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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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C. S. LEWIS
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
VOL. IV
Príncipe Caspian
Tradução
Paulo Mendes Campos
Martins Fontes
São Paulo 2002
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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As Crônicas de Nárnia são constituídas por:
Vol. I – O Sobrinho do Mago
Vol. II – O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa
Vol. III – O Cavalo e seu Menino
Vol. IV – Príncipe Caspian
Vol. V – A Viagem do Peregrino da Alvorada
Vol. VI – A Cadeira de Prata
Vol. VII– A Última Batalha
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Para Mary Clare Havard
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ÍNDICE
1. A ILHA
2. A CASA DO TESOURO
3. O ANÃO
4. O ANÃO CONTA A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE
CASPIAN
5. AS AVENTURAS DE CASPIAN NAS MONTANHAS
6. O ESCONDERIJO DOS ANTIGOS NARNIANOS
7. A ANTIGA NÁRNIA EM PERIGO
8. A PARTIDA DA ILHA
9. O QUE LÚCIA VIU
10. O RETORNO DO LEÃO
11. O LEÃO RUGE
12. MAGIA NEGRA E REPENTINA VINGANÇA
13. O GRANDE REI ASSUME O COMANDO
14. CONFUSÃO GERAL
15. ASLAM ABRE UMA PORTA NO AR
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A ILHA
Era uma vez quatro crianças – Pedro, Susana,
Edmundo e Lúcia – que se meteram numa
aventura extraordinária, já contada num livro que
se chama O leão, a feiticeira e o guarda-roupa.
Ao abrirem a porta de um guarda-roupa
encantado, viram-se num mundo totalmente
diferente do nosso, e nesse mundo, um país
chamado Nárnia, tornaram-se reis e rainhas.
Durante a permanência deles em Nárnia acharam
que tinham reinado anos e anos; mas, ao
regressarem pela porta do guarda-roupa à
Inglaterra, parecia que a aventura não tinha levado
quase tempo algum. Pelo menos ninguém notara a
sua ausência, e eles nunca contaram nada a
ninguém, a não ser a um adulto muito sábio.
Tudo isso tinha acontecido havia um ano.
Os quatro encontravam-se, no momento em que
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vamos iniciar esta história, sentados numa estação
de trem, rodeados por pilhas de malas. Estavam
de volta ao colégio. Tinham viajado juntos até
aquela estação, que era um entroncamento; dentro
de alguns minutos devia chegar o trem das
meninas e, daí a meia hora, o trem dos meninos.
A primeira parte da viagem fora como se
ainda fizesse parte das férias; mas, agora que se
aproximavam as despedidas, todos sentiam que as
férias tinham acabado e que começavam outra vez
as preocupações do ano letivo. Reinava grande
melancolia, e ninguém sabia o que dizer. Lúcia ia
para um internato, pela primeira vez.
Era uma estação rural e vazia: além deles,
não havia mais ninguém na plataforma. De
repente, Lúcia deu um grito agudo e rápido, como
se tivesse sido mordida por um marimbondo.
– O que foi, Lúcia? – perguntou Edmundo,
mas logo parou soltando um ruído parecido com
hã!
– Mas que coisa... – começou Pedro, que
logo também interrompeu a frase, dizendo, em
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vez disso: – Pare, Susana! Para onde você está me
puxando?
– Nem toquei em você! – respondeu
Susana. – Tem alguém me puxando. Oh, oh, oh,
pare com isso!
Todos notaram que os rostos dos outros
tinham ficado muito pálidos.
– Senti a mesma coisa – declarou Edmundo,
quase sem fôlego. – Parecia que alguém estava me
arrastando. Um puxão horrível! Epa! Lá vem de
novo!
– Também estou sentindo – gritou Lúcia. –
Que coisa desagradável!
– Cuidado! – exclamou Edmundo. – Vamos
ficar de mãos dadas. Tenho certeza que isso é
magia.
– Isso mesmo, de mãos dadas – disse
Susana. – Será que isso não vai parar?
Mais um instante, e a bagagem, a estação,
tudo havia desaparecido, sem deixar um sinal. As
quatro crianças, agarradas umas às outras,
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ofegantes, viram então que se encontravam num
lugar cheio de árvores, tão cheio de árvores que
mal havia espaço para se mexerem. Esfregaram os
olhos e respiraram fundo. Lúcia indagou:
– Pedro, você acha possível que tenhamos
voltado para Nárnia?
– Pode ser um lugar qualquer. Com estas
árvores tão cerradas, não se vê um palmo adiante
do nariz. Vamos ver se encontramos um lugar
aberto, se é que existe isso por aqui.
Com certa dificuldade, e levando arranhões
dos espinhos, conseguiram desembaraçar-se dos
arbustos. E foi outra surpresa. Tudo se tornou
mais brilhante. Após andarem alguns passos,
encontraram-se à beira da mata, olhando de cima
para uma praia arenosa. A distância de alguns
metros, um mar incrivelmente sereno avançava
sobre a areia em vagas tão minúsculas que quase
não se ouvia nenhum som. Terra à vista não havia,
nem nuvens no céu. O sol estava onde devia estar
às dez horas da manhã, e o mar era de um azul
deslumbrante.
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Pararam, cheirando a maresia.
– Como é bom! — disse Pedro.
Daí a cinco minutos, estavam todos
descalços, patinhando na água fria e transparente.
– Muito melhor do que estar dentro de um
trem abafado, de volta ao latim, ao francês e à
álgebra! – disse Edmundo. E durante algum
tempo só se ouviu o barulho da água.
– De qualquer modo – disse então Susana –
, suponho que tenhamos de fazer alguns planos. A
fome não deve demorar.
– Temos os sanduíches que a mãe nos deu
para a viagem – lembrou Edmundo. – Eu, pelo
menos, estou com os meus.
– Eu, não – disse Lúcia. – Deixei os meus
na maleta.
– Eu também – disse Susana.
– Os meus estão no bolso do casaco, ali na
praia – declarou Pedro. – São assim dois almoços
para quatro. Não é lá grande coisa.
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– Neste momento – disse Lúcia – , quero
mais beber água do que comer.
Todos estavam com sede, como é natural
acontecer quando se brinca na água salgada, sob o
sol ardente.
– É como se a gente tivesse sofrido um
naufrágio – observou Edmundo. – Nos livros,
sempre se encontra na ilha uma fonte de água
fresca e cristalina. É melhor a gente procurá-la.
– Vai ser preciso voltar para aquela mata
fechada? – perguntou Susana.
– De jeito nenhum – disse Pedro. – Se há
fontes aqui, elas têm de vir para o mar; assim, se
formos andando pela praia, deveremos achá-las.
Foram caminhando, primeiro sobre a areia
úmida e mole, depois sobre a areia grossa que se
agarra aos dedos dos pés. Edmundo e Lúcia
queriam seguir descalços e deixar os sapatos ali,
mas Susana advertiu-os de que isso não seria
bom:
– Podemos não os encontrar depois, e talvez
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precisemos deles se ainda estivermos aqui ao
anoitecer, quando começar a esfriar.
Então pararam e começaram a calçar as
meias e os sapatos.
Depois de novamente calçados, iniciaram a
caminhada ao longo da praia, com o mar à
esquerda e a mata à direita. Fora uma ou outra
gaivota, era um lugar de todo tranqüilo. A mata
era tão densa e emaranhada que quase não se
podia olhar para dentro dela, e nada lá dentro dava
sinal de vida, nem um pássaro, nem sequer um
inseto.
Conchas, algas e anêmonas, ou pequenos
caranguejos nas poças das rochas, tudo isso é
muito bonito; mas, quando se está com sede, ficase
logo cansado de tudo. Os quatro sentiam os pés
pesados e quentes. Susana e Lúcia tinham as
capas de chuva para carregar. Edmundo, um
momento antes de ser apanhado pela magia,
deixara o casaco num banco da estação; assim,
revezava-se com Pedro a levar o pesado sobretudo
do irmão.
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Daí a pouco a terra começou a encurvar-se
para a direita. Cerca de um quarto de hora mais
tarde, depois de atravessarem uma crista pontuda,
o terreno descrevia uma curva bastante fechada.
Estavam de costas para a parte do mar que haviam
encontrado ao saírem da mata. Olhando para a
frente, avistaram além da água outra região
densamente arborizada.
– Será que é uma ilha? – perguntou Lúcia.
– Sei lá – disse Pedro. E continuaram em
silêncio. O terreno em que pisavam se aproximava
cada vez mais do terreno oposto, e eles esperavam
encontrar a qualquer momento um lugar em que
os dois se juntassem. Mas era sempre uma
decepção. Chegaram a alguns rochedos que
tiveram de escalar e do topo puderam ver bastante
longe.
– Ora bolas! Não adianta – disse Edmundo.
– Não vamos chegar nunca à outra mata. Estamos
numa ilha!
Era verdade. Nesse ponto, o canal que os
separava da outra costa não tinha mais de trinta ou
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quarenta metros. Mas era o seu ponto mais
estreito.
– Olhem! – disse Lúcia de repente. – Que é
aquilo? – e apontou para uma coisa sinuosa,
comprida e prateada que se via na praia.
– Um riacho! Um riacho! – gritaram todos
e, mesmo cansados, não perderam um segundo
para descer os rochedos e correr para a água
fresca. Como sabiam que bem mais acima, longe
da praia, a água seria melhor para beber,
dirigiram-se logo para o lugar em que o riacho
saía da mata. O arvoredo ainda era denso, mas o
riacho transformara-se num fundo curso d’água,
deslizando entre altas margens musgosas, de
modo que uma pessoa inclinada podia segui-lo
por uma espécie de túnel vegetal. Ajoelhando-se
junto da primeira poça borbulhante, beberam até
ficar saciados, mergulhando o rosto na água, e
depois os braços até os cotovelos.
– Bem... – disse Edmundo. – E aqueles
sanduíches?
– Não seria melhor economizá-los? –
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atalhou Susana. – Pode ser que mais tarde
precisemos ainda mais deles.
– Seria ótimo – observou Lúcia – se
pudéssemos prosseguir sem ligar para a fome,
como quando a gente estava com sede.
– É... mas e os sanduíches? – repetiu
Edmundo. – Não vale a pena economizá-los, pois
podem estragar. Aqui faz muito mais calor do que
na Inglaterra, e eles estão em nossos bolsos já há
algumas horas.
