alugar um outro, capaz de fazer os
mesmos trabalhos.
- Dou quinze crescentes por ele - disse o tarcaã.
- Quinze! - bradou Arriche, com uma voz que
ficava entre o ganido e o vagido. - Quinze
crescentes!? Pelo arrimo da minha velhice!? Pela
consolação dos meus olhos!? Não zombe das minhas
barbas grisalhas, mesmo sendo o senhor um tarcaã!
Meu preço é setenta.
Nessa altura Shasta saiu na ponta dos pés. Tinha
ouvido o suficiente; de experiência própria, na vila,
sabia bem o que é uma conversa de barganha.
Chegava a adivinhar que, no fim das contas, Arriche o
venderia por muito mais do que quinze crescentes e
muito menos do que setenta. Mas levariam horas para
chegar a essa conclusão.
Não vá pensar que Shasta sentiu o que você
sentiria, caso ouvisse o seu pai negociando a sua
venda como escravo. Primeiro: a vida dele já era bem
parecida com a de um escravo e provavelmente o
tarcaã o trataria melhor do que Arriche. Depois,
aquela história de ter sido encontrado numa canoa
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
11
dava-lhe novo ânimo e certo alívio. Freqüentemente
tinha remorsos por não sentir afeto pelo pescador, pois
sabia que um filho deve amar o pai. Não tendo
parentesco com Arriche, tirava um peso da
consciência, chegando até a imaginar: “Quem sabe
não serei filho de algum tarcaã... ou filho até do
Tisroc - que ele viva para sempre! -, ou filho de um
deus?”
Devaneava assim, sentado na relva à beira da
cabana. Duas estrelas já tinham surgido no céu,
embora restos do pôr-do-sol ainda clareassem o
ocidente. A uma certa distância pastava o cavalo do
estrangeiro, amarrado ao anel de ferro da co-cheira do
burro. Como se vagueasse, Shasta caminhou até ele e
acariciou-lhe o pescoço. O animal continuou
arrancando ervas, sem tomar conhecimento.
Uma outra idéia passou pela cabeça do menino:
“Seria formidável se esse tarcaã fosse um bom sujeito.
Em casa dos grandes senhores há certos escravos que
quase não fazem nada. Usam roupas bonitas e comem
carne todos os dias. Quem sabe ele me levasse para a
guerra e eu tivesse de salvar a vida dele numa batalha;
aí ele me daria a liberdade e me adotaria como filho...
Aí eu ia ganhar um palácio, uma carruagem e uma
armadura... Mas, e se ele for um homem terrível e
cruel? Pode ser que me mande trabalhar no campo,
acorrentado. Ah, se eu soubesse! Aposto que o cavalo
sabe. Pena que não saiba falar.”
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
12
O cavalo levantou a cabeça. Shasta tocou-lhe o
focinho acetinado, dizendo:
- Seria tão bom se você falasse, companheiro!
Por um instante pensou que estava sonhando, pois,
com a maior clareza, embora em voz baixa, o cavalo
disse:
- Eu falo.
Os olhos de Shasta ficaram quase do tamanho
dos olhos do cavalo.
- Mas como é que você aprendeu a falar?
- Psiu! Mais baixo! Aprendi na minha terra,
onde quase todos os cavalos sabem falar.
- Onde fica a sua terra?
- Minha terra é Nárnia... Nárnia, a terra feliz das
montanhas, dos rios, dos vales floridos, das grutas
cheias de musgo, das florestas que vibram com as
marteladas dos anões. Oh, como é leve o ar de Nárnia!
Uma hora lá vale mais do que mil anos na
Calormânia.
A descrição de Nárnia acabou num relincho que
mais parecia um suspiro de pesar.
- Como você veio para cá?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
13
- Seqüestro! - respondeu o cavalo. - Roubado,
capturado, como você achar melhor. Não passava de
um potro. Minha mãe sempre me dizia para nunca ir
às encostas do Sul, à Arquelândia. Mas não lhe dei
ouvidos. Pela juba do Leão! Estou pagando pela
minha loucura. Fiquei escravo dos homens esse tempo
todo, ocultando a minha verdadeira natureza, fingindo
que sou mudo e estúpido como os cavalos deles.
- Por que não lhes contou quem você é?
- Não faria essa loucura! Se descobrissem que sei
falar, seria exibido nas feiras. Passaria a ser mais
vigiado do que nunca e perderia qualquer esperança
de escapar.
- Mas...
- Escute: não vamos perder tempo em conversa
fiada. Você quer saber a respeito do meu dono, que se
chama Anradin. É um sujeito ruim. Não para mim,
pois um bom cavalo custa um bom dinheiro. Mas,
quanto a você, seria mais feliz morto hoje à noite do
que escravo dele amanhã.
- Ah, então vou fugir! - exclamou Shasta,
empalidecendo.
- É o que tem a fazer - replicou o cavalo. - Por
que não foge comigo?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
14
- Você também está pensando em fugir?
- Se você vier comigo... É a nossa oportunidade,
entende? Se fujo sem um cavaleiro, vão pensar que
sou um cavalo perdido e me pegam. Com alguém em
cima, há uma chance. É aí que você entra. Quanto a
você, com essas perninhas (são incríveis essas pernas
humanas!) não iria longe. Comigo, porém, não há
cavalo neste país que nos apanhe. É aí que eu entro. A
propósito, acho que você deve saber montar...
- Mas é claro - respondeu Shasta. - Pelo menos já
montei o burro.
- Montou o quê}\ - fungou o cavalo com enorme
desprezo. (Nem mesmo chegou a falar, pois os
cavalos falantes ficam com o sotaque ainda mais
cavalar quando sentem raiva.) E continuou: - Em
outras palavras, você sabe montar coisa nenhuma. Isso
é ponto contra. Tenho de ensinar-lhe pelo caminho. Já
que não sabe montar, pelo menos sabe cair?
- Bem, todo mundo sabe cair.
- Estou dizendo o seguinte: sabe cair e montar de
novo, sem chorar, e cair de novo e montar de
novo, sem ficar com medo de voltar a cair?
- Vou tentar, posso tentar - respondeu Shasta.
- Coitado do bichinho! - falou o cavalo num tom
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
15
mais bondoso. - Esqueci que você é ainda um potro.
Vamos fazer de você um excelente cavaleiro. Preste
atenção: como só partiremos depois que aqueles dois
pegarem no sono, vamos aproveitar o tempo para
traçar nossos planos. Meu tarcaã está de viagem para
o Norte, para a própria Tashbaan, a grande cidade
onde fica a corte do Tisroc...
- Por favor - interrompeu Shasta -, por que você
não disse “que ele viva para sempre”?
- E por quê!? - replicou o cavalo. - Fique sabendo
que sou um narniano livre! Por que iria usar
linguagem de escravo? Não quero que ele viva, e
muito menos para sempre. E está na cara que você é
um homem livre do Norte. Vamos acabar com esse
palavreado sulista! Como ia dizendo, o meu humano
está de viagem para Tashbaan, no Norte.
- Isso significa que é melhor a gente ir para o
Sul?
- Não acho - respondeu o cavalo. - Ele pensa que
sou mudo e burro como os outros cavalos. Se eu fosse
mesmo, no momento em que ficasse solto iria
correndo para o meu estábulo, para o meu pasto, lá no
palácio dele, no Sul, a dois dias de viagem daqui. É
onde ele irá me procurar. Mas nunca passará pela
cabeça dele que fui sozinho para o Norte. Ele pode
imaginar também que alguém nos seguiu até aqui e
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
16
me roubou.
- Fabuloso! - exclamou Shasta. - Vamos para o
Norte. É para o Norte que eu sempre quis ir a
vida inteira.
- Sem dúvida - comentou o cavalo. - É a voz do
sangue. Você para mim só pode ser nortista.
Fale baixo... Já devem estar quase dormindo.
- Acho que vou dar uma olhada - sugeriu Shasta.
- Boa idéia, mas tome muito cuidado.
Estava escuro e quieto; o barulho das ondas
Shasta nem notava, depois de ouvi-lo a vida toda,
dia e noite. Não havia luz acesa na cabana. Nem ouviu
ruído na frente. Na única janela escutou o ronco de
sempre do velho pescador. “Engraçado”, pensou, “se
tudo correr bem, é a última vez que escuto esse
guincho”. Prendendo a respiração, sentindo um pouco
de pena (uma pena que não era nada, perto da alegria),
Shasta deslizou pela relva até a cocheira do burro, foi
tateando até o lugar onde estava escondida a chave,
abriu a porta e achou o arreio e as rédeas do cavalo.
Beijou o focinho do burro: “Desculpe por não poder
levá-lo.”
- Até que enfim - disse o cavalo, quando Shasta
voltou. - Já estava meio preocupado.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
17
- Fui buscar suas coisas na cocheira. Como é
que a gente coloca isto?
Por alguns minutos Shasta agiu cautelosamente,
evitando tinidos, enquanto o cavalo ia dizendo:
“Aperte um pouco mais a barrigueira.” “Tem uma
fivela aí mais embaixo.” “Encurte um pouco mais os
estribos.” Por fim disse:
- Você vai usar rédeas, mas só para manter as
aparências. Enrole a ponta na sela, bem frouxa, para
que eu possa mexer à vontade com a cabeça. Escute:
não toque nunca nestas rédeas!
- Mas, então, para que serve isso?
- Em geral, para que me dirijam. Mas, como
quem vai dirigir esta viagem sou eu, por favor não
mexa nisso aí. Aliás, mais um aviso: não se agarre na
minha crina.
- Mas espere aí: se não posso segurar nem nas
rédeas nem na crina, onde vou me agarrar?
- Em seus joelhos: é o segredo de quem sabe
montar. Pode apertar o meu corpo como quiser; sentese
bem aprumado, cotovelos para dentro. Aliás, o que
você fez com as esporas?
- Coloquei nos pés, é claro. Isso eu sei.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
18
- Pois então tire essas esporas dos pés e guarde
na sacola. Talvez possa vendê-las em Tashbaan.
Pronto? Acho que já pode subir.
- Puxa! Você é muito alto - reclamou Shasta,
depois da primeira tentativa de montar.
- Sou um cavalo, só isso - foi a resposta. - Pelo
jeito que você monta, diriam que sou um monte de
capim. Isso, melhorou. Agüente firme e não se
esqueça dos joelhos. Engraçado! Pensar que eu, que
conduzi cargas de cavalaria e venci tantas corridas,
levo agora na sela uma espécie de saco de batatas!
Deixe pra lá e vamos em frente.
Com grande precaução, foram inicialmente na
direção oposta, por trás da cabana, onde passava um
riacho a caminho do mar, tendo o cuidado de deixar
na lama pegadas que apontavam para o Sul. Depois
pegaram um trecho da margem coberto de seixos e
seguiram para o lado do Norte. A passo, voltaram pelo
caminho da cabana, passaram pela árvore e pelo
estábulo do burro, deixaram o riacho e sumiram na
noite quente.
Tomaram a direção das colinas e chegaram à
crista que marcava o fim do mundo conhecido por
Shasta; este nada via à frente, a não ser uma relva que
parecia não ter fim, um campo aberto sem casa
alguma.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
19
- Que beleza de lugar para um galope! - sugeriu
o cavalo.
- Não, por favor, ainda não. Por favor, cavalo.
Ei, ainda não sei o seu nome.
- Meu nome é Brirri-rini-brini-ruri-rá.
- Não vou aprender isso nunca. Posso chamá-lo
de Bri?
- Bem, se não consegue dizer mais do que isso...
E o seu nome?
- Shasta.
- Opa! Nomezinho complicado! Mas vamos ao
galope. É bem mais fácil do que o trote, pois você não
tem de subir e descer. Aperte os joelhos, olho firme
entre as minhas orelhas. Não olhe para o chão. Se
achar que vai cair, aperte mais os joelhos, empine-se
mais. Pronto? Já! Para Nárnia e para o Norte!
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
20
2
UMA AVENTURA NA NOITE
Era quase meio-dia quando Shasta acordou, na
manhã seguinte, com uma coisa cálida e macia
mexendo no seu rosto. Ao abrir os olhos deu com a
cara comprida de um cavalo. Lembrou-se dos
acontecimentos emocionantes da véspera e sentou-se.
Sentou-se e gemeu.
- Ai! Bri, estou todo dolorido. Nem dá para
mexer o corpo.
- Bom dia, baixinho. Achei mesmo que você
podia estar meio emperrado. Não pode ser dos
tombos: caiu somente umas dez vezes, e muito bem,
em cima de relvas tão macias que até dava gosto.
Você está sentindo é a própria cavalgada. Que tal se
comesse alguma coisa? Por mim, já estou satisfeito.
- Comer coisa nenhuma, deixe isso pra lá, deixe
tudo pra lá. Mal posso me mexer!
Mas o cavalo continuou a cutucá-lo bem de leve
com o focinho e o casco; o jeito foi levantar-se. Shasta
olhou em volta: atrás deles havia um pequeno bosque;
à frente, a relva pintada de flores alvas descia até a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
21
beira de um penhasco. Lá de baixo, bem longe,
chegava amortecido o barulho das ondas. Shasta
nunca tinha visto o mar de tão alto e nem havia
imaginado que ele pudesse ter tantas cores. A costa
estendia-se de cada lado, um cabo depois do outro, e
nas pontas via-se a espumarada explodir contra os
rochedos, sem barulho, por causa da distância.
Gaivotas revoavam. O dia era ardente. Mas a
maior diferença para Shasta estava no ar. Faltava
qualquer coisa no ar. Acabou descobrindo o que era:
faltava cheiro de peixe. Esse ar novo era tão delicioso,
que fez de repente com que toda a sua vida passada
ficasse distante. Chegou a esquecer por um momento
os machucados e os músculos doloridos.
- Bri, você falou algo sobre comida?
- Falei. Deve haver alguma coisa nas sacolas que
você pendurou naquela árvore, quando chegamos.
Examinaram as sacolas e o resultado foi
animador: um pastel de carne, só que um pouquinho
rançoso, figos secos, um pedaço de queijo, um frasco
de vinho, e dinheiro - quarenta crescentes ao todo,
mais do que Shasta já havia visto a vida inteira.
Enquanto o menino sentou-se com todo o
cuidado, recostando-se numa árvore para comer o
pastel, Bri deu algumas bocanhadas na relva, só para
fazer-lhe companhia.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
22
- Não será roubo gastar esse dinheiro? -
perguntou Shasta.
- É verdade - respondeu o cavalo, com a boca
cheia de capim. - Nem pensei nisso. Um cavalo livre,
um cavalo falante, não rouba... Mas não vejo mal
algum, francamente. Éramos prisioneiros num país
inimigo. O dinheiro é a nossa presa de guerra. Além
disso, de que jeito vamos arranjar comida sem
dinheiro? Você é humano e não vai querer comida
natural, como capim e aveia, não é?
- Capim e aveia não dá pé, Bri.
- Já experimentou?
- Já. Não desce, de jeito nenhum.
- São tão esquisitões os humanos!
Quando Shasta terminou a refeição (a melhor
que já tivera), Bri disse que iria dar uma boa rolada na
relva. E assim o fez, colocando-se de pernas para o ar:
- E uma delícia, uma delícia! Devia fazer o
mesmo, Shasta. Refresca que é uma beleza.
Shasta caiu na risada, dizendo:
- Você fica tão engraçado de pernas para o ar!
- Engraçado coisa nenhuma - protestou Bri. E
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
23
levantou-se de repente, erguendo a cabeça e fungando
um pouco. - E mesmo engraçado, Shasta?
- Muito. Isso tem alguma importância?
- Você acha que um cavalo falante faz isso? Será
que aprendi isso com os cavalos mudos? Vai ser
muito desagradável se descobrirem em Nárnia que
adquiri maus hábitos. Que acha? Pode falar com toda
a franqueza. Acha que os verdadeiros cavalos, os
falantes, rolam na relva?
- Como é que posso saber? Eu é que não ia ligar
para isso, se fosse você. Temos primeiro é de chegar
lá. Sabe o caminho?
- Sei o caminho para Tashbaan. Depois é o
deserto. Mas não se assuste, a gente dá um jeito no
deserto. Lá teremos a visão das montanhas do Norte.
Ninguém nos segura. Imagine só! Para Nárnia e para
o Norte! Mas bem que gostaria de já ter passado por
Tashbaan. Nosso problema são as cidades.
- Podemos evitar Tashbaan?
- Só se percorrêssemos um longo caminho por
dentro, que passa por terras cultivadas e boas estradas,
mas não sei o caminho. Não, devemos ir ao longo da
costa. Aqui em cima só encontraremos carneiros,
coelhos, gaivotas e alguns pastores. Aliás, que tal se a
gente fosse indo?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
24
As pernas de Shasta doíam muito, mas colocou
os arreios e montou. Bondosamente, Bri marchou com
delicadeza a tarde inteira. Quando baixou o
crepúsculo, chegaram por veredas íngremes a um vale
onde havia um vilarejo. Shasta apeou e entrou na vila
para comprar pão, cebola e rabanete. O cavalo deu a
volta pelo campo, indo encontrar o menino do outro
lado. Passaram a proceder desse modo, uma noite sim,
outra não.
Eram grandes dias para Shasta, hoje melhor do
que ontem, à medida que seus músculos se enrijeciam
e as quedas eram menos freqüentes. Mesmo assim Bri
costumava falar que ele parecia um saco de farinha
em cima da sela. E ainda dizia:
- Mesmo que não tivesse perigo algum, confesso
que teria vergonha de ser visto com você.
Apesar das palavras duras, Bri era um instrutor
paciente. Ninguém ensina equitação melhor do que
um cavalo. Shasta aprendeu a trotar, a galopar, a saltar
e a manter-se na sela, mesmo quando Bri sofreava o
passo subitamente ou negaceava para a esquerda ou
para a direita; coisas, dizia, que são necessárias numa
batalha.
Naturalmente, Shasta pedia-lhe que contasse as
guerras de que havia participado com o tarcaã. Bri
falava de marchas forçadas, de caudalosos rios
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
25
vadeados, de embates de cavalarias inimigas, quando
os cavalos guerreiam tanto quanto os homens, sendo
todos eles impetuosos garanhões, treinados para
morder e escoicear. Mas nem sempre queria falar de
guerra.
- Não toque neste assunto, rapaz. Eram guerras
do Tisroc e nelas entrei como escravo, como um
cavalo mudo. Espere para me ver nas guerras de
Nárnia, onde combaterei como um cavalo livre entre o
meu próprio povo! Aí, sim, teremos guerras que
merecem ser contadas. Para Nárnia! Para o Norte!
Brá-rá-rá! Bru-ru!
Shasta logo aprendeu a preparar-se para um
galope quando ouvia Bri bradar desse jeito.
Depois de viajar semanas e semanas, passando
por baías e enseadas, rios e vilas, numa noite de luar
cruzaram uma planície com uma floresta à esquerda.
O mar, oculto por dunas, ficava à direita, à mesma
distância. De repente Bri estacou.
- Algum problema?
- Psiu! - respondeu Bri, esticando o pescoço e
contraindo as orelhas. - Está ouvindo? Preste atenção.
- Parece barulho de outro cavalo, correndo entre
nós e a mata.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
26
- E outro cavalo. E isso não me agrada.
- Quem sabe é um fazendeiro chegando mais
tarde?
- Qual nada! Não é um fazendeiro. Nem é cavalo
de fazendeiro. Não percebe pelo som? Tem classe. E
está sendo montado por alguém que sabe mesmo
montar. Vou lhe dizer o que é, Shasta: há um tarcaã na
orla da mata. Não está montado em seu cavalo de
guerra... é muito ligeiro para isso. É uma égua de raça,
é o que lhe digo.
- Agora parou, seja lá o que for.
- Certo, Shasta. E por que ele pára quando
paramos? Meu amigo, alguém está nos seguindo,
tenho certeza.
- Que vamos fazer? - perguntou Shasta num
sussurro. - Acha que ele está vendo e ouvindo a
gente?
- Vamos ficar quietos. Há uma nuvem que se
aproxima; vamos esperar que a lua fique encoberta.
Depois ganharemos a praia no maior silêncio. Na pior
das hipóteses, poderemos esconder-nos atrás das
dunas.
Quando a nuvem ocultou a lua, saíram, primeiro
a passo e depois num trote manso.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
27
A nuvem era maior do que parecia, e a noite
ficou bem escura. Quando Shasta julgou que já
estavam perto das dunas, um longo rugido se fez ouvir
na escuridão à frente, um rugido melancólico e
selvagem, que quase fez o coração do menino sair-lhe
pela boca. Na mesma hora Bri voltou a galopar para o
lado da terra.
- Que é isso?
- Leões! - respondeu Bri, sem mudar a passada
ou virar a cabeça. Depois de um estirão, chapinharam
dentro de um riacho raso e Bri deu uma parada. Suava
e tremia.
- A água deve ter confundido o faro da fera
suspirou Bri ao recuperar um pouco o fôlego. -
Podemos ir andando. Shasta, estou com vergonha de
mim. Estou tão apavorado quanto um cavalo comum
dos calormanos. Verdade mesmo. Não me sinto um
cavalo falante. Não dou a menor importância para
flechas e lanças, mas não suporto... aquelas criaturas.
Acho que vou dar mais um trote.
Um minuto mais tarde galopava novamente, pois
o rugido reaparecera, desta vez à esquerda, vindo da
mata.
- São dois! - gemeu Bri.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
28
Depois de galoparem alguns minutos sem que
houvesse outros rugidos, Shasta falou:
- Aquele outro cavalo está galopando perto de
nós.
- M... melhor - arquejou Bri. - Tarcaã nele...
espada... pro... protege a gente.
- Mas Bri! A gente vai morrer também, se nos
pegarem. Eu, pelo menos. Vão me enforcar como
ladrão de cavalo.
Sentia menos medo de leão do que Bri, pois
nunca havia encontrado um.
Bri apenas fungou, encostando-se mais para a
direita. Estranhamente, o outro cavalo pareceu
encostar para a esquerda; e assim, em poucos
segundos, o espaço entre os dois tinha ficado bem
maior. Foi quando ouviram mais dois rugidos de leão,
um à direita, outro à esquerda. Os cavalos
reaproximaram-se. Os rugidos eram terrivelmente
próximos, e as feras pareciam acompanhar
perfeitamente o galope dos cavalos. A nuvem
descobriu a lua e tudo se iluminou como se fosse dia
claro. Os dois cavalos e os dois cavaleiros corriam
quase de cabeças coladas, como se estivessem
disputando uma corrida. Aliás (como disse Bri mais
tarde), nunca se viu na Calormânia uma corrida tão
sensacional.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
29
Shasta já se dava por perdido e começava a
pensar se os leões matam de uma vez ou se brincam
com a vítima como faz o gato com o rato. Dói muito?
Ao mesmo tempo (isso às vezes acontece nos piores
momentos) observava tudo. Notou que o outro
cavaleiro era uma pessoa pequena e delgada, vestindo
uma cota de malha, na qual se refletia o luar. Montava
maravilhosamente bem e não tinha barba.
Alguma coisa lisa e brilhante estendia-se diante
deles. Antes que Shasta tivesse tempo de pensar, sua
boca estava cheia de água salgada. A coisa brilhante
era um comprido braço de mar. Ambos os cavalos
nadavam, e Shasta sentia a água nos joelhos. Ao ouvir
um rugido enraivecido, olhou para trás, e percebeu
uma enorme figura peluda agachada à beira d’água -
só uma. Achou que o outro leão desaparecera.
O leão parecia achar que as presas não valiam
um banho: não fez a menor tentativa de continuar a
perseguição. Os dois cavalos, lado a lado, estavam
agora no meio do braço de mar, e a praia oposta podia
ser vista com nitidez. O tarcaã nada dissera ainda.
Shasta imaginava o que iria falar quando chegassem
do outro lado. Precisava inventar uma história. De
repente, duas vozes falaram a seu lado.
- Que cansaço! - disse uma voz.
- Bico calado, Huin! - disse a outra.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
30
“Estou sonhando”, pensou Shasta. “Sou capaz de
jurar que aquele cavalo falou.”
Daí a pouco os cavalos já andavam em terra
sobre seixos, a água escorrendo de seus corpos. O
tarcaã, para espanto de Shasta, não mostrou o menor
desejo de fazer perguntas. Nem mesmo olhou para
ele; só manifestava a firme intenção de manter o
cavalo em frente. Bri, no entanto, chegou para perto
do outro animal, dizendo:
- Bru-ru-rá! Pare aí. Não adianta fingir, madame.
Ouvi você falar. E uma égua falante, uma égua de
Nárnia.
- Que tem você com isso, se ela é de Nárnia? -
disse o estranho cavaleiro com ferocidade, agarrandose
ao punho da espada. Mas a voz revelou a Shasta
uma novidade.
- Ora, vejam! É uma menina, só uma menina!
- E o que tem você com isso, se sou só uma
menina? Você é só um menino: um meninozinho
maleducado... Na certa um escravo que roubou o
cavalo do dono.
- Tem certeza? - disse Shasta.
- Não se trata de um ladrão, tarcaína - disse Bri. -
Se houve roubo, quem roubou o menino fui eu.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
31
Quanto a não ter nada com isso, não deveria esperar
que eu cruzasse por uma dama de minha própria
pátria, em país estrangeiro, sem lhe dirigir a palavra.
Nada mais natural, creio.
- Também acho isso muito natural - disse a égua.
- Acho que você deve é ficar calada, Huin - disse
a menina. - Veja só que trapalhada já arranjou!
- Não sei de nenhuma trapalhada - disse Shasta. -
Pode sumir a hora que quiser. Não vamos segurar
ninguém.
- Claro que não.
- Como brigam esses humanos! - falou Bri para
Huin. - São teimosos como uns burros. Vamos ver se
nós dois podemos conversar direito. Será a sua
história igual à minha? Apanhada na juventude... anos
de escravidão entre os calormanos?
- É verdade - respondeu a égua com um relincho.
- E talvez agora... a fuga?
- Diga a esse sujeito, Huin, para não meter o
nariz onde não é chamado - disse a menina.
- Eu não, Aravis - falou a égua, botando as
orelhas para trás. - Esta fuga é minha também, não
apenas sua. Além disso, tenho absoluta certeza de que
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
32
um nobre guerreiro, como este cavalo, será incapaz de
trair-nos. Estamos tentando fugir para Nárnia.
- Nós também - respondeu Bri. - Já devia ter
imaginado isso. Um menino em farrapos, montando -
ou tentando montar - um cavalo de guerra na calada
da noite, só poderia ser uma fuga. E uma tarcaína de
alta linhagem, metida na armadura do irmão e louca
para que ninguém se meta com ela, se isso não é meio
suspeito podem me chamar de cavalo de circo.
- Pois, então, muito bem! - disse Aravis. -
Adivinhou! Estamos fugindo. Estamos tentando
chegar a Nárnia. E daí?
- Bem, nesse caso, o que nos impede de ir juntos?
- disse Bri. - Estou certo, madame Huin, de que aceita
a proteção que poderei oferecer-lhe durante a
jornada...
- Quer parar de falar com a minha montaria e
dirigir-se a mim? - protestou a menina.
- Queira desculpar, tarcaína - respondeu Bri, com
um ligeiríssimo tremor de orelha -, mas isso é
conversa de calormanos. Somos narnianos livres,
Huin e eu; e acho que, se você está fugindo para
Nárnia, também desejará o mesmo. Neste caso, Huin
não é mais a sua montaria. Podemos até dizer que
você é a humana de Huin.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
33
A menina abriu a boca para responder mas
desistiu. Evidentemente ainda não tinha visto a coisa
sob esse aspecto.
- De qualquer modo - falou, depois de uma
pausa -, não vejo muita vantagem em irmos juntos.
Será que assim não chamaremos mais a atenção?
- Menos - respondeu Bri.
- Ora, vamos juntos - disse a égua. - Vou-me
sentir muito melhor. E, além disso, nem sequer
estamos certas do caminho a seguir.
- Brí - interveio Shasta -, é melhor deixá-las. -
Está se vendo que não desejam a nossa companhia.
- Pelo contrário - disse Huin.
- Escute aqui - disse a menina. - Não me importo
de ir com você, Sr. Cavalo de Guerra... Mas, e o
menino? Como vou saber se ele é ou não é um espião?
- Por que não diz logo que não sou digno da sua
companhia? - perguntou Shasta.
- Calma, Shasta - disse Bri. - A dúvida da
tarcaína é muito razoável. Respondo pelo menino,
tarcaína. Tem sido fiel e amigo. Só pode ser de Nárnia
ou da Arquelândia.
- Bem, vamos juntos. - Mas Aravis nada disse
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
34
para Shasta; era óbvio que desejava somente a
companhia de Bri.
- Magnífico! - exclamou Bri. - Agora, que a água
nos defende daqueles pavorosos bichos, que tal se os
dois humanos tirassem as nossas selas para um bom
descanso? Precisamos conversar sobre as nossas
histórias.
Livres das selas, os cavalos comeram um pouco
de capim, enquanto Aravis retirava do seu
alforje maravilhosas coisas de comer. Mas
Shasta, amuado, recusou: “Não, obrigado, não estou
com fome.” Tentou manter uma pose importante e
indiferente, mas choupana de pescador não é lugar
muito adequado para uma criança aprender a fazer
pose: o resultado foi um fiasco.
Quando percebeu que a sua encenação não
estava fazendo o menor sucesso, ficou ainda mais
amuado e sem jeito. Os cavalos, pelo contrário,
estavam se dando às mil maravilhas. Relembravam os
mesmos lugares de Nárnia - “os relvados do Dique
dos Castores”- e acabaram descobrindo que eram
meio aparentados. Isso agravou ainda mais a situação
dos humanos, até que Bri acabou dizendo:
- Agora, tarcaína, conte-nos a sua história. E não
tenha pressa... Estou me sentindo tão bem...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
35
Aravis não fez cerimônia. Sentou-se quase
imóvel e começou a falar, num tom de voz e num
linguajar bem diferentes. Pois acontece o seguinte: na
Calormânia, aprende-se a contar uma história (seja ela
verdadeira ou inventada), assim como você aprende
na escola a fazer redações. A diferença é que as
pessoas gostam de ouvir histórias, mas nunca soube
de alguém que gostasse de redações.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
36
3
ÀS PORTAS DE TASHBAAN
Disse a menina:
- Meu nome é Aravis Tarcaína e sou a única filha
de Kidrash Tarcaã, que é filho de Rishti Tarcaã, filho
de Kidrash Tarcaã, filho de Ilsombreh Tisroc, filho de
Ardeeb Tisroc, que descendia diretamente do deus
Tash. Meu pai é o senhor da Província de Calavar, e
lhe é concedido o direito de permanecer calçado
quando está na presença do próprio Tisroc - que ele
viva para sempre! Minha mãe - que chova sobre ela a
bênção dos deuses - é falecida, e meu pai casou-se
pela segunda vez. Um de meus irmãos pereceu num
combate contra os rebeldes, e o outro é ainda uma
criança. Sucede que a esposa do meu pai, minha
madrasta, me odiava, e escuro era o sol a seus olhos
enquanto morei na casa paterna. Assim posto, ela
persuadiu o meu pai a prometer-me em casamento a
Achosta Tarcaã. Acontece que esse Achosta é de
origem plebéia, apesar de ter obtido, nestes últimos
anos, o favor do Tisroc - que ele viva para sempre! -,
por artes de lisonja e maus conselhos; só assim foi
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
37
feito tarcaã e senhor de muitas cidades, e não é
impossível que seja escolhido grão-vizir, quando
morrer o atual. Além do mais, tem pelo menos uns
sessenta anos de idade, é corcunda e parece um
orangotango. Mesmo assim, meu pai, por força da
fortuna e do poder desse Achosta, e persuadido pela
mulher, enviou mensageiros que me ofertaram em
casamento; a oferta foi aceita, e Achosta
comprometeu-se a casar comigo ainda no verão deste
ano.
“Quando as novas chegaram a meus ouvidos,
escuro se fez o sol a meus olhos; recolhi-me ao leito e
chorei durante um dia. No segundo dia, no entanto,
levantei-me e lavei o rosto; mandei selar a minha égua
Huin e saí sozinha a cavalgar, levando comigo a
adaga afiada que meu irmão usara na guerra. Quando
perdi de vista a mansão de meu pai e cheguei a um
bosque relvado, sem moradia de homem, apeei e
retirei a adaga. Abri as minhas vestes onde julgava ser
o caminho mais certo ao coração e implorei a todos os
deuses que me conduzissem para junto de meu irmão,
tão logo me fosse. Fechei os olhos, cerrei os dentes,
preparando-me para enterrar a adaga no peito. Antes
que o fizesse, esta égua falou, com a mesma voz das
filhas dos homens. Falou e disse: “Minha ama, não se
destrua, pois, se viver, ainda poderá alcançar o favor
do destino; mas os mortos são iguais a todos os
mortos.”
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
38
- Não falei tão bonito assim - murmurou a égua.
- Silêncio, madame, silêncio - interferiu Bri, que
estava apreciando muito a história. - Ela está narrando
no mais puro estilo calormano, e nenhum poeta oficial
da corte do Tisroc o faria melhor. Rogo-lhe que
prossiga, tarcaína.
- Quando ouvi a linguagem dos homens utilizada
pela minha égua - continuou Aravis -, disse de mim
para mim: “O pavor da morte desmantelou a minha
razão e me faz presa de ilusões.” E cobri-me de
vergonha, pois ninguém da minha linhagem deve
temer a morte mais que à picada de um mosquito.
Voltei-me, portanto, ao sacrifício; mas Huin
aproximou-se, colocando a cabeça entre mim e a
adaga, alentando-me com as razões mais excelentes,
ralhando comigo como faz a mãe com o filho. Dessa
feita meu espanto foi tão grande que esqueci de matarme,
e esqueci-me de Achosta, dizendo: “Onde
aprendeu, bicho, a usar a linguagem das filhas dos
homens?” E Huin contou-me o que é do
conhecimento de toda esta assembléia, que em Nárnia
há bichos que falam. E narrou ainda como foi roubada
de lá, ainda no verdor dos anos. Falou-me também das
águas de Nárnia, dos castelos, dos grandes navios, até
que eu própria lhe disse: “Em nome de Tash, de
Azaroth e de Zardena, Senhor e Senhora da Noite,
sinto em mim grande aspiração de conhecer Nárnia.”
Ela respondeu: “Minha ama, em Nárnia seria feliz,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
39
pois, nessa terra, jovem alguma é obrigada a casar-se
contra a vontade.” E, depois de termos conversado
durante logo tempo, a esperança retornou-me ao
coração e alegrei-me de estar viva. Planejamos a
nossa fuga, e assim o fizemos. Voltamos para a casa
paterna e vesti as minhas roupas mais alegres; dancei
e cantei diante do meu pai, fingindo-me encantada
com o matrimônio. Disse-lhe ainda: “Pai-meu-edeleite-
dos-meus-olhos, conceda-me a permissão de ir
aos bosques com uma donzela para que eu, durante
três dias, possa fazer secretos sacrifícios a Zardena,
como é o costume.” Ele respondeu: “Filha-mi-nha-edeleite-
dos-meus-olhos, que assim o faça.” Assim que
me retirei, procurei imediatamente o mais velho dos
escravos do meu pai, escriba seu, que me pusera sobre
os joelhos na tenra infância e me amava mais que ao
ar e à luz. Sob juramento de segredo, pedi-lhe que me
escrevesse uma carta. Ele chorou, implorando-me que
mudasse de resolução, mas acabou dizendo: “Ouvir é
obedecer.” E fez o que eu pedira. E selei a carta e
escondi-a no seio.
- Que carta era essa? - perguntou Shasta.
- Fique calado, jovem - disse Bri -, ou você
estraga a história. Ela fará referência a essa carta no
momento adequado. Prossiga, tarcaína.
- Chamei a serva que deveria acompanhar-me ao
bosque para o sacrifício e pedi-lhe que me despertasse
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
40
bem cedo na manhã seguinte. Folgamos e dei-lhe
vinho para beber, ao qual havia adicionado coisas que
a fariam dormir uma noite e um dia. Assim que
adormeceram todos os serviçais, levantei-me e vesti a
armadura do meu irmão, conservada no meu quarto
em sua memória. Coloquei no cinto todo o dinheiro de
que dispunha e algumas jóias, abastecendo-me
igualmente de alimentos. Eu mesma selei a égua e
iniciei a cavalgada no segundo estágio da noite. Não
me dirigi para os bosques, aonde meu pai acreditava
que decerto eu iria, mas tomei o caminho do norte e
do oriente, que leva a Tashbaan. Por três dias pelo
menos meu pai não me buscaria, ludibriado pelas
minhas palavras. No quarto dia chegamos à cidade de
Azim Balda, que fica no cruzamento de muitas
estradas. De lá o correio do Tisroc - que ele viva para
sempre! - parte em velozes cavalos para todos os
recantos do império. É privilégio dos mais altos
tarcaãs utilizar esse correio. Procurei então o
mensageiro-chefe, no Correio Imperial de Azim
Balda, e disse-lhe: “Despachante de mensagens, eis
aqui uma carta do meu tio Achosta Tarcaã para
Kidrash Tarcaã, Senhor de Calavar. Tome cinco
crescentes e que a mensagem chegue ao destinatário.”
Respondeu o mensageiro: “Ouvir é obedecer.” Essa
carta fora escrita como se fosse de Achosta, e o seu
conteúdo era o seguinte: “De Achosta Tarcaã para
Kidrash Tarcaã, com reverência e votos de paz. Em
nome de Tash, o irresistível, o inexorável. Que seja do
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
41
vosso conhecimento que, ao empreender minha
jornada até a vossa mansão, a fim de satisfazer o
contrato de matrimônio entre mim e a vossa filha,
Aravis Tarcaína, foi da vontade do destino e dos
deuses que eu deparasse com ela na floresta, já ao fim
dos ritos e sacrifícios a Zardena, de acordo com o
costume das donzelas. Ao saber quem era a jovem,
transtornado por sua beleza e compostura, incendieime
nas labaredas do amor, e pareceu-me que o Sol
ficaria escuro aos meus olhos, caso as nossas bodas
não se realizassem naquele mesmo momento. Assim
sendo, dispus os sacrifícios exigidos e casei-me com a
vossa filha na hora mesma em que a encontrei. Com
ela, pois, regressei ao meu lar. Ambos rogamos agora
pela vossa urgente presença, a fim de que possamos
desfrutar da graça do vosso rosto e da vossa palavra. E
para que me oferteis igualmente o dote de vossa filha,
o qual, em face de meus compromissos e de minhas
grandes despesas, solicito sem delongas. E como
somos, vós e eu, como dois irmãos, bem certo estou
de que não provocará a vossa ira o intempestivo das
minhas núpcias, ato pelo qual se responsabiliza
inteiramente o amor que me moveu à vossa filha.
Recomendo-vos à proteção de todos os deuses”. Feito
tudo isso, saí a galope de Azim Balda, sem temer
qualquer perseguição, certa de que meu pai, ao
receber aquela carta, enviaria mensagem a Achosta,
ou iria pessoalmente; assim, quando a verdade fosse
descoberta, estaria eu além de Tashbaan. Esta é a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
42
minha história até a noite em que fui perseguida pelos
leões e me encontrei com vocês em um braço de mar.
- E que aconteceu com a moça... a moça do
vinho com coisas? - perguntou Shasta.
- Deve ter sido espancada por ter dormido até
tarde - disse Aravis, calmamente. - Tratava-se de uma
espiã da minha madrasta. Se bateram nela, ótimo.
- Muito bonito!
- Fique sabendo que nada do que fiz tinha por
objetivo agradar a você - falou Aravis.
- Mas há uma outra coisa que não entendo -
replicou Shasta. - Você é muito nova para casar! Deve
ser mais ou menos da minha idade! Como é que é essa
história de casar?
Aravis não deu atenção, mas Bri interveio:
- Shasta, não demonstre a sua ignorância. É na
idade de Aravis que as grandes famílias tarcaãs casam
as moças.
Shasta ficou vermelhinho (mas ninguém notou,
pois já estava bastante escuro) e encabulou-se.
Aravis pediu a Bri que contasse a sua história.
Shasta achou que o cavalo exagerou um pouco no
capítulo dos tombos e do cavaleiro aprendiz. Bri
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
43
divertiu-se com isso, mas Aravis permaneceu séria. E
foram todos dormir.
No dia seguinte prosseguiram a viagem. Shasta
não estava satisfeito, pois agora Bri e Aravis é que
trocavam idéias e recordações. Bri havia morado por
muito tempo na Calormânia e sempre vivera entre
tarcaãs e cavalos de tarcaãs, conhecendo muitas
pessoas e lugares familiares a Aravis. Ela dizia o
tempo todo coisas deste tipo: “Mas se você esteve na
Batalha de Zalindreh deve ter visto o meu primo
Alimash.” E Bri respondia: “É claro, Alimash; mas
Alimash era apenas comandante das carruagens,
entende, e eu não tinha muita relação com cavalos de
carruagem. Cavalaria é outra coisa! Mas era um nobre
cavaleiro. Encheu a minha sacola de açúcar depois da
tomada de Tisbé.” Ou Bri dizia: “Passei aquele verão
no lago de Bambulina.” E Aravis: “Ó, Bambulina!
Tenho uma amiga lá, Lasaralina Tarcaína. Que beleza
de lugar! Aqueles jardins! E o Vale dos Mil
Perfumes!”
Bri não tinha o propósito de deixar Shasta de
fora, mas este às vezes chegava a pensar isso. Pessoas
que conhecem muito as mesmas coisas são quase
incapazes de mudar de assunto, e quem não está por
dentro se sente deixado de lado.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
44
Huin, meio tímida na presença de um grande
cavalo guerreiro, pouco falou. E Aravis não dirigiu a
palavra a Shasta.
E já era hora de pensar em coisas mais
importantes. Aproximaram-se de Tashbaan. Surgiam
vilas maiores e mais pessoas nas estradas. Viajavam
agora quase a noite toda e escondiam-se durante o dia.
Sempre que paravam, falavam e discutiam sobre o que
deveriam fazer ao chegar a Tashbaan. Tinham adiado
o problema, mas agora não tinha mais jeito. Durante
as discussões, Aravis foi ficando um pouquinho, só
um pouquinho, mais amistosa com Shasta. Fazer
planos em conjunto ajuda a melhorar as nossas
relações com outras pessoas.
Para Bri, o principal agora era marcar um lugar
para se encontrarem, caso, por azar, tivessem que se
separar ao atravessar a cidade. O melhor lugar, a seu
ver, era a orla do deserto, onde se erguiam as Tumbas
dos Antigos Reis. Explicou:
- As tumbas são pedras enormes, parecendo
colméias gigantescas; ninguém pode se enganar. E o
melhor de tudo é que os calormanos não se
aproximam do lugar, temendo os morcegos vampiros.
Aravis queria saber se de fato os vampiros
existiam ou não. Bri respondeu que, sendo um
narniano autêntico, não acreditava nessas baboseiras.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
45
Shasta afiançou que também ele não era um
calormano e, por isso, não dava a mínima para tais
lendas de vampiros. Não era bem verdade. Mas
Aravis ficou bastante impressionada com isso (um
pouco chateada também) e afirmou que pouco se
importava com os morcegos, fossem quantos fossem.
Assim ficou decidido que as tumbas serviriam de
lugar de encontro, do lado de lá de Tashbaan. Todos
já achavam que estava tudo muito bem quando Huin,
humildemente, sugeriu que o problema verdadeiro não
era saber aonde iriam depois de passar por Tashbaan,
mas como passariam por Tashbaan.
- Vamos deixar isto para amanhã, madame -
falou Bri. - É hora de dormir um pouco.
Mas não foi fácil decidir. Aravis sugeriu
inicialmente que cruzassem o rio a nado durante a
noite, sem entrar na cidade. Bri tinha dois argumentos
contra isso. Primeiro: o rio era largo demais para Huin
cruzá-lo a nado, especialmente carregando uma
pessoa. (Achava que era largo demais também para
ele, mas sobre isto fez ligeiras referências.) Segundo:
se houvesse um navio passando e alguém os visse,
estaria tudo perdido.
Shasta opinou que cruzassem o rio além de
Tashbaan, onde talvez fosse mais estreito. Bri teve de
explicar que ali existiam parques e casas de veraneio,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
46
onde moravam tarcaãs e tarcaínas. Não poderia haver
lugar melhor se a intenção fosse entregar Aravis aos
bandidos.
- Precisamos usar um disfarce - disse Shasta.
Huin disse que, no seu modesto entender, o
melhor seria atravessar a cidade de porta a porta,
pois é mais fácil passar sem ser notado na multidão.
Mas aprovava também a idéia do disfarce.
- Os dois humanos devem vestir-se de trapos,
como camponeses ou escravos. A armadura de Aravis
e as selas devem ser metidas em trouxas e colocadas
em cima de nós; assim todos pensarão que somos
animais de carga.
- Minha boa Huin! - interveio Aravis, quase com
desprezo. - Você acha que alguém tomaria Bri por um
animal de carga? Não há disfarce possível, minha
querida!
- Creio que sou da mesma opinião - disse Bri,
fungando e repuxando a orelha um pouquinho para
trás.
- É, sei que o meu plano não é tão bom assim -
concordou Huin -, mas acredito que seja a nossa
chance. Quanto a nós, eqüinos, já faz tanto tempo que
não recebemos cuidados, que nem parecemos ser de
tão alta linhagem; eu, pelo menos, sei que não. Se a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
47
gente se lambuzasse de lama e entrasse na cidade de
cabeça baixa, quase sem levantar os cascos, talvez não
fôssemos notados. Também nossas caudas têm de ser
cortadas mais curtas: não certinhas, entendem, mas
tudo esfiapado...
- Minha boa senhora - disse Bri -, já imaginou
como seria desagradável chegar a Nárnia nessas
condições?
- Bem - respondeu Huin com humildade (era
uma égua muito sensata) -, o importante mesmo é
chegar a Nárnia.
Apesar dos pesares, o plano de Huin acabou
sendo adotado. Envolvia certos riscos. Uma fazenda
ficou sem alguns sacos de linhagem; outra, sem um
rolo de corda. Os andrajos masculinos de Aravis
tiveram de ser comprados numa vila. Shasta os trouxe
em triunfo no fim da tarde, enquanto os outros o
aguardavam na mata de uma serra - a última, pois na
outra vertente começava a descida para Tashbaan.
À noite galgaram a serra por uma trilha aberta na
mata por algum lenhador. Do alto viram milhares de
luzes lá no vale. Shasta assustou-se, pois não tinha a
menor noção do que fosse uma grande cidade.
Comeram alguma coisa e depois dormiram. Na manhã
seguinte, bem cedinho, foram acordados pelos
cavalos. Ainda luziam algumas estrelas, e o ar estava
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
48
úmido e frio. Aravis deu um pulo até a mata e voltou
de lá muito engraçada em seus andrajos, trazendo as
outras roupas numa trouxa. Esta, mais a armadura, o
escudo, a cimitarra, as selas e outros objetos foram
colocados dentro dos sacos. Bri e Huin já estavam tão
sujos e desalinhados quanto possível; faltava apenas
encurtar as caudas. A cimitarra era o único
instrumento disponível. Não foi fácil e doeu um
bocado.
- Palavra! - disse Bri. - Se não fosse um cavalo
falante, daria um bom coice na cara de quem fez isso!
Parece que vocês não cortaram, mas arrancaram a
minha cauda!
Amarrados os sacos às costas dos cavalos e
atadas as cordas (no lugar das rédeas), a jornada
começou. Disse Bri:
- Lembrem-se: vamos fazer o possível para ficar
juntos. Caso contrário nos encontramos nas Tumbas
dos Antigos Reis; quem chegar primeiro deve esperar
os outros.
- Lembrem-se também, Huin e Bri, de que vocês
são cavalos e de que os cavalos por estas bandas não
falam - foi a recomendação de Shasta.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
49
4
SHASTA ENCONTRA OS
NARNIANOS
A princípio Shasta só distinguiu no vale um
vasto mar de névoa, com algumas cúpulas e pináculos
erguendo-se a partir dele; à medida que clareava o dia
e ia sumindo a névoa, pôde ver melhor. Um rio largo
dividia-se em dois braços: na ilha entre eles ficava a
cidade de Tashbaan, uma das maravilhas do mundo.
Ao redor da ilha, erguiam-se altas muralhas,
encimadas por tantas torres que Shasta logo desistiu
de contá-las. Dentro das muralhas, a ilha erguia-se em
uma colina, e por toda parte, desde o palácio do
Tisroc até o grande templo de Tash, no alto,
elevavam-se edifícios, terraços e mais terraços, ruas e
ruas, estradas que ziguezagueavam, jardins suspensos,
balcões, arcadas, ameias, minaretes, pináculos.
Quando finalmente o sol nasceu no mar e a cúpula de
prata do templo refletiu a luminosidade, Shasta ficou
meio ofuscado.
- Em frente - repetia Bri.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
50
As margens do rio eram a tal ponto cheias de
jardins que mais pareciam florestas, até que, ao se
aproximar, distinguiam-se entre as árvores as paredes
de numerosas casas. Shasta sentiu um delicioso
perfume de flores e frutos. Um quarto de hora mais
tarde, pisavam uma estrada margeada de muros e
árvores.
- Estou achando este lugar maravilhoso! - disse
Shasta com assombro.
- Não se pode negar - disse Bri -, mas preferia
que a gente já estivesse do outro lado da cidade.
Neste momento ouviu-se um ruído grave e latejante,
que aos poucos tornou-se mais e mais agudo,
dando a impressão de que todo o vale vibrava. Era
barulho de música, mas tão forte e solene que chegava
a dar um pouco de medo.
- São trombetas ordenando que se abram os
portões da cidade - explicou Bri. - Mais um instante e
estaremos lá. Atenção, Aravis, curve um pouco os
ombros e pise com mais força; esconda o máximo a
sua princesa. Procure imaginar que passou a vida
recebendo chutes e feios insultos.
- Se é assim - respondeu Aravis -, que tal se
também curvasse um pouquinho mais a cabeça e o
pescoço? Esconda o seu cavalo de guerra.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
51
- Bico calado - disse Bri. - É agora. Haviam
chegado à beira do rio e o caminho à frente entrava
por uma ponte cheia de arcos. A água dançava,
reluzindo ao sol. À direita vislumbraram mastros de
navios. Vários outros viajores
caminhavam pela ponte, quase todos
camponeses, conduzindo burros e mulas ou
carregando cestos na cabeça. As crianças e os cavalos
misturaram-se à multidão.
- Algum problema? - murmurou Shasta para
Aravis, que tinha uma expressão estranha.
- Nenhum para você - resmungou Aravis. - O que
você tem a ver com Tashbaan? Nada! Mas eu devia
estar em cima de uma liteira, com soldados na frente e
escravos atrás, talvez indo para uma grande festa no
palácio do Tisroc - que ele viva para sempre! -, e não
me escondendo como um rato. Para você é diferente.
Shasta achou isso tudo uma grande bobagem.
No extremo da ponte erguiam-se as muralhas da
cidade, e os portões de bronze estavam abertos; as
alamedas eram largas, mas pareciam estreitas lá no
alto. Seis soldados, empunhando lanças, permaneciam
de cada lado. Aravis não podia evitar um pensamento:
“Se soubessem de quem sou filha, fariam continência
para mim.” Os outros, porém, só pensavam em
conseguir passar sem chamar a atenção dos soldados.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
52
E, por sorte, estes nada perguntaram. Mas um deles
tirou uma cenoura do cesto de um camponês e jogou-a
em Shasta, com uma risada:
- Ei, garotão! Você vai ver se o seu patrão
descobre que o cavalo de sela dele virou cavalo de
carga!
Isso não era nada bom: mostrava que Bri, aos
olhos de qualquer entendido, só podia ser um cavalo
de guerra.
- Pois são ordens do patrão! - respondeu Shasta.
Teria sido melhor ficar de boca fechada, pois o
soldado deu-lhe um tapa que quase o derrubou ao
chão:
- Tome, seu porcaria, para aprender a falar com
um homem livre.
Conseguiram entrar na cidade sem ser
impedidos. Shasta pouco choramingou, já bastante
acostumado a pancadas.
Cruzados os portões, Tashbaan não pareceu a
princípio tão deslumbrante. A primeira rua era bem
estreita, com poucas janelas de um lado e do outro.
Tinha muito mais movimento do que Shasta poderia
imaginar: camponeses que se dirigiam à feira,
vendedores de água, vendedores de carne,
carregadores, mendigos, soldados, crianças
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
53
esfarrapadas, galinhas, cães vadios e escravos
 descalços. A primeira coisa que se notava era o mau
cheiro, vindo de gente pouco limpa, de cachorros
sujos, de essências, alho, cebola, e de montes de lixo
espalhados por todos os lados.
Shasta fingia que estava abrindo caminho, mas
de fato era Bri que dirigia os demais com ligeiros
acenos de focinho. Começaram a subir uma colina à
esquerda; era muito mais fresco e agradável, com a
rua arborizada e casas somente do lado direito; do
lado esquerdo, distinguiam os telhados de outras casas
e trechos do rio. Fizeram uma voltinha e continuaram
subindo, por um caminho sinuoso, em direção ao
centro de Tashbaan. Imensas estátuas dos deuses e
heróis dos calormanos -mais imponentes do que
simpáticas - erguiam-se nos pedestais reluzentes.
Palmeiras e colunatas faziam sombra no calçamento
em fogo. Através das arcadas de muitos palácios,
Shasta reparou nas ramagens verdes, nas fontes
frescas, nos relvados macios. Devia ser uma delícia lá
dentro.
Difícil era a caminhada entre a multidão, e por
vezes eram até obrigados a parar. Isso acontecia quase
sempre que surgia uma voz gritando: “Abram
caminho! Caminho para o tarcaã!”, ou “Caminho para
a tarcaína”, ou “Caminho para o décimo quinto vizir”,
ou “Caminho para o embaixador”... A multidão toda
se espremia de encontro aos muros, enquanto o grande
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
54
senhor ou a grande dama seguia numa liteira
carregada por quatro ou até seis gigantescos escravos.
Pois em Tashbaan só existe uma lei de trânsito: quem
é menos importante tem de abrir caminho para quem é
mais importante. A punição para o infrator é uma boa
chicotada ou uma cacetada de cabo de lança.
Foi em uma rua magnífica, já pertinho do ponto
mais alto da cidade (o palácio do Tisroc era a única
coisa mais alta), que aconteceu a mais desastrosa
dessas paradas no tráfego.
- “Caminho! Caminho!”, gritava a voz.
“Caminho para o Bárbaro Rei Branco, convidado do
Tisroc - que ele viva para sempre! Caminho para os
senhores de Nárnia!”
Shasta tentou sair do caminho e fazer Bri recuar.
Mas nenhum cavalo, nem mesmo um cavalo de
Nárnia, anda com facilidade para trás. Uma mulher
empurrou uma cesta contras as costas de Shasta,
dizendo:
- Pare de empurrar!
Outra pessoa também o empurrou para o lado e,
na confusão, ele perdeu por um instante a companhia
de Bri. Aí a multidão foi ficando tão compacta que ele
mal podia se mexer. Involuntariamente, viu-se na
primeira fileira, com uma ótima visão do que ia
acontecendo na rua.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
55
Um único calormano vinha à frente, gritando:
“Caminho! Caminho!” Não havia liteira; vinham
todos a pé, uma meia dúzia de homens. Shasta nunca
vira antes ninguém parecido com ele. Eram todos de
pele branca, e a maioria deles tinha cabelos louros. E
não se vestiam como os calormanos. Quase todos
estavam com as pernas nuas até os joelhos. Trajavam
túnicas de tecidos de cores vivas e reluzentes: verde,
amarelo, azul. Em lugar de turbantes usavam
capacetes de aço ou de prata, alguns adornados de
jóias, e um com asinhas de cada lado. Alguns vinham
de cabeça descoberta. As espadas que usavam eram
retas, e não encurvadas como as cimitarras dos
calormanos. Não eram graves e soturnos como a
maioria dos calormanos: caminhavam descontraídos,
conversando e rindo. Um deles assobiava. Via-se que
eram homens dispostos a fazer amizade com pessoas
amáveis e pouco se importavam com as que não o
eram. Shasta nunca vira algo tão simpático em toda a
sua vida.
Mas não teve muito tempo de aproveitar o
desfile, pois logo aconteceu uma coisa realmente
horrível. O chefe dos homens louros apontou de
repente para Shasta, gritando:
- Aqui está ele, o fujão! - E foi logo agarrando
Shasta pelo ombro. E deu um tapinha no menino, não
para machucar, mas para mostrar que ele estava frito,
acrescentando: - Que coisa feia, meu senhor! Que
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
56
vergonha! A rainha Susana está com os olhos
vermelhos de tanto chorar. Que coisa! Passar toda
uma noite fugido! Onde esteve?
Shasta teria se embarafustado debaixo da barriga
de Bri e sumido na multidão... se pudesse... mas
estava cercado pelos homens louros, e bem seguro.
Seu primeiro impulso foi dizer que não passava
do filho de um pobre pescador e que o ilustre
estrangeiro cometera um engano. Mas, afinal, a última
coisa que desejaria, no meio daquela multidão, era ter
de explicar quem era e o que estava fazendo. Iriam
logo perguntar onde havia apanhado aquele cavalo, e
quem era Aravis... Seria dar adeus à última
oportunidade de passar por Tashbaan. O segundo
impulso foi olhar para Bri, pedindo socorro. Mas Bri
não tinha a menor vontade de mostrar para aquela
multidão que sabia falar e continuou olhando com a
indiferença de um cavalo. Quanto a Aravis, Shasta
nem chegou a ter coragem de olhar para ela, receando
chamar a atenção. Não houve mais tempo de pensar,
pois o líder dos narnianos foi logo dizendo:
- Pegue em uma das mãos do senhorzinho,
Peridan, que eu pego na outra. Vamos. Nossa real
irmãzinha vai sentir um grande alívio ao rever nosso
fujão, são e salvo.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
57
Assim, antes de terem passado pela metade de
Tashbaan, Shasta se viu levado por estranhos, sem
poder se despedir dos outros, nem imaginar o que iria
suceder daí em diante. O rei de Nárnia - pelo modo
como lhe falavam os outros, só podia ser o rei -
continuou a fazer-lhe perguntas: Onde andara? Como
havia saído? Que fizera de seus trajes? Não sabia que
tinha procedido mal?
O menino nada respondeu, pois era impossível
imaginar resposta que não fosse perigosa.
- Não vai dizer nada? - perguntou o rei. -
Francamente, príncipe, este silêncio casa ainda pior
com a sua nobreza do que a própria fuga. Vá lá que
um garoto travesso fuja, mas o filho de um rei da
Arquelândia deveria confessar a sua culpa, e não
abaixar a cabeça como um escravo calormano.
Shasta sentia o tempo todo (o que tornava tudo
ainda mais desagradável) que o jovem rei era uma
excelente pessoa, a quem gostaria de causar uma boa
impressão.