Assim, dividiram os dois sanduíches por
quatro. Ninguém matou a fome, mas era melhor
do que nada. Depois, começaram a imaginar o que
seria a refeição seguinte. Lúcia queria voltar ao
mar e apanhar camarões, mas desistiu quando
alguém observou que ninguém tinha uma rede.
Edmundo sugeriu que apanhassem nos rochedos
ovos de gaivota, mas, pensando melhor, ninguém
se lembrava de já ter visto um ovo de gaivota.
Mesmo que encontrassem algum, não saberiam
cozinhá-lo. Pedro não teve coragem de dizer que
os ovos, mesmo crus, valeriam a pena. Susana
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ainda achava que não deviam ter comido os
sanduíches tão cedo. Finalmente Edmundo disse:
– Só há uma coisa a fazer: temos de
explorar a mata. Ermitões e cavaleiros andantes, e
outra gente parecida, sempre conseguiram viver,
de uma ou de outra forma, dentro de uma floresta.
Encontravam raízes, sementes, sei lá o que mais...
– Que tipo de raízes? – indagou Susana.
– Acho que raízes de árvores – disse Lúcia.
– Vamos embora – disse Pedro. Edmundo
tem razão. Temos de tentar qualquer coisa.
Começaram a andar ao longo do riacho.
Não foi nada fácil. Quando não eram obrigados a
se abaixar sob os ramos, tinham de passar por
cima deles. Andaram aos trambolhões entre
moitas de flores, rasgando as roupas, molhando os
pés no riacho. E, em torno, apenas um grande
silêncio.
– Olhem! Olhem! – exclamou Lúcia. –
Parece uma macieira.
E era. Subiram arquejantes pela encosta,
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abrindo caminho pelo mato, e acabaram
encontrando uma grande árvore carregada de
maçãs douradas, rijas, sumarentas. Não podia ser
melhor.
– E esta árvore não é a única – disse
Edmundo, de boca cheia. – Olhe ali uma outra,
outra lá...
– Há dezenas, não há dúvida – disse
Susana, deitando fora a semente da primeira maçã
e tirando outra da árvore. – Isto aqui deve ter sido
um pomar, muito tempo atrás, antes que o mato
crescesse.
– Houve então um tempo em que esta ilha
foi habitada – disse Pedro.
– E o que é aquilo? – perguntou Lúcia,
apontando para a frente.
– É um muro, um velho muro de pedra –
disse Pedro.
Abrindo caminho entre os ramos
carregados, alcançaram o muro. Era muito antigo,
arruinado aqui e ali, cheio de musgos e
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trepadeiras, mais alto do que quase todas as
árvores. Ao chegarem mais perto, encontraram
um grande arco, que deveria ter tido antes um
portão, mas agora estava quase totalmente
ocupado pela mais frondosa de todas as macieiras.
Tiveram de quebrar alguns ramos para poder
passar. Quando atravessaram, começaram a
piscar, pois a luz do dia se tornara de repente
muito mais intensa. Achavam-se num amplo
espaço aberto, cercado de muros. Sem árvores: só
mato rasteiro, malmequeres, hera e paredes
cinzentas. Mas o lugar era claro e sereno,
pairando ali uma certa melancolia. Os quatro
dirigiram-se para o centro dele, satisfeitos porque
agora podiam esticar braços e pernas.
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A CASA DO TESOURO
– Isto aqui não era um jardim! – disse
Susana momentos depois. – Aqui havia um
castelo, e este deve ter sido o pátio.
– É isso mesmo – concordou Pedro. –
Aquilo ali, não há dúvida, é a ruína de uma torre.
Aquilo lá deve ter sido um lanço de escada que
levava para o alto da muralha. Olhem aqueles
degraus naquela porta: deve ter sido a entrada do
salão nobre.
– Pela aparência, isso foi há séculos – disse
Edmundo.
– É, há séculos – falou Pedro. – Gostaria de
saber quem viveu neste palácio e há quanto
tempo!
– Tudo isso me causa uma sensação
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estranha – observou Lúcia.
– Verdade, Lu? – perguntou Pedro, olhando
fixamente para a irmã. – Porque comigo está
acontecendo a mesma coisa... A coisa mais
estranha que nos aconteceu neste dia tão estranho.
Pergunto a mim mesmo onde estaremos... o que
pode significar tudo isso...
Enquanto falavam, atravessaram o pátio e
transpuseram a porta do antigo salão, agora muito
semelhante ao pátio, pois o telhado desaparecera,
e havia muito o salão não passava de um enorme
relvado salpicado de malmequeres, embora mais
estreito e curto do que o pátio e com as paredes
mais altas. Do outro lado, cerca de metro e meio
mais alto que tudo, destacava-se uma espécie de
terraço.
– Vocês acham que isto seria realmente um
salão? – perguntou Susana. – Sendo assim, que
vem a ser aquele terraço?
– Boboca! – replicou Pedro (que, de
repente, ficara bastante excitado). – Não está
vendo? Aquilo era o estrado da mesa real, ao
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redor da qual se sentavam o rei e os grandes
senhores. Parece até que você se esqueceu de que
nós mesmos fomos reis e rainhas e tivemos um
estrado igual no nosso salão nobre.
– No castelo de Cair Paravel – continuou
Susana, numa voz cantante e sonhadora – , na foz
do grande rio de Nárnia. Como poderia me
esquecer?
– Parece que estou vendo o nosso castelo! –
disse Lúcia. – Este salão deve ter sido muito
parecido com o grande salão onde demos tantos
banquetes. Podíamos fazer de conta que estamos
de novo em Cair Paravel.
– Infelizmente sem banquete... – comentou
Edmundo. – Está anoitecendo. Vejam como as
sombras estão compridas. E já repararam como
está frio?
– Se temos de passar a noite aqui, o melhor
é fazer uma fogueira – propôs Pedro. – Eu tenho
fósforos. Vamos procurar lenha seca.
A proposta era sensata. Durante meia hora
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trabalharam a valer. O pomar que tinham
atravessado não era grande coisa para uma
fogueira. Experimentaram o outro lado do castelo.
Passando por uma porta lateral, encontraram-se
num labirinto de corredores e velhas salas, que
não passavam agora de um emaranhado de
espinheiros e rosas-bravas. Descobriram uma
brecha na muralha e, penetrando num maciço de
árvores mais antigas e frondosas, acharam muitos
ramos caídos, madeira meio apodrecida, lenha
fina e folhas secas. Juntaram uma boa pilha de
lenha sobre o estrado. Junto à parede do lado de
fora, acabaram descobrindo o poço, todo coberto
de ervas. Quando as afastaram, viram que a água
corria lá embaixo, fresca e cristalina. A volta do
poço, de um dos lados, havia vestígios de um
pavimento de pedra. As meninas foram colher
mais maçãs, e os meninos acenderam o fogo sobre
o estrado, bem no cantinho entre as duas paredes,
que lhes parecia o lugar mais quente e abrigado.
Foi difícil fazer pegar o fogo, mas por fim
conseguiram. Sentaram-se os quatro de costas
para a parede, voltados para a fogueira. Tentaram
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assar maçãs espetadas em pedaços de pau, mas
maçãs assadas só são boas com açúcar. – Além
disso, ficam tão quentes que não podem ser
tocadas com a mão, e quando esfriam já não vale
a pena comê-las. Tiveram, portanto, de se
satisfazer com maçãs cruas, o que levou Edmundo
a afirmar que, afinal, a comida do colégio não era
tão ruim assim.
– Não ia achar ruim se tivesse aqui agora
um bom pedaço de pão com manteiga –
acrescentou ele.
Mas o espírito de aventura já acordara
neles, e nenhum dos quatro, na realidade, preferia
estar no colégio.
Depois de comer a última maçã, Susana
levantou-se e foi ao poço beber água. Voltou com
alguma coisa na mão.
– Olhem! Vejam o que encontrei. –
Entregou a Pedro o que trazia e sentou-se.
Pelo jeito e pela voz, parecia que Susana ia
chorar. Edmundo e Lúcia, ansiosos por ver o que
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Pedro tinha na mão, inclinaram-se para a frente...
para um objeto pequeno e brilhante, que refletia a
luz da fogueira.
– Confesso que não estou entendendo –
disse Pedro, com a voz embargada, passando aos
outros o objeto.
Era uma pequena peça de xadrez, de
tamanho comum, mas extraordinariamente
pesada, por ser de ouro maciço. Tratava-se de um
cavalo cujos olhos eram dois rubis minúsculos, ou
melhor... um deles, porque o outro se perdera.
– Nossa! – disse Lúcia. – É exatamente
igual a um daqueles cavalos de ouro com que
costumávamos jogar em Cair Paravel... quando
éramos reis e rainhas.
– Nada de tristeza! – disse Pedro a Susana.
– Não posso evitar – falou Susana. – Estoume
lembrando daqueles bons tempos. Costumava
jogar xadrez com faunos e gigantes simpáticos.
Fiquei me lembrando das sereias que cantavam...
do meu lindo cavalo... e... e...
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– Bem – interrompeu Pedro, num tom de
voz bastante diferente. – Vamos deixar de
fantasias e pensar a sério.
– Em quê? – perguntou Edmundo.
– Será que ninguém adivinhou onde
estamos?
– Fale logo – disse Lúcia. – Estou sentindo
que há um mistério neste lugar.
– Vamos, Pedro, estamos ouvindo – disse
Edmundo.
– Muito bem: estamos nas ruínas de Cair
Paravel.
– Ora! – exclamou Edmundo. – Como é que
você sabe? Estas ruínas têm séculos. Repare
naquelas árvores. Olhe para aquelas pedras. Há
centenas de anos que não vive ninguém aqui.
– Certo – concordou Pedro. – Aí é que está
o problema. Mas vamos deixar isso para depois.
Consideremos as coisas uma por uma. Primeiro:
este salão é exatamente igual ao de Cair Paravel,
na forma e no tamanho. Imaginando um telhado e
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um chão colorido, em vez da relva, e tapeçarias
nas paredes, temos o salão nobre dos banquetes.
Todos ficaram calados.
– Em segundo lugar – continuou Pedro – , o
poço é exatamente no local do nosso. E também é
igualzinho em forma e tamanho.
Ninguém o interrompeu.