Os estranhos o levaram, de mãos bem firmes, por
uma rua estreita, desceram por uma escadaria e
entraram por um portal largo com dois ciprestes
escuros. Shasta se viu num pátio que também era um
jardim. Uma fonte jorrava num tanque. Laranjeiras
erguiam-se da relva, e os quatro muros brancos que
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
58
cercavam o pátio estavam alastrados de rosas
trepadeiras. O tumulto da rua subitamente tornara-se
distante. Atravessaram rapidamente o pátio, cruzaram
um portão escuro, passando a um corredor calçado de
pedras, que lhe refrescavam os pés, e subiram uma
escadaria. Um instante depois, Shasta achava-se
piscando os olhos numa grande sala de janelas
abertas, todas dando para o norte. Nunca vira cores
mais maravilhosas que as do tapete que se estendia
sob seus pés; sentia como se afundasse em musgo
espesso. divãs com lindas almofadas alongavam-se
pelas paredes: a sala parecia cheia de gente; “algumas
muito esquisitas”, pensou Shasta. Mal teve tempo de
pensar nelas, pois a mais linda moça do mundo
levantou-se e correu a abraçá-lo e beijá-lo,
exclamando:
- Mas Corin, Corin, como pôde fazer uma coisa
dessas? Desde que a sua mãe morreu, somos tão
amigos, Corin! O que iria dizer ao seu real pai se
voltasse sem você? Poderia até haver uma guerra,
apesar da velha amizade entre Arquelândia e Nárnia.
Admita, meu amigo, que foi muito levado.
Shasta disse para si mesmo: “Pelo jeito, estou
sendo confundido com um príncipe da Arquelândia.
Estes aí devem ser os narnianos. Mas onde andará o
verdadeiro Corin?”
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
59
Faltava-lhe coragem para dizer qualquer coisa
em voz alta!
- Onde andou, Corin? - as mãos da moça
continuavam nos seus ombros.
- Eu... eu não sei...
- Está vendo, Susana? - disse o rei. - Não
arranquei dele uma única palavra, de verdade ou de
mentira.
Uma voz se fez ouvir:
- Rainha Susana! Rei Edmundo!
Shasta quase deu um pulo de espanto: quem
tinha falado era uma daquelas criaturas esquisitas que
ele havia notado com o rabo do olho ao entrar na sala.
Era mais ou menos do tamanho do próprio Shasta. Da
cintura para cima parecia um homem, mas as pernas
eram cabeludas como pernas de bode, pareciam
pernas de bode, com cascos de bode, e tinha cauda,
pele quase vermelha, cabelos cacheados, uma
barbicha pontuda e dois chifrinhos. Era na verdade um
fauno, criatura da qual nunca ouvira falar. Quem leu o
livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa deve estar
informado de que se tratava do mesmo fauno, de
nome Tumnus, que Lúcia, irmã da rainha Susana,
encontrara no seu primeiro dia em Nárnia. Estava bem
mais velho agora.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
60
- Majestades - prosseguiu o fauno -, o pequeno
príncipe sofreu qualquer coisa com o sol. Vejam só:
está ofuscado. Nem sabe onde se encontra.
Pararam de ralhar e de fazer perguntas. Shasta
foi levado para um sofá, almofadas assentadas sob a
sua cabeça, e trouxeram-lhe um refresco gelado num
copo de ouro. Disseram-lhe docemente que ficasse
quietinho.
Nunca uma coisa assim tinha acontecido em sua
vida. Nem chegara a sonhar com um divã tão gostoso
ou com uma bebida tão deliciosa como aquele
refresco. Ficou então imaginando o que teria
acontecido aos outros e como poderia escapar para
encontrá-los nas tumbas, e o que aconteceria quando o
verdadeiro Corin reaparecesse. Estas aflições
pareciam menores, agora que se sentia tão bem. E
talvez mais tarde ainda surgissem coisas boas de
comer!
Além do mais, o pessoal naquela sala era bem
interessante. Além do fauno havia dois anões
(criaturas que ele nunca tinha visto) e um corvo
enorme. Os outros todos eram humanos, já crescidos,
mas muito jovens, todos eles, homens e mulheres,
com voz e feições mais simpáticas que as dos
calormanos. Pouco depois já se sentia atraído pela
conversa.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
61
O rei falava para a rainha (a moça que beijara
Shasta):
- Que me diz, Susana? Já faz três semanas que
estamos nesta cidade. Está decidida a casar-se com o
príncipe Rabadash ou não?
A rainha sacudiu a cabeça:
- Não, meu irmão, nem por todas as jóias de
Tashbaan.
- “Ué!” - pensou Shasta - “ele é rei, ela é rainha,
mas são irmãos, não marido e mulher!”
- Sinceramente, minha irmã, perderia o meu
fraternal amor por você, caso fosse outra a sua
resposta. Devo confessar-lhe: desde que os
embaixadores do Tisroc chegaram a Nárnia para tratar
do casamento, e que o príncipe Rabadash foi nosso
hóspede em Cair Paravel, jamais consegui entender
como você pôde prestar-lhe tantas atenções.
- Insensatez da minha parte - respondeu a rainha
Susana -, pela qual peço a sua benevolência. Contudo,
lembro que o príncipe se conduziu antes de maneira
melhor que aqui em Tashbaan. Peço o seu testemunho
sobre os grandes feitos que ele alcançou nos torneios
que o Grande Rei, nosso irmão, lhe preparou;
comportou-se com graça e cortesia durante os sete
dias em que esteve conosco. Mas aqui, na própria
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
62
cidade, tem mostrado a sua outra face.
- Pois é como diz o ditado - grasnou o corvo -:
“E preciso ver o urso na toca para saber como ele é.”
- Pura verdade, Pisamanso - falou um dos anões.
- E há também aquele outro: “Venha morar comigo
para saber quem eu sou.”
- Sim - disse o rei -, já sabemos quem é ele: um
tirano enfatuado, violento, ganancioso e desalmado.
- Assim sendo - replicou Susana -, vamos partir
de Tashbaan hoje mesmo.
- Aí está o problema, minha irmã - exclamou
Edmundo -, pois agora preciso desabafar o que se
passa dentro de mim nestes últimos dias. Por
obséquio, Peridan, veja se há alguém nos espionando.
Tudo certo? Toda cautela é pouca a partir de agora.
Ficaram todos muito sérios. A rainha Susana
correu para o lado do irmão:
- Edmundo! Há qualquer coisa tenebrosa no seu
olhar...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
63
5
O PRÍNCIPE CORIN
Disse o rei Edmundo:
- Minha querida irmã e rainha: chegou o
momento de mostrar a sua bravura. Devo dizer-lhe
sem rodeios que corremos sério perigo.
- Diga, Edmundo.
- Simplesmente isto: não creio que será fácil para
nós sair de Tashbaan. Enquanto o príncipe mantiver a
esperança de desposá-la, seremos hóspedes de honra.
Mas, pela juba do Leão, assim que receber a sua
recusa, não passaremos de prisioneiros.
Um dos anões desabafou num assobio. E disse o
corvo:
- Bem que avisei a Vossas Majestades: “Entrar é
fácil; sair é que são elas!”
- Estive com o príncipe hoje de manhã -
prosseguiu Edmundo. - Não tem o hábito de ser
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
64
contrariado. Anda muito agastado com a sua demora
em responder e com suas palavras dúbias. Queria a
todo custo saber a sua decisão. Disfarcei o que pude,
ao mesmo tempo que buscava esfriar um pouco as
suas esperanças, fazendo brincadeiras vulgares sobre
os caprichos das mulheres, insinuando que a corte
dele não era muito firme. Ficou enraivecido e
perigoso. Cada palavra que pronunciava escondia
ameaças, ainda que veladas
em afetações corteses.
Disse Tumnus:
- É isso mesmo. Quando ceei com o grão-vizir,
na noite passada, foi a mesma coisa. Quis saber o que
eu achava de Tashbaan. Como não podia dizer-lhe que
detesto até as pedras da cidade, falei que agora,
quando o verão começa a pegar fogo, estava sentindo
saudade dos bosques frescos de Nárnia. Foi sorrindo
de cara feia que ele me disse: “Nada há que o impeça
de dançar outra vez no seu bosque, seu pezinho de
bode, desde que vocês nos deixem em troca uma noiva
para o príncipe.”
- Quer dizer que ele pretende casar-se comigo à
força?
- É o que eu penso, Susana - respondeu
Edmundo.
- Mas terá coragem para isso? Achará o Tisroc
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
65
que nosso irmão, o Grande Rei, suportará essa
infâmia?
- Majestade - falou Peridan para o rei -, não serão
loucos a esse ponto. Ignoram por acaso que há
espadas e lanças em Nárnia?
Respondeu Edmundo:
- Minha impressão é que o Tisroc não tem muito
medo de Nárnia. Somos um país pequeno, e os países
pequenos fronteiriços a um grande império sempre
foram odiados pelo grande império, que anseia por
arrasá-los, por tragá-los. Ao permitir que o príncipe
fosse a Cair Paravel como pretendente de minha irmã,
talvez só estivesse buscando uma ocasião para
abocanhar Nárnia e Arquelândia de uma só vez.
- Que tente fazer isso - falou o segundo anão. -
No mar somos tão fortes quanto ele. E, se nos atacar
por terra, terá de atravessar o deserto.
- É verdade, meus amigos - respondeu Edmundo.
- Mas será mesmo o deserto uma proteção segura?
Qual a opinião de Pisamanso?
- Conheço bem o deserto - disse o corvo. - Voei
muito por lá na mocidade. (Sbasta apurou os ouvidos,
é claro.) Uma coisa é certa: se o Tisroc for pelo
grande oásis, jamais poderá levar um exército até
Arquelândia. Pois, ainda que pudessem atingir o oásis
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
66
num dia de marcha, a água não daria para matar a
sede de todos os soldados e de todos os animais. Mas
há um outro caminho. (Shasta prestou mais atenção.)
Para chegar a ele é preciso tomar como ponto de
partida as Tumbas dos Antigos Reis e seguir no rumo
noroeste, mantendo sempre em linha reta o cume
duplo do Monte Piro. Sendo assim, num dia a cavalo
ou um pouco mais, pode-se atingir a garganta de um
vale de pedra; ela é tão estreita que se pode passar lá
por perto mil vezes sem se perceber que a garganta e o
vale existem. Não se vê relva ou água ou qualquer
coisa de bom. Mas se alguém entrar pela garganta e
caminhar pelo vale chegará a um rio e, através deste,
poderá cavalgar até Arquelândia.
- E os calormanos conhecem este caminho? -
perguntou a rainha.
O rei interveio:
-Meus amigos, por favor, de que adianta tudo
isso? Não estamos querendo saber se os calormanos
ganhariam ou não uma guerra conosco. Nosso
problema é saber como salvar a honra da rainha e as
nossas vidas, saindo desta diabólica cidade. Ainda que
meu irmão, o Grande Rei Pedro, derrotasse o Tisroc
uma dúzia de vezes, muito antes disso nossos
pescoços já teriam sido cortados... E a rainha seria a
mulher ou, mais acertadamente, a escrava de
Rabadash.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
67
- Temos as nossas armas - disse o primeiro anão.
- Sem dúvida: eles teriam de passar sobre os
nossos cadáveres para chegar à rainha.
Susana caiu em prantos:
- Como me arrependo de ter saído de Cair
Paravel! Nossa felicidade acabou quando lá chegaram
os embaixadores dos calormanos. As toupeiras
estavam plantando um pomar para nós... ó... ó...
Tapando o rosto com as mãos, a rainha soluçava.
- Coragem, Su, coragem, irmãzinha... Mas que
diabo é isso, Mestre Tumnus?!
O fauno agarrava os dois chifres com as mãos
como se quisesse manter a cabeça no lugar,
retorcendo-se todo como se sentisse dores.
- Não fale comigo agora, não fale comigo agora.
Estou pensando. Estou pensando tanto que nem posso
respirar. Espere, espere um momento.
Depois de um embaraçoso silêncio, o fauno deu
uma boa respirada, esfregou a testa e disse:
- A única dificuldade é chegar ao nosso navio...
com um pouco de carregamento... sem sermos vistos.
- Exatamente - disse sarcástico um dos anões. - A
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
68
única dificuldade que impede um mendigo de andar a
cavalo é não ter o cavalo.
- Um momento, um momento - replicou o Sr.
Tumnus, com impaciência. - Só precisamos de uma
coisinha: um pretexto para ir até o navio hoje e levar
alguma carga para lá.
- Sim - resmungou o rei com hesitação.
- Que tal - disse o fauno - se Vossas Majestades
convidassem o príncipe para um grande banquete a
bordo do nosso galeão, o Esplendor Hialino, amanhã
à noite? O convite deve ser feito de modo que dê
esperanças ao príncipe, sem ferir o honor da rainha.
- Excelente idéia, Majestade - crocitou
Pisamanso.
Tumnus, animado, prosseguiu:
- Assim todos acharão natural que passemos o
dia indo ao navio, organizando a festa. Alguns de nós
podem ir às lojas de doces e frutas e de vinhos, como
se fôssemos mesmo dar um grande banquete. E
diremos aos mágicos, aos saltimbancos, às dançarinas
e aos músicos que estejam todos a bordo amanhã à
noite.
- Já estou vendo, já estou vendo - exclamou o rei
Edmundo esfregando as mãos. - Tumnus continuou:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
69
- Estaremos portanto todos a bordo hoje. Logo
que cair a noite...
- A todo o pano! - bradou o rei.
- Nariz para o norte - gritou o primeiro anão.
- A caminho de Nárnia! - disse o outro.
- E imaginem só o príncipe ao acordar e ver que
os passarinhos fugiram! - exclamou Peridan, batendo
palmas.
A rainha, emocionada, pegou as mãos do fauno,
que começara a dançar:
- Ó Mestre Tumnus, meu querido, você salvou a
vida de todos nós!
- O príncipe nos perseguirá - falou outro
cavalheiro, cujo nome Shasta não ouvira.
- Isso pouco me assusta - replicou Edmundo. - Vi
os navios que possuem: nem grandes, nem rápidos.
Até gostaria que nos seguissem. O Esplendor Hialino
pode pôr a pique tudo o que o príncipe mandar em
nosso encalço...
Se é que conseguiriam alcançar-nos. Disse o
corvo:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
70
- Majestade, seria impossível ouvir melhor plano
do que esse, mesmo que ficássemos reunidos durante
uma semana. E agora, como dizemos nós, as aves,
primeiro os ninhos, depois os ovos. Quer dizer, vamos
comer e depois tratar dos nossos interesses.
As portas foram abertas e, com os nobres e as
criaturas postados de cada lado, o rei e a rainha
saíram. Shasta matutava no que faria, quando o Sr.
Tumnus lhe disse:
- Fique aí deitado, Alteza, que lhe trarei um
banquetezinho em alguns instantes. Não precisa se
incomodar até a hora do embarque.
Jogando a cabeça de novo contra as almofadas,
Shasta ficou pensando na encrenca em que se metera.
Jamais lhe ocorria contar para os narnianos a verdade
toda e pedir auxílio. Tendo sido criado por um homem
duro, enraizara-se no hábito de nunca dizer nada
espontaneamente para as pessoas adultas: achava que
estas sempre atrapalhavam o que estava desejando. E
pensava que mesmo que o rei de Nárnia tratasse bem
os cavalos, por serem cavalos falantes de Nárnia, teria
ódio de Aravis, que era uma calormana; poderia
vendê-la como escrava ou enviá-la de volta aos pais.
Quanto a ele, jamais teria agora a coragem de
confessar-lhes a verdade: “Ouvi todos os planos. Se
soubessem que não sou um deles, não me deixariam
sair vivo desta casa. Teriam medo da minha traição. É
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
71
claro que me matariam. E é o que vai acontecer se o
verdadeiro Corin reaparecer.” Shasta ignorava como
as pessoas nobres e livres procedem. “Que vou
fazer?” E percebeu que o homenzinho-bode vinha de
volta.
O fauno entrou, meio dançando, com uma
bandeja quase do tamanho dele. Depositou-a numa
mesinha ao lado do divã, sentando-se no chão
atapetado com as pernas de bode cruzadas.
- Agora, coma direitinho. Será a sua última
refeição em Tashbaan.
Era uma boa comida à maneira calormana. Não
sei se você teria ou não gostado, mas Shasta gostou.
Havia lagosta, salada, uma ave chamada narceja toda
recheada de amêndoas e trufas, e um prato muito
complicado feito de fígado de galinha, arroz, passas,
nozes, além de melão cru, frutas silvestres e tudo de
bom que se pode fazer com o gelo. E havia até um
pouquinho do vinho que se chama “branco”, apesar de
ser de fato amarelado.
O fauno gentil, pensando que Shasta ainda sentia
os efeitos da insolação, passou a falar sobre as
aventuras que os esperavam nas terras do Norte; sobre
o seu velho pai, o rei Luna de Arquelândia, que
morava num pequeno castelo sobre as colinas do Sul.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
72
- Você sabe que lhe prometeram a primeira
armadura e o primeiro cavalo de guerra para o seu
próximo aniversário. Terá de aprender a lutar em
torneio e manejar a lança. Se sair-se bem, em pouco
tempo será feito Cavaleiro de Armas, em Cair
Paravel, conforme prometeu a seu pai o próprio rei
Pedro. Antes disso é pensar nas idas e vindas entre
Nárnia e Arquelândia, passando pelas grimpas das
cordilheiras. Não vá esquecer que prometeu passar
comigo toda a semana do Festival de Verão... com
fogueiras e faunos e dríades dançando até nascer o
sol, lá no meio da floresta e... quem sabe?... Quem
sabe a gente possa ver o próprio Aslam?!
Terminada a refeição, o fauno recomendou a
Shasta que ficasse quietinho:
- Uma soneca lhe fará bem. Virei buscá-lo com
tempo de sobra para embarcar. E aí, Nárnia! Norte!
Shasta gostou tanto do jantar e das delícias
contadas por Tumnus que, ao ficar sozinho, seus
pensamentos já não eram bem os mesmos. Sua grande
esperança agora era que o príncipe Corin chegasse
tarde demais, e que ele assim fosse de navio para
Nárnia. Sinto dizer que ele não pensava no que
poderia acontecer ao verdadeiro Corin, perdido em
Tashbaan. Só estava um pouquinho preocupado com
Aravis e Bri esperando-o nas tumbas. “Mas que posso
fazer? Já que Aravis pensa que está muito acima de
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
73
mim, pode muito bem ir sozinha.” E achou que, afinal
de contas, era muito melhor ir até Nárnia de navio do
que capengando pelo deserto.
Então aconteceu o inevitável: qualquer um,
depois de ter acordado muito cedo e enfrentado uma
longa caminhada e muitas emoções, ao se deitar num
divã, sem calor, sem o menor barulho, a não ser o de
uma abelhinha que entra pela janela aberta, qualquer
um nessas condições só pode fazer uma coisa: dormir.
Shasta acordou com um grande tinido. Saltou do
divã de olhos arregalados. Viu logo, pela luz diferente
da sala, que dormira durante muito tempo. Viu
também de onde viera o tinido: um rico vaso de
porcelana, que antes estava no peitoril da janela, jazia
no chão partido em trinta pedaços. Mas não chegou a
reparar nisso por mais de um instante. Reparou
mesmo foi nas mãos que se agarravam com força à
janela, pelo lado de fora. Por fim a janela emoldurou
uma cabeça. Um momento depois um menino da
idade de Shasta sentava-se no parapeito, já com uma
perna para dentro do quarto.
Shasta jamais tinha visto o próprio rosto em um
espelho. Mesmo que o tivesse visto, não poderia ter
imaginado que, em condições normais, o outro
menino era quase igualzinho a ele. Naquele instante,
porém, o menino não se parecia especialmente com
ninguém, pois tinha uma mancha preta de dar medo
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
74
em torno de um olho, faltava-lhe um dente, e suas
roupas - que deviam ter sido uma beleza quando
foram vestidas - estavam esfrangalhadas e imundas,
sem falar no sangue e na lama sobre as faces do
garoto, que apenas murmurou:
- Quem é você?
- Será você o príncipe Corin?
- É claro. Quero saber quem é você.
- Ninguém em especial. O rei Edmundo me
pegou na rua, pensando que eu fosse você. Devemos
ser parecidos, acho. Dá para sair por onde você
entrou?
- Dá, se você for bom de muro. Por que tanta
pressa? Quem sabe a gente pode fazer uma boa
brincadeira com a confusão deles?
- Não, não dá. Melhor a gente trocar de lugar
imediatamente. Seria de doer se o Sr. Tumnus nos
encontrasse aqui. Fingi que era você. Esta noite
partirão daqui, em segredo... Onde você andou
durante esse tempo todo?
- Um garoto da rua fez uma piada de mau gosto
sobre a rainha Susana; meti-lhe o braço. Saiu berrando
e o irmão dele veio. Meti o braço no irmão. Aí saiu
um bando correndo atrás de mim até que apareceram
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
75
três guardas de lanças. Briguei com os guardas, e aí
eles me meteram o braço. Já estava anoitecendo. Um
guarda me agarrou; ia me prender num lugar qualquer.
Perguntei se eles não queriam tomar uma jarra de
vinho. Fomos para uma taverna. Sentaram e beberam
até dormir. Saí de fininho e aí encontrei o primeiro
garoto - o que começou toda a confusão - ainda
querendo briga. Tive de meter-lhe o braço de novo.
Subi a uma caixa-d’água no telhado duma casa e lá
esperei deitado até hoje de manhã. O resto do tempo
passei procurando o caminho de volta. Será que não
tem nada para matar a sede?
- Bebi o que tinha - disse Shasta. - Agora,
mostre-me como faço para sair daqui. Melhor você
deitar no divã, fingindo... Ora bolas! Não vai adiantar
nada com esse olho preto e esses machucados... O
mais seguro é contar a verdade para eles... depois que
eu estiver bem longe.
- E o que você acha que eu iria dizer a eles? -
perguntou o príncipe, com um olho meio zangado. -
Quem é você?
- É, não dá... Acho que sou um narniano; devo
ser mais ou menos nortista. Mas fui criado como
calormano. Estava fugindo pelo deserto. Com um
cavalo falante chamado Bri. E chega! Como é que eu
dou o fora?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
76
- Olhe aqui: escorregue da janela para o telhado
da varanda. Na ponta dos pés, siga pela esquerda e
suba para o alto daquele muro, se é que você é mesmo
bom de muro. Ande até o fim do muro. Pule então no
monte de lixo. É isso aí.
- Muito obrigado - disse Shasta, já cavalgando a
janela.
Os dois garotos entreolharam-se e descobriram
de repente que eram amigos.
- Adeus. E boa sorte. Estou torcendo por você.
- Adeus. Você andou em grandes aventuras...
- Nada que se compare às suas... - respondeu
Corin. - Devagar... - e ainda sussurrou, enquanto
Shasta chegava à varanda: - Espero encontrá-lo em
Arquelândia. Procure o rei Luna, meu pai, e diga que
você é meu amigo. Cuidado! Vem alguém aí...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
77
6
SHASTA NAS TUMBAS
Shasta correu ligeiro pelo telhado, na ponta dos
pés. Estava descalço e seus pés queimavam. Em
alguns segundos chegou ao muro, escalou-o e andou
até o fim dele. Olhou para baixo e viu
uma ruazinha estreita e malcheirosa. Lá havia, de
fato, um monte de lixo, exatamente conforme Corin
havia dito. Antes de pular no monte de lixo Shasta deu
uma olhada ao redor. Pela aparência, devia estar no
alto da ilha-colina de Tashbaan. À sua frente, era um
declive depois do outro, telhados abaixo de telhados,
descendo na direção das torres e construções do muro
norte da cidade. Além, o rio, e além do rio uma
encosta cheia de jardins. Mais adiante estendia-se algo
desconhecido: uma coisa cinza-amarela-da, plana
como o mar calmo, prolongando-se por quilômetros.
Ao longo erguiam-se enormes coisas azuladas,
maciças, mas de recortes denteados, algumas com
topos brancos. “O deserto! As montanhas!” - disse
Shasta consigo mesmo.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
78
Pulou no monte de lixo e começou a correr pela
colina, chegando a uma rua mais larga. Ninguém se
dava ao trabalho de olhar para um menino esfarrapado
e de pés descalços. Mas continuou aflito até dobrar
uma esquina e dar com o portão da cidade. Empurrado
pela multidão que também saía, chegou à ponte, onde
o povo caminhava num silêncio surdo, como se
estivesse em fila. Com a água correndo dos dois lados,
aquilo era uma delícia, depois do odor e do calor de
Tashbaan.
Ao chegar ao fim da ponte, a multidão se
desfazia, para a esquerda e para a direita das margens
do rio. O menino seguiu em frente por uma estrada
pouco percorrida, ladeada de jardins. Mais alguns
passos e achou-se só, chegando daí a pouco no alto da
elevação. Parou e olhou. Era como se tivesse chegado
ao fim do mundo: ali começava o areai, uma grossa
camada de areia, ainda mais áspera do que a da praia.
As montanhas, parecendo mais distantes do que antes,
assomavam à frente. Para seu alivio, depois de cinco
minutos de marcha, viu à esquerda as tumbas, como
Bri as descrevera: grandes blocos de pedra com o
formato de gigantescas colméias alongadas. O sol se
punha atrás delas.
De frente para o sol, que o impedia de ver
qualquer coisa, Shasta mesmo assim seguia de olhos
fixos, buscando um indício dos amigos. “Devem estar
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
79
atrás do túmulo mais distante, e não do lado de cá,
para não serem vistos da cidade.”
Eram cerca de doze túmulos, cada um com uma
entrada arqueada dando para as trevas. Não havia
nenhuma ordem na sua distribuição, e assim levava
tempo para se dar a volta em todos. Foi o que Shasta
teve de fazer. Não encontrou ninguém.
Havia um grande silêncio ali, nas portas do
deserto. E o sol desapareceu.
De repente, de trás do menino, chegou um ruído
assustador. Shasta teve de morder a língua para não
 dar um berro. Percebeu do que se tratava: eram as
trombetas de Tashbaan comandando o fechamento
dos portões.
- “Não banque o covarde” - falou Shasta para si
mesmo. - “É o mesmo barulho que ouvi hoje de
manhã.”
Mas não era o mesmo: um barulho ouvido de
manhã, entre amigos, é uma coisa, e um barulho
ouvido sozinho, à noite, é outra. Agora, que os portões
se fechavam, os amigos não poderiam mais encontrarse
com ele. “Ou ficaram presos em Tashbaan ou
partiram sem mim. Deve ter sido idéia de Aravis. Bri
não faria isso nunca. Será que faria?”
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
80
Mais uma vez, Shasta estava errado a respeito de
Aravis. Esta podia ser orgulhosa e bastante áspera,
mas era de uma lealdade de ferro e jamais teria
abandonado um companheiro, gostasse dele ou não.
Agora que tinha de passar a noite sozinho, à
medida que ia escurecendo gostava ainda menos do
lugar. Algo muito inquietante pairava sobre aquelas
silenciosas formas de pedra. Já conseguira de si
mesmo o máximo para não pensar em morcegos, mas
não agüentava mais.
- Ai! Ai! Socorro! - berrou de repente, ao sentir
que algo tocava na sua perna. (Não condeno ninguém
por berrar nas mesmas circunstâncias.) Shasta estava
tão amedrontado que nem podia correr. Qualquer
coisa, aliás, seria melhor do que ser caçado pelo
cemitério dos Antigos Reis por algo que ele nem tinha
coragem de olhar. Fez então o que de mais sensato
poderia fazer. Deu uma espiada e quase explodiu de
tanto alívio.
Era um gato.
A noite já estava muito escura para ter uma idéia
completa daquele gato: viu só que era um gatão muito
solene. Estava ali como se tivesse passado anos entre
os túmulos, sozinho. Seus olhos pareciam encerrar
grandes segredos.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
81
- Bichano, bichano... Não vai me dizer que
você também é um gato falante...
O gato olhou para ele com dureza e começou a
caminhar, seguido por Shasta, naturalmente. Andaram
para os lados do deserto. Depois o gato sentou-se com
o rabo enrolado, virado para o deserto, para Nárnia,
para o Norte, como se espreitasse um inimigo. Shasta
estendeu-se ao lado, dando as costas para o gato e de
olho nos túmulos, pois, quando se está com medo, o
melhor é olhar para o perigo e ter por trás algo firme
em que se possa confiar. Você não teria achado a areia
confortável, mas Shasta estava mais do que
acostumado a dormir no chão. Não custou a pegar no
sono, embora até em sonhos continuasse querendo
saber o que teria acontecido a Bri, Aravis e Huin.
Foi despertado por um ruído diferente de tudo
que já ouvira. “Deve ter sido um pesadelo”, pensou.
Percebeu que o gato infelizmente desaparecera.
Continuou, entretanto, quieto, sem abrir os olhos, pois
o medo seria ainda maior se avistasse e sentisse em
torno a solidão. O ruído chegou de novo, áspero e
penetrante, vindo do deserto. Desta vez abriu os olhos
e sentou-se.
A lua brilhava. Os túmulos, que pareciam mais
vastos e mais próximos, avultavam cinzentos ao luar.
Pareciam mesmo horrendos, como pessoas enormes
vestidas de pardo com os rostos encobertos. Não eram
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
82
companhias nada simpáticas numa noite de solidão.
Mesmo não gostando muito, Shasta virou as costas
para eles e olhou na direção do areai. Mais uma vez
ouviu o ruído.
“Chega de leões!” - pensou. Mas não parecia
com o rugido dos leões que ouvira naquela outra
noite. De fato, era um chacal. É claro que Shasta não
podia saber que se tratava de um chacal, e não ficaria
contente se soubesse.
Os uivos aumentavam. “Deve ser um bando, seja
lá o que for. E está cada vez mais perto.”
Se fosse um rapaz bem ajuizado, teria voltado
para perto do rio, onde estavam as casas, tornando
mais improvável a aproximação de feras. Mas teria de
passar pelos túmulos, onde se encontravam (ele
pensava) os morcegos vampiros. Pode parecer
idiotice, mas preferiu correr o risco das feras. À
medida, porém, que os uivos se aproximavam, mudou
de idéia.
Estava para sair em disparada quando um
enorme animal surgiu na sua frente. Com a luz da lua
nos olhos de Shasta, o bicho parecia muito escuro,
mostrando apenas ter quatro pernas e uma cabeça
peluda. Não parecia ter notado o menino; parou de
repente, virou a cabeça para o deserto e deu um rugido
que ecoou pelos túmulos e pareceu agitar as areias. Os
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
83
uivos das outras criaturas pararam imediatamente, e
Shasta pensou ouvir pés a fugir atropeladamente.
Então a grande fera virou-se para ele.
“É um leão, sei que é um leão” - ele pensava.
- “Estou perdido! Deve doer muito. Antes já
tivesse acabado. Não sei se acontece alguma coisa
depois que a gente morre. Ó, ó, está chegando!”.
Fechou os olhos e cerrou os dentes.
Não sentiu dentes, nem garras, apenas uma coisa
cálida pousada a seus pés. Ao abrir os olhos, pensou:
“Ora, não é tão grande assim! É a metade. Menos da
metade. Menos da metade da metade. Tenho de
confessar que é um gato! Sonhei, só posso ter sonhado
com um bicho do tamanho de um cavalo.”
Tendo sonhado ou não, o que estava a seus pés,
fixando-o com grandes olhos verdes, era o gato; talvez
o maior gato do mundo, mas um gato.
- Bichano - disse Shasta, ofegante. - Que bom
vê-lo de novo! Tive sonhos horrorosos! - Deitou-se
outra vez, encostando as costas no gato. Sentiu um
calor percorrer-lhe o corpo e começou a falar:
- Nunca mais vou maltratar um gato. Já fiz, já
atirei pedra num gatinho doente quase morrendo de
fome. Ei! Pare com isso! - O gato dera-lhe uma
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
84
unhada. - Parece que está entendendo o que digo. - E
caiu no sono.
Ao acordar de manhã, o gato sumira; a areia já
estava quente. Com uma sede horrível, Shasta sentouse
e esfregou os olhos. O deserto reluzia em silêncio,
embora se ouvisse o murmúrio de vozes da cidade.
Olhando para as montanhas distantes, recortadas com
nitidez, notou uma elevação que, no alto, dividia-se
em dois cumes; concluiu que era o Monte Piro. “É a
nossa direção, a julgar pelo que disse o corvo. Vamos
adiantar o trabalho.” Com o pé, fez um sulco em linha
reta, apontando exatamente para o Monte Piro.
Agora era arranjar alguma coisa para comer e
matar a sede. Andou ligeiro até as tumbas (que
pareciam agora túmulos comuns, incapazes de
assustar alguém), indo até uma terra cultivada perto
do rio. Algumas pessoas andavam por ali, mas não
muitas, pois as multidões já haviam passado. Não foi
muito difícil fazer o que Bri chamava de “incursão”.
Pulou um muro de pomar, e o resultado foram três
laranjas, um melão, dois figos e uma romã. No rio,
mas não muito perto da ponte, matou a sede. A água
estava tão gostosa que ele tirou a roupa e deu um
mergulho: aprendera a nadar logo depois de aprender
a andar. Estendeu-se na relva, olhando para o
esplendor e a glória de Tashbaan. Achando que os
outros poderiam ter chegado aos túmulos enquanto
nadava, vestiu-se às carreiras e tão depressa percorreu
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
85
a distância, que o bem-estar do banho passou e sentiu
sede novamente.
Quando se espera sozinho, o dia parece ter cem
horas. Tinha muito em que pensar, é claro, mas pensar
sozinho não faz o tempo andar mais depressa. Pensou
principalmente nos narnianos e em Corin. Que teria
acontecido ao descobrirem que o menino deitado no
divã, ouvindo todos os planos, não era Corin coisa
nenhuma? E não gostava da idéia de que aquela boa
gente pensasse que ele fosse um traidor.
Mas, à medida que o sol foi subindo, subindo, e
depois descendo, descendo para o poente, sem que
ninguém chegasse ou algo acontecesse, começou a
ficar mais aflito. Só então lembrou que ninguém disse
por quanto tempo esperar quando combinaram o
encontro nos velhos túmulos. Podia ficar esperando
para o resto da vida! Em breve seria noite de novo,
uma noite parecida com a anterior. Mais de dez planos
passaram por sua cabeça, todos eles desconjuntados.
Acabou finalmente escolhendo o pior. Resolveu
esperar até escurecer, depois retornar ao rio para
roubar todos os melões que conseguisse carregar e
pôr-se em marcha para o Monte Piro, sozinho,
confiando na linha que traçara na areia. Uma idéia
maluca. Mas nunca lera um livro a respeito de viagens
no deserto. Nem qualquer outro livro.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
86
Mas algo aconteceu antes que o sol sumisse.
Estava sentado à sombra de um túmulo quando viu
dois cavalos vindo em sua direção. Seu coração deu
um pulo: eram Bri e Huin. Mas logo em seguida o
coração foi parar-lhe nos joelhos. Não havia sinal de
Aravis. Os cavalos estavam sendo conduzidos por um
estranho, um homem armado, vestido com a elegância
de um escravo de estimação de família importante. Bri
e Huin não vinham mais como animais de carga, mas
traziam rédeas e selas. “Uma armadilha! Alguém
torturou Aravis e ela contou tudo. Estão esperando
que eu vá correndo falar com Bri para me pegarem.
Mas se não for perco a última chance de encontrar os
outros. Ah, se pudesse saber o que aconteceu!”
Escondeu-se atrás do túmulo, espreitando e
tentando imaginar se haveria algo menos perigoso a
fazer.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
87
7
ARAVIS EM TASHBANN
Acontecera o seguinte: depois que Shasta foi
levado pelos narnianos, Aravis se viu só, com os dois
cavalos que, sabiamente, não disseram uma palavra.
Mesmo assim, nem por um segundo perdeu o sanguefrio,
embora o seu coração batesse
descompassadamente. Tentou ir embora, mas outro
arauto vinha gritando: “Abram caminho! Caminho
para a tarcaína Lasaralina!” Seguiam o arauto quatro
escravos armados e logo atrás quatro homens, que
carregavam uma liteira a esvoaçar com suas cortinas
de seda e a tilintar com seus sininhos de prata,
perfumando a rua com essências e aromas de flores.
Atrás da liteira, escravas com lindos vestidos, pajens,
escudeiros e o resto do cortejo. Foi aí que Aravis
cometeu o seu primeiro erro.
Conhecia Lasaralina muito bem, quase como se
tivessem sido colegas de escola, pois haviam
freqüentado as mesmas casas e as mesmas festas.
Aravis não resistiu à curiosidade de saber como estava
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
88
a amiga, agora que se casara e se tornara de fato muito
importante. Aproximou-se.
Fatal: os olhares das duas jovens se encontraram.
Lasaralina ergueu-se de seus coxins e gritou a plenos
pulmões:
- Aravis! Que anda fazendo por aqui, menina?
Seu pai...
Não havia um momento a perder. Sem
pestanejar, Aravis largou os cavalos, subiu na liteira e
sussurrou com fúria ao ouvido de Lasaralina:
- Boca calada, sua doida! Caladinha! Ninguém
pode saber... Diga a seu pessoal...
- Mas, querida, que é isso... - ia falando
Lasaralina, ainda em voz alta. (Pouco lhe importava
chamar a atenção, até pelo contrário.)
- Faça o que eu lhe digo ou nunca mais falo com
você. Depressa, por favor, Las: diga a seu pessoal
para levar aqueles dois cavalos. Abaixe as cortinas e
me leve para um lugar onde não me achem. Depressa!
- Está bem, querida - disse Lasaralina com sua
voz preguiçosa. - Venham aqui dois escravos: levem
os cavalos da tarcaína. E agora, para casa! - ordenou a
jovem. - Francamente, querida, acha que precisamos
mesmo seguir com as cortinas abaixadas? Num dia
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
89
como este?
Mas Aravis já fechara as cortinas, encerrando-se
com a amiga numa espécie de tenda ambulante e
perfumada.
- Não posso ser vista. Meu pai não sabe que
estou aqui. Estou fugindo.
- Minha filha, que coisa emocionante! Estou
louca para saber de tudo. Querida, você está em cima
do meu vestido novinho em folha. Gosta? Comprei...
- O, Las, fale sério! Onde anda o meu pai?
- Ora, você não sabe? Está aqui, naturalmente.
Chegou ontem e anda feito um doido atrás de você.
Nós duas aqui juntas, e ele sem saber de coisa
nenhuma! Nunca vi nada tão engraçado em minha
vida!
E não parava de dar risadinhas esfuziantes. Fora
sempre a campeã dos risinhos esfuziantes, lembrou-se
Aravis.
- Não tem nada de engraçado. É pateticamente
sério. Onde você pode me esconder?
- Muito simples, minha querida. Levo você para
casa, só isso. Meu marido está fora e ninguém a verá.
Puxa! Não é nada divertido com as cortinas fechadas.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
90
Quero ver gente. Não vale a pena comprar um vestido
novo e sair numa liteira com as cortinas abaixadas.
- Só espero que ninguém a tenha ouvido berrar o
meu nome.
- Claro que não, queridinha - replicou Lasaralina
distraída. - Mas você ainda não disse nada sobre o
meu vestido novo.
- Outra coisa: diga a seu pessoal para tratar
aqueles cavalos com o máximo respeito. Isso faz parte
do segredo: são cavalos falantes de Nárnia.
- Que engraçado! Sensacional! Ah, querida, você
viu a bárbara da rainha de Nárnia? Anda agora por
aqui em Tashbaan. Andam dizendo que o príncipe
Rabadash está alucinado por ela. Há duas semanas
que só temos festas maravilhosas. Por mim, minha
filha, não acho que ela seja tão maravilhosa assim.
Mas alguns dos homens de Nárnia são simplesmente
lindos. Ainda anteontem fui a uma festa à beira-rio,
usando um vestido...
- Como vamos impedir o seu pessoal de espalhar
que você tem uma visita, vestida como uma
mendigazinha... e na sua casa? Vai fatalmente cair nos
ouvidos do meu pai.
- Pare com essas bobagens, querida. Chegamos.
Daqui a pouquinho você estará uma jóia.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
91
A liteira foi abaixada. Achavam-se num pátio
ajardinado, muito parecido com aquele para o qual
Shasta acabara de ser levado. Lasaralina queria entrar
imediatamente, mas Aravis pediu-lhe em sussurros
que recomendasse silêncio aos escravos.
- Ah, perdão, querida, já havia me esquecido.
Todos aqui! O porteiro também. Ninguém hoje tem
licença de botar o pé fora de casa. E, se ouvir alguém
falando qualquer coisa a respeito desta moça, será
espancado até cair morto, ou queimado vivo, ou então
ficará a pão e água por seis semanas. É tudo.
Embora Lasaralina dissesse que estava louca
para ouvir a história de Aravis, não mostrou o menor
sinal disso. Evidentemente, gostava muito mais de
falar que de ouvir. Insistiu para que Aravis tomasse
um banho suntuoso (os banhos calormanos são
famosos) e depois deu-lhe lindas roupas para vestir. O
alvoroço que fez na hora de escolher as roupas quase
estourou a cabeça de Aravis. Lasaralina era a mesma,
interessada apenas em roupas, festas e intriguinhas,
enquanto ela, Aravis, sempre preferia arcos e flechas,
cães e cavalos, e natação. Cada uma devia achar a
outra uma boba.
Depois de uma refeição, dessas de cremes,
geléias e frutas, feita numa sala cercada de colunas, e
que Aravis teria apreciado melhor sem o macaquinho
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
92
travesso da amiga, Lasaralina perguntou afinal pela
história. E, depois de ouvi-la, falou:
- Mas, minha querida, por que você não se casa
com Achosta Tarcaã? São todas doidas por ele. Meu
marido sempre diz que Achosta está ficando um dos
grandes homens deste país. Ainda há pouco foi feito
grão-vizir, depois que morreu o velho Axarta. Vai
dizer que não sabia?
- Isso não me interessa. Não agüento nem a cara
dele.
- Mas pense uma coisa, querida! Três palácios!
Um deles é aquele maravilhoso que dá para o lago de
Ilkin. E uma fábula em pérolas, já me contaram.
Banhos de leite de jumenta. E a gente ia se ver tantas
vezes!
- Ele pode fazer o que quiser com os palácios e
as jumentas dele; pouco me interessa.
- Você sempre foi muito estranha, Aravis. Que
mais pretende na vida?
Aravis acabou conseguindo que a amiga
acreditasse que ela não estava brincando. E puderam
então discutir planos sérios. Não seria difícil levar os
cavalos pelo portão do norte até os túmulos. Ninguém
interromperia um escudeiro bem vestido conduzindo
um cavalo selado até o rio. O problema era saber o
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
93
que fazer com a própria Aravis. Sugeriu ser conduzida
de liteira com as cortinas abaixadas. Impossível: as
liteiras só eram usadas dentro da cidade; se uma
transpusesse os portões, causaria suspeitas.
Conversaram por um tempo interminável, pois
era difícil segurar Lasaralina dentro do assunto. Por
fim a amiga bateu palmas de contentamento:
- Uma idéia genial! Há um jeito de sair da cidade
sem usar qualquer um dos portões. O jardim do Tisroc
- que ele viva para sempre! - desce até a muralha do
rio, e no lugar existe uma pequena porta. Só para uso
da gente do palácio, naturalmente... Mas, sabe,
querida (aqui Lasaralina teve de dar um risinho), nós
quase somos gente do palácio. Palavra, foi sorte sua
ter se encontrado comigo. O caro Tisroc - que ele viva
para sempre! - é tão bom! Somos convidados ao
palácio quase todos os dias... É como se fosse um
segundo lar. Gosto tanto dos príncipes todos, das
princesas e, para falar sinceramente, adoro o príncipe
Rabadash. Posso procurar as damas de honra a
qualquer hora do dia ou da noite. Será fácil sairmos
escondidas, depois de escurecer. Você escapa pela
porta da muralha, pegando uma canoa. E se formos
apanhadas...
- Tudo está perdido...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
94
- Não fique nervosa, queridinha. Eu ia dizer o
seguinte: mesmo que sejamos apanhadas, todo mundo
iria dizer que foi mais uma das minhas brincadeiras.
Já estou ficando famosa por causa delas.
Ainda outro dia... foi de morrer de rir...
- E eu só ia dizer o seguinte: tudo estará perdido
para mim.
- Ah, já entendi o que você quer dizer... Sabe de
outro plano melhor, querida?
Aravis não sabia:
- Correremos o risco do jardim e da porta da
muralha. Quando começamos?
- Ah, não hoje à noite. Hoje à noite, não,
francamente. Há uma grande festa... Ih! Preciso fazer
o meu cabelo daqui a pouquinho!... E vai ficar tudo
claro como se fosse dia. E assim de gente! Tem de ser
amanhã à noite.
Más notícias para Aravis; que se haveria de
fazer? O resto da tarde foi de horas morosas, e Aravis
sentiu grande alívio quando Lasaralina saiu para a
festa. Já estava cansada de risadinhas esfuziantes e
vestidos e festas maravilhosas e casamentos e
noivados e escândalos. Foi dormir cedo, e disso
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
95
gostou muito: era uma delícia ter de novo uma cama
com lençóis e travesseiros.
Mais lento ainda foi o dia seguinte. Lasaralina
quis voltar atrás em tudo que fora assentado,
insistindo em dizer que Nárnia era uma terra de neve
eterna, habitada por demônios e feiticeiras. Era
simplesmente uma loucura ir para lá. - “Ainda por
cima na companhia de um pescador; francamente!
Pense melhor, querida. Não é nada elegante.”
Aravis havia pensado muito nisso, mas já estava
tão cansada das tolices de Lasaralina que, pela
primeira vez, começou a achar que a companhia de
Shasta era bem mais divertida do que a vida elegante
em Tashbaan. Apenas respondeu:
- Você se esquece de uma coisa: eu também não
serei ninguém, chegando a Nárnia. E, além do mais,
prometi.
Lasaralina, quase chorando, replicou:
- E pensar que, se você tivesse juízo, seria a
esposa de um grão-vizir!
Aravis saiu para uma conversa particular com os
cavalos.
- Podem ir com o escudeiro antes do pôr-do-sol.
Não precisam mais daqueles sacos. Irão de sela e
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
96
rédea. Mas levarão comida e água nos alforjes. O
homem recebeu ordens para que vocês matem a sede
do outro lado da ponte.
- Para Nárnia! Para o Norte! - murmurou Bri. -
Mas... e se Shasta não estiver lá nos túmulos?
- Esperem por ele, é claro. Passaram bem a
noite?
- Nunca estive num estábulo melhor na minha
vida - respondeu Bri. - Mas tem uma coisa: se o
marido daquela sua amiga das risadinhas está pagando
o primeiro escudeiro para comprar aveia de primeira,
tenho a impressão de que ele anda enganando o
patrão.
Aravis e Lasaralina cearam na Sala das Colunas.
Duas horas mais tarde, estavam prontas para partir.
Aravis vestiu-se como uma escrava de estimação de
uma casa importante, cobrindo o rosto com um véu.
Se houvesse perguntas, Lasaralina responderia que
estava levando uma escrava de presente para uma das
princesas.
Saíram com todo o cuidado, e poucos minutos
depois estavam às portas do palácio. O oficial da
guarda conhecia Lasaralina; os soldados, a seu mando,
prestaram-lhe continência. Passaram à Sala de
Mármore Negro. Serviçais e escravos andavam de um
lado para outro, e isso facilitava mais as coisas. Da
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
97
Sala das Colunas passaram à Sala das Estátuas e,
depois da colunata, cruzaram os grandes portões de
cobre trabalhado das salas do trono. Era de um luxo
indescritível tudo o que se podia ver sob a luz mortiça
do lampadário.
Chegaram por fim ao jardim, que descia até o rio
em numerosos terraços. No fim erguia-se o Velho
Palácio, escurecido pelo tempo. Já era quase noite, e
as duas passaram por um labirinto de corredores
iluminados apenas por alguns tocheiros fixados nas
paredes. Lasaralina parou num lugar onde se podia ir
para a esquerda ou para a direita.
- Vamos, vamos - murmurou Aravis, com o
coração batendo acelerado, ainda com a impressão de
que o pai podia aparecer a qualquer momento.
- Só estou pensando um pouco... Não tenho
muita certeza se é para cá ou para lá... Acho que é
para lá. É, tenho quase certeza. Que engraçado tudo
 isso aqui!
Pegaram à esquerda, atravessaram uma passagem
quase escura de todo, chegaram a uma descida feita
em degraus.
- Está certo - disse Lasaralina. - Lembro-me
destes degraus.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
98
Nesse momento uma luz oscilou lá na frente. Um
segundo após, num canto distante, surgiram os vultos
de dois homens que caminhavam de costas
empunhando grandes velas. Só diante de realezas é
que aparecem pessoas andando de costas. Aravis
sentiu Lasaralina agarrando-lhe o braço quase como
se fosse um beliscão, aquele beliscão que significa o
seguinte: estou morrendo de medo. Achou estranho
que Lasaralina sentisse tanto pavor do Tisroc, tão
amigo, tão bom. Mas não havia muito tempo para
pensar. Lasaralina já a empurrava para trás, degraus
acima, na ponta dos pés, roçando pelas paredes.
- Uma porta; entre depressa!
Fecharam de novo a porta com todo o cuidado.
Escuro total. Pela respiração, podia-se perceber que
Lasaralina estava aterrorizada.
- Que Tash nos proteja! Que vamos fazer,
Aravis, se ele entrar aqui?
Pisando um tapete fofo, saíram tateando e
tropeçaram num sofá.
- Vamos nos esconder aqui atrás - murmurou
Lasaralina. - Ó, que idéia idiota ter vindo aqui!
As duas moças agacharam-se no diminuto espaço
entre o sofá e a parede acortinada.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
99
Lasaralina deu um jeito de arranjar a melhor
posição, ficando completamente escondida. A parte
superior do rosto de Aravis aparecia do lado do sofá;
seria vista se alguém projetasse uma luz naquela
direção. Talvez, se isso acontecesse, o véu ajudasse a
disfarçar que se tratava de um rosto humano. Tentou
obter algum espaço de Lasaralina, que, mais egoísta
no seu terror, resistiu e beliscou-lhe os pés. Desistiram
e ficaram quietas, arquejando um pouco. Faziam
muito ruído ao respirar, mas não havia nenhum outro
barulho.
- Estamos salvas? - perguntou Aravis, no mais
baixo dos mais baixos suspiros.
- Acho... acho que sim... mas, ó, meus nervos
estão...
O barulho que então ouviram não poderia ser
mais aterrador: uma porta se abriu. Depois, a luz.
Como Aravis não podia esconder a cabeça atrás do
sofá, viu tudo.
Primeiro entraram os dois escravos (surdos e
mudos, como Aravis imaginou, usados nas reuniões
secretas), andando de costas e empunhando as velas.
Cada um se colocou a um lado do sofá. Por sorte um
escravo ficou na frente de Aravis, que passou a
enxergar a cena através dos calcanhares dele. Entrou
em seguida um velho, gordíssimo, usando um
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
100
engraçado gorro pontudo, pelo qual Aravis
imediatamente reconheceu o Tisroc. A menorzinha
das jóias que usava valia mais do que todas as
indumentárias e armas dos senhores de Nárnia. Mas
Aravis passou a preferir a moda de Nárnia àquela
massa enfeitada de babados, pregueados, laçarotes,
botões, borlas e talismãs. Depois entrou um jovem
alto com turbante cheio de plumas e jóias e uma
cimitarra embainhada em marfim. Parecia
emocionado. Seus olhos e dentes reluziam no brilho
das velas. Por fim entrou um corcunda mirrado, no
qual ela reconheceu com um calafrio o grão-vizir, seu
prometido esposo, o próprio Achosta Tarcaã.
O Tisroc estirou-se no divã com um suspiro de
satisfação; o jovem tomou o seu lugar, de pé diante
dele; o grão-vizir agachou-se sobre os joelhos e os
cotovelos, achatando a cara no tapete.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
101
8
NA CASA DO TISROC
O jovem tomou a palavra:
- Pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos! - falava
depressa e num tom emburrado sem convencer a
ninguém que o Tisroc fosse o deleite de seus olhos. -
Louvado seja o seu nome para sempre! O senhor me
destruiu completamente. Se tivesse me dado a mais
rápida de suas galeras ao nascer do sol, quando
percebi que o navio dos malditos bárbaros se afastava,
talvez eu os tivesse alcançado. Persuadiu-me porém o
senhor a verificar se acaso não estariam eles buscando
melhor ancoradouro. Perdemos todo o dia. E já se
foram... já se puseram fora do meu alcance! Aquela
falsa jóia, aquela...
E aqui o jovem começou a referir-se à rainha
Susana com palavras que não fica bem registrar no
papel. Pois, sem dúvida, tratava-se do príncipe
Rabadash; a falsa jóia só podia ser Susana de Nárnia.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
102
- Olha a compostura, filho meu - disse o Tisroc. -
A partida de um hóspede faz uma ferida que se cura
mais depressa no coração do sensato.
- Mas eu quero a moça - bradou o príncipe. - Eu
preciso da moça! Vou morrer sem... sem aquela falsa,
soberba, aquela traiçoeira filha de um cão sarnento! Já
não posso mais dormir, o melhor alimento não me
apetece, os meus olhos estão ofuscados pela beleza
daquela bárbara. Preciso da rainha bárbara.
- Como disse tão bem o divino poeta - observou
o vizir, erguendo o rosto um tanto empoeirado -, “uns
bons goles na fonte da razão ajudam a apagar o fogo
do coração”.
Esse verso irritou ainda mais o príncipe.
- Seu cachorro! - gritou ele, aplicando chutes
certeiros no traseiro do grão-vizir. - Não ouse levantar
poetas contra mim. Estou cheio de versos e máximas!
É possível que Aravis não tenha sentido a menor
pena do vizir.
O Tisroc parecia mergulhado em devaneios, mas,
ao notar o que acontecia, falou tranqüilamente:
- Filho meu, pare de dar pontapés no venerável e
esclarecido vizir: pois, assim como uma gema
conserva o seu valor mesmo num monte de estéreo,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
103
deve a velhice ser respeitada, mesmo na mais vil das
pessoas. Pare, pois, e diga-nos o que deseja e propõe.
- Desejo e proponho, pai meu, que o senhor
convoque imediatamente seu invencível exército a fim
de invadir a três vezes maldita terra de Nárnia, para
arrasá-la com a espada e o fogo, anexando-a ao nosso
ilimitado império, matando o Grande Rei e todos os
de seu sangue, com exceção da rainha Susana. Pois a
esta eu quero por mulher, quando ela tiver aprendido
sua lição.
- Compreenda, filho meu, que nenhuma das
palavras que proferisse poderá levar-me a uma guerra
aberta com Nárnia.
- Não fosse o senhor o meu pai, ó sempiterno
Tisroc - disse o príncipe rangendo os dentes -, diria
que são palavras de um covarde.
- E não fosse você meu filho, ó fogoso Rabadash,
sua vida agora seria curta e demorado o seu fim.
A voz plácida e fria com que disse essas palavras
gelou o sangue de Aravis.
- Mas, pai meu - replicou o príncipe, num tom
bem mais respeitoso -, por que pensar duas vezes em
punir Nárnia? É como se enforcássemos um escravo
preguiçoso ou déssemos um cavalo velho para os
cachorros comerem. Nárnia não chega a ser a quarta
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
104
parte da menor de suas províncias. Mil lanças podem
subjugá-la em cinco semanas. Não passa de uma
nódoa aos pés do seu império.
- Sem dúvida - falou Tisroc. - Esses pequenos
países bárbaros que se proclamam livres (vale dizer,
indolentes, caóticos, inúteis) são odiosos aos deuses e
a todas as pessoas de discernimento.
- Assim sendo, por que haveremos de sofrer a
afronta de uma Nárnia insubmissa? - prosseguiu o
príncipe.
- Saiba, ó sábio príncipe - interveio o grão-vizir -
, que, até o ano em que o seu altivo pai começou o seu
salutar e sempiterno reinado, a terra de Nárnia vivia
coberta de neve e gelo e era governada por uma
poderosa feiticeira.
- Sei de tudo isso muito bem, ó loquaz vizir -
replicou o príncipe. - Mas também sei que a feiticeira
morreu. E que o gelo e a neve derreteram. E que
Nárnia agora é um país frutífero.
- E essa mudança, cultíssimo príncipe, sem
sombra de dúvida, é devida aos encantamentos dessas
criaturas perversas que agora se intitulam reis e
rainhas de Nárnia.
- Sou de opinião - disse Rabadash - que isso
aconteceu pela força das causas naturais.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
105
- Isto é assunto para os sábios. - falou o Tisroc. -
Jamais poderei acreditar que uma tal mudança possa
ser feita sem a intervenção de poderosa magia. Tantas
coisas ali sucedem, que a terra é principalmente
habitada por demônios na forma de bichos que falam
como homens e de monstros que são metade homem e
metade animal. É geralmente aceito que o Grande Rei
de Nárnia -que os deuses o amaldiçoem! - é
sustentado por um demônio de aspecto hediondo e de
imbatível poder maléfico, que aparece sob a forma de
um leão. Daí ser o ataque a Nárnia uma empresa
duvidosa. Estou decidido a não meter a mão em saco
de onde não possa retirá-la.
- Venturosos os calormanos - disse o vizir,
revirando mais uma vez a cabeça -, em cujo chefe os
deuses houveram por bem derramar a prudência e a
circunspecção! Como diz o sábio e irrefutável Tisroc,
seria penoso meter as mãos em um saco tão opulento
quanto Nárnia. Divino foi o poeta que disse...
A esta altura Achosta percebeu um movimento
impaciente do pé do príncipe e calou-se.
- É muito penoso - concordou o Tisroc na sua
voz profunda e mansa. - O sol é escuro aos meus
olhos, e à noite meu sono é menos reparador, por
lembrar-me que Nárnia é ainda uma terra livre.
- Pai meu - disse Rabadash -, e se lhe mostrasse
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
106
uma maneira pela qual poderia estender a sua mão
para agarrar Nárnia, podendo retirá-la incólume, caso
fracassasse a tentativa?
- Caso me mostre isso, Rabadash, será o melhor
dos filhos.
- Escute, pois, meu pai. Nesta mesma noite,
conduzirei apenas duzentos cavalos e homens pelo
deserto. Parecerá a todos que o senhor nada sabe de
minha expedição. Na segunda manhã estarei nos
portões do castelo do rei Luna, na Arquelândia, em
Anvar. Estão em paz conosco e desprevenidos:
tomarei Anvar antes que se mexam. Depois cavalgarei
pelo desfiladeiro do alto de Anvar, seguindo por
Nárnia até Cair Paravel. O Grande Rei não se
encontra lá; quando o deixei, prepara
va uma expedição contra os gigantes da fronteira do
norte. Entrarei facilmente em Cair Paravel. Serei
cauteloso, cortês e mesureiro como um narniano. E
depois, então? É esperar sentado até a chegada do
Esplendor Hialino, com a rainha Susana a bordo,
agarrar o meu passarinho fujão assim que ele pousar,
colocá-lo na sela e cavalgar, cavalgar até Anvar.