– Em terceiro lugar: Susana acaba de
encontrar uma das nossas peças de xadrez... ou
uma peça igualzinha às nossas. Em quarto lugar:
não se lembram de que, na véspera da chegada
dos embaixadores do rei dos calormanos,
plantamos um pomar logo depois do portão norte?
O mais poderoso espírito das árvores, a própria
Pomona, veio abençoá-lo. E foram aqueles
animaizinhos simpáticos, as toupeiras, que
cavaram tudo. Será possível que tenham se
esquecido da engraçada dona Alvipata, a toupeirachefe,
encostada na enxada, dizendo: "Acredite,
Real Senhor, um dia ainda há de ficar contente
por ter plantado estas árvores frutíferas." E ela
estava com a razão!...
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– Eu me lembro e muito bem – disse Lúcia
batendo palmas.
– Mas repare, Pedro – disse Edmundo – ,
tudo isso que você está dizendo deve ser
bobagem. Para começar, o pomar que plantamos
não chegava até os portões! Não seríamos tão
bobos para fazer uma coisa dessas.
– É claro que não: foi o próprio pomar que
avançou até aqui – explicou Pedro.
– Além disso – continuou Edmundo – , Cair
Paravel nunca foi uma ilha.
– Já pensei nisso também. Mas era... como
é mesmo que se diz... uma península. Quase uma
ilha. Você não acha que pode ter virado uma ilha?
É possível que alguém tenha aberto um canal.
– Espere aí... – disse Edmundo. – Faz
somente um ano que deixamos Nárnia. E quer me
convencer de que, em um ano, os castelos caíram,
as florestas cresceram, as árvores que plantamos
se alastraram... e sei lá mais o quê? Tudo isso é
impossível!
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– Tenho uma idéia – disse Lúcia. – Se isto é
realmente Cair Paravel, deve haver uma porta
junto ao estrado. Devemos estar de costas para
ela. Vocês se lembram... era a porta que dava para
a sala do tesouro.
– Parece que não há porta nenhuma – disse
Pedro, levantando-se.
A parede por detrás deles estava coberta de
hera.
– É fácil verificar – declarou Edmundo,
agarrando um pedaço de lenha. E começou a
golpear a parede revestida de hera.
Tum-tum, batia a madeira contra a pedra,
tum-tum... De repente, bum, um barulho muito
diferente, um som oco de pancada na madeira.
– Opa! Acertamos em cheio! – exclamou
Edmundo.
– Seria melhor arrancar esta hera toda –
propôs Pedro.
– Deixem isso pra lá! – protestou Susana. –
Amanhã teremos muito tempo. Se temos de passar
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a noite aqui, não acho a menor graça uma porta
atrás de mim e um buraco escuro, de onde pode
sair sei lá o que, fora a umidade e as correntes de
ar. E não demora a ficar escuro.
– Que idéia é essa, Susana?! – disse Lúcia,
lançando um olhar de reprovação. Mas os dois
meninos já estavam tão entusiasmados que não
deram ouvidos ao conselho de Susana.
Arrancavam a hera com as mãos e com o canivete
de Pedro, até que este se partiu. Pegaram então o
canivete de Edmundo e continuaram. Não
demorou para que o lugar onde estavam sentados
ficasse coberto de hera. Mas, finalmente, a porta
apareceu.
– Fechada, como era de esperar –
comunicou Pedro.
– Mas a madeira está podre – disse
Edmundo. – É fácil arrancá-la aos pedaços, e a
gente até arranja mais lenha para a fogueira.
Ajudem aqui!
Não foi tão fácil quanto supunham. Antes
de terem terminado, o salão nobre estava envolto
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em penumbra e as primeiras estrelas brilhavam.
Susana não foi a única a sentir um ligeiro calafrio
quando os meninos, de pé sobre um monte de
madeira, esfregaram as mãos e olharam para o
buraco frio e escuro que acabavam de abrir.
– Precisamos de uma lâmpada – disse
Pedro.
– Para quê? – perguntou Susana. – Como
disse Edmundo...
– Disse, mas já não digo! É verdade que
não estou entendendo muito bem, mas logo
veremos. Suponho, Pedro, que você vai descer.
– Não tem outro jeito! Vamos, Susana!
Coragem! Não vamos bancar as crianças, agora
que voltamos para Nárnia. Aqui, você é rainha. E
bem sabe que ninguém pode dormir descansado
com um mistério destes por desvendar.
Tentaram fazer archotes de varas
compridas, mas não deu certo. Se voltavam a
ponta acesa para cima, a chama se apagava; se a
voltavam para baixo, ficavam com as mãos
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chamuscadas e os olhos ardendo. Por fim,
decidiram usar a lanterna que Edmundo ganhara
como presente de aniversário, menos de uma
semana atrás. Edmundo, com a luz, entrou
primeiro; depois Lúcia, Susana e Pedro, fechando
o cortejo.
– Estou no alto de uma escada – anunciou
Edmundo.
– Conte os degraus – sugeriu Pedro.
– Um, dois, três – foi contando Edmundo,
descendo com cuidado, até chegar a dezesseis. –
Pronto, cheguei ao fim!
– Estamos em Cair Paravel! – exclamou
Lúcia. – Eram exatamente dezesseis degraus. – E
ninguém mais falou, até que todos se juntaram no
fundo da escada. Foi então que Edmundo
começou, lentamente, a descrever um círculo com
a lanterna.
– O-o-o-oh! – disseram as crianças ao
mesmo tempo.
Pois todos se convenceram de que era na
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verdade a velha sala de Cair Paravel, onde tinham
reinado como reis e rainhas de Nárnia. Ao centro
havia uma espécie de corredor e, de cada um dos
lados, a pequena distância umas das outras,
erguiam-se ricas armaduras, como cavaleiros
guardando um tesouro. Entre as armaduras havia
prateleiras cheias de coisas preciosas: colares,
pulseiras, anéis, vasos de ouro, grandes dentes de
marfim, diademas e correntes de ouro, e muitas
pedras preciosas amontoadas ao acaso, como se
fossem batatas – diamantes, rubis, esmeraldas,
topázios e ametistas. Debaixo das prateleiras
enfileiravam-se grandes arcas de carvalho,
reforçadas com barras de ferro, muito bem
acolchoadas por dentro. Fazia um frio horrível, e
o silêncio era tal que podiam ouvir a própria
respiração. Os tesouros estavam cobertos de
poeira. A sala, abandonada havia tanto tempo,
entristecia-os e assustava-os um pouco. Foi por
isso que, nos primeiros instantes, ninguém
conseguiu falar.
Depois, começaram a andar de um lado
para o outro, a pegar as coisas, examinando-as
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bem. Era como se encontrassem velhos amigos.
Se você estivesse lá, teria escutado exclamações
como estas:
– Olhem! Os anéis da nossa coroação!
Lembram?...
– Aquela não é a armadura que você usou
no grande torneio das Ilhas Solitárias?
– Lembram que o anão fez isto para mim?
– E quando eu bebi naquela taça enorme?
– Lembram... Vocês lembram?... E, de
repente, Edmundo disse:
– Não podemos gastar as pilhas desta
maneira. Sei lá quantas vezes vamos precisar da
lanterna. O melhor é cada um pegar o que lhe
interessa e irmos lá para fora.
– Temos de levar os presentes – disse
Pedro. Pois, há muito tempo, num Natal passado
em
Nárnia, Susana, Lúcia e Pedro tinham
recebido alguns presentes que, para eles, valiam
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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mais do que todo o reino. Edmundo nada recebera
porque não estava com eles. (A culpa tinha sido
só dele: se quiserem saber como foi, podem ler no
livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa.)
Todos concordaram com Pedro e
avançaram pelo corredor, em direção à porta mais
afastada da sala do tesouro, onde encontraram os
presentes. O de Lúcia era o menor: só um
frasquinho. Mas o frasquinho não era de vidro, era
de diamante, e estava ainda cheio do elixir mágico
que podia curar quase todos os ferimentos e
doenças. Lúcia não disse nada e pareceu muito
solene ao retirar o frasco do lugar onde estava e
guardá-lo consigo. O presente de Susana tinha
sido um arco e flechas e uma trompa. O arco
ainda estava lá, bem como a aljava de marfim
cheia de setas emplumadas, mas...
– Susana, onde está a trompa? – perguntou
Lúcia.
– Puxa vida! – disse Susana, depois de
pensar um pouco. – Agora é que me lembro: eu
estava com ela no último dia, quando fomos caçar
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o Veado Branco. Devo ter perdido a trompa,
quando voltávamos para... para o nosso mundo.
Edmundo assoviou. Perda irreparável, na
verdade, porque a trompa era mágica: era tocar e
nunca faltava o auxílio necessário.
– Justamente o que mais poderia nos ajudar
agora – disse Edmundo.
– Não faz mal – disse Susana – , ainda
tenho o arco.
– Será que a corda ainda está boa, Su? –
perguntou Pedro.
Fosse pela magia na atmosfera da sala do
tesouro ou por qualquer outra coisa, a verdade é
que tudo estava funcionando bem. Havia duas
coisas que Susana fazia realmente bem: manejar o
arco e nadar. Agarrou o arco e deu um puxão na
corda, que começou a vibrar. Um som agudo
encheu a sala. E aquele som despertou nas
crianças, mais que tudo, a lembrança dos velhos
tempos, as batalhas, as caçadas, as festas...
Depois que Susana colocou a aljava ao
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ombro, Pedro foi buscar o seu presente: o escudo
com o grande leão vermelho e a espada real.
Bateu com os dois no chão para sacudir o pó.
Colocou depois o escudo no braço e prendeu a
espada na cintura. A princípio receou que esta
estivesse enferrujada e não saísse da bainha.
Engano. Com um movimento rápido, ergueu a
espada bem alto, iluminando-a à luz da lanterna.
- É a minha espada Rindon: aquela com que
matei o lobo!
Sua voz tinha uma nova vibração: todos
sentiram que se tratava outra vez de Pedro, o
Grande Rei. E em seguida se lembraram de que
tinham de poupar as pilhas.
Subiram a escada, atiçaram a fogueira e
deitaram-se juntinhos para não desperdiçar o
calor. O chão era duro e incômodo, mas acabaram
adormecendo.