- Mas não é provável, filho meu, que, ao
arrebatar a mulher, um dos dois, você ou o rei
Edmundo, perca a vida?
- São poucos: dez dos meus homens podem
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
107
desarmá-lo e amarrá-lo. Sofrearei minha veemente
sede de sangue para que não prevaleça um motivo de
guerra entre o senhor e o Grande Rei.
- E se o Esplendor Hialino chegar a Cair Paravel
antes de você?
- Não com estes ventos, pai meu.
- Por fim, imaginoso filho meu, está bem claro
de que maneira obterá a mulher bárbara, mas de modo
algum está claro como poderei subjugar Nárnia.
- Pai meu, por acaso lhe escapou que, enquanto
eu e meus cavaleiros cruzamos Nárnia de lado a lado
como uma flecha, Anvar já será nossa para sempre?
De posse de Anvar, estamos sentados às portas de
Nárnia, e sua guarnição aí pode ser acrescida pouco a
pouco, até transformar-se em legião imensa.
- Falou com discernimento e espírito de previsão.
Mas como vou retirar a minha mão se tudo for por
água abaixo?
- É só dizer que fiz esse gesto sem o seu
conhecimento, contra o seu coração, impelido pela
violência do meu amor e pelo ardor da juventude.
- Certo. Mas se o rei pedir que lhe mandemos de
volta a mulher bárbara, irmã dele?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
108
- Pai meu, pode estar certo de que isso não
acontecerá. Embora essa mulher, por mero capricho,
tenha recusado o casamento, o Grande Rei Pedro é
homem prudente e judicioso. De modo algum vai
querer perder a alta honraria e grande vantagem de ser
aliado da nossa casa e de ver o seu sobrinho e o seu
sobrinho-neto no trono dos calormanos.
- Ele não verá isso se eu viver para sempre, como
é sem dúvida o seu desejo, filho meu - disse o Tisroc,
com uma voz ainda mais seca do que habitualmente.
Depois de um instante de embaraçoso silêncio,
falou o príncipe:
- Além disso, pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos,
forjaremos cartas da rainha, afirmando que me ama e
que não sente o menor desejo de regressar a Nárnia.
Pois todo mundo sabe que as mulheres mudam mais
que catavento. E, mesmo que não acreditem nas
cartas, não ousarão entrar com armas em Tashbaan
para buscá-la.
- Esclarecido vizir - disse o Tisroc -, queira
esparzir sobre nós o seu sábio conselho a propósito
desta estranha proposta.
- Sempiterno Tisroc: a força da afeição paternal
não me é estranha e com freqüência vejo que, aos
olhos do pai, filhos são mais preciosos que diamantes.
Assim, como poderei ousar desvendar-lhe todo o meu
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
109
pensamento, em matéria que pode colocar em perigo a
vida deste decantado príncipe?
- É claro que você vai ousar - respondeu o
Tisroc. - Se não ousar, correrá pelo menos um perigo
igual.
- Ouvir é obedecer - gemeu o desgraçado. - Saiba
então, ó iluminado Tisroc, em primeiro lugar, que o
príncipe não corre um perigo tão grande quanto pode
parecer. Pois os deuses negaram aos bárbaros a luz da
discrição: assim a poesia deles não é, como a nossa,
cheia de máximas e ditos úteis, mas é uma poesia de
amor e de guerra. Portanto, nada lhes parecerá mais
nobre e admirável do que a insensata empreitada a
qual este... ai!
Na palavra “insensata”, o príncipe dera-lhe um
chute.
- Pare com isso, filho meu. E você, estimável
vizir, quer ele pare ou não, de maneira alguma permita
que a torrente de seu eloqüente verbo seja
interrompida. Pois nada assenta melhor a pessoas de
gravidade e compostura do que suportar os males
menores com resignação.
- Ouvir é obedecer - falou o vizir, revirando-se
um pouco para o lado, a fim de colocar o traseiro fora
do alcance do pé de Rabadash: - Nada lhe parecerá
mais desculpável, se não estimável, ao príncipe, do
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
110
que esta... hum... arriscada tentativa, especialmente
por ser inspirada pelo amor da mulher. Portanto, se
por desgraça o príncipe cair nas mãos deles,
certamente não irão matá-lo. Mais
ainda: pode ser mesmo que, embora não
seqüestre a rainha, à vista de sua grande bravura e da
sua extrema paixão, os corações deles acabem por
favorecê-lo.
- Está aí um bom ponto de vista, velho tagarela -
falou Rabadash. - Muito bom, apesar de ter saído de
seu bestunto.
- O louvor do meu amo é a luz do meu coração -
replicou Achosta. - Em segundo lugar, ó Tisroc, cujo
reinado deve ser e será sempiterno, creio que, com o
auxílio dos deuses, é muito provável que Anvar caia
nas mãos do príncipe. Se assim for, agarramos Nárnia
pelo pescoço.
Fez-se uma longa pausa. A sala ficou tão
silenciosa que as duas moças mal tinham coragem de
respirar. Falou o Tisroc, afinal:
- Vá, filho meu. Faça como disse. Mas não
espere de mim ajuda ou conivência. Não o vingarei se
morrer, e não irei libertá-lo se o meterem numa prisão.
E, caso fracasse ou triunfe, se verter uma gota a mais
do nobre sangue narniano, e disso advenha a guerra,
meu favor lhe será negado para sempre, e o seu irmão
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
111
ocupará o seu lugar entre os calormanos. Agora vá.
Seja rápido, discreto, e que a sorte o favoreça. Que o
poderio de Tash, o inexorável, o irresistível, dirija a
sua lança e a sua espada.
- Ouvir é obedecer - bradou Rabadash, que,
depois de ajoelhar-se um segundo para beijar as mãos
do pai, deixou rapidamente a sala. Para grande
desgosto de Aravis, que sentia câimbras horríveis, o
Tisroc e o vizir permaneceram.
- Vizir, será certo que nenhuma outra alma sabe
da reunião que os três aqui mantivemos?
- Senhor meu, não é possível que mais alguém o
saiba. Por esta mesma razão propus, e a sua infalível
sabedoria concordou, que era aqui, no Velho Palácio,
que deveríamos nos encontrar, onde reunião alguma
jamais foi feita e nenhum dos familiares tem ocasião
de entrar.
- Muito bem. Se alguém soubesse, estaria morto
em menos de uma hora. E também você, meu
prudente vizir, esqueça tudo o que se passou aqui.
Limparei do meu próprio coração e do seu também
toda a lembrança em relação aos planos do príncipe.
Ele partiu sem o meu conhecimento e sem o meu
consentimento, não sei para onde, por motivo de sua
violência, precipitação e rebeldia juvenis. Ninguém
ficará mais surpreso do que nós, eu e você, ao saber
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
112
que Anvar está nas mãos dele.
- Ouvir é obedecer.
- Por isto mesmo, você jamais pensará, lá no
fundo do seu coração, que eu sou o mais duro de
todos os pais, capaz de enviar o primogênito numa
missão que lhe possa causar a morte. Por mais que
isto lhe agrade, a você, que não ama muito o príncipe,
como bem vejo no fundo da sua alma.
- Impecável Tisroc, se o comparo com o amor ao
meu senhor, eu de fato não amo o príncipe, nem a
minha própria vida, nem a água, nem o pão, nem a luz
do sol.
- São elevados e certos os seus sentimentos.
Também não amo nada dessas coisas, se as comparo
com o poder e a glória do meu trono. Se o príncipe
triunfar, teremos Arquelândia e talvez, depois, Nárnia.
Se falhar... se falhar tenho mais dezoito filhos... e
Rabadash, ao estilo dos filhos mais velhos dos reis,
estava começando a ficar perigoso. Mais de cinco
tisrocs em Tashbaan morreram antes da hora porque
seus filhos mais velhos, esclarecidos príncipes,
acabaram se cansando de esperar pelo trono. Melhor
que ele esfrie o sangue no estrangeiro do que o
afervente aqui na inação. E agora, meu excelente
vizir, o excesso de minha aflição paterna está me
levando para a cama. Mande os músicos para os meus
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
113
aposentos. Mas, antes de deitar-se, revogue o perdão
que assinamos para o terceiro cozinheiro. Estou
sentindo dentro de mim prognósticos evidentes de
indigestão.
- Ouvir é obedecer.
O grão-vizir engatinhou pela sala, levantou-se,
abriu a porta, fez a reverência e saiu. O Tisroc
permaneceu sentado e quieto no divã Aravis chegou a
temer que tivesse caído no sono. Por fim, com grandes
chiados e suspiros, ele alçou o enorme corpanzil, fez
sinal para que os escravos o precedessem com as
velas, e saiu. Fechou-se a porta. A sala estava
novamente imersa em escuridão. As duas moças
podiam afinal respirar de verdade.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
114
9
ATRAVÉS DO DESERTO
- Que horror! Que horror! - gemeu Lasaralina. -
Estou apavorada, querida. Estou tremendo da cabeça
aos pés. Veja só.
- Vamos - disse Aravis, que também tremia. - Já
foram para o palácio novo. Estaremos salvas lá fora.
Como demoraram! Leve-me logo para a porta da
muralha, depressa.
- Mas você tem coragem, querida? Olhe o meu
estado de nervos! Não, por favor: vamos descansar
um pouco e voltar para casa. No momento, nem
consigo dar um passo. Que nervosismo, querida!
Quero voltar para casa.
-Voltar?!
- Você não entende, não é? Você é tão pouco
compreensiva! - falou a amiga, começando a chorar.
“Não é hora para compaixão”, pensou Aravis.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
115
- Olhe uma coisa! - e deu umas boas sacudidelas
em Lasaralina. - Se disser outra vez a palavra voltar, e
se não me levar imediatamente para a porta do rio...
sabe o que vou fazer? Vou lá fora e dou um berro... e
pegam a gente.
- E nós duas então iremos mo... morrer! Você
não acabou de ouvir o que disse o Tisroc - que ele
viva para sempre!
- Ouvi, mas prefiro morrer a me casar com
Achosta. Logo, em frente!
- Você está sendo má, Aravis. Veja só o meu
estado de nervos.
Mas Lasaralina acabou entregando os pontos.
Voltaram, seguiram por um comprido corredor e
chegaram por fim ao ar livre.
Estavam agora no jardim do palácio com aqueles
terraços em tabuleiros, cercados pelas muralhas da
cidade. A lua brilhava. Uma desvantagem das
aventuras é esta: quando chegamos aos lugares mais
belos, estamos em geral tão aflitos e apressados que
não somos capazes de apreciá-los. Por isso Aravis
(apesar de lembrar-se anos depois) teve apenas uma
vaga impressspan style=ão de relvados cinzentos, fontes
murmurantes, sombras esguias de ciprestes.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
116
Quando chegaram ao fim da rampa, e a muralha
lhes barrou o caminho, Lasaralina tremia tanto que
não foi capaz de abrir o portão. Aravis passou à frente
e o fez. Lá estava o rio, espelhando o luar, com um
pequeno cais de amarração e simpáticas canoas.
- Adeus - disse Aravis - e muito obrigada. Perdoe
se fiz jogo sujo, mas pense um pouquinho de quem
estou escapando.
- Querida, não quer desistir? Agora já viu que
Achosta é um grande homem!
- Grande homem! Um escravo repugnante e
rastejante que a chutes no traseiro responde com
lisonjas, mas vai guardando tudo, e acaba levando o
Tisroc a aceitar um plano que causará a morte do
próprio filho!
- Aravis! Aravis! Como você pode dizer uma
coisa destas? E sobre o Tisroc - que ele viva para
sempre! - também! Se ele fez aquilo, é porque está
certo!
- Adeus e... achei lindos os seus vestidos. E sua
casa também é linda. E você vai ter uma vida linda...
Só que não é a minha vida. Feche a porta devagar.
Escapou dos ternos beijos da amiga, pulou para
dentro de uma canoa e daí a pouco estava em pleno
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
117
rio, com duas luas, uma no céu, outra no fundo das
águas. Como era boa a brisa!
Quando se aproximava da outra margem ouviu o
pio de uma coruja. “Muito mais agradável!” Vivera
sempre no campo e detestara todos os minutos
passados em Tashbaan.
Ao pisar em terra, viu-se cercada pela escuridão,
pois a elevação do terreno e as árvores impediam a
passagem do luar. Mesmo assim conseguiu descobrir
o caminho trilhado por Shasta, divisando por fim os
túmulos escuros. E, por mais valente que fosse nesse
momento, o seu coração estremeceu. E se os outros
não estivessem lá? E se, no lugar deles, estivessem os
morcegos? Mas ergueu a cabeça e caminhou firme
para os túmulos.
Ainda não os alcançara quando deu com Bri,
Huin e o escudeiro.
- Pode voltar para a casa de sua senhora - disse
Aravis, esquecendo-se de que o escudeiro só poderia
voltar no dia seguinte, quando os portões da cidade se
abrissem. - Tome um dinheiro pelo trabalho.
- Ouvir é obedecer - disse o escudeiro, partindo
com uma pressa inesperada na direção da cidade.
Também a cabeça dele estava cheia de morcegos.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
118
Aravis viu-se acariciando Huin e Bri como se
fossem animais comuns.
- Aí vem Shasta! Graças ao Leão! - disse Bri.
Shasta de fato apareceu, agora que o escudeiro se fora.
- Não há um momento a perder! - E em rápidas
palavras Aravis falou sobre a expedição de Rabadash.
- Cães traiçoeiros! - bradou Bri, sacudindo a
crina e batendo com o casco. - Um ataque em tempo
de paz, sem declaração de guerra! Pois vamos lhes
colocar sal na ração. Chegaremos antes deles.
- Chegaremos? - duvidou Aravis, pulando para a
sela de Huin. - Shasta sentiu um pouco de inveja
daquele pulo perfeito.
- Bru-ru! - bufou Bri. - Firme, Shasta? Vamos
dar uma boa largada!
- O príncipe também vai largar imediatamente -
falou Aravis.
- Conversa de gente humana - respondeu Bri.
- Impossível organizar um esquadrão de duzentos
cavalos e duzentos cavaleiros, com água, comida e
armamentos, e largar imediatamente. Bem, qual a
nossa direção? Norte?
- Um momento - interveio Shasta. - Deixe isso
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
119
comigo. Tracei uma linha. Depois eu explico. Vocês,
cavalos, cheguem um pouco mais para a esquerda.
Aí... exatamente.
- Agora tem uma coisa - disse Bri. - Isso de
galopar durante um dia e uma noite só existe nas
histórias. Tem de ser no passo e no trote. Quando
formos a passo, vocês aí, humanos, podem descer e ir
a passo também. Pronta, Huin? Vamos! Para Nárnia!
Para o Norte!
A princípio foi uma beleza. Com a noite alta, a
areia perdera o calor acumulado durante o dia e a
temperatura era agradável. Por todos os lados a areia
resplandecia como água ou como uma grande bandeja
de prata. Fora o barulho dos cascos, o silêncio era
completo. Shasta seria capaz de dormir, caso não
tivesse de desmontar para caminhar de vez em
quando.
Parecia uma cavalgada sem fim. Sumiu o luar e
tiveram a impressão de avançar nas trevas por horas e
horas. Quando Shasta percebeu que distinguia o
pescoço e a cabeça de Bri com mais nitidez, lenta,
lentamente, a grande planura cinzenta começou a
surgir. Parecia um mundo morto. Terrivelmente
cansado, Shasta notou que fazia frio e que os seus
lábios estavam secos. E o tempo todo o ranger do
couro, o tinir dos cabrestos e o ruído dos cascos, não o
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
120
proctiproc de um caminho duro, mas um pructupruc
sobre a areia ressequida.
Por fim, muito longe, do lado direito, surgiu no
horizonte um longo risco cinza, mais pálido. Depois
um clarão avermelhado. Era enfim o amanhecer, a
manhã que nem um só passarinho festejava. E, como
estava ficando mais frio, Shasta começou a gostar das
caminhadas a pé.
Com o sol, tudo mudou num instante. A areia
cinzenta ficou amarela e cintilava como que salpicada
de diamantes. As sombras de Shasta, Huin, Bri e
Aravis alongavam-se à esquerda. Na lonjura em frente
o topo duplo do Monte Piro refulgia, e Shasta achou
que se haviam afastado um pouco da linha reta.
- Um pouquinho mais à esquerda, um pouquinho
mais - comandou.
O melhor de tudo era olhar para trás e ver
Tashbaan diminuindo de tamanho na distância. Os
túmulos ficaram quase invisíveis, engolidos pela vasta
corcova maciça que era a cidade do Tisroc. Todos se
sentiram melhor.
Mas não por muito tempo. Tashbaan, muito
longe quando olharam pela primeira vez, parecia
permanecer no mesmo lugar enquanto avançavam.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
121
Shasta parou de olhar para trás, para não ter a
impressão de estar sempre no mesmo lugar. O sol
passou a ser um incômodo, pois o fulgor da areia
doía-lhe nos olhos. O jeito era esfregá-los e continuar
fixando o Monte Piro e comandando a rota.
Notou que o calor havia chegado quando, ao
apear, sentiu um bafo quente na face como se tivesse
aberto um forno. E, quando ia desmontar mais uma
vez, deu um berro de dor, um pé descalço na areia
ardente e outro no estribo.
- Sinto muito, Bri, mas não agüento mais andar.
Meus pés estão pegando fogo.
- É claro! Eu devia ter-me lembrado disso. Fique
na sela. Não há outro jeito.
- Você não tem problema - disse Shasta para
Aravis, que caminhava ao lado de Huin. - Você tem
sapato.
Aravis nada respondeu. Estava com um ar
superior. E infelizmente esse ar superior era
propositado.
A trote, a passo, rã-rã-rã dos couros, tlim-tlimtlim
dos cabrestos, cheiro de cavalo, cheiro de si
mesmo, calor, ofuscamento, dor de cabeça - eis o que
era, e sempre a mesma coisa, quilômetro após
quilômetro. E Tashbaan sempre lá, no mesmo lugar,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
122
nunca mais longe, e as montanhas à frente sempre no
mesmo lugar, nunca mais perto. Não acabava mais,
rã-rã-rã, tlim-tlim-tlim, cheiro de cavalo, cheiro de
gente.
Experimentaram todos os passatempos, mas o
tempo não passava. E era preciso fazer uma força
monstruosa para não ficar pensando em refrescos
gelados num palácio de Tashbaan, água clara batendo
na pedra, leite fresco e cremoso, mas não cremoso
demais... E, por mais que a gente não queira pensar,
mais a gente pensa.
Entretanto, acabou surgindo uma coisa diferente:
um bloco de pedra fincado na areia, com uns dez
metros de altura. Com o sol já muito alto, a sombra do
bloco de pedra era pouca. Foi para esse pouquinho de
sombra que correram e aí se amontoaram. Comeram e
beberam um gole de água. Não é fácil dar água a um
cavalo com um cantil, mas Bri e Huin souberam usar
os beiços com habilidade.
Ninguém chegou a ficar satisfeito. Ninguém
falou nada. Os cavalos espumavam e respiravam
ruidosamente. As crianças estavam pálidas.
Após um ligeiro descanso, partiram novamente.
Os mesmos ruídos, os mesmos odores, os mesmos
fulgores, até que as sombras dos quatro passaram para
o lado direito e foram ficando cada vez mais
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
123
compridas, como se quisessem alcançar a extremidade
oriental do mundo. Com o sol posto, felizmente teve
fim a reverberação das areias; mas o bafo quente do
chão era cada vez pior. Quatro pares de olhos
procuravam excitadamente um dos sinais referidos
pelo corvo. Mas só havia areia. Já iam surgindo as
estrelas, e as quatro criaturas se sentiam infelizes,
sedentas e exaustas. Mal se erguia a lua quando
Shasta -com a voz estranha de quem está de boca seca
-gritou:
- Lá está!
Não havia erro. Lá estava uma inclinação do
terreno, um declive com massas de pedra dos lados.
Os cavalos, cansados demais para falar, picaram o
passo e, em dois minutos, entraram na garganta. A
princípio foi ainda pior que no areai aberto; respiravase
com dificuldade entre as paredes de pedra, e o luar
mal penetrava. A inclinação prosseguia, e as rochas de
lado a lado pareciam altos penhascos. Encontraram
vegetação, plantas como cactos espinhosos e um
capim que picava a pele. Os cascos dos cavalos
pisoteavam seixos e pedras grandes. Por todas as
curvas iam buscando ansiosamente qualquer sinal de
água. Os cavalos quase não podiam mais, extenuados;
Huin, aos tropeções, ia ficando para trás. Já quase
desesperados, depararam com um fiozinho de água
correndo por um capinzal menos áspero. O fiozinho
virou um arroio, o arroio virou um riacho e o riacho
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
124
acabou virando um rio de verdade. De repente, Shasta,
meio zonzo, percebeu que Bri havia parado e que ele
caíra da sela. Diante deles estava uma cachoeira
formando uma piscina de água fresca. Os cavalos
começaram a beber, a beber, a beber. Shasta entrou
com a água pelos joelhos e foi meter a cabeça debaixo
da cachoeira. Talvez tenha sido o melhor momento da
sua vida.
Só dez minutos mais tarde os quatro começaram
a observar os arredores. A lua já subira o bastante para
espreitar o vale. Relva macia alongava-se pelas
margens do rio; além, moitas e árvores. Flores
escondidas na sombra perfumavam o ar. Vindo do
escuro da mata chegou um som que Shasta jamais
ouvira: um rouxinol.
Fatigados demais para falar ou comer, os cavalos
deitaram-se como estavam. O mesmo fizeram Aravis
e Shasta.
Cerca de dez minutos após, a prudente Huin
abriu a boca:
- Não devemos dormir; temos de chegar na frente
daquele Rabadash.
- Ninguém vai dormir - disse Bri com vagareza. -
Só descansar um pouquinho...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
125
Shasta percebeu que iriam todos pegar no sono
se ele não se levantasse e fizesse alguma coisa.
Resolveu levantar-se para convencê-los a prosseguir.
Mas não agora... daqui a pouco...
E logo a lua brilhava e o rouxinol cantava acima
de dois cavalos e duas crianças - todos os quatro a
ressonar.
Aravis foi a primeira a acordar. O sol já ia alto, e
as horas matinais mais frescas estavam perdidas.
“Minha culpa” - disse para si mesma com raiva,
dando um pulo e começando a despertar os outros.
“Não se pode esperar que cavalos continuem
acordados depois de uma canseira como essa, mesmo
que falem. E o rapaz também, pois não tem o hábito.
Mas eu, sim, eu devia saber.”
Os outros estavam tontos de sono.
- Bru-ru! - disse Bri. - Dormindo de sela, eu!
Nunca mais, que coisa desagradável!
- Depressa, vamos, já perdemos metade da
manhã.
- Antes temos de comer um capinzinho - disse
Bri.
- Não podemos esperar.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
126
- Por que essa pressa? - perguntou Bri. -Já
atravessamos ou não o deserto?
- Mas ainda não estamos em Arquelândia; temos
de chegar lá antes de Rabadash.
- Ó, mas devemos estar muito à frente dele -
respondeu Bri. - Esse corvo, amigo de Shasta, não
disse que este era o caminho mais curto?
- Ele não disse nada sobre mais curto - respondeu
Shasta. - Disse apenas melhor, por causa do rio. Pode
ser o mais comprido.
- Bem, não posso ir sem comer qualquer coisinha
- disse Bri. - Tire minhas rédeas, Shasta.
- Por favor - falou por sua vez Huin, muito
encabulada. - Também sinto como Bri que não posso
mais. Mas quando cavalos levam humanos nas costas
não são muitas vezes obrigados a continuar, mesmo
não agüentando mais? E não descobrem no fim que
ainda eram capazes de suportar mais um pouco? Pois
então, será que não podemos fazer uma forcinha,
agora que estamos livres? Tudo em nome de Nárnia.
- Acho, madame - falou Bri esmagadoramente -
que conheço um pouquinho mais do que a senhora a
respeito de expedições e marchas forçadas ou da
resistência de um cavalo!
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
127
Huin ficou quietinha; era tão sensível, tão gentil,
tão cordata! Mas, na verdade, estava com a razão: se
Bri estivesse carregando nas costas um tarcaã, este
teria achado que ele poderia continuar por muitas
horas. Mas justamente uma das piores conseqüências
da escravidão é esta: quando uma criatura não é mais
forçada a fazer as coisas, quase já perdeu de todo o
poder de forçar a si mesma.
Esperaram que Bri comesse um pouco e bebes-se
água. Huin e as crianças, naturalmente, também
comeram e beberam.
Deviam ser umas onze horas quando partiram.
Mesmo assim Bri não se mostrava com a mesma
disposição da véspera. Foi Huin, embora a mais fraca
e mais cansada dos dois, que abriu a cavalgada.
O vale era tão bonito, com as águas frescas,
relvados e flores silvestres, que dava a tentação de ir
vagarosamente.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
128
10
UM EREMITA NO CAMINHO
Depois de várias horas de jornada, o vale se
alargou; o rio que seguiam afluía a um rio mais largo
e turbulento, que descia da esquerda para a direita, na
direção do poente. Bela paisagem desvendava-se, com
cerros baixos, um após o outro, no sentido das
próprias montanhas do Norte. Alteavam-se à direita
cumes rochosos, dois deles riscados de neve nas
arestas. À esquerda, colinas de pinheiros, gargantas
estreitas, picos azulados que se reproduziam até onde
a vista podia alcançar. A cordilheira na frente
abaixava-se para o que decerto deveria ser o
desfiladeiro que levava de Arquelândia a Nárnia.
- Bru-ru-ru, o Norte, o verde Norte! - relinchou
Bri.
De fato, as colinas mais baixas pareciam a Shasta
e Aravis muito maiMsoNormals verdes e vivas do que o normal,
já que os seus olhos eram acostumados à paisagem do
Sul. O entusiasmo cresceu quando chegaram em
algazarra ao ponto de encontro dos dois rios.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
129
O rio que rolava das montanhas mais altas era
por demais veloz e encachoeirado para que lhes
ocorresse a idéia de cruzá-lo a nado. Mas, depois de
investigar rio acima e rio abaixo, acabaram achando
um lugar que poderia ser vadeado. O ronco das águas,
o ar frio, as libélulas, tudo aumentava a estranha
emoção de Shasta.
- Meus amigos, estamos em Arquelândia! - disse
Bri, com orgulho, a chapinhar na direção da margem
norte. Acho que este é o rio que chamam de Flecha
Sinuosa.
- Só espero que cheguemos a tempo - murmurou
Huin.
Depois começaram a subir, lentamente,
ziguezagueando quase sempre. Nem estradas, nem
casas à vista. Ao invés de agrupadas no que se poderia
chamar de uma floresta, as árvores se dispersavam por
todos os lados. Shasta, que passara toda a vida em
campos de poucas árvores, jamais vira tantas e tão
diferentes. Coelhos debandavam à aproximação deles,
e um bando de gazelas saiu de repente correndo pela
mata.
- Não é mesmo uma maravilha?! - exclamou
Aravis.
Shasta virou-se na sela e olhou para trás: nem o
menor sinal de Tashbaan; só o deserto, sempre o
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
130
mesmo, exceto a garganta verde pela qual haviam
passado, estendendo-se até o horizonte.
- Ei, o que é aquilo? - disse ele de repente.
- Aquilo o quê? - perguntou Bri, virando-se.
Huin e Aravis fizeram o mesmo.
- Aquilo. Parece fumaça. Será um incêndio?
- Tempestade de areia, acho - replicou Bri.
- O vento não está tão forte assim para levantar
tanta areia - disse Aravis.
- Vejam! - exclamou Huin. - Umas coisas
brilhando. São elmos... e armaduras. E estão
andando... andando para cá.
- Por Tash! - exclamou Aravis. - É o exército. É
Rabadas.
- Sem dúvida - concordou Huin. - É o que eu
temia. Depressa! Temos de chegar a Anvar antes deles
- e, sem outra palavra, pôs-se a galopar. Bri levantou a
cabeça e fez o mesmo.
- Vamos, Bri, vamos! - incentivava Aravis. Foi
uma árdua corrida para os cavalos. A cada crista de
serra sucedia um vale, depois outra crista, depois
outro vale; embora soubessem que seguiam mais ou
menos a direção certa, ninguém tinha idéia da
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
131
distância que os separava de Anvar. Do alto de uma
serra, Shasta olhou novamente para trás: em vez de
uma nuvem de pó, viu um bando escuro movendo-se
na margem do rio. Pareciam formigas procurando
uma passagem.
- Rápido! - gritou Aravis. - Era melhor não ter
vindo, se fosse para não chegar a Anvar antes deles.
Galope, Bri, galope! Afinal, você é um guerreiro!
Shasta ficou calado, pensando: “O coitado já está
dando o máximo!” Bri alcançara Huin e ambos
corriam lado a lado sobre a relva. Parecia impossível
que Huin pudesse resistir por muito mais tempo.
De repente, um barulho atrás deles deixou-os
completamente atônitos. Não era como esperavam, o
barulho de cascos e tinidos de armaduras, mesclados
talvez com gritos de guerra calormanos.
Shasta percebeu logo do que se tratava: era o
mesmo rugido que ouvira na noite do encontro com
Aravis e Huin. Bri também percebeu. Seus olhos
reluziram, vermelhos, e suas orelhas deitaram-se para
trás. Só então descobriu que não ia tão veloz quanto
podia. Shasta imediatamente notou a mudança de
velocidade. Em poucos segundos ultrapassaram Huin.
“Não é justo!”, pensou Shasta, “achei que aqui
estaríamos a salvo de leões.”