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3
O ANÃO
Dormir ao ar livre tem um grande
inconveniente: a gente acorda cedo demais. E
logo que acorda não há remédio senão levantar-se,
porque o chão é duro e incômodo. A situação
ainda piora se para a primeira refeição só houver
maçãs, e se o jantar da véspera tiver consistido
justamente em maçãs. Depois de Lúcia ter dito –
com toda a razão – que fazia uma magnífica
manhã, ninguém encontrou mais nada agradável
para dizer. Edmundo exprimiu o que todos
sentiam:
– Temos de deixar a ilha!
Após beberem água do poço e lavarem o
rosto,
seguiram o riacho até a praia e começaram
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a olhar o canal que os separava do continente.
– Vamos ter de atravessar a nado – falou
Edmundo.
– É fácil para Su – disse Pedro. (Susana
ganhara prêmios de natação no colégio.) – Para os
outros, não sei, não.
Por “outros” ele queria dizer Edmundo, que
mal conseguia dar duas braçadas, e Lúcia, que
mal se agüentava à tona.
– Seja como for – observou Susana – , é
muito possível que haja correntes aqui. Papai vive
dizendo que a gente não deve nadar em lugares
desconhecidos.
– Escute, Pedro – disse Lúcia – , sei que
pareço um prego nadando, no colégio; mas não se
lembra de que todos nós nadávamos muito bem há
muito tempo... se é que foi há muito tempo...
quando éramos reis e rainhas em Nárnia?
Também montávamos muito bem e fazíamos uma
porção de coisas. Você não acha que...
– Ora – replicou Pedro – , naquele tempo
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éramos pessoas grandes. Reinamos durante anos e
anos e aprendemos a fazer tudo. Mas agora
estamos com a nossa verdadeira idade.
– Oh! – exclamou Edmundo, num tom de
voz que obrigou todos a prestarem atenção. – Já
entendi tudo!
– Entendeu o quê? – perguntou Pedro.
– Tudo! Ontem à noite estávamos
intrigados porque saímos de Nárnia há apenas um
ano, mas Cair Paravel parece desabitado há
séculos. Não se lembra? Embora tenhamos
passado muito tempo em Nárnia, quando
retornamos pelo guarda-roupa parecia que não
havia passado tempo algum. É ou não é?
– Continue – disse Susana – , acho que
estou começando a compreender.
– Isso quer dizer – prosseguiu Edmundo –
que quando se está fora de Nárnia a gente perde
toda a noção de como o tempo passa aqui. Por que
então havemos de achar impossível que em
Nárnia tenham passado centenas de anos,
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enquanto para nós passou apenas um?
– Puxa vida! – exclamou Pedro. – Acho que
você tem razão. Vendo as coisas desse jeito, já se
passaram mesmo séculos desde que reinamos em
Cair Paravel! Agora, voltamos a Nárnia como se
fôssemos cruzados, ou anglo-saxões, ou antigos
bretões, ou alguém de regresso à Inglaterra dos
tempos modernos!
– Todos vão ficar emocionados ao nos ver...
– começou Lúcia, quando foi interrompida por
alguém:
– Silêncio! Olhem ali!
Estava acontecendo alguma coisa.
Na terra firme, um pouco à direita, havia
uma floresta; todos tinham certeza de que a foz do
rio ficava além dela. Agora, torneando aquela
ponta, surgira um barco. Passou, deu meia-volta e
começou a avançar ao longo do canal na direção
deles. Um homem remava e um outro estava
sentado no leme com um embrulho na mão, um
embrulho que se torcia e contorcia como se
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estivesse vivo.
Os homens pareciam soldados. Usavam
capacetes de aço e leves cotas de malha. Ambos
tinham barba e a expressão severa. As crianças
fugiram da praia e se esconderam no mato, onde
ficaram imóveis, à espreita.
– Aqui está bom! – disse o soldado do
leme, quando o barco parou em frente deles.
– Não seria bom amarrar uma pedra nos pés
dele, cabo? – sugeriu o outro, descansando os
remos.
– Besteira! – grunhiu o primeiro. – Além
disso, não trouxemos pedra. De qualquer jeito,
com pedra ou sem pedra, ele vai se afogar, pois as
cordas estão bem amarradas.
Levantou-se e ergueu o fardo. Pedro
percebeu que era mesmo uma coisa viva: um
anão, de pés e mãos amarrados, que tentava com
toda a força libertar-se. Ouviu-se qualquer coisa
sibilando. O soldado levantou os braços, deixando
o anão cair no fundo do barco, e tombou dentro da
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água. Então, nadou desesperadamente para a
margem oposta: a seta de Susana acertara-lhe o
elmo. Pedro voltou-se e viu Susana muito pálida,
mas senhora de si, preparando uma segunda seta,
que não chegou a atirar. Porque, assim que o outro
soldado viu cair o companheiro, soltou um grito e
atirou-se na água, e desajeitadamente chegou ao
outro lado, desaparecendo entre os arbustos.
– Depressa! Antes que ele seja arrastado
pela corrente! – gritou Pedro.
Susana e ele, tal qual estavam,
mergulharam e, antes que a água lhes chegasse
aos ombros, agarraram o barco. Em pouco tempo,
tinham arrastado o anão para a margem, e
Edmundo pôs-se ativamente a cortar as cordas
com o canivete. Quando por fim o anão se viu
livre, sentou-se, esfregou os braços e as pernas e
exclamou:
– Digam o que disserem, vocês não
parecem fantasmas!
Como quase todos os anões, era muito
atarracado e peitudo. De pé, devia ter cerca de um
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metro de altura; usava uma barba imensa e suíças
de cabelos ruivos e rebeldes, que lhe encobriam
quase todo o rosto, deixando apenas à vista um
nariz que mais parecia um bico e os negros
olhinhos cintilantes.
– Seja como for – continuou ele – ,
fantasmas ou não, vocês me salvaram a vida.
Muito obrigado.
– E por que haveríamos de ser fantasmas? –
perguntou Lúcia.
– A vida toda me disseram que nestes
bosques ao longo da costa havia mais fantasmas
do que árvores. É o que reza a lenda. Por isso,
sempre que desejam eliminar alguém, é para cá
que o trazem, como fizeram comigo. Queriam
entregar-me aos fantasmas. Por mim, sempre
pensei que iriam me cortar o pescoço ou afogarme.
Nunca acreditei muito em fantasmas. Mas
aqueles valentões que vocês alvejaram
acreditavam. Tinham mais medo do que eu.
– Ah! – exclamou Susana. – Foi por isso
então que fugiram!
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– O quê?! – disse o anão.
– Fugiram – confirmou Edmundo – ,
fugiram para a terra.
– Não atirei para matar – falou Susana.
Ela não queria que pensassem que pudesse
errar o alvo a uma distância tão pequena. O anão
resmungou:
– Hum! Isso é mau. Pode trazer futuras
complicações. A não ser que eles fiquem de bico
calado para salvarem a pele.
– Por que queriam afogá-lo? – perguntou
Pedro.
-Porque sou um terrível criminoso, sem
dúvida alguma – disse o anão, alegremente. – Mas
isso é uma história comprida. Neste instante só
estou pensando se vocês me convidariam para
comer alguma coisa. Não fazem idéia do apetite
que dá ser condenado à morte.
– Só temos maçãs – lamentou-se Lúcia.
– E melhor do que nada, mas peixe fresco é
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ainda melhor – disse o anão. – No fim, parece que
vocês é que serão meus convidados. Vi no barco
caniços de pesca. Aliás, o barco tem de ser levado
para o outro lado da ilha: não convém que as
pessoas do continente apareçam por aqui e dêem
com ele.
– Eu já devia ter pensado nisso! – falou
Pedro. Acompanhadas pelo anão, as quatro
crianças entraram no barco. O anão assumiu
imediatamente o comando das operações. Como
os remos eram grandes demais para ele, Pedro
remou, e o anão foi conduzindo o barco para o
norte, ao longo do canal, virando depois para leste
e contornando o extremo da ilha. Daí via-se todo
o curso do rio, todas as baías e cabos da costa.
Pareceu-lhes que alguns lugares não lhes eram
estranhos, mas a floresta, que crescera muito,
dava a tudo um ar diferente. Quando chegaram ao
mar alto, o anão começou a pescar. Apanharam
uma grande quantidade de trutas coloridas, um
peixe muito bonito, que se lembravam de já terem
comido em Cair Paravel.
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Depois, levaram o barco para uma angra,
onde o amarraram. O anão, que era muito
eficiente (existem anões maus, é verdade, mas não
conheço nenhum que seja bobo), abriu os peixes,
limpou-os e disse:
– Só nos falta a lenha.
– Temos alguma no castelo – falou
Edmundo. O anão pôs-se a assoviar baixinho.
– Com trinta diabos! Quer dizer que existe
mesmo um castelo?
– Só as ruínas – informou Lúcia.
O anão olhou para todos os lados com uma
expressão esquisita.
– E quem é que... – mas não terminou a
frase, dizendo: – Não interessa. Vamos primeiro à
comida. Só quero que me digam uma coisa: vocês
juram mesmo que ainda estou vivo? Têm certeza
de que não morri afogado? Sabem mesmo se não
somos todos fantasmas?
Depois de o terem tranqüilizado, o
problema era saber qual a melhor maneira de
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levar o peixe. Não tinham cesto nem corda para o
prenderem. Acabaram utilizando o chapéu de
Edmundo, pois só ele tinha chapéu. Claro que
Edmundo teria ficado uma fera se não estivesse
caindo de fome.
O anão, a princípio, não se sentiu muito
bem
no castelo. Olhava para todos os cantos,
fungava e dizia:
– Hum! Tem um ar esquisito. E cheira a
fantasma.
Mas, quando chegou a vez de acender o
fogo e de mostrar como se assam trutas frescas,
animou-se. Comer peixe tirado da brasa com um
canivete, para cinco pessoas, não é mole; por isso,
quando a refeição acabou, não é de admirar que
houvesse alguns dedos queimados. Mas, como
eram nove horas e estavam acordados desde as
cinco, ninguém ligou muito para as queimaduras.
Depois de arrematarem com um gole de água do
poço e uma maçã, o anão tirou do bolso um
cachimbo do tamanho do seu braço, encheu-o
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com cuidado e, soprando uma grande baforada de
fumo aromático, disse apenas:
– Muito bem!
– Conte-nos primeiro a sua história –
propôs Pedro. – Depois lhe contaremos a nossa.
– Como foram vocês que me salvaram a
vida, é justo que lhes faça a vontade. Mas nem sei
por onde começar. Antes de tudo, tenho de
confessar que sou um mensageiro do rei Caspian.
– De quem? – perguntaram os quatro ao
mesmo tempo.
– De Caspian X, rei de Nárnia (longo seja o
seu reinado!). Isto é, ele é que devia ser rei de
Nárnia, e esperamos que ainda venha a ser um dia.
Por enquanto, é apenas o nosso rei, o rei dos
antigos narnianos...
– Por favor – disse Lúcia – quem são os
antigos narnianos?
– Somos nós, é claro – respondeu o anão. –
Somos uma espécie de rebeldes.
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– Já estou começando a entender – falou
Pedro. – Então Caspian é o chefe dos antigos
narnianos?
– Sim, de certa forma – respondeu o anão,
cocando a cabeça, meio atrapalhado. – Se bem
que ele seja, na verdade, um dos novos narnianos,
um telmarino, não sei se me compreendem.
– Não entendo patavina! – disse Edmundo.
– Isto é mais complicado que a história da
Inglaterra – declarou Lúcia.
– Que espeto! – exclamou o anão. – Eu é
que não soube me explicar direito. Prestem
atenção. Acho que, no fim das contas, é melhor
recuar até o princípio da história para contar-lhes
como Caspian cresceu na corte do tio e como
agora passou para o nosso lado. Mas é uma longa
história.
– Melhor! – gritou Lúcia. – Adoramos
histórias! Foi assim que o anão se ajeitou para
contar a sua história. Não irei contá-la para você
com as palavras dele, nem com as perguntas das
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crianças, porque seria uma confusão danada, e
sem fim. Mas o principal da história é o seguinte...
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4
O ANÃO CONTA A
HISTÓRIA DO PRÍNCIPE
CASPIAN
O príncipe Caspian vivia num grande
castelo no centro de Nárnia, com seu tio Miraz, rei
de Nárnia, e sua tia, que tinha cabelo ruivo e se
chamava Prunaprismia. Seu pai e sua mãe tinham
morrido, e não havia ninguém que Caspian
estimasse tanto quanto a sua velha ama. Embora
fosse príncipe e tivesse belíssimos brinquedos, o
seu momento preferido era aquele em que, depois
de arrumados os brinquedos, a ama começava a
contar-lhe histórias.
Caspian não gostava dos tios, mas, uma ou
duas vezes por semana, o tio mandava chamá-lo e
os dois passeavam durante meia hora, no terraço
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do castelo. Um dia, enquanto passeavam, o rei lhe
disse:
– Já é tempo de você aprender a montar e a
manejar a espada. Sabe que sua tia e eu não temos
filhos, de modo que, quando eu me for, você
provavelmente será rei. Não gostaria disso?
– Não sei, titio – respondeu Caspian,
– Não sabe como? O que você podia querer
de melhor?
– Bem... é que eu gostaria...
– Gostaria de quê?!
– Gostaria... gostaria de ter vivido nos
velhos tempos – disse Caspian, que ainda não
passava de um garotinho.
Até aí, o Rei Miraz tinha falado naquele
tom de voz indiferente que certos adultos
costumam usar e que mostra que não têm o
mínimo interesse no que lhe estão dizendo. Mas
nesse instante, de repente, fitou Caspian com
muita atenção.
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– O quê?! De que velhos tempos está
falando?
– Titio não sabe? Dos tempos em que tudo
era diferente. Em que os animais falavam, em que
as fontes e as árvores eram habitadas por bonitas
criaturas, chamadas náiades e dríades. E havia
também anões, e os bosques estavam povoados de
pequeninos faunos, que tinham patas iguais às dos
bodes, e...
– Conversa! – interrompeu o tio. –
Conversa para tapear criança. Você já está grande
demais para isso. Na sua idade, devia estar
pensando em batalhas e aventuras, e não em
contos da carochinha.
– Mas naquele tempo também havia
batalhas e aventuras. Maravilhosas aventuras!
Houve até uma Feiticeira Branca, que pretendia
ser rainha de Nárnia. Era tão má que, enquanto ela
reinou, foi sempre inverno. Vieram então, não sei
de onde, dois meninos e duas meninas, que
mataram a feiticeira e foram coroados reis e
rainhas. Eram Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia.
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Reinaram durante muito tempo, e todos foram
muito felizes... e tudo isso foi por causa de
Aslam...
– Quem é esse Aslam? – indagou Miraz.
Se Caspian fosse um pouco mais
experiente, teria percebido, pelo tom de voz do
tio, que o melhor era calar-se. Mas continuou:
– Não sabe? Aslam é o Grande Leão, que
vem de além-mar.
– Quem andou botando essas bobagens na
sua cabeça? – a voz do rei era ameaçadora.
Caspian teve medo e não respondeu.
– Nobre príncipe – insistiu Miraz, largando
a mão de Caspian – , exijo que me responda. Olhe
nos meus olhos e diga-me quem tem lhe contado
essas refinadas mentiras.
– Foi... foi a ama – gaguejou Caspian,
desandando a chorar.
– Acabe imediatamente com isso! –
ordenou o tio, agarrando-o pelos ombros e
sacudindo-o com força. – Já falei! E não me
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venha de novo com essas tolices. Esses reis e
rainhas nunca existiram. Onde é que você já viu
dois reis ao mesmo tempo? Aslam é pura
invencionice. Não há leão nenhum, fique
sabendo! E os animais nunca falaram!
Compreendeu?
– Compreendi – soluçou Caspian.
– E, agora, ponto final nesta conversa.
O rei chamou um lacaio e ordenou
friamente:
– Leve Sua Alteza aos seus aposentos e
diga à ama que compareça aqui imediatamente!
Só no dia seguinte Caspian percebeu o que
tinha feito, ao descobrir que a ama fora despedida
sem poder sequer dizer-lhe adeus. Foi informado,
então, que iria ter um preceptor.
Sentiu muita falta da ama e derramou
muitas lágrimas de saudade. Muito infeliz, voltou
a pensar nas velhas histórias de Nárnia, ainda
mais do que antes. Todas as noites sonhava com
anões e dríades, e tentava desesperadamente fazer
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com que os gatos e cães do castelo falassem com
ele. Mas só conseguia que os gatos rosnassem e
que os cães sacudissem a cauda.
Caspian tinha certeza de que ia detestar o
preceptor; mas quando este apareceu, passada
uma semana, viu que era uma dessas pessoas a
quem é impossível querer mal. Nunca tinha visto
um homem tão baixo e tão gordo. Usava uma
barba pontuda e prateada, que lhe descia até a
cintura; o rosto, moreno e enrugado, era muito
feio, mas ao mesmo tempo muito bondoso e
inteligente. Sua voz era grave, mas ele tinha olhos
tão alegres que só quem o conhecesse bem podia
dizer quando ele estava brincando ou falando a
sério. Seu nome era doutor Cornelius.
De todas as aulas que tinha com o doutor
Cornelius, aquela de que Caspian mais gostava
era
História. Tirando as histórias que a ama lhe
contara, nada sabia até então da história de
Nárnia. Foi assim com grande espanto que
aprendeu que só recentemente a família real se
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instalara no país.
– Foi um antepassado de Vossa Alteza,
Caspian I, que conquistou Nárnia e fez dela o seu
reino – disse o doutor Cornelius. – Foi ele quem
trouxe a sua gente para cá. Porque vocês não são
narnianos de origem, mas telmarinos. Vieram
todos de Teimar, para lá das Montanhas
Ocidentais. Por isso, Caspian I é chamado de
Caspian, o Conquistador.
– Mas, doutor Cornelius, quem vivia em
Nárnia antes que viéssemos de Teimar?
– Antes da conquista dos telmarinos não
havia homens em Nárnia... ou melhor, havia
poucos.
– O que, então, o meu antepassado venceu?
– O que não, Alteza, quem – corrigiu o
preceptor. – Acho que está na hora de deixarmos a
História e passarmos à gramática.
– Ainda não, por favor. Só queria saber se
houve alguma batalha, e por que é que chamam
Caspian de Conquistador, se não havia ninguém
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com quem lutar?
– Eu falei que havia poucos “homens” em
Nárnia – disse o doutor Cornelius, olhando de um
modo muito estranho para o jovem príncipe.
Durante um momento, Caspian não
percebeu nada, mas de repente teve um
sobressalto.
– Quer dizer que havia outras coisas? –
perguntou, ansiosamente. – Quer dizer que era
mesmo como nas histórias? Havia...?
– Psiu! Nem mais uma palavra! –
interrompeu-o doutor Cornelius. – Já esqueceu
que a ama foi despedida por falar da antiga
Nárnia? O rei não gosta dessa conversa. Se me
apanha revelando-lhe segredos, dá-lhe uma surra
de chicote e corta a minha cabeça.
– Mas por quê?! – indagou Caspian.
– Vamos à gramática – disse o doutor
Cornelius, voltando a falar alto. – Queira Vossa
Alteza abrir na página 4 do seu Jardim gramatical
ou Árvore morfológica aprazivelmente ao alcance
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de talentos jovens.
A partir desse momento, só falaram de
verbos e substantivos até a hora do almoço; mas
acho que Caspian não aprendeu muito. Estava
muito nervoso. Tinha certeza de que o doutor
Cornelius não lhe teria dito tanta coisa, caso não
tivesse a intenção de dizer-lhe outras, mais cedo
ou mais tarde.
Não se enganou. Dias depois, o preceptor
disse-lhe:
– Esta noite vou dar-lhe uma lição de
astronomia. Tarde da noite, dois nobres planetas,
Tarva e Alambil, vão cruzar-se a menos de um
grau um do outro. Há mais de dois séculos que
não se observa essa conjunção, e Vossa Alteza
não viverá para vê-la novamente. É melhor que vá
deitar-se um pouco mais cedo; quando se
aproximar o momento, irei acordá-lo.
Isso não tinha nada a ver com a antiga
Nárnia, que era o que interessava a Caspian, mas,
de qualquer forma, levantar-se no meio da noite é
sempre uma aventura, e ele ficou contente.
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Quando sentiu que o sacudiam de leve,
achou que tinha dormido apenas alguns minutos.