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
132
Tornou a olhar para trás. Tudo nítido: uma
criatura imensa e fulva estava atrás deles, com o corpo
roçando no chão, como um gato que se prepara para
saltar a uma árvore quando um cachorro estranho
entra no quintal. E se aproximava cada vez mais.
Ao olhar de novo para a frente, outra surpresa: o
caminho estava impedido por um muro verde de uns
três metros de altura. No centro do muro havia um
portão aberto. Bem no meio da entrada do portão
estava um homem alto, vestido com um manto
alaranjado, apoiando-se numa bengala. A barba quase
lhe batia nos joelhos.
Shasta viu tudo de relance e virou-se novamente
para trás. O leão já roçava com as garras as pernas
traseiras de Huin, que não tinha mais esperança nos
olhos esbugalhados.
- Vamos socorrer Huin - gritou Shasta na orelha
de Bri.
Bri mais tarde garantiu não ter ouvido nada, ou
não ter entendido; como foi, em geral, cavalo de
palavra, devemos acatar o que disse.
Shasta puxou os pés dos estribos, virou as pernas
para o lado esquerdo, hesitou durante um pavoroso
centésimo de segundo e pulou. Doeu horrivelmente
mas, antes de ter consciência disso, já ia cambaleando
para ajudar Aravis. Jamais tinha feito uma coisa
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
133
dessas em toda a vida e mal sabia por que estava
fazendo isso naquele instante.
Um dos mais terríveis ruídos do mundo, um
berro de cavalo, partiu dos beiços de Huin. Aravis
debruçava-se sobre o pescoço dela, tentando puxar a
espada. E já os três - Aravis, Huin e o leão - estavam
quase em cima de Shasta. O leão ergueu-se nas patas
traseiras, imenso, e estendeu as terríveis garras da pata
direita para Aravis, que deu um grito e rodopiou sobre
a sela. O leão atingiu os ombros dela. Transtornado
pelo terror, Shasta conseguiu aproximar-se da fera,
sem um porrete, sem uma pedra na mão. Gritou,
bobamente, como se o leão fosse um cachorro: “Vai
para casa! Já para casa!” Por uma fração de segundo
viu-se cara a cara com o leão, a um palmo da bocarra
escancarada. Aí, para seu absoluto espanto, o leão,
ainda sobre as patas traseiras, refreando-se de súbito,
virou-se e saiu em disparada para trás.
Shasta correu para o portão do muro verde. Huin,
tropeçando e quase caindo, transpunha naquele
instante o portão. Aravis ainda se mantinha na
montaria, com as costas banhadas de sangue.
- Entre, minha filha, entre - dizia o homem de
longas barbas. - Entre, meu filho. - E Shasta entrou
ofegante.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
134
O portão fechou-se e o estranho barbudo já
ajudava Aravis a desmontar.
Estavam num largo pátio circular, cercado por
uma sebe alta. Também via-se ali um tanque cheio de
água absolutamente tranqüila. A árvore mais bonita
que Shasta vira na vida sombreava o tanque e, além
deste, ficava uma casinha de pedra coberta de folhas
de palmeira. Ouviam-se balidos, e a um canto
vagavam umas cabras. O chão era recamado de relva.
- O senhor... o senhor... é o rei Luna de
Arquelândia? - disse Shasta, sem fôlego.
O velho fez que não:
- Sou o eremita. Não perca tempo com perguntas,
meu filho. Obedeça. Esta senhorita está ferida. Seus
cavalos estão extenuados. Neste momento Rabadash
está encontrando um vau no Flecha Sinuosa. Se correr
agora, sem parar para descansar, chegará a tempo de
advertir o rei Luna.
O coração de Shasta quase parou ao ouvir essas
palavras, pois já não lhe restavam reservas de força.
Por dentro rebelava-se contra o que lhe parecia a
crueldade da missão. Ainda não aprendera que a
recompensa de uma boa ação é geralmente ter de fazer
uma outra boa ação, mais difícil e melhor. Mas apenas
perguntou:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
135
- Onde está o rei?
O eremita apontou com o bastão:
- Olhe. Do outro lado do portão por onde você
entrou, há um outro portão. Abra-o e siga em frente,
sempre em frente, por terreno plano ou escarpado,
macio ou duro, seco ou úmido. Eu lhe garanto que
encontrará o rei Luna, sempre à frente. Mas corra,
corra, corra sempre!
Shasta assentiu com a cabeça e desapareceu no
portão, correndo. O eremita ajudou Aravis a entrar na
casa. Depois de bastante tempo regressou ao pátio,
dizendo para os cavalos:
- E a vez de vocês, meus primos.
Tirou as rédeas e as selas de ambos e os escovou
melhor do que o faria o cocheiro de um rei.
- Não pensem mais em problemas, meus primos,
e repousem. Aqui têm água e capim. Depois que eu
ordenhar minhas primas, as cabras, vocês poderão
comer uma papa de farelo.
- Senhor - interveio Huin, só agora recuperando a
voz -, a tarcaína vai se salvar?
- Eu, que sei muitas coisas do presente - replicou
o eremita com um sorriso -, pouco sei das coisas
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
136
futuras. Por isso não sei se qualquer homem ou
mulher ou animal, em todo o mundo, estará ainda vivo
quando anoitecer hoje. Mas incline-se à esperança. A
moça provavelmente viverá.
Ao voltar a si, Aravis viu-se deitada de bruços
numa cama rente ao chão, mas extremamente macia,
em um quarto de paredes de pedra. Sem se lembrar do
que acontecera, tentou mudar de posição, mas sentiu
terríveis dores nas costas. Então lembrou-se de tudo.
O eremita entrou, carregando uma vasilha de
madeira.
- Como está, minha filha?
- Minhas costas doem muito, mas estou bem.
Ajoelhado, ele colocou a mão na testa de Aravis e
tomou-lhe o pulso.
- Não tem febre. Ficará boa. Poderá levantar-se
amanhã. Beba isto.
Levou a vasilha aos lábios da moça, que fez uma
careta, pois o gosto do leite de cabra assusta um pouco
quem o toma pela primeira vez. Mas Aravis bebeu
tudo e sentiu-se melhor.
- Pode dormir quanto quiser, filha. Seus
ferimentos estão bem tratados; ardem mas não são
graves. Deve ser um leão estranho: em vez de arrancá-
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
137
la da sela e meter-lhe os dentes, apenas lanhou as suas
costas. Dez lanhos: dolorosos, mas nada profundos
nem perigosos.
- Tive sorte.
- Minha filha: já vivi cento e nove invernos e
jamais encontrei uma coisa chamada sorte. Há algo de
misterioso no que está acontecendo mas, esteja certa,
se precisamos saber o que é, saberemos.
- E quanto a Rabadash e os seus duzentos
cavalos?
- Acho que não passarão por aqui. Devem ter
encontrado um vau no rio e seguido para leste. De lá
tentarão cavalgar em linha reta para Anvar.
- Coitado de Shasta! Tem de ir muito longe?
Chegará primeiro?
- Há muita esperança. Aravis deitou-se de lado:
- Dormi durante muito tempo? Parece que está
ficando escuro.
O eremita olhou pela única janela que dava para
o norte.
- Esta escuridão não é a da noite. As nuvens
estão vindo do Pico da Tempestade. O mau tempo
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
138
aqui sempre chega de lá. Haverá forte cerração hoje à
noite.
No dia seguinte, tirando a dor nas costas, Aravis
sentia-se tão bem que, depois de comer mingau e
tomar leite, levantou-se da cama, autorizada pelo
eremita. Foi imediatamente conversar com os cavalos.
O tempo mudara, e o pátio, como uma grande taça
verde, transbordava de luz.
Huin deu um trote até Aravis e deu-lhe um beijo
eqüino.
- Onde anda Bri? - falou Aravis, depois das
perguntas recíprocas de “como está se sentindo?”,
“dormiu bem?”.
- Está ali - respondeu Huin, apontando com o
focinho para um canto do pátio. - Gostaria que você
conversasse com ele. Não consegui arrancar-lhe uma
palavra.
Foram encontrar Bri virado para a sebe; apesar
de ter ouvido o ruído dos passos, não se voltou para
recebê-las.
- Bom dia, Bri - cumprimentou Aravis. - Como
está passando?
Bri resmungou qualquer coisa que ninguém
entendeu. Aravis continuou:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
139
- O eremita diz que provavelmente Shasta
chegará a tempo; acho que assim acabam os nossos
problemas. É Nárnia, enfim, Bri!
- Nunca mais verei Nárnia! - disse Bri, baixinho.
- Não está se sentindo bem, meu caro? -
perguntou a moça.
Só então Bri virou-se para ela, com uma cara de
tristeza que só os cavalos têm.
- Vou voltar para a Calormânia - disse.
- O quê!? Vai voltar para a escravidão?!
- Vou. Só sirvo para ser escravo. Com que cara
vou chegar a Nárnia? Deixei uma égua, uma moça e
um rapazinho entregues aos leões e saí em disparada
para salvar a minha mísera carcaça!
- Todos nós saímos em disparada - disse Huin.
- Shasta, não! - fungou Bri. - Pelo menos correu
na direção certa: para trás. E é isto de que ainda mais
me envergonho. Eu, que me proclamo um cavalo de
guerra e me vanglorio de mais de cem batalhas, ser
batido por um rapazinho humano: uma criança, um
mero potrinho que jamais empunhou uma espada, e
que jamais teve bons exemplos em sua vida!
- Entendo - disse Aravis. - Estou sentindo a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
140
mesma coisa. Shasta foi maravilhoso. Também eu sou
ruim, Bri. Desde que nos encontramos, trato Shasta
com superioridade... E é ele, afinal, que está acima de
todos nós. Mas creio que é melhor ficar e pedir-lhe
desculpas do que voltar para a Calormânia.
- No seu caso, estou de acordo - respondeu Bri. -
Você não está desgraçada, mas eu perdi tudo.
- Meu bom cavalo - disse o eremita, que se
aproximara sem ser notado, pois seus pés descalços
nem chegavam a fazer barulho sobre o relvado. - Meu
bom cavalo, você não perdeu nada, a não ser a sua
auto-estima. Que é isso, meu primo? Não afaste de
mim as orelhas. Se você de fato é tão humilde como
falava há um minuto, tem de saber ouvir. Você não é
propriamente o grande cavalo que pensava ser, por
estar vivendo entre infelizes cavalos mudos. E claro
que era mais valente e mais inteligente do que os
outros. Mas você não podia ser de outra forma. Isso
não significa que será alguém especial em Nárnia.
Mas, enquanto souber que não é ninguém em especial,
será um cavalo muito honrado. E agora, se você e
minha prima quadrúpede me acompanharem até a
porta da cozinha, iremos providenciar-lhes mais um
pouco de mingau de farelo.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
141
11
UM VIAJOR SEM AS BOAS
VINDAS
Quando Shasta transpôs o portão, viu à sua frente
um declive coberto de grama e de pequenas urzes, que
ia dar numas árvores. Naquele momento não
conseguia pensar em nada, não dava para fazer
planos: o importante era correr. Às vezes tropeçava e
por pouco não torceu o tornozelo nas pedras soltas. As
matas tornavam-se mais fechadas e o sol se fora, mas
nem por isso o calor diminuíra. Era um desses dias em
que os mosquitos parecem multiplicar-se. Cobriam a
cara de Shasta, que nem se dava ao trabalho de
espantá-los.
Tataratatá!
O menino ouviu de repente um som alegre de
trompas. Daí a pouco já se achava numa grande
clareira, no meio de uma multidão. Para ele, pelo
menos, pareceu uma multidão. Eram só quinze ou
vinte cavalheiros em trajes de caça, com suas
montarias. No centro, alguém segurava o estribo para
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
142
que outro montasse. E este outro era um rei, o rei mais
jovial, mais gordinho, mais cara-de-maçã, mais piscapisca
que se pode imaginar.
O rei desistiu logo de montar quando Shasta
apareceu. Estendeu os braços para o menino e o seu
rosto se iluminou, ao gritar, com uma profunda voz de
baixo:
- Corin! Meu filho! Descalço... e em farrapos! O
que...
- Príncipe Corin, não - disse Shasta ofegante. -
Pareço... sei... com ele... encontrei Sua Alteza em
Tashbaan... manda lembranças...
O rei contemplava Shasta com uma expressão de
extraordinário espanto.
- É o rei Luna? - Não esperou resposta: - Senhor
rei... vá voando para Anvar... feche as portas da
cidade... inimigos... Rabadash com duzentos cavalos.
- Tem certeza disso, rapaz? - perguntou um outro
cavalheiro.
- Vi com os meus próprios olhos. Vim correndo
na frente desde Tashbaan.
- A pé? - perguntou o cavalheiro, enrugando um
pouco a testa.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
143
- Cavalos... com o eremita - respondeu Shasta.
- Chega de perguntas, Darin - disse o rei Luna. -
Vejo pela carinha dele que está falando a verdade.
Vamos montar. Arranjem um cavalo para o rapaz.
Sabe galopar, meu amigo?
Em resposta, Shasta meteu o pé no estribo, logo
que lhe trouxeram o cavalo, e pulou para a sela. Fizera
isso com Bri umas cem vezes nas últimas semanas. Já
não parecia um saco de feno.
Ficou contente ao ouvir o lorde Darin falar para
o rei:
- O rapaz tem a postura de um verdadeiro
cavaleiro, Majestade. Garanto que tem sangue nobre.
- O sangue dele, aí é que está a questão -
respondeu o rei, fixando os olhos em Shasta, com
aquela curiosa e ansiosa expressão.
- Movimentaram-se todos. Se a postura de
Shasta era correta, o freio o atrapalhava, pois jamais
usara aquilo quando no dorso de Bri. Com o rabo do
olho viu o que os outros faziam (como a gente faz
num banquete, quando não sabe qual faca ou garfo
deve usar). Mas nem mesmo ousava dirigir o cavalo;
sabia que este seguiria os outros. Embora não fosse
um cavalo falante, o animal tinha bastante inteligência
para perceber que o garoto não usava chicote nem
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
144
esporas e que não era de todo senhor da situação.
Shasta acabou fechando a fila.
Respirando bem, sem mosquitos, missão
cumprida, pela primeira vez (desde a chegada a Tashbaan,
há tanto tempo!) começava a divertir-se.
Estranhou por não ver no alto os picos das
montanhas, pois nunca estivera numa região
montanhosa. “São nuvens, já sei. Aqui nas montanhas
estamos no céu. Quero saber como é dentro de uma
nuvem. Que gozado!” O sol estava quase sumindo à
esquerda.
Seguiam por uma estrada áspera, em boa
velocidade. A certa altura, entraram no nevoeiro, ou o
nevoeiro veio para cima deles. Ficou tudo cinzento. O
cinzento foi virando pardo com alarmante rapidez.
À frente da coluna, de quando em quando, soava
a trompa, e a cada vez o som parecia vir de mais
longe. Shasta por um instante não viu os outros,
esperando que, ao fazer a curva, os descobrisse. Pois
fez a curva e não viu nada. O cavalo ia a passo.
“Vamos, cavalinho, vamos!” Ouviu então a trompa,
muito fraca. Tinha a impressão de que alguma coisa
horrorosa aconteceria se cutucasse um cavalo com os
calcanhares. Mas parecia o momento de tentar.
- Escute uma coisa, cavalinho: se você não
correr, meto meus calcanhares na sua barriga!
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
145
O cavalo não tomou conhecimento da ameaça.
Shasta firmou-se na sela, agarrou-se com os joelhos,
cerrou os dentes e tacou os calcanhares no cavalo com
toda a força.
Resultado: o cavalo troteou, ou coisa parecida,
cinco ou seis passos, e voltou à boa vida. Já estava
escuro. “Teriam esquecido de tocar a trompa?,
 pensou. “Bem, de qualquer forma, mesmo a passo
devemos chegar a algum lugar. Só espero que nesse
lugar não esteja Rabadash com a sua gente.”
Começou a sentir raiva daquele cavalo; e
também começou a sentir fome. Estava chegando a
um ponto em que a estrada fazia uma bifurcação. Qual
seria o caminho de Anvar? Foi quando ouviu um
barulho pelas costas, um ruído de cavalos a trote. “É
Rabadash!”, pensou. “Que estrada devo pegar? Se eu
tomar uma, ele pode pegar a outra; mas, se fico aqui
na encruzilhada, eu é que vou ser pego.” Apeou e
conduziu o cavalo pelo caminho da direita.
Aproximava-se o som da cavalhada. Já deviam
estar na encruzilhada. Com a respiração presa, ficou
aguardando. Que caminho tomariam?
Ouviu um brado: “Alto!” Depois, ruídos
cavalares, ventas assoprando, cascos golpeando,
tapinhas em pescoços. E uma voz falou:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
146
- Atenção! Já estamos perto do castelo.
Lembrem-se das instruções. Devemos chegar a Nárnia
ao nascer do sol; matem o menos possível. Nesta
incursão, um litro de sangue narniano é mais precioso
que três litros do seu próprio sangue. Nesta incursão,
eu disse! Os deuses hão de propiciar-nos uma hora
mais feliz, aí vocês não deixarão nada vivo entre Cair
Paravel e o Deserto do Oeste. Mas ainda não
chegamos a Nárnia. É diferente aqui em Arquelândia.
Só a rapidez importa no assalto ao castelo do rei Luna.
Será meu, dentro de uma hora. Mostrem o seu valor.
O castelo será de vocês. Nada quero da pilhagem.
Executem todos os machos bárbaros dentro das
muralhas, até mesmo os recém-nascidos, e o resto será
de vocês: mulheres, ouro, jóias, armas e vinho. O
homem que hesitar ao cruzar as portas do castelo será
queimado vivo. Em nome de Tash, o irresistível, o
inexorável -em frente!
Com grande estrépito, a coluna adiantou-se e
Shasta pôde respirar: tinham tomado o outro caminho.
Levaram um tempo enorme para passar, pelo menos
era o que parecia, e só então Shasta realmente
compreendeu o que significavam “duzentos cavalos”.
Quando o estrépito desapareceu, só ficou o doce
barulho das ramagens.
Sabia o caminho para Anvar, mas não podia ir
para lá. Seria correr para os braços armados dos
homens de Rabadash. “Que diabo de coisa posso
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
147
fazer?” Não tendo resposta para si mesmo, montou de
novo e seguiu pela estrada que havia escolhido, na
vaga esperança de encontrar uma cabana na qual
pudesse pedir abrigo e comida. Lembrou-se, é claro,
de retornar à casa do eremita, mas já não tinha a
menor idéia da direção. A estrada deveria ir para
algum lugar.
Sim, mas isso depende do que chamamos de
algum lugar. A estrada no caso seguia entre as matas
mais espessas, sempre mais frias. Ventos gelados
continuavam a impelir blocos de névoa sobre Shasta
sem parar. Não estando acostumado aos lugares
montanhosos, ignorava que estava a uma grande
altitude, talvez já no alto da picada.
“Devo ser o cara mais desgraçado de todo o
mundo”, pensou. “Tudo dá certo com os outros,
comigo nunca. Os nobres e as damas de Nárnia
conseguiram fugir de Tashbaan; eu fiquei lá. Aravis,
Bri e Huin estão no bem-bom com o velho eremita;
fui o único a ter de sair. O rei Luna e sua gente estão a
salvo no castelo, com os portões bem fechados, mas
eu fiquei de fora.”
Teve tanta pena de si mesmo que as lágrimas
começaram a deslizar por seu rosto.
Um susto interrompeu os seus tristes
pensamentos. Alguém ou alguma coisa caminhava a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
148
seu lado. Nas trevas não podia ver nada. E a coisa (ou
pessoa) ia tão silenciosamente que ele mal podia ouvir
suas pisadas. Ouvia, sim, uma respiração: o invisível
companheiro de fato respirava com vontade; devia ser
uma criatura enorme. Foi um grande choque.
Relampejou na sua cabeça uma lembrança:
ouvira dizer que existiam gigantes nos países do
Norte. Mordeu os lábios, apavorado. Mas, agora que
tinha um motivo real para chorar, parou de chorar.
A coisa (se é que não era uma pessoa) ia tão
silenciosa que talvez fosse mera imaginação. Já estava
certo disso, quando ouviu ao seu lado um suspiro
grande e profundo. Não era imaginação! O fato é que
sentiu o hálito quente desse longo suspiro na mão
direita.
Se o cavalo fosse mesmo bom - ou se ele
soubesse como fazer o cavalo tornar-se bom - teria
arriscado tudo numa corrida desabalada. Como isso
não era possível, seguiu a passo, com o companheiro
invisível caminhando e respirando a seu lado. Acabou
não agüentando mais:
- Quem é você? - murmurou baixinho.
- Alguém que esperava por sua voz - respondeu a
coisa. O tom não era alto, mas amplo e profundo.
- Você é... um gigante?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
149
- Pode me chamar de gigante - disse a grande
voz. - Mas não me pareço com as criaturas que você
chama de gigantes.
- Não consigo vê-lo - falou Shasta, depois de
muito tentar. Uma coisa terrível lhe passou pela
cabeça. Com a voz quase trêmula de choro,
perguntou:
- Você não é... não é uma coisa morta... é? Vá
embora, por favor. Nunca lhe fiz mal. Ó, sou o sujeito
mais desgraçado do mundo!
Sentiu novamente o hálito quente da coisa no
rosto e na mão.
- Morto não respira assim. Pode me contar as
suas tristezas, rapaz.
O hálito deu a Shasta um pouco mais de
confiança. Contou então que jamais conhecera pai e
mãe, que fora criado por um pescador muito severo.
Contou sobre como fugira, sobre os leões que os
perseguiram, os perigos em Tashbaan, a noite entre os
túmulos, as feras que uivavam no deserto, o calor e a
sede durante a caminhada, e o outro leão que surgiu
quando estavam quase chegando, Aravis ferida...
Contou, por fim, que estava com fome, pois não
comia nada havia muito tempo.
- Não acho que seja um desgraçado - disse a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
150
grande voz.
- Mas não foi falta de sorte ter encontrado tantos
leões?
- Só há um leão - respondeu a voz.
- Não estou entendendo nada. Havia pelo menos
dois naquela noite...
- Só há um leão, mas tem o pé ligeiro.
- Como sabe disso?
- Eu sou o leão.
Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz
continuou:
- Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com
Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos
mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para
que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os
cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o
rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a
canoa em que você dormia, uma criança quase morta,
para que um homem, acordado à meia-noite, o
acolhesse.
- Então foi você que machucou Aravis?
- Fui eu.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
151
- Mas por quê?!
- Filho! Estou contando a sua história, não a
dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.
- Quem é você?
- Eu mesmo - respondeu a voz, com uma
entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de
novo: - Eu mesmo - com um murmúrio tão suave que
mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse
murmúrio agitava toda a folhagem à volta.
Shasta já não temia que a voz pertencesse a
alguma coisa que o devorasse; nem temia que fosse a
voz de um fantasma. Uma coisa nova aconteceu, um
tremor que lhe deu certa alegria.
A névoa passou do pardo para cinza e do cinza
para branco. Devia ter começado pouco antes,
enquanto ele estava absorvido conversando com a
coisa.
A brancura ao redor já começava a fulgir.
Passarinhos cantavam em algum lugar. A noite estava
por um fio. Já enxergava bastante bem n a crina e as
orelhas do cavalo. Uma luz dourada surgiu à
esquerda, e Shasta pensou que fosse o sol.
Caminhando a seu lado, maior do que o cavalo,
estava um Leão. O cavalo não parecia ter medo, ou
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
152
talvez não o visse. Era dele que vinha a luz dourada.
Ninguém jamais viu algo tão belo e terrível.
Felizmente o menino vivera toda a sua vida no
Sul, e não havia escutado os casos, cochichados em
Tashbaan, sobre um tétrico demônio de Nárnia que
costumava aparecer na forma de leão. E,
naturalmente, também tudo ignorava sobre as
verdadeiras histórias de Aslam, o Grande Leão, o
filho do Imperador-dos-Mares, o Rei dos Grandes
Reis de Nárnia. Mas, depois de espiar mais uma vez o
Leão, pulou do cavalo. Não conseguia dizer nada, mas
também não queria dizer nada, e sabia que nada
precisava dizer.
O Grande Rei encaminhou-se para ele. A juba e
um perfume estranho e solene, que nela pairava,
cercaram o menino. O Leão tocou a fronte de Shasta
com a língua. Os olhos de ambos encontraram-se.
Depois, instantaneamente, a brancura da névoa
misturou-se com o brilho ardente do Leão, num
redemoinho de glória, e os dois sumiram. Shasta se
viu só, com o cavalo, na relva de uma colina, sob um
céu azul. Todas as aves do mundo cantavam.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
153
12
SHASTA EM NÁRNIA
“Foi tudo um sonho?”, indagava Shasta para si
mesmo. Mas não podia ter sido um sonho, pois via na
relva a grande e penetrante marca da pata direita do
Leão. Que peso devia ter! O mais espantoso, porém,
veio depois: a depressão começou a encher-se de água
e transbordou, formando uma correnteza que começou
a descer pela relva.
Shasta matou a sede com um bom gole, molhou
o rosto e a cabeça. Era uma água fria e clara como o
cristal. Sacudindo a cabeça molhada, começou a
observar o que se passava em redor.
Parecia ser ainda muito cedo. A paisagem era
completamente nova a seus olhos, um vale verde,
respingado de árvores, através das quais pôde ver o
reflexo de um rio que seguia para o noroeste. Serras
rochosas alteavam-se na distância. Virando-se, viu
que a elevação na qual se encontrava pertencia a um
bloco montanhoso bem mais alto.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
154
- Estou entendendo: aquelas são as montanhas
entre Arquelândia e Nárnia. Eu estava do lado de lá,
ontem. Devo ter passado pelo desfiladeiro durante a
noite. Que sorte! Sorte coisa nenhuma, foi Ele. E
agora estou em Nárnia.
Tirou a sela e o freio do cavalo, dizendo: “Eta
cavalinho ruim!” Sem tomar conhecimento, o animal
começou a pastar; ele também não tinha uma boa
opinião sobre Shasta.
- Ah, se eu gostasse de grama! Bem, não adianta
nada voltar a Anvar, toda sitiada. É melhor procurar
alguma coisa para comer lá embaixo no vale.
Sentindo o orvalho gelado nos pés descalços,
chegou a uma mata. Passou a seguir uma espécie de
trilha sob as árvores e logo depois ouviu uma vozinha:
- Bom dia, vizinho.
Tentou localizar quem falara e acabou
descobrindo uma criatura toda espinhenta que acabava
de enfiar a carinha escura entre as árvores. Era um
porco-espinho. Shasta respondeu:
- Bom dia, mas não sou vizinho. Sou um
forasteiro por estas bandas.
- Hum? - fez o porco-espinho, inquisidor.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
155
- Vim pelas montanhas... lá de Arquelândia,
sabe?
- Uma boa caminhada! Nunca fui lá.
- E acho que alguém deve saber que um exército
de ferozes calormanos está atacando Anvar neste
instante.
- Não diga! Que coisa! E contam que os
calormanos habitam a centenas ou milhares de
quilômetros daqui, lá no fim do mundo, depois de um
marzão de areia!
- Não é tão longe quanto você pensa. Alguma
coisa precisa ser feita. O seu Grande Rei precisa
saber...
- É claro, é preciso fazer alguma coisa. Acontece
que estou indo para a cama tirar uma soneca. Alô,
vizinho.
As últimas palavras foram endereçadas a um
coelho cor-de-sorvete-de-nata, cuja cabeça acabara de
apontar ao lado do caminho. Pelo porco-espinho, o
coelho ficou a par da situação. Concordou também
que eram notícias graves e que alguém tinha de
procurar alguém para que alguma coisa fosse feita.
E assim foi. A cada instante novas criaturas
surgiam, algumas dos galhos das árvores, outras de
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
156
debaixo da terra, até que a reunião ficou integrada por
cinco coelhos, um esquilo, duas gralhas, um fauno e
um camundongo. Todos falavam ao mesmo tempo e
todos estavam de acordo com o porco-espinho.
A verdade era esta: naquela era de ouro e paz,
quando a feiticeira e o inverno não reinavam mais, e o
Grande Rei Pedro governava em Cair Paravel, os
serezinhos dos bosques de Nárnia se sentiam tão
felizes e seguros que acabaram se tornando
descuidados.
Mas naquele momento duas pessoas mais
práticas chegaram à mata. Uma era um anão vermelho
cujo nome parecia ser Dufles. A outra era um cervo,
uma bela e senhorial criatura de olhos límpidos, com
flancos e pernas tão esguios que pareciam poder
quebrar-se à força de dois dedos.
- Salve o Leão! - exclamou Dufles, ao inteirar-se
das notícias. - O que estamos fazendo aqui parados,
batendo boca? Inimigos em Anvar! A notícia tem de
ser enviada imediatamente a Cair Paravel. O exército
deve ser convocado. Nárnia deve levantar-se para
socorrer o rei Luna.
- Ah! - exclamou o porco-espinho. - Mas você
não vai achar o Grande Rei em Cair. Foi para o Norte,
dar uma tunda naqueles gigantes. Aliás, por falar em
gigantes...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
157
- Quem levará a nossa mensagem? - interrompeu
o anão. - Existe alguém aqui mais veloz do que eu?
- Eu sou veloz - respondeu o cervo. - Qual é a
mensagem? Quantos calormanos?
- Duzentos, chefiados por Rabadash. Além
disso...
Mas o cervo já estava longe, batendo de uma só
vez no chão com as quatro patas.
- Não sei para onde ele vai - disse o coelho -,
pois não encontrará o rei em Cair Paravel.
- Encontrará a rainha Lúcia - disse Dufles. - E...
o que está havendo com o humano? Está verdinho.
Está desmaiando e deve ser de fome. Quando você
comeu pela última vez, jovem?