Sentou-se na cama e viu que o luar invadia o
quarto. Doutor Cornelius, envolto num manto
com capuz e segurando uma lamparina, estava ao
pé da cama. Caspian lembrou-se logo do que
tinham combinado. Levantou-se e vestiu-se.
Embora fosse verão, a noite estava mais fria do
que esperava. Mais satisfeito ficou quando o
preceptor o envolveu numa capa igual à sua e lhe
entregou um par de chinelos quentes e macios.
Assim vestidos, dificilmente seriam
reconhecidos nos corredores escuros. Sem fazer
barulho, aluno e mestre saíram do quarto.
Passaram por muitos corredores, subiram
várias escadas, até que, entrando por uma portinha
que dava para um torreão, chegaram ao ar livre.
Lá embaixo, cheios de sombra ou reflexos,
estendiam-se os jardins do castelo, enquanto no
alto brilhavam a lua e as estrelas. Chegaram enfim
à porta que dava para a grande torre central.
Caspian estava cada vez mais excitado, pois
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nunca lhe fora permitido subir aquela escada. Era
íngreme e comprida, mas, quando chegou ao
terraço da torre, recobrou o alento. Valera a pena.
À direita, muito ao longe, divisavam-se as
Montanhas Ocidentais. À esquerda, rebrilhava o
Grande Rio. Tudo estava tão calmo, que se ouvia
o rugir da água no Dique dos Castores, a um
quilômetro de distância. Não tiveram dificuldade
em localizar as duas estrelas. Estavam muito
baixas na linha do horizonte, ao sul, pertinho uma
da outra, e brilhavam como duas luzinhas.
– Vão bater? – perguntou Caspian, receoso.
– Não, meu príncipe – disse o doutor,
baixinho. – Os grandes senhores do céu superior
conhecem muito bem os passos de sua dança.
Olhe bem para elas. Seu encontro é auspicioso e
indica que um grande bem vai acontecer ao triste
reino de Nárnia. Tarva, o Senhor da Vitória, saúda
Alambil, a senhora da Paz. Estão chegando ao
ponto máximo de aproximação.
– Que pena aquela árvore estar na frente! –
disse Caspian. – Veríamos muito melhor da torre
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ocidental, embora não seja tão alta.
Por uns momentos, o doutor Cornelius, de
olhos fixos em Tarva e Alambil, ficou em
silêncio. Respirou fundo e voltou-se para Caspian:
– Acaba de ver o que nenhum homem hoje
vivo jamais viu ou verá. Tem razão: teríamos
visto ainda melhor da outra torre. Mas tive um
motivo para trazê-lo aqui.
O aluno levantou os olhos, mas o mestre
tinha o rosto quase todo encoberto pelo capuz. O
doutor continuou:
– A vantagem desta torre é que temos seis
salas vazias abaixo de nós e uma longa escada;
além do mais, a porta ao fundo está fechada à
chave. Ninguém poderá ouvir-nos.
– Vai então dizer-me o que não quis dizer
outro dia? – perguntou Caspian.
– Vou, mas não se esqueça de uma coisa: só
aqui, no alto da Grande Torre, poderemos falar
desse assunto. Promete?
– Prometo – disse Caspian. – Mas, por
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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favor, continue.
– Preste atenção: tudo o que lhe disseram
sobre a antiga Nárnia é verdade. Nárnia não é a
terra dos homens. É a terra de Aslam, das árvores
despertas, das náiades visíveis, dos faunos, dos
sátiros, dos anões e dos gigantes, dos centauros e
dos animais falantes. Foi contra eles que lutou
Caspian I. Foram vocês, os telmarinos, que
calaram os animais, as árvores e as fontes; que
mataram e expulsaram os anões e os faunos; são
vocês que pretendem agora desfazer até a
lembrança do que existiu. O rei não consente
sequer que se fale deles.
– Desejaria que não tivéssemos feito nada
disso! – disse Caspian. – Mas estou muito feliz
por saber que tudo é verdade, ainda que tudo
tenha acabado.
– Muitos de sua raça desejam a mesma
coisa, em segredo.
– Mas, doutor, por que me diz a sua raça?
Você não é também um telmarino?
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– Pareço um telmarino?
– De qualquer modo, você é um homem.
– Acha que sou? – insistiu o doutor, numa
voz mais grave, ao mesmo tempo que deixava cair
o capuz, descobrindo o rosto iluminado pelo luar.
Caspian compreendeu de súbito a verdade,
espantado de não ter descoberto isso mais cedo. O
doutor Cornelius era tão baixinho, tão gordo, e
tinha uma barba tão comprida! Dois pensamentos
lhe acudiram. Um de medo: “Não é um homem, é
um anão e trouxe-me até aqui para me matar.” O
outro foi de grande contentamento: “Afinal, ainda
há anões, e vi um deles com os meus próprios
olhos.”
– Adivinhou – disse o doutor. – Ou quase.
Não sou um anão puro, pois parte do meu sangue
é humano. Muitos anões escaparam, depois das
grandes batalhas, e continuaram a viver, cortando
a barba, usando sapatos de tacão alto, fazendo-se
passar por homens. A raça misturou-se com a dos
telmarinos. Sou um desses meio-anões; se algum
dos meus parentes, algum anão verdadeiro, ainda
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vivesse em qualquer parte do mundo, iria
desprezar-me como traidor. No entanto, ao longo
de todos estes anos, nunca esquecemos a nossa
gente, nem qualquer das outras felizes criaturas de
Nárnia, nem os tempos de liberdade há muito
perdidos.
– Sinto muito, doutor – disse Caspian – ,
sabe que não foi minha culpa...
– Não estou dizendo essas coisas para
censurá-lo, estimado príncipe. Há de perguntar
por que as digo. Pois muito bem! Por dois
motivos. Primeiro: porque o meu velho coração
está cansado de guardar esses segredos. Segundo:
para que um dia, quando o meu príncipe for rei,
possa ajudar-nos, pois sei que, embora telmarino,
tem amor às coisas do passado.
– E é verdade – assentiu Caspian. – Mas
como poderei ajudá-los?
– Você pode ser bom para aqueles que,
como eu, ainda restam da raça dos anões. Pode
reunir à sua volta sábios e magos e procurar os
meios de reanimar as árvores. Pode vasculhar
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todos os esconderijos e lugares inóspitos, onde
talvez ainda vivam faunos e animais falantes.
– Acha que ainda existem alguns? –
perguntou Caspian ansiosamente.
– Não sei... não sei – disse o doutor, com
um suspiro fundo. – Às vezes chego a recear que
não haja mais nenhum. Passei a vida procurando
os vestígios deles. Já me aconteceu julgar ouvir
um batuque de anões nas montanhas. Por vezes,
nos bosques, pareceu-me vislumbrar faunos e
sátiros dançando. Mas, sempre que chegava ao
local onde julgava tê-los visto, não encontrava
nada. Muitas vezes perdi a esperança, mas sempre
acontece algo que nos faz ter esperança de novo.
Não sei... Mas você pode, pelo menos, procurar
ser um rei como o Grande Rei Pedro dos tempos
antigos, em vez de seguir o exemplo de seu tio.
– Quer dizer que é verdade o que dizem dos
reis e rainhas e da Feiticeira Branca?
– Claro que é. O seu reinado foi a Idade de
Ouro de Nárnia, e o país nunca o esqueceu.
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– Eles viveram neste castelo, doutor?
– Não, meu caro príncipe. Este castelo é
recente. Foi o seu bisavô que mandou construí-lo.
Quando os dois filhos de Adão e as duas filhas de
Eva foram coroados, pelo próprio Aslam, reis e
rainhas de Nárnia, viveram no castelo de Cair
Paravel. Nenhum ser vivo jamais contemplou esse
lugar abençoado, e é possível que as próprias
ruínas tenham desaparecido. Parece que ficava
muito longe daqui, na foz do Grande Rio, à beiramar.
– Ufa! – exclamou Caspian, com um
arrepio. – Nos Bosques Negros? Onde... onde
vivem os fantasmas?
– O príncipe fala de acordo com o que lhe
ensinaram. Mas tudo isso é mentira. Não há
fantasmas lá; isso é invenção dos telmarinos. Os
monarcas de sua raça têm pavor do mar, porque
não podem esquecer que, em todas as histórias,
Aslam veio de além-mar. Não se aproximam dele,
nem querem que ninguém se aproxime. Por isso
deixam crescer as florestas que os separam da
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costa. E porque brigaram com as árvores têm
medo dos bosques. E, porque têm medo dos
bosques, acham que estes são povoados de
fantasmas. E são os próprios reis que, odiando o
mar, acreditam em parte nessas histórias e levam
os outros a acreditar. Sentem-se mais seguros
sabendo que ninguém em Nárnia ousa aproximarse
da costa e olhar o mar... olhar para o país de
Aslam, para o nascente...
Houve um silêncio profundo. Então, doutor
Cornelius disse:
– Vamos. Já ficamos aqui muito tempo. É
hora de voltar a dormir.
– Já?! – protestou Caspian. – Podia ficar
horas e horas falando dessas coisas.
– Podem começar a procurar-nos... –
explicou o doutor.
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5
AS AVENTURAS DE
CASPIAN NAS MONTANHAS
Caspian e o preceptor conversaram muitas
vezes a sós no alto da Grande Torre, e o primeiro
foi aprendendo muitas coisas acerca da antiga
Nárnia. Ocupava quase todas as suas horas livres
(que não eram muitas) sonhando com os velhos
tempos, desejando que eles voltassem. Sua
educação agora começara a sério. Aprendeu
esgrima e natação, a montar, a atirar, a tocar
flauta, a caçar veados e esquartejá-los para
aproveitar-lhes a carne, além de estudar
cosmografia, direito, física, alquimia e
astronomia. Das artes mágicas aprendeu apenas a
teoria porque, segundo o doutor Cornelius, a
prática não era estudo próprio para um príncipe.
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– Eu mesmo – disse-lhe certa vez o doutor
– sei muito pouco de magia; as experiências que
faço não têm a menor importância.
De navegação (uma nobre e heróica arte,
dizia o doutor) não aprendeu nada, porque o rei
Miraz não gostava do mar e odiava os navios.
Caspian também aprendeu muito por si
mesmo, a partir do que via e ouvia. Quando
pequenino, não sabia explicar por que não gostava
da tia, a rainha Prunaprismia. Agora compreendia:
é que também ela não gostava dele. Ele também
começou a ver que Nárnia era um país triste, com
impostos excessivamente pesados, leis muito
severas e um rei cruel.
Passado algum tempo, a rainha adoeceu, e
houve grande movimento no castelo. Os médicos
iam e vinham, e os cortesãos falavam em voz
baixa. Foi no começo do verão. Uma noite, no
meio de toda essa agitação, Caspian, que se
deitara havia poucas horas, foi de repente
acordado pelo doutor Cornelius.
– Astronomia, doutor? – perguntou ele.
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– Psiu! Confie em mim e faça exatamente o
que lhe disser: agasalhe-se bem, pois tem uma
longa viagem à sua frente.
Caspian ficou muito surpreso, mas
aprendera a ter confiança em seu preceptor e
obedeceu sem demora. Quando acabou de se
vestir, o doutor lhe disse:
– Trouxe-lhe um saco. Vamos colocar nele
toda a comida que pudermos encontrar sobre a
mesa.
– Mas os camareiros estão na sala!
– Dormem a sono solto e não acordarão tão
cedo. Sou um mago sem grandes poderes, mas os
que tenho ainda chegam para provocar um sono
encantado.
De fato, os camareiros ressonavam alto,
estendidos nas cadeiras. Sem perda de tempo, o
doutor Cornelius cortou o que sobrara do frango,
pegou algumas fatias de carne de veado, pão,
maçã e uma garrafinha de vinho bom, colocando
tudo dentro do saco, que entregou a Caspian.
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– Trouxe a sua espada? – perguntou o
doutor.
– Trouxe – respondeu Caspian.
– Vista este manto e cubra também com ele
o saco e a espada. Isso! Agora vamos à Grande
Torre, pois precisamos conversar.
Quando chegaram ao alto da torre (era uma
noite enevoada), o doutor Cornelius lhe disse:
– Nobre príncipe, tem de abandonar
imediatamente o castelo e tentar a sorte por este
vasto mundo. Sua vida aqui corre perigo.
– Por quê? – indagou Caspian.
– Porque você é o verdadeiro rei de Nárnia:
Caspian X, filho e herdeiro de Caspian IX. Vida
longa para o rei! – E, de repente, para grande
espanto de Caspian, o preceptor ajoelhou-se e
beijou-lhe a mão.
– O que é isso? Não estou entendendo
nada...
– O que me espanta – disse o doutor – é
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você nunca ter perguntado por que, sendo filho do
rei Caspian, não era você mesmo o rei. Todos,
menos você, sabem que Miraz é um usurpador.
Quando começou a governar, não teve a coragem
de apresentar-se como rei: intitulou-se apenas
príncipe regente. Mas então sua mãe faleceu, ela
que fora tão boa rainha, a única telmarina que me
tratou bem. Um após outro, todos os nobres que
tinham conhecido o seu pai foram morrendo e
desaparecendo. Belisar e Uvilas foram atingidos
por setas durante uma caçada: mero acidente,
como se divulgou. A grande família dos
Passáridas foi para o Norte lutar com os gigantes e
por lá desapareceu. Arlian e Erimon foram
condenados por alta traição, sem sequer serem
julgados. Os dois irmãos do Dique dos Castores
foram trancafiados como loucos. E, para terminar,
Miraz convenceu sete nobres de que, entre todos
os telmarinos, eram os únicos que não temiam o
mar, e deviam partir para o Oceano Oriental, em
busca de novas terras. Nunca mais voltaram, é
claro. Quando já não havia quem pudesse
defender o meu príncipe, os bajuladores pediram___________________________________
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lhe que se deixasse coroar rei: e ele concordou,
naturalmente.
– E ele quer me matar também? –
perguntou Caspian.
– Sem dúvida alguma.
– Mas por quê?... Por que não me matou há
mais tempo? Que mal eu fiz?
– Míraz mudou de opinião a seu respeito,
em virtude do que aconteceu há apenas duas
horas. A rainha acaba de dar à luz um filho.
– O que uma coisa tem a ver com a outra?
– Não entendeu?! Então, que proveito tirou
das minhas lições de história e de política? Ouça:
enquanto o rei não tinha filhos, estava disposto a
deixar que você fosse rei quando ele morresse.
Mesmo sem ter por você grande amizade, preferia
que o trono fosse seu, e não de um estranho. Mas
agora, que tem um filho, quer fazer dele o
herdeiro. Você passou a ser um empecilho, e ele
fará tudo para afastá-lo do caminho.
– Ele é tão ruim assim? Será mesmo capaz
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de me matar?
– Matou também o seu pai – disse doutor
Cornelius.
Caspian sentiu-se mal e calou-se.
– Um dia poderei contar-lhe essa história –
continuou o doutor – , mas não agora. Não temos
tempo a perder. Você tem de fugir imediatamente.
– Vem comigo? – perguntou Caspian.
– Não. Seria muito arriscado. É mais fácil
seguir dois do que um, caro príncipe. Nobre rei
Caspian, chegou a hora da coragem. Você tem de
partir só e imediatamente. Veja se consegue
atravessar a fronteira do Sul para chegar à corte de
Naim, rei da Arquelândia. Ele poderá ajudá-lo.
– Nunca mais nos veremos? – perguntou
Caspian, com a voz trêmula.
– Espero que sim, nobre rei – respondeu o
doutor. – Pois não é você o único amigo com que
posso contar? Tenho as minhas artes mágicas...
Mas, por ora, o importante é ganhar tempo. Aqui
estão dois presentes. Esta bolsinha de ouro... bem
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pouco, é certo, quando todos os tesouros do
castelo pertencem a você, de direito. E aqui está
outra coisa mais valiosa.
Passou às mãos de Caspian um objeto que
ele mal distinguiu, mas que, pelo tato, percebeu
que era uma trompa.
– É o mais sagrado tesouro de Nárnia –
disse doutor Cornelius. – Quando era jovem,
passei por muita coisa e proferi muitas palavras
mágicas, na esperança de encontrar a trompa que
pertenceu à rainha Susana. Ficou aqui quando ela
desapareceu de Nárnia, ao findar a Idade de Ouro.
Quem quer que a toque, receberá um estranho, um
misterioso auxílio – que ninguém sabe dizer. Pode
ser que tenha o poder de trazer do passado a
rainha Lúcia e o rei Edmundo, a rainha Susana e o
Grande Rei Pedro, para restaurar a ordem natural
das coisas. Pode ser que tenha o poder de invocar
o próprio Aslam. Fique com ela... mas só a utilize
quando estiver em grande dificuldade. Depressa!
A portinha que dá para o jardim está aberta. É lá
que nos separamos.
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– Posso levar Destro, meu cavalo?
– Já está selado, à sua espera, no alto do
pomar.
Enquanto desciam a longa escada em
caracol, o doutor Cornelius, muito baixinho, foi
dando instruções e conselhos. Caspian sentiu que
lhe faltava a coragem, mas procurou não esquecer
nada. Uma rajada de ar fresco no jardim, um
caloroso aperto de mão do doutor, o relinchar
alegre de Destro – e assim Caspian X deixou o
palácio de seus pais.
Ao olhar para trás, viu os fogos de artifício
com que se festejava o nascimento do novo
príncipe.
Cavalgou à toda para o Sul, atravessando a
floresta por veredas e atalhos enquanto ainda se
encontrava em terreno conhecido. Preferiu depois
a estrada principal. A viagem inesperada excitara
tanto o cavalo quanto o dono. Caspian, que se
despedira do doutor com lágrimas nos olhos,
sentia-se agora cheio de coragem e, até certo
ponto, feliz, ao pensar que era o rei correndo rumo
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à aventura, espada à cinta, levando consigo a
trompa mágica da rainha Susana. Quando, porém,
o dia começou a clarear, acompanhado de
chuviscos, e ele olhou em torno e viu apenas
bosques desconhecidos, regiões áridas e
montanhas azuis, o mundo pareceu-lhe imenso e
misterioso, e ele sentiu-se pequenino e assustado.
Assim que o dia clareou de todo, deixou a
estrada e encontrou uma clareira relvada, onde
podia descansar. Tirou a sela de Destro para que
este pastasse à vontade, comeu um pouco de
frango, bebeu um pouco de vinho e adormeceu. A
tarde já ia alta quando acordou. Comeu mais um
pouco e recomeçou a viagem. Ao anoitecer, a
chuva caía em bátegas. Os trovões enchiam o ar, e
Destro começou a ficar nervoso. Entraram por um
imenso pinhal, e Caspian lembrou-se das muitas
histórias que ouvira sobre as árvores, inimigas do
homem. Afinal (pensou) ele era um telmarino,
pertencia à raça que derruba árvores e estava em
guerra aberta com todas as coisas selvagens.
Ainda que fosse diferente dos outros telmarinos,
as árvores não podiam saber de nada.
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E não sabiam mesmo. O vento virou
tempestade, e as árvores rugiam e estalavam no
caminho. Houve então um grande estrondo, e uma
árvore caiu atravessando a estrada assim que eles
passaram.
– Calma, Destro, calma! – repetia Caspian,
acariciando a cabeça do cavalo. Mas ele mesmo
estava trêmulo, sabendo que escapara à morte por
um triz. Os relâmpagos faiscavam, e o ribombar
dos trovões parecia despedaçar o céu. Destro
corria em disparada; Caspian, ainda que bom
cavaleiro, não tinha força para dominá-lo. A custo
conseguia manter-se na sela, certo de que sua vida
estava presa por um fio naquela louca cavalgada.
Eis que, de súbito, quase sem ter tempo para sentir
a dor, alguma coisa lhe bateu na fronte e ele
perdeu os sentidos.
Quando voltou a si, Caspian estava deitado
perto de uma fogueira, sentindo uma horrível dor
de cabeça. Ouviu falar baixinho:
– Temos de resolver o que vamos fazer com
ele, antes que acorde.
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– Matá-lo! – disse outra voz. – Não
podemos deixá-lo vivo: iria trair-nos.
– Deveríamos ter feito isso na hora, ou
então deixado ele sozinho – atalhou uma terceira
voz.
– Não podemos matá-lo agora; não depois
de termos tratado seus ferimentos. Seria o mesmo
que assassinar um hóspede.
– Senhores – disse Caspian, numa voz que
era quase um murmúrio – , decidam o que
quiserem a meu respeito, mas peço-lhes que
tratem bem do meu cavalo.