- Ontem de manhã - respondeu Shasta,
fracamente.
- Venha comigo - falou o anão, passando o seu
bracinho pela cintura de Shasta a fim de ampará-lo. -
Vizinhos, que vergonha!
Murmurando acusações a si mesmo, o anão
conduziu Shasta para dentro da mata. As pernas do
menino tremiam quando chegaram a uma casinha com
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
158
chaminé e fumaça. Entraram pela porta aberta e
Dufles gritou:
- Alô, irmãos, temos uma visita para o café. Um
cheiro simplesmente delicioso chegou até
Shasta. Era a primeira vez que sentia o aroma de
ovos com lombo defumado e cogumelos a estalar na
frigideira.
- Cuidado com a cabeça - disse Dufles. Mas já
era tarde, pois Shasta acabava de meter a testa na
verga da porta. - Sente-se agora, rapaz. A mesa é um
pouco baixa para você, mas o banquinho também é
baixo. Perfeito. E aqui está o mingau... e aqui uma
jarra de creme de leite... e aqui uma colher.
Shasta já havia terminado o mingau quando os
dois irmãos do anão - Rogin e Deduro - serviram o
prato de lombo com ovos e cogumelos. E mais ainda:
café, leite e torradas.
Era um paladar novo e delicioso para Shasta. Era
a primeira vez que via torradas. Também pela
primeira vez via aquela coisa macia e amarela que
passavam na torrada, pois os calormanos usam, quase
sempre, óleo em vez de manteiga. E a própria casa era
muito diferente da choupana escura e cheirando a
peixe de Arriche, como também era diferente dos
salões atapetados dos palácios de Tashbaan. O teto era
baixinho e tudo era feito de madeira. Havia um
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
159
relógio-cuco, uma toalha de mesa com quadradinhos
vermelhos e brancos, uma jarra de flores silvestres e
cortinas alvas nas janelas. O que atrapalhava um
pouco era ter de usar os talheres e as xícaras dos
anões. Mas o seu pratinho estava sempre cheio, e a
todo instante os anões diziam “manteiga, por favor”,
ou “uma outra xícara de café”, ou “um pouco mais de
cogumelo”, ou “que tal se a gente fritasse mais uns
ovinhos”...
Depois de comerem até não poder mais, os anões
tiraram a sorte para saber quem lavaria os pratos.
Rogin deu azar.
Dufles e Deduro levaram Shasta para um banco
rente à parede externa; espicharam todos as pernas,
com grandes suspiros de satisfação; os anões
acenderam seus cachimbos. O sol estava quente e o
orvalho desaparecera da relva: chegaria a ser quente
demais se não soprasse uma leve viração.
- Agora, forasteiro - disse Dufles -, vou mostrarlhe
a terra. Daqui se pode ver praticamente todo o sul
de Nárnia, e temos certo orgulho da nossa paisagem.
Ali à esquerda, depois daquelas serras, você pode
apreciar as montanhas do Oeste. Aquela colina
arredondada à direita é a Colina da Mesa de Pedra.
Logo ali...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
160
E aí foi interrompido por um ronco de Shasta,
morto de sono pela viagem noturna e pela excelente
refeição. Os anões fizeram sinais um para o outro para
não despertá-lo. E cochicharam tanto, e tantos gestos
fizeram enquanto se retiravam, que Shasta teria
despertado, se não estivesse exausto.
O menino dormiu o dia inteiro e só acordou para
cear. As camas eram pequenas demais para ele, mas
os anões arranjaram-lhe uma cama de urze no chão.
Shasta nem sequer se virou no leito, nem tampouco
sonhou durante toda a noite. Na manhã seguinte,
haviam acabado de tomar café quando ouviram um
barulho empolgante:
- Trompas! - disseram os anões. Saíram todos
correndo para fora.
As trompas soaram de novo: não tão solenes
como as de Tashbaan, não tão alegres quanto as do rei
Luna - claras, agudas, empolgantes. O ruído, vindo
das matas do oriente, logo se misturou ao barulho de
cascos de cavalos. Logo depois surgiu à frente deles
um batalhão.
Vinha em primeiro lugar o Senhor de Peridan,
montando um cavalo baio, empunhando o grande
pavilhão de Nárnia: um leão vermelho em campo
verde. Shasta o reconheceu imediatamente. Depois,
três cavaleiros, dois em cavalos de batalha e um sobre
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
161
um pônei. Os dois primeiros eram o rei Edmundo e
uma dama de cabelos louros, com um rosto muito
jovial, usando elmo e malha de ferro, levando além
disso um arco cruzado nos ombros e um carcás cheio
de flechas. (“A rainha Lúcia”, murmurou Dufles.) O
do pônei era Corin. Seguia-se o principal corpo do
exército; homens em cavalos comuns, homens em
cavalos falantes (que não se incomodavam de ser
montados em ocasiões especiais), centauros, ursos,
grandes cães falantes e, por fim, seis gigantes. Pois há
gigantes bons em Nárnia. Apesar disso, Shasta mal
teve coragem de olhar para eles; leva muito tempo
para a gente se acostumar com certas coisas.
Assim que o rei e a rainha chegaram à cabana, os
anões começaram a fazer profundas reverências, e
Edmundo tomou a palavra:
- Alto! Aqui, amigos, vamos ter um pequeno
descanso.
Foi uma algazarra: gente descendo dos cavalos,
conversas, mochilas sendo abertas... Corin veio
correndo e agarrou Shasta pelas mãos.
- Não é possível! Você por aqui! Que alegria!
Mas a coisa está feia. Mal tínhamos chegado a Cair
Paravel, ontem pela manhã, quando encontramos o
cervo com as novas de um ataque a Anvar. Você não
imagina...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
162
- Quem é o amigo? - perguntou o rei Edmundo
ao apear.
- Não está vendo, senhor? É o meu sósia: o rapaz
que foi confundido comigo em Tashbaan.
- Olhe só! - exclamou a rainha Lúcia. - Parecem
gêmeos. Que coisa mais fantástica!
- Majestade, por favor - disse Shasta para o rei
Edmundo. - Não fui um traidor, não mesmo. Tive que
ouvir os planos. Mas jamais passou pela minha cabeça
contar para os inimigos o que ouvi...
- Estou vendo agora que você não é um traidor,
rapaz - disse o rei Edmundo, colocando a mão sobre a
cabeça de Shasta. - Mas, se não quiser passar por
traidor, da próxima vez não ouça o que não é para os
seus ouvidos. Mas está tudo bem.
Eram tantas ordens e indas e vindas que, por uns
minutos, Shasta perdeu Corin de vista. Depois ouviu o
rei Edmundo dizer bem alto:
- Pela juba do Leão, príncipe, já é demais! Será
que Vossa Alteza jamais tomará jeito? Você dá mais
trabalho do que todo um exército!
Shasta embarafustou-se pela multidão e viu que
o rei Edmundo parecia de fato muito zangado. Corin,
por sua vez, mostrava-se um pouco envergonhado; e
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
163
havia um estranho anão sentado no chão, fazendo
caretas, enquanto dois faunos o ajudavam a livrar-se
da armadura.
- Se tivesse trazido meu tônico - disse a rainha
Lúcia -, daria um jeito nisso. Mas o Grande Rei não
quer que eu o leve às guerras comuns; devo guardá-lo
para os casos de extrema necessidade.
Acontecera o seguinte: depois de falar com
Shasta, Corin fora puxado pelo cotovelo por um anãosoldado
que se chamava Espinhei.
- Que há, Espinhei? - Corin perguntou. O anão
respondeu:
- Alteza, nossa marcha de hoje nos levará ao
desfiladeiro à direita do castelo de seu pai. Podemos
estar lutando antes do anoitecer.
- Sei disso - respondeu Corin. - Sensacional!
- Sensacional ou não - retornou Espinhei -, tenho
ordens estritas do rei Edmundo para impedi-lo de
entrar na luta. Mas você poderá assistir à batalha, e
isso já é o suficiente para a sua idade.
- Que besteirada! - explodiu Corin. - É claro que
vou entrar na luta. Até a rainha Lúcia vai formar com
os arqueiros.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
164
- A rainha pode fazer como ela quiser -
respondeu Espinhei. - Vossa Alteza é que está sob a
minha guarda. E tem de jurar solenemente que ficará
ao meu lado, até que lhe dê autorização para partir.
Do contrário - é a palavra de Sua Majestade - teremos
de seguir com os punhos amarrados como dois
prisioneiros.
- Eu lhe sento a mão na cara se tentar me amarrar
- disse Corin.
- Gostaria de ver Vossa Alteza fazer isso.
Era o suficiente para um rapazinho como Corin.
Em um segundo ele e Espinhei estavam embolados no
chão. Teria sido uma boa luta: Corin era mais alto e
de mais envergadura, mas Espinhei era mais velho e
mais forte. Mas não houve luta: por pura falta de
sorte, Espinhei pisou numa pedra solta e tacou o nariz
no chão. Quando tentou levantar-se, viu que havia
torcido o tornozelo, uma torção que o impediria de
andar ou cavalgar durante umas duas semanas.
- Veja o que fez - disse o rei Edmundo. - Privounos
de um guerreiro experimentado na hora da luta!
- Eu tomo o lugar dele, Majestade - disse Corin.
- Escute! - falou Edmundo. - Ninguém duvida da
sua coragem. Mas um rapazinho numa batalha só é
um perigo para o seu próprio lado.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
165
O rei foi chamado para decidir outra coisa, e
Corin, após desculpar-se cavalheirescamente com o
anão, correu até Shasta e murmurou:
- Depressa! Há um cavalo sobrando e a armadura
do anão. Meta-se nela antes que alguém veja.
- Para quê?
- Ora bolas! Para que possamos entrar na
batalha! Não vai querer?
- Oh, ah... é... claro... quero - Shasta não contava
com essa e começou a sentir um calafrio na espinha.
- Ótimo - disse Corin. - Levante a cabeça. Agora,
o cinto da espada. Devemos ir no fim da fila e mais
quietos do que camundongo. Depois que a batalha
começar, não terão tempo de se lembrar de nós.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
166
13
A BATALHA EM ANVAR
Lá pelas onze horas todo o exército estava em pé
de guerra, marchando para oeste, com as montanhas à
esquerda. Corin e Shasta iam na retaguarda, logo
depois dos gigantes. Lúcia, Edmundo e Peridan
estavam entretidos com os planos da batalha. Assim,
quando Lúcia perguntou: “Mas onde está aquele
principezinho levado da breca?”, Edmundo
simplesmente respondeu: “Na vanguarda é que não
está, e isso já é uma boa notícia. Deixe pra lá”.
Shasta contou a Corin suas aventuras, explicando
que aprendera a montar com um cavalo e que não
sabia usar o freio. Corin deu-lhe instruções, relatando
ainda tudo sobre a viagem por mar, quando fugiram
de Tashbaan.
- Por onde anda a rainha Susana?
- Em Cair Paravel. Ela não é como Lúcia, que
briga feito um homem, ou pelo menos como um
rapazinho. A rainha Susana parece mais uma dama.
Não freqüenta guerras, apesar de ser muito boa no
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
167
arco e flecha.
Com o caminho ficando mais estreito e
escarpado, passaram a desfilar em fila indiana ao
longo da borda do precipício. Shasta estremeceu ao
pensar que passara pelo mesmo lugar na noite
anterior, e viu que não correra perigo porque o Leão
permanecera a seu lado.
Duas águias giravam lá em cima no azul.
- Sentem o cheiro da batalha - disse Corin. -
Sabem que estamos preparando comida para elas.
Shasta não gostou.
Ao atingirem o fim do desfiladeiro, o panorama
abriu-se um pouco mais e Shasta pôde descortinar
toda a Arquelândia, nevoenta e azul.
O exército fez alto e abriu-se em linha,
executando novos arranjos de formação. Só então
Shasta se deu conta do impressionante destacamento
de feras falantes (leopardos, panteras, etc.) que foram
postar-se à esquerda. Os gigantes foram enviados para
a direita mas, antes de assumirem suas posições,
sentaram-se para calçar as enormes botas com
ponteiras que vinham carregando nas costas e que lhes
chegavam aos joelhos. Puseram então seus pesados
cajados nos ombros e formaram para o combate. Os
arqueiros, com a rainha Lúcia, caíram para a esquerda,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
168
e Shasta os viu -tiiim... tiiim... - experimentar as
cordas dos arcos. Por toda a parte era a mesma coisa:
gente colocando elmos, puxando espadas, cingindo
cintos, quase sem dizer palavra. Era tudo muito solene
e dava medo.
“Agora não tenho saída” - pensou Shasta -,
“agora estou aqui.”
De longe chegava o som de gritos e um surdo
tontom.
- Golpes de aríete - murmurou Corin. - Estão
forçando as portas. - E acrescentou, com uma
expressão agora muito séria: - Por que o rei Edmundo
não parte para cima deles? Não agüento essa demora.
É de morte!
Shasta concordou com a cabeça, esperando não
aparentar todo o medo que sentia.
Por fim, a trompa! O pavilhão desfraldou-se no
vento, com o trote dos cavalos. Todo o cenário abriuse
de repente: um pequeno castelo de muitos torreões,
com o portão à frente deles. Não tinha fosso,
infelizmente. Sobre as muralhas viam-se os
defensores. Embaixo, cerca de cinqüenta calormanos,
desmontados, forçavam os portões com um vasto
tronco de árvore. Mas bem depressa a cena mudou. O
grosso dos homens de Rabadash estava a pé, pronto
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
169
para invadir os portões. E tinham acabado de perceber
os narnianos que desciam da serra.
Sem dúvida alguma, os calormanos eram muito
bem exercitados. Em um segundo, toda uma linha do
inimigo estava novamente a cavalo, rodopiando para
enfrentá-los, saltando de encontro a eles.
E um galope agora. O espaço entre os dois
exércitos diminuía de momento a momento. Rápido,
mais rápido. Espadas nuas, escudos à altura do nariz,
orações feitas, dentes cerrados.
Shasta estava morrendo de medo. Mas de repente
pensou que ter medo naquele momento era sentir
medo em todas as outras lutas de sua vida. “Agora ou
nunca!”
Quando as duas formações se encontraram ele
teve uma idéia muito pálida do que estava
acontecendo. Foi uma confusão assustadora, um
estrépito de enlouquecer. A espada não demorou a ser
derrubada de suas mãos. Embaraçaram-se suas rédeas,
e viu-se escorregando do cavalo. Aí uma lança veio na
sua direção e, enquanto ele se agachava para evitá-la...
Mas de nada vale descrever o combate do ponto
de vista de Shasta, que pouco entendia da luta em
geral e mesmo da sua pequena guerra particular. Para
contar o que realmente acontecia, levarei você para
bem longe dali, para onde o eremita se postava a olhar
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
170
para a água do tanque, sob a árvore frondosa, com Bri,
Huin e Aravis a seu lado.
Pois era para dentro desse tanque que o eremita
olhava quando queria saber o que se passava no
mundo, além dos muros verdes do eremitério. Como
num espelho, conseguia ver no tanque cidades mais
longínquas que Tashbaan, navios que deixavam os
portos e até assaltantes e feras que perambulavam
pelas grandes florestas entre o Ermo do Lampião e
Teimar. Naquele dia pouco deixou o tanque, nem
mesmo para comer ou matar a sede, pois sabia que
grandes eventos estavam acontecendo em
Arquelândia. Aravis e os cavalos também olhavam
para o interior do poço. Em vez do céu e dos ramos
refletidos, viam confusas formas coloridas que se
moviam. Mas não viam com nitidez. Era o eremita
que lhes dizia de vez em quando o que ia vendo
claramente. Um pouco antes de Shasta ter seguido
para a sua primeira batalha, ele começou a falar
assim:
- Estou vendo uma... duas... três águias girando
acima do Pico da Tempestade. Uma é a mais velha de
todas as águias. Não estaria lá se uma batalha não
estivesse para explodir. Ah... Agora vejo o motivo
pelo qual Rabadash e seus homens andaram tão
ocupados o dia todo. Derrubaram uma grande árvore e
fizeram do tronco um aríete. Aprenderam alguma
coisa com o fracasso do assalto da noite passada.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
171
Procederia ele com mais inteligência se mandasse os
homens fazerem escadas. Mas levaria mais tempo, e
ele é impaciente. Tresloucado! Ele deveria ter
retornado para Tashbaan logo depois de fracassado o
primeiro ataque, pois todo o seu plano dependia da
surpresa e da rapidez. Estão colocando o aríete em
posição. Os homens do rei Luna atiram de cima das
muralhas. Caíram cinco calormanos; mas muitos
restarão, mantendo os escudos acima das cabeças.
Rabadash agora está transmitindo novas ordens. Estão
com ele os senhores de mais confiança, os cruéis
tarcaãs das províncias do Oriente. Vejo até os seus
rostos. Ali vai Coradin do Castelo de Tormunt, e
Chlamash, e Ilgamute, o do lábio torcido, e um alto
tarcaã com uma barba escarlate...
- Pela juba! É o meu antigo amo Anradin! -
exclamou Bri.
- Psiu! - disse Aravis.
- O aríete agora começa a funcionar. São
terríveis pancadas, mas não posso ouvi-las. Não há
porta ou portão que agüente. Um momento! Alguma
coisa no Pico da Tempestade assustou as aves. Estão
vindo em massa. Um momento! Ainda não posso
ver... Ah! Já vejo. A encosta leste está negra de
cavaleiros. Já vi o pavilhão. Nárnia! Nárnia! É o Leão
vermelho! Desabalaram serra abaixo. Estou vendo o
rei Edmundo. Há uma dama entre os arqueiros. Ó!
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
172
- Que foi? - perguntou Huin, ofegante.
- Todos os gatos se lançam pela esquerda da
linha.
- Gatos? - estranhou Aravis.
- Gatões, bichos como leopardos - explicou o
eremita, com impaciência. - Estou entendendo: os
gatos estão cercando os cavalos dos homens
desmontados. Os cavalos dos calormanos já estão
loucos de pavor. Os gatos já estão entre eles.
Rabadash refez o seu exército e conta com cem
homens a cavalo. Vão bater-se com os narnianos.
Cem metros os separam. Cinqüenta. Estou vendo o rei
Edmundo e lorde Peridan. Há duas crianças na linha
de Nárnia. Como o rei foi deixar que entrassem na
batalha? Só dez metros... as duas frentes se
encontraram. Os gigantes à direita de Nárnia estão
operando prodígios... mas um acabou de cair... ferido
no olho, suponho. A confusão é geral. De novo os
dois meninos. Pelo Leão! Um deles é Corin! O outro é
parecidíssimo com ele. Ah, é o pequeno Shasta, Corin
luta feito um homem. Matou um calormano. Quase
que Rabadash e Edmundo se encontram...
- E Shasta? - perguntou Aravis.
- Ó! Que maluco! - resmungou o eremita. - Que
rapazinho maluco e valente! Não sabe nada de guerra.
Nem sabe usar o escudo. Está completamente exposto.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
173
Não tem a menor idéia do que fazer com a sua espada.
Ah, agora se lembrou... começou a rodar a espada...
quase cortou a cabeça do seu cavalo, e acabará
cortando se não tomar mais cuidado. Mas a espada
caiu-lhe da mão. É um crime mandar uma criança
para uma batalha; não dura mais do que cinco
minutos. Que maluquinho... Ó, caiu!...
- Morto? - perguntaram os três.
- Como vou saber? Os gatos trabalharam bem.
Todos os cavalos sem cavaleiros estão mortos ou
fugiram. Não há muita possibilidade para os
calormanos. Os gatos agora se dirigem para a zona
mais quente da batalha. Estão saltando sobre os
homens do aríete. Um caiu no chão. Ó, bom, muito
bom! Os portões se abriram pelo lado de dentro; vão
enfrentá-los peito a peito. O rei Luna está entre os
primeiros que saem; os outros são os irmãos Dar e
Darin. Chegam atrás Tran, Shar e Col com o seu
irmão Colin. São dez.... vinte... quase trinta agora. Os
calormanos estão imprensados. O rei Edmundo está
fazendo lances magníficos. Acabou de decepar com
grande precisão a cabeça de Coradin. Muitos
calormanos jogam suas armas no chão e correm para
as matas. Os outros não correm porque estão
encurralados. Os gigantes apertam pela direita... os
gatos pela esquerda... o rei Luna pela retaguarda. Os
calormanos se agrupam, lutando. Seu tarcaã já era,
Bri. Luna e Ilgamute estão combatendo corpo a corpo.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
174
Parece que o rei vai ganhar... Ele está indo muito
bem... O rei ganhou! Ilgamute no chão. O rei
Edmundo caiu, não... não... levantou-se outra vez.
Está frente a frente com Rabadash. Estão lutando bem
na frente do portão do castelo. Vários calormanos se
entregam. Não sei o que aconteceu a Rabadash. Acho
que morreu, tombado sob o muro do castelo, mas não
sei. Chlamash e o rei Edmundo continuam a lutar, mas
a batalha já terminou por todos os lados. Chlamash se
entrega. Acabou-se a luta! Os calormanos foram
inexoravelmente batidos.
Ao cair do cavalo, Shasta se deu por perdido.
Mas os cavalos, mesmo numa batalha, pisoteiam os
seres humanos muito menos do que se pode supor.
Depois de uns dez minutos, reparou que não havia
cavalos revolteando por perto e que os ruídos que
ouvia não eram de combate. Olhou em torno.
Compreendeu que os arqueiros e os narnianos haviam
vencido. Os únicos calormanos vivos ao alcance da
vista estavam aprisionados, e os portões do castelo
estavam abertos; o rei Luna e o rei Edmundo
apertavam-se as mãos sobre o aríete. Os lordes e
guerreiros conversavam animadamente. E de repente
tudo se uniu numa tremenda gargalhada.
Shasta correu para saber qual era o motivo de
tanto riso. E deu com uma cena muito engraçada. O
infeliz Rabadash estava suspenso no ar, em algum
ponto da muralha do castelo. Seus pés, meio metro
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
175
acima do solo, davam chutes violentos. Sua malha de
ferro estava presa a uma saliência qualquer,
apertando-lhe as axilas e cobrindo metade do seu
rosto. Um homem surpreendido no momento de vestir
uma camisa apertada demais -era esta a imagem de
Rabadash.
Acontecera mais ou menos o seguinte: logo no
início da batalha, um dos gigantes procurou acertar
Rabadash com a sua bota pontuda; não conseguiu,
mas o ferrão rasgou a malha. Ao encontrar-se com
Edmundo às portas do castelo, Rabadash tinha um
rasgão nas costas de sua malha. Acuado por Edmundo
de encontro à muralha, pulou para um lugar mais
elevado, tentando defender-se de cima. Desconfiando
que a sua posição, acima da cabeça de todos, o
tornava um alvo fácil para as flechas narnianas,
resolveu voltar para o nível do chão. Grandioso e
assustador, deu um pulo e um grito: “O raio de Tash
cai do alto!” Mas pulou um pouco para o lado, pois na
frente estava um monte de guerreiros. Foi aí, com uma
precisão admirável, que o rasgão em sua malha foi
pescado por um gancho preso na pedra do muro.
(Antigamente esse gancho prendia um aro que servia
para amarrar as rédeas dos cavalos.) E lá ficou ele,
como uma peça de roupa posta a secar, e todo o
mundo dando gargalhadas.
- Deixe-me descer daqui, Edmundo - rosnou
Rabadash. - Desça-me e vamos lutar como reis e
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
176
machos; mas, se for covarde demais para isso, mateme
de uma vez.
- Com o maior prazer... - disse Edmundo, que foi
interrompido pelo rei Luna:
- Nada disso, Majestade. - E o rei Luna dirigiu-se
a Rabadash:
- Se Vossa Alteza tivesse feito esse desafio há
uma semana, não haveria ninguém nos domínios do
rei Edmundo, do Grande Rei ao menor dos
camundongos falantes, que o teria recusado. Mas, por
ter atacado o castelo de Anvar em tempo de paz e sem
declaração de guerra, mostrou que não é um
cavalheiro, e sim um traidor, mais digno do relho do
carrasco do que de uma luta singular com uma pessoa
honrada. Tirem-no daí; levem-no amarrado para o
castelo, até que a nossa satisfação se torne conhecida
de todos.
Mãos fortes arrancaram a espada de Rabadash,
que foi arrastado para o castelo entre gritos, ameaças e
maldições, e até lágrimas. Pois, embora capaz de
enfrentar a tortura, não suportava passar por ridículo.
Sempre fora levado a sério em Tashbaan.
Nesse instante Corin foi correndo até Shasta,
pegou-lhe a mão e puxou o amigo para perto do rei
Luna.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
177
- Aqui está ele, pai, aqui está ele - gritou Corin.
- E também aqui está você, finalmente - disse o
rei com uma voz muito ríspida. - Entrou na batalha
contrariando ordens! Um filho mata um pai! Na sua
idade, uma varada no traseiro vai melhor do que uma
espada na mão, hã!
Todos notaram, no entanto, que o rei se sentia
orgulhoso do filho.
- Não se zangue mais com ele, Majestade, por
favor - disse Darin. - Sua Alteza não seria filho de
quem é se não tivesse herdado a sua bravura. Mais
afligiria Sua Majestade se ele fosse digno de
reprimenda pela falta contrária.
- Bem, bem - resmungou o rei. - Desta vez,
passaremos por cima, mas da próxima... E agora...
O que aconteceu em seguida foi a maior surpresa
que Shasta já teve em toda a sua vida: de repente se
viu apertado nos braços de urso do rei Luna, que o
beijava nas duas bochechas. E, quando ele se
encontrou de novo no chão, o rei falou:
- Fiquem aqui juntos, rapazes, para que todos
possam vê-los. Levantem a cabeça! Senhores, olhem
para ambos. Alguém pode ter alguma dúvida?
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
178
Shasta ainda não podia entender por que motivo
todos fixavam os olhos nele e em Corin, nem por que
tanta alegria.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
179
14
LIÇÃO DE SABEDORIA PARA
BRI
Olhando para o tanque, o eremita pôde contar
para Aravis e os cavalos que Shasta não fora morto
nem ferido, e de que maneira afetuosa fora recebido
pelo rei Luna. Mas como só podia ver a distância, e o
tanque não reproduzia sons, ignorava as palavras
pronunciadas. Já não valia a pena olhar para as
imagens do tanque, agora que a luta terminara.
Na manhã seguinte, enquanto o eremita
permanecia dentro de casa, os três discutiam o que
deveriam fazer.
- Para mim já chega - disse Huin. - O eremita
tem sido muito bom para nós, e sou-lhe muito grata,
mas estou ficando gorda como uma potranquinha de
estimação, comendo o dia inteiro sem fazer
exercícios. Devemos seguir para Nárnia.
- Hoje não, madame - disse Bri. - Não gosto de
sair às pressas. Não acha que a gente devia ficar mais
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
180
um pouco?
- Antes de tudo precisamos encontrar Shasta para
dizer adeus... e pedir desculpas - disse Aravis.
- Isso mesmo! - falou Bri, com grande
entusiasmo. - Era o que eu ia dizer.
- É claro - concordou Huin. - Espero que ele
continue em Anvar. Damos uma passada lá e nos
despedimos dele. Fica no caminho. Só não entendo
por que não partimos imediatamente. Afinal, acho que
a intenção de todos nós é chegar a Nárnia...
- Acho que sim - disse Aravis. Ao começar a
imaginar o que faria exatamente quando chegasse a
Nárnia, a menina sentiu-se um pouco sozinha.
- Naturalmente - foi logo dizendo Bri. - Mas não
há necessidade de sair às carreiras, se é que estão me
entendendo.
- Pois não estou entendendo - replicou Huin. -
Por que não quer ir?
- Bru-ru - murmurou Bri. - Bem, não está vendo,
madame... trata-se de uma ocasião importante... é a
nossa volta à pátria... a entrada na sociedade... a
melhor sociedade... é imprescindível que
causemos uma boa impressão... o que talvez seja
difícil com a nossa aparência atual...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
181
Huin deu uma risada eqüina.
- É a sua cauda, Bri! Já vi tudo! Você está
querendo esperar que a sua cauda cresça novamente.
E nem sabemos se em Nárnia estão usando caudas
compridas. Francamente, Bri, você é tão vaidoso
quanto aquela tarcaína de Tashbaan.
- Que besteira, Bri - falou Aravis.
- Pela juba do Leão, tarcaína, não sou desse tipo -
respondeu Bri, indignado. - Apenas guardo respeito
por mim mesmo e pelos cavalos da minha espécie,
nada mais.
- Bri - retornou Aravis, que não estava muito
interessada no corte da cauda -, há muito tempo que
desejo fazer-lhe uma pergunta: por que vive jurando
pelo Leão ou pela juba do Leão? Pensava que tinha
horror de leão.
- E tenho. Mas quando falo do Leão estou me
referindo a Aslam, grande redentor de Nárnia, que nos
livrou do inverno e da feiticeira. Todos os narnianos
juram por ele!
- Mas ele é um leão?
- É claro que não é um leão - respondeu Bri,
bastante chocado.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
182
- Pelas histórias que contam em Tashbaan, ele é
um leão - replicou Aravis. - Se não é um leão, por que
o chamam de leão?
- Não pode entender isso na sua idade -
respondeu Bri. - E mesmo eu, que não passava de um
potrinho quando saí de lá, também não entendo muito
bem.
(Bri estava virado de costas para a sebe ao dizer
isso, e as outras duas o encaravam. Falava com uma
certa superioridade, com os olhos semi-cerrados. Por
isso não notou a mudança de expressão de Aravis e
Huin. Estas tinham bons motivos para abrir a boca e
arregalar os olhos, pois um enorme leão havia pulado
sobre o muro verde; um leão com o amarelo mais
brilhante, um leão mais belo, mais assustador e maior
do que todos os outros leões. Saltou para dentro do
pátio e caminhou para Bri, sem fazer ruído. Huin e
Aravtext-align: left;is, como se estivessem congeladas, também não
faziam o menor ruído.) Bri continuou:
- Sem dúvida, quando falam dele como sendo um
leão, estão querendo dizer que é forte como um leão.
Mas é falta de respeito. Se ele fosse um leão, seria um
animal como qualquer um de nós. Ora essa! (E Bri
começou a rir.) Se fosse um leão, teria de ter quatro
patas, uma cauda, e suíças!... Rá, ru, ru. Socorro!
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
183
Pois quando acabara de falar suíças fora tocado
por uma delas na orelha. Bri disparou como flecha
para o lado oposto do pátio e então virou-se; o muro
era alto demais, e ele não tinha por onde fugir. Aravis
e Huin correram atrás. Houve um segundo de intenso
silêncio.
Huin, embora tremesse da cabeça aos pés, deu
um relincho esquisito, e foi para perto do leão:
- Por favor, você é tão bonito. Pode me comer, se
quiser. Melhor ser devorada por você do que por um
outro qualquer.
- Filha querida - respondeu Aslam, beijando-lhe
o focinho aveludado -, sabia que você bem cedo
chegaria até mim. Que a alegria a ilumine.
Ergueu a cabeça e falou mais alto:
- Bri, meu pobre, meu orgulhoso e assustado
cavalo, chegue perto de mim. Mais perto, filho. Não
ouse não ousar. Toque-me. Aqui estão as minhas
patas, aqui está a minha cauda, aqui estão as minhas
suíças. Sou um verdadeiro animal.
- Aslam - disse Bri, com a voz estremecida -,
acho que sou um estúpido.
- Feliz o cavalo que sabe disso ainda na
juventude. Ou o humano. Chegue mais perto, Aravis,
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
184
minha filha. Veja! Minhas patas são de veludo.
Não precisa temer agora.
- Agora, senhor? - disse Aravis.
- Agora! Sou o único Leão que você encontrou
em todos os seus caminhos. Sabe por que a feri?
- Não, senhor.
- As arranhaduras nas suas costas, uma por uma,
dor por dor, sangue por sangue, são iguais aos lanhos
feitos nas costas da escrava de sua madrasta, em razão
da droga que a fez dormir. Você precisava saber o que
é isso.
- Senhor...
- Pode falar, minha filha.
- Ela ainda pode ser punida por minha causa?
- Criança, estou lhe contando a sua história, não
a dela. A ninguém será contada a história do outro. -
Sacudiu a cabeça e falou ainda mais alto:
- Divirtam-se, meus pequeninos. Breve nos
encontraremos outra vez. Mas antes disso receberão
uma visita.
De um salto pulou por cima do muro e
desapareceu.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
185
Estranhamente, não sentiram a menor vontade de
conversar sobre ele; cada um saiu por um lado,
caminhando para cá e para lá na relva quieta, falando
consigo mesmo.
Uma hora depois os cavalos estavam comendo
alguma coisa boa que o eremita lhes preparara.
Aravis, ainda caminhando, pensativa, foi surpreendida
por um som agudo de trompa do lado de fora.
- Quem é?
- Sua Alteza, o príncipe Cor, da Arquelândia -
respondeu uma voz.
Aravis abriu o portão, cedendo passagem aos
estrangeiros. Dois soldados entraram em primeiro
lugar, postando-se com alabardas nos dois cantos.
Entraram em seguida um arauto e o trompetista.
- Sua Alteza Real, o príncipe Cor da
Arquelândia, solicita uma audiência com a dama
Aravis - disse o arauto. E aí fizeram reverência ao
príncipe que entrava. Toda a comitiva retirou-se,
fechando o portão.
O príncipe fez uma reverência, bastante
desajeitada para um príncipe. Aravis respondeu à
maneira dos calormanos e o fez com capricho, pois
aprendera isso na escola. Só então reparou no
príncipe.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
186
Um simples rapazinho. Sem chapéu, tinha os
cabelos louros envolvidos num aro de ouro. Sua
primeira túnica era de finíssima cambraia, e a de
baixo era de um vermelho-reluzente. Trazia a mão
esquerda enfaixada.
Aravis olhou duas vezes antes de falar,
espantada:
- Não é possível! É Shasta!
Shasta ficou logo muito vermelho e começou a
falar rapidamente:
- Olhe aqui, Aravis, espero que não pense que
essa coisa toda foi feita para impressioná-la; ou que
fiquei diferente ou besta a esse ponto. Queria vir com
minhas roupas de sempre, mas botaram fogo nelas e
meu pai me disse...
- Seu pai? - estranhou Aravis.
- Pelo jeito, o rei Luna é meu pai. Dava para
pensar... Corin é a minha cara. Somos gêmeos,
entende? E meu nome não é Shasta, é Cor.
- Cor é um nome mais bonito do que Shasta -
disse Aravis.
- Nomes de irmãos são sempre assim na
Arquelândia. Como Dar e Darin.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
187
- Shasta... quero dizer Cor - falou Aravis. -
Quero lhe dizer uma coisa, e tem de ser agora.
Desculpe por ter sido pedante. Mas pode acreditar que
fiquei arrependida antes de saber que você era um
príncipe. Honestamente! Foi quando você enfrentou o
Leão.
- Aquele Leão não tinha a intenção de matá-la -
disse Cor.
- Já sei disso.
Por um momento os dois ficaram calados e
sérios, certos de que já sabiam tudo sobre Aslam.
Aravis lembrou-se da mão enfaixada do amigo:
- Você participou de uma batalha? Isso aí é um
ferimento de guerra?
- Só um arranhão - respondeu Cor, usando pela
primeira vez um certo tom senhorial. Mas daí a pouco
caiu na risada: - Se quer mesmo saber a verdade não é
um ferimento de guerra coisa nenhuma; tive um
pouco de pele arrancada; isso acontece a qualquer um,
mesmo que não chegue perto de uma batalha.
- De qualquer forma você entrou na batalha.
Deve ter sido formidável.
- Não é o que você pensa - replicou Cor.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
188
- Mas Sha... Cor, você ainda não me disse nada
sobre o rei Luna, e como ele descobriu quem você é.
- Melhor a gente sentar-se - disse Cor. - É uma
história meio comprida. Para começo de conversa:
papai é um ótimo sujeito. Mesmo que não fosse o rei.
Mesmo que eu tenha de passar agora por essa coisa
horrível que se chama educação, foi muito bom ter
encontrado meu pai. Vamos à história. Corin e eu
somos gêmeos. Uma semana depois de nascermos,
nós dois fomos levados a um sábio centauro de
Nárnia, para receber uma bênção ou coisa parecida. O
tal centauro era um profeta muito bom, como muitos
outros centauros. Você talvez ainda não tenha visto
um centauro. Havia alguns na batalha de ontem.
Gente fabulosa, mas ainda não me acostumei de todo
com eles. Aravis, pode estar certa de uma coisa: a
gente ainda vai ter que se acostumar com uma porção
de coisas nestas terras do Norte.
- É, sem dúvida. Mas conte a história.
- Bem, logo que chegamos, o tal centauro olhou
para mim e disse: “Um dia chegará em que este
menino salvará a Arquelândia do maior perigo que ela
já enfrentou.” Minha mãe e meu pai ficaram muito
contentes. Mas havia alguém presente que não gostou.
Era um sujeito chamado lorde Bar, que foi chanceler
do meu pai. Ao que parece, ele tinha feito alguma
coisa errada... peculato ou uma palavra parecida...
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
189
Não entendi muito bem esta parte da história... Papai
teve de demitir o tal lorde. Mas não fez mais nada
contra ele, e o sujeito continuou vivendo por lá. Mais
tarde ficaram sabendo que ele recebia dinheiro do
Tisroc e já tinha fornecido uma porção de
informações secretas para Tashbaan. Sabendo que eu
ia salvar o país de um grande perigo, resolveu me tirar
do caminho. Fui seqüestrado, não sei bem como.
Estava tudo preparado: um navio, tripulado com gente
dele, estava à nossa espera, pronto para zarpar. Papai,
quando soube, já um pouco tarde, começou a
persegui-lo, mas quando chegou à praia lorde Bar já
estava em alto-mar. Então, meu pai embarcou num
navio de guerra. Durante seis dias perseguiu o galeão
do bandido; no sétimo houve a batalha. Uma grande
batalha, desde as dez horas da manhã até o sol sumir.
Nossa gente aprisionou o galeão. Eu não estava lá! O
lorde Bar morreu na batalha, mas antes dera ordens
para que um oficial me levasse numa das canoas do
navio. E essa canoa nunca mais foi vista. Mas só pode
ter sido a mesma que Aslam (ele parece estar por trás
de todas as histórias) empurrou para a praia para que
Arriche me apanhasse. Gostaria de saber o nome
desse oficial, pois deve ter morrido de fome para que
eu vivesse.
- Acho que Aslam aqui diria: “Isso é história do
outro.” - Foi o primeiro comentário de Aravis.
- Não me lembrava disso - falou Cor.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
190
- Só estou imaginando como vai se realizar a
profecia - disse Aravis - e de qual grande perigo você
irá livrar a Arquelândia.
- Bem - disse Cor, um tanto encabulado - eles
acham, pelo jeito, que eu já fiz isto.
Aravis bateu palmas:
- É claro! Como sou burra! Que coisa
maravilhosa: a Arquelândia jamais passará por outro
perigo maior do que Rabadash. Não está orgulhoso?
- Acho que estou meio assustado - respondeu
Cor.
- E agora você vai viver em Anvar - disse Aravis,
um tanto ansiosa.
- Ó, até me esqueci da minha missão: papai quer
que você venha viver conosco. Disse que não há mais
uma só dama na corte (eles chamam de corte, sei lá
por quê!) desde que mamãe morreu. Venha, Aravis.
Você vai gostar de papai e de Corin. Ele não se parece
comigo: foi bem educado. Não precisa ter medo...
- Pare com isso ou vamos mesmo brigar -
replicou Aravis. - É claro que irei.
O encontro de Bri e Cor foi dos mais alegres. E
Bri, que ainda estava numa disposição de espírito bem
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
191
submissa, concordou que partissem imediatamente
para Anvar: ele e Huin atravessariam a fronteira de
Nárnia no dia seguinte. Despediram-se afetuosamente
do eremita e partiram. Os cavalos esperavam que
Aravis e Cor fossem montados, mas o príncipe
explicou que, a não ser em guerra, quando cada um
deve fazer o que souber de melhor, ninguém em
Nárnia ou na Arquelândia teria a menor idéia de
montar num cavalo falante.
A observação fez o coitado do Bri relembrar
mais uma vez a sua vasta ignorância sobre os
costumes de Nárnia, e a sua grande possibilidade de
futuros equívocos. Assim, enquanto Huin se deixava
embalar em sonhos, Bri foi ficando mais nervoso e
mais consciente de todos os seus passos.
- Coragem, Bri! - disse Cor. - É ainda muito pior
para mim do que para você; você não tem de ser
educado. Tenho de aprender a ler e escrever,
heráldica, dança, história, música... enquanto você vai
correr e rolar pelas colinas de Nárnia na maior
felicidade.
-Mas aí é que está - replicou Bri. - Cavalos
falantes rolam na relva? E se não rolarem? Nem posso
pensar uma coisa dessas. Você, o que acha, Huin?
- Eu, por mim, vou rolar de qualquer maneira. E
acho que ninguém vai dar a mínima pra isso.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
192
- Estamos perto do castelo? - perguntou Bri a
Cor.
- Depois da primeira curva.
- Bem, vou dar uma boa rolada agora. Pode ser a
última. Um minutinho só.
Levou cinco minutos. Ergueu-se bufando,
coberto de talos de avenca.
- Estou pronto - disse com a voz sombria. -Vá
em frente, príncipe Cor. Para Nárnia! Para o Norte!
Parecia mais um cavalo a seguir um enterro do
que um cativo voltando à liberdade depois de muito
tempo.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
193
15
RABADASH, O RIDÍCULO
Uma curva na estrada colocou-os em campo
aberto; lá, do outro lado de planuras verdes, abrigado
dos ventos do norte por uma alta serra coberta de
matas, estava o castelo de Anvar. Muito antigo, fora
construído de pedras pardo-avermelhadas.
Antes de chegarem ao portão, viram o rei Luna,
que lhes vinha ao encontro, nada parecido com o rei
imaginado por Aravis: usava roupas muito velhas,
pois acabava de chegar de uma visita aos canis, na
companhia de seus caçadores. Mas a reverência com
que saudou Aravis ao segurar-lhe a mão era digna de
um imperador.
-Minha gentil senhorita, de todo o coração nós
lhe damos as boas-vindas. Minha mulher, se estivesse
viva, a receberia com mais carinho, mas não o faria de
maior boa vontade. Sinto que lhe hajam sobrevindo
infortúnios que a levaram para longe da casa paterna,
o que lhe deve decerto magoar. Meu filho Cor contou_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
194
me sobre as aventuras por que passaram juntos e me
falou de sua bravura.
- Tudo se deve a ele, senhor - respondeu Aravis. -
Pois foi ele quem correu para o Leão e me salvou.
- Hem? Que história é esta? - perguntou o rei
Luna com os olhos brilhantes. - Não conheço esta
parte da história.
Ficou sabendo por intermédio de Aravis. Cor,
desejoso que a história fosse divulgada, mas sentindo
que não cabia a ele mesmo contá-la, gostou dela
muito menos do que esperava, chegando a achá-la um
pouco sem graça. Mas o pai é que se deliciou,
recontando-a várias vezes durante algumas semanas; a
tal ponto que Cor desejou que o episódio nunca
tivesse acontecido.
O rei mostrou-se igualmente cortês com Huin e
Bri, fazendo-lhes uma porção de perguntas sobre suas
famílias e onde viviam em Nárnia antes de serem
capturados. Os cavalos conservaram-se um tanto
calados, pois não estavam habituados a ser
tratados como iguais por humanos adultos. Com
Aravis e Cor era diferente.
Naquele momento a rainha Lúcia saiu do castelo
e aproximou-se do grupo. Disse o rei Luna a Aravis:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
195
- Minha querida, apresento-lhe uma boa amiga
de nossa casa, e ela própria estava providenciando
para que os aposentos fossem condignamente
preparados.
- Quer vê-los? - perguntou Lúcia, dando um
beijo em Aravis. Foi amizade à primeira vista; e se
foram, conversando sobre quartos e roupas, coisas
sobre as quais as moças trocam idéias nessas ocasiões.
Depois do almoço no terraço (aves frias, pastelão
frio, vinho, pão e queijo), o rei Luna franziu a
sobrancelha, suspirando:
- Chii! Ainda temos em nossas mãos aquele
lamentável Rabadash; temos de decidir o que fazer
com ele.
Lúcia estava sentada à direita do rei e Aravis à
esquerda. O rei Edmundo numa cabeceira e o lorde
Darin na outra. Dar, Peridan, Cor e Corin estavam no
mesmo lado que o rei.
- Vossa Majestade tem todo o direito de deceparlhe
a cabeça - opinou Peridan. - Um assalto como este
colocou Rabadash no nível dos assassinos.
- Pura verdade - disse Edmundo. - Mas até um
traidor pode corrigir-se. Conheço um. - E assumiu um
ar pensativo.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
196
- Matar esse Rabadash é quase o mesmo que
fazer guerra com o Tisroc - falou Darin.
- Às favas com o Tisroc! - disse o rei Luna. - Sua
força está nos números, e números não atravessam o
deserto. O que não tenho é estômago para matar
homens (mesmo traidores) a sangue- frio. Cortar o
pescoço dele em combate teria sido um prazer. Mas a
coisa agora é diferente.
- A meu ver - interveio Lúcia -, Vossa Majestade
deveria conceder a ele uma outra chance. Deixe-o
partir livremente, sob a promessa rigorosa de agir com
decência no futuro. Pode ser que cumpra a palavra.
- Talvez os macacos acabem honrados - disse
Edmundo. - Mas, pelo Leão, se ele quebrar a
promessa, que lhe cortemos logo a cabeça em
combate limpo.
- Vamos tentar - disse o rei, virando-se para um
serviçal: - Traga o prisioneiro.
Rabadash foi trazido preso a suas correntes.
Quem o visse era capaz de imaginar que passara a
noite em horrível calabouço, sem água nem comida.
Na verdade, ele estivera encerrado num quarto bem
confortável, e fora servido com uma ceia excelente.
Mas, muito azedo para tocar na ceia, passara a noite
sapateando, uivando e amaldiçoando, e não podia
mesmo estar na sua melhor aparência.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
197
- Não preciso informar a Vossa Alteza - disse o
rei - que, pelas leis das nações como também por
todas as razões de uma política sensata, temos todo o
direito à sua cabeça. Apesar de tudo, levando em
consideração a sua juventude e a sua má-criação, à
qual faltam ainda gentileza e cortesia, estamos
dispostos a enviá-lo em liberdade, desarmado, sob as
seguintes condições: primeiro...
- Maldito cão sarnento! - cuspiu Rabadash. -
Acha que aos menos ouvirei as suas condições? Eu!?
Fala de educação e não-sei-o-que-mais! Muito fácil,
com um homem acorrentado! Arranque de mim estas
correntes vis, me dê uma espada, e quem ousar que
venha bater-se comigo.
Quase todos os senhores puseram-se de pé.
Gritou Corin:
- Pai! Posso dar um soco na cara dele? Por favor!
- Paz!Majestades! Senhores! - disse o rei Luna. -
Será que não temos a educação necessária para ouvir
com tranqüilidade os insultos de um trapalhão? Sentese,
Corin, ou saia da mesa. Peço mais uma vez a
Vossa Alteza que escute as nossas condições.
- Não escuto condições de bárbaros e bruxos -
respondeu Rabadash. - Ninguém ouse tocar num fio
do meu cabelo. Cada insulto que me lançam será
vingado com oceanos de sangue. Terrível será a
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
198
vingança do Tisroc; não perdem por esperar. Matemme,
no entanto, e as fogueiras e torturas das terras
calormanas ainda farão o mundo tremer daqui a mil
anos. Cautela! Cautela! O raio de Tash cai de cima!
- E às vezes fica preso no caminho por um
gancho! - disse Corin.
- Pare com isso, Corin - disse o rei. - Só insulte
um homem mais forte do que você. Assim, Alteza,
por favor.
- Que idiota este Rabadash! - suspirou Lúcia.
E logo Cor pôs-se a imaginar por que todos
tinham se levantado e ficado muito quietos. Também
fez o mesmo, mas só depois entendeu o motivo:
Aslam estava entre eles, embora ninguém tivesse
percebido a sua chegada. Rabadash estremeceu
quando o vasto vulto do Leão desfilou entre ele e seus
acusadores. E o Leão falou:
- Rabadash, cuidado! Seu destino anda próximo,
mas talvez ainda possa evitá-lo. Esqueça o seu
orgulho (do que você pode orgulhar-se?) e a sua ira
(quem lhe fez mal?) e aceite a compaixão destes
bondosos reis.
Rabadash então revirou os olhos e espichou a
boca numa horrível careta, como um tubarão, e
abanou as orelhas para cima e para baixo (não é difícil
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
199
aprender a fazê-lo). Sempre achara isso muito
eficiente entre os calormanos. Os mais bravos
tremiam quando ele fazia essas caras; os mais simples
caíam no chão; e os mais sensíveis geralmente
desmaiavam. Rabadash só esquecera uma coisa: muito
fácil é apavorar quem se pode mandar cozinhar vivo
com uma palavra. Na Arquelândia, porém, as caretas
não produziam o menor efeito. Lúcia chegou até a
pensar que ele estava passando mal e ia ficar pior.
- Diabo! Diabo! Diabo! - guinchava o príncipe. -
Sei quem você é. Você é o espírito mau de Nárnia. O
inimigo dos deuses. Sabe com quem está falando?
Sabe, fantasma? Descendo de Tash, o inexorável, o
irresistível. Caia sobre você a maldição de Tash!
Raios em forma de escorpião chovam sobre você. As
montanhas de Nárnia serão reduzidas a cinzas. O...
- Calma, Rabadash - disse Aslam, com placidez.
- O destino está próximo. Está à porta. Já
levantou o trinco.
- Caiam os céus! - guinchou Rabadash. -
Escancare-se a terra! Sangue e fogo entupam o
mundo! Pois fiquem sabendo que nem assim
descansarei, até arrastar para o meu palácio, pelos
cabelos, essa rainha bárbara, filha de cachorros, a...
- Chegou a hora - disse Aslam.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
200
Para seu horror supremo, Rabadash viu que todos
estavam às gargalhadas.
Não era possível fazer outra coisa, a não ser dar
risadas. Rabadash estivera abanando as orelhas o
tempo todo, e, assim que Aslam disse “Chegou a
hora!”, suas orelhas começaram a ficar mais
compridas e mais pontudas e acabaram cobertas de
pêlo cinzento. E, enquanto todos se indagavam onde
já tinham visto orelhas como aquelas, também a cara
de Rabadash começou a mudar. Mais comprida... mais
larga... mais olhuda... Nariz afundado na cara (ou era
uma cara se inchando toda e virando um narigão?).
Tudo peludo. Os braços foram ficando compridos,
compridos, até que as mãos tocaram no chão. Só que
não eram mãos: eram cascos. Quatro cascos. Sumiram
as roupas, debaixo de gargalhadas e de aplausos (que
fazer?), pois agora Rabadash era simplesmente,
inequivocamente, um burro. O terrível é que a sua fala
humana durou um momento além da figura humana,
e, assim, quando percebeu a transformação, berrou:
- Ó, burro não! Piedade! Burro não! Até cavalo
serve... cavalo ainda aceito... Burro não! rem... rê...
rô... ri... rá... E assim as palavras se perderam num
vasto zurro de burro.
- Agora me ouça, Rabadash - falou Aslam. - A
justiça é mesclada de compaixão. Você não será um
asno para sempre.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
201
O burro espichou naturalmente as orelhas... o que
também foi tão engraçado que todos caíram outra vez
na gargalhada. Tentavam ficar quietos, mas não era
possível.
- Você pediu o auxílio de Tash - prosseguiu
Aslam - e no templo de Tash será curado. Suba ao
altar de Tash em Tashbaan, no Festival de Outono,
este ano, e lá, à frente de todos, perderá sua forma de
asno, e todos saberão que o asno é na verdade o
príncipe Rabadash. Mas, enquanto viver, se uma só
vez afastar-se mais de dez quilômetros do templo de
Tashbaan, voltará a ser como é agora. E de uma
recaída jamais ficará bom.
Fez-se um curto silêncio. Depois todos se
agitaram e olharam uns para os outros, como se
estivessem acordando. Aslam havia partido. Só
restava um lampejo no ar e na relva, e júbilo nos
corações, o que lhes dava a certeza de que não fora
um sonho. Além do mais, o burro estava lá na frente
deles.
O rei Luna, o maior coração entre todos os
homens, ao ver o inimigo nessas lamentáveis
condições, esqueceu toda a sua ira.
- Alteza - disse - estou sinceramente sentido que
as coisas tenham chegado a este extremo. Não
dependeu de nós, e Vossa Alteza sabe disso. Teremos
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
202
o maior prazer em providenciar o seu embarque para
Tashbaan para... para aviar a receita prescrita por
Aslam. Terá na viagem todo o conforto que permitir a
sua atual situação: o melhor barco de transporte de
gado... as cenouras mais frescas e...
Mas um zurro ensurdecedor e um coice na perna
de um guarda demonstraram claramente que essas
gentis ofertas foram recebidas com ingratidão.
E aqui, para tirá-lo do caminho, é melhor acabar
com a história de Rabadash. Enviado de
volta, compareceu ao Festival de Outono, tornando-se
novamente homem. Umas quatro ou cinco mil pessoas
viram a transformação, e o caso não pôde ser
silenciado. Depois da morte do velho Tisroc, quando
Rabadash se fez tisroc dos calormanos, tornou-se o
mais pacífico tisroc da história do país. Não ousando
afastar-se mais de dez quilômetros, jamais podia ir à
guerra, e não desejava que seus tarcaãs conquistassem
fama guerreira às suas custas, pois é assim que os
tisrocs são destronados. Apesar do egoísmo dos seus
motivos, foi bem mais cômodo para os pequenos
países vizinhos.
Seu próprio povo jamais se esqueceu de que ele
havia sido um burro. Durante o seu reinado foi
cognominado Rabadash, o Pacificador, mas, depois da
sua morte, passou a ser Rabadash, o Ridículo. Ainda
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
203
hoje, nas escolas calormanas, se alguém faz alguma
coisa bastante idiota, é chamado de Rabadash.
Em Anvar todo mundo estava contente por
ocasião de um grande acontecimento: uma festa na
esplanada do castelo, com dezenas de lanternas
juntando-se à luz do luar. O vinho jorrava, contavamse
histórias, faziam-se gracejos; então fez-se silêncio,
e o poeta do rei, acompanhado por dois tocadores de
rabeca, foi para o centro do picadeiro. Aravis e Cor
prepararam-se para uma chatice, pois só conheciam a
poesia dos calorma-nos, e agora você já sabe de que
tipo ela é. Mas, ao primeiro trinado das rabecas, foi
como se um foguete lhes passasse pela cabeça. O
poeta cantou a grande balada do Belo Olvin e como,
vencendo o gigante Piro, conseguiu transformá-lo em
pedra (daí a origem do Monte Piro, pois se tratava de
um gigante de duas cabeças), para casar-se com a
dama Liln. Quando acabou, desejavam que a balada
recomeçasse.
Não sabendo cantar, Bri contou a história da
Batalha de Zalindreh. Lúcia contou mais uma vez (só
Aravis e Cor não a conheciam) a história d’O leão, a
feiticeira e o guarda-roupa, na qual se narra como
Edmundo, Susana, Pedro e ela chegaram a Nárnia.
Depois chegou o momento em que o rei Luna
disse que as crianças deviam ir para a cama, devido ao
adiantado da hora. E acrescentou ainda:
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
204
- Amanhã, Cor, você percorrerá comigo todo o
palácio, examinando os seus pontos fortes e fracos,
pois a você caberá guardá-lo quando eu me for.
-Mas Corin é que será o rei, pai - protestou Cor.
- Nada disso, rapaz - replicou o rei Luna. - Você
será o meu herdeiro. Cabe a você a coroa.
-Mas não quero a coroa - disse Cor. - Prefiro
muito mais...
- Não interessa, Cor, o que você prefere. É a lei.
- Mas, se somos gêmeos, somos da mesma
idade!
- Nada disso - respondeu o rei, rindo-se. - Um
tem de vir primeiro. Você é mais velho do que Corin
vinte minutos. E mais ajuizado também, espero. -
Olhou para Corin, piscando.
- Mas, pai, o senhor não pode escolher quem
quiser para rei?
- Não. O rei obedece às leis, pois as leis o
fizeram rei.
- Puxa vida! - disse Cor. - Não quero a coroa de
jeito nenhum. Olhe aqui, Corin... a culpa não é minha.
Nunca pensei que acabaria passando a perna no seu
reinado.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
205
- Viva! Salve! - gritou Corin. - Não tenho de ser
rei! Não tenho de ser rei! Vou ser príncipe a vida toda.
Os príncipes é que se divertem!
- É ainda mais verdade do que ele pensa, Cor -
falou o rei Luna. - Pois ser rei é isto: ser o primeiro
em todos os combates e o último em todas as
retiradas. Quando houver fome no país (o que às
vezes acontece nos anos piores), o rei deve alimentarse
frugalmente, e rir mais alto do que ninguém diante
de uma refeição parca.
Na escada, a caminho do quarto de dormir, Cor
ainda perguntou a Corin se era possível fazer alguma
coisa. E a resposta foi a seguinte:
- Se você disser mais uma palavra sobre isso, eu
lhe meto o braço.
Seria simpático terminar a história dizendo que,
depois disso, os dois irmãos nunca discordaram a
respeito de mais nada; mas sinto dizer que não foi
bem assim. Na verdade, eles discutiam e brigavam
como todos os outros irmãos. As brigas sempre
terminavam com Cor derrubado no chão. Pois,
embora mais tarde Cor se revelasse mais perigoso na
guerra, com a espada, ninguém nas terras do Norte
jamais boxeou melhor do que Corin. Foi assim que
ganhou o apelido de Mão de Ferro. Conta-se, ainda
hoje, a grande façanha que realizou contra o Urso
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
206
Relapso do Pico da Tempestade, que era na verdade
um animal falante que retornara à selvajaria. Num dia
de inverno, Corin escalou a montanha pelo lado de
Nárnia e lutou aos socos com o urso por trinta e três
assaltos. Por fim, esmurrado nos olhos, e já sem poder
enxergar mais nada, o urso acabou regenerando-se.
Aravis também teve muitas discussões (e, creio,
até brigas) com Cor, mas os dois sempre passavam
por cima. Anos mais tarde, já estavam tão
acostumados a brigar e fazer as pazes, que se casaram,
salvando assim as aparências.
Depois da morte do rei Luna, tornaram-se rei e
rainha de Arquelândia. Áries, o Grande, o mais
famoso de todos os reis do país, era filho deles.
Bri e Huin viveram felizes até uma idade
avançada e também se casaram, mas não um com o
outro. E não passavam muitos meses sem que viessem
a trote (juntos ou separados) para uma visita aos
amigos de Anvar.
_________________________________
C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. III
207
Fim do Vol. III
Próximo volume:
Príncipe Caspian

2 comentários:

Comente. Por Aslam e Por Nárnia!