– Seu cavalo fugiu muito antes de o
encontrarmos – disse uma voz roufenha, que
parecia vir da terra.
– Não se deixem iludir com palavrinhas
doces – falou a segunda voz. – Por mim, insisto
em...
– Calma aí! – exclamou a terceira voz. – É
claro que não vamos matá-lo. Você devia ter
vergonha, Nikabrik. O que acha você, Caça___________________________________
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trufas? Que vamos fazer com ele?
– Vou dar-lhe de beber – disse a primeira
voz, provavelmente a de Caça-trufas. Uma
sombra escura aproximou-se. Caspian sentiu que
um braço lhe amparava cuidadosamente as costas
– se é que era mesmo um braço. O rosto que se
inclinou era também um tanto esquisito: pareceulhe
que estava coberto de pêlos e que tinha um
enorme nariz, com umas engraçadas manchas
brancas dos lados. “Deve ser máscara”, pensou
Caspian, “ou então estou delirando.”
Uma taça de um líquido quente e adocicado
tocou seus lábios, e ele bebeu. Nesse instante, um
dos outros atiçou o fogo, fazendo levantar uma
labareda. Caspian quase gritou de susto, ao ver o
rosto que o fitava. Não era um homem, mas um
texugo! No entanto, o rosto deste era maior, mais
amistoso e mais inteligente do que o dos texugos
aos quais estava habituado. Fora ele que falara,
sem dúvida. Viu também que estava deitado numa
gruta, sobre uma cama de urzes. Ao pé do fogo
encontravam-se dois homenzinhos barbudos,
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muito mais gordos, baixos e peludos que o doutor
Cornelius. Caspian percebeu logo que eram anões
verdadeiros, dos antigos, em cujas veias não
corria uma só gota de sangue humano. Havia
encontrado enfim os antigos narnianos. Sua
cabeça começou a rodar de novo.
Nos dias seguintes, aprendeu a conhecê-los
pelo nome. O texugo chamava-se Caça-trufas. Era
o mais velho e o mais bondoso dos três. O anão
que desejara matá-lo era um anão negro (isto é,
tinha o cabelo e a barba negros, ásperos e duros
como crina de cavalo): seu nome era Nikabrik. O
outro era um anão vermelho, com cabelo da cor
dos pêlos de uma raposa: chamava-se Trumpkin.
Na primeira tarde em que Caspian teve forças
para sentar-se e falar, Nikabrik disse o seguinte:
– Agora temos de resolver o que fazer com
o humano. Vocês acham que lhe fizeram um
grande favor, impedindo que eu o eliminasse.
Agora, acho que a solução é conservá-lo
prisioneiro pelo resto da vida. Porque não estou
nada disposto a deixá-lo solto por aí... para que
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um belo dia encontre os outros de sua raça e nos
denuncie.
– Com mil diabos, Nikabrik! – protestou
Trumpkin. – É preciso ser tão descortês? No fim
das contas, o pobre coitado não teve culpa de
bater com a cabeça numa árvore aqui na frente da
nossa caverna. E, por mim, acho que ele não tem
cara de traidor.
– Mas – disse Caspian – vocês ainda não
sabem se eu quero voltar para junto dos meus.
Para ser franco, não quero. Preferia ficar por aqui
mesmo... se me deixassem. Tenho procurado por
vocês a vida toda!...
– Esta é boa! – rosnou Nikabrik. – Você é
ou não é um telmarino e um humano? Como não
quer voltar?
– Mesmo que quisesse, não podia –
respondeu Caspian. – Quando caí do cavalo,
estava fugindo para salvar a minha vida. O rei
quer me matar. Se tivessem me matado, teriam
feito a vontade dele.
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– O quê?! – exclamou Caça-trufas.
– Que conversa é essa? – perguntou
Trumpkin. – Com a sua idade, que fez você para
cair no desagrado de Miraz?
– Miraz é meu tio – começou a dizer
Caspian, e nesse instante Nikabrik levantou de um
salto e agarrou o punhal.
– Não disse?! – gritou ele. – Não só é
telmarino, mas parente e herdeiro do nosso maior
inimigo. Vocês estão malucos?! Querem mesmo
deixar viver esta criatura?! – Teria apunhalado
Caspian ali mesmo, se Trumpkin e o texugo não
se tivessem metido no meio, impedindo-lhe o
avanço.
– De uma vez por todas, Nikabrik – disse
Trumpkin – ou você se controla ou Caça-trufas e
eu nos sentamos em cima de sua cabeça...
Nikabrik, mal-humorado, prometeu ter mais
calma, e os outros dois pediram a Caspian que
contasse a sua história. Quando acabou, houve um
momento de silêncio.
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– É o caso mais estranho que conheço! –
disse Trumpkin.
– Não acho graça nenhuma! – rosnou
Nikabrik. – Não sabia que os humanos se
divertem falando de nós. Quanto menos souberem
de nós, melhor. Foi então a velha ama? Era
melhor que ela tivesse ficado de bico calado. E,
ainda por cima, esse preceptor, um anão renegado.
Odeio eles! São piores que os humanos! Ouçam o
que eu digo: tudo isso só vai nos trazer
aborrecimentos!
– Não diga besteira, Nikabrik! – disse Caçatrufas.
– Vocês, anões, são tão esquecidos e
inconstantes quanto os humanos. Eu, não, sou um
bicho; mais que isso, sou um texugo, e os texugos
sabem o que querem. Não andam por aí sempre a
mudar de idéia. E eu digo que um grande bem está
por vir. Temos conosco o verdadeiro rei de
Nárnia: um verdadeiro rei, que volta à verdadeira
Nárnia. E nós, os bichos, estamos lembrados
(mesmo que os anões tenham esquecido) que
Nárnia só foi feliz quando teve no trono um filho
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de Adão.
– Espere aí, Caça-trufas – falou Trumpkin –
, não vá dizer que pretende entregar nosso país
aos humanos?
– Quem disse isso? – replicou o texugo. –
Nárnia não é terra dos homens (quem vai me
ensinar isso?), mas é uma terra que deve ser
governada por um Homem. Nós, os texugos,
temos razões de sobra para acreditar nisso. Pois o
Grande Rei Pedro também não era um Homem?
– Você acredita nessa história? – perguntou
Trumpkin.
– Já disse! Nós não mudamos de opinião
todos os dias. Não esquecemos facilmente.
Acredito no rei Pedro e nos outros que reinaram
em Cair Pa-ravel, com a mesma certeza que
acredito no próprio Aslam.
– Com a mesma certeza? Mas quem é que
ainda acredita em Aslam? – indagou Trumpkin.
– Eu acredito – disse Caspian. – E, mesmo
que não acreditasse antes, acreditaria agora. Entre
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os humanos, os que se riem de Aslam também
zombariam se eu lhes dissesse que existem anões
e animais falantes. Já cheguei a perguntar a mim
mesmo se Aslam de fato existiria, mas a verdade é
que também muitas vezes duvidei da existência de
gente como vocês. E vocês não estão aí?
– Tem razão, rei Caspian – disse Caçatrufas.
– Enquanto for fiel à antiga Nárnia você
será o meu rei, haja o que houver. Vida longa ao
rei!
– Você me faz perder a cabeça, texugo! –
resmungou Nikabrik. – O Grande Rei Pedro e os
outros talvez tenham sido Homens, mas eram com
certeza de uma raça diferente. Este não, este é um
dos malditos telmarinos. Aposto que já andou
caçando para se divertir! Diga que não, diga! –
acrescentou, voltando-se bruscamente para
Caspian.
– Sim, é verdade – concordou Caspian. –
Mas nunca na minha vida cacei animais falantes.
– Dá tudo na mesma! – resmungou
Nikabrik.
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– Ah, isso não! – falou Caça-trufas. – E
você bem sabe disso! Sabe muito bem que os
animais que hoje se encontram em Nárnia não são
como os de antigamente. São até menores do que
antes! Entre eles e nós há uma diferença muito
maior do que entre vocês e os meio-anões.
Houve ainda muita discussão, mas
acabaram todos concordando que Caspian ficaria.
Prometeram até que, logo que estivesse bom, seria
apresentado ao que Trumpkin chamava “os
Outros”. Pois, ao que parece, naquelas regiões
selvagens viviam ainda, escondidas, inúmeras
criaturas sobreviventes da antiga Nárnia.
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6
O ESCONDERIJO DOS
ANTIGOS NARNIANOS
Começara o tempo mais feliz da vida de
Caspian. Numa bela manhã de verão, em que a
relva estava coberta de orvalho, ele partiu com o
texugo e os dois anões, através da floresta, rumo
ao alto de um monte, descendo depois a encosta
inundada de sol, de onde se avistavam os campos
verdejantes de Arquelândia.
– Vamos visitar primeiro os três Ursos
Barrigudos – disse Trumpkin.
Avançando por uma clareira, chegaram a
um velho carvalho oco e revestido de musgo, em
cujo tronco Caça-trufas deu três pancadinhas com
a pata, sem que obtivesse resposta. Bateu de novo
e lá de dentro uma voz rouca protestou: – Vá
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embora. Ainda não está na hora de acordar.
Mas, quando o texugo bateu pela terceira
vez, ouviu-se um ruído como de tremor de terra,
abriu-se uma porta e apareceram três enormes
ursos castanhos, muito barrigudos mesmo, a
piscar os olhinhos. Depois que terminaram de lhes
contar tudo o que passava (o que demorou muito
tempo, pois estavam caindo de sono), eles
concordaram com Caça-trufas: um filho de Adão
devia ser o rei de Nárnia – e todos beijaram
Caspian, com uns beijos molhados e barulhentos.
E o rei foi logo convidado para comer mel.
Caspian não gostava muito de mel, sem pão,
àquela hora da manhã, mas por delicadeza achou
que deveria aceitar. Só depois de muito tempo
deixou de sentir as mãos meladas. Continuaram
depois a andar e chegaram perto de umas faias
muito altas. Aí, Caça-trufas gritou:
– Farfalhante!
Quase imediatamente, saltando de ramo em
ramo, apareceu acima da cabeça dos visitantes um
magnífico esquilo vermelho. Era muito maior que
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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os esquilos mudos que Caspian encontrava às
vezes no jardim do castelo; na verdade, era quase
do tamanho de um cachorro. Bastava olhar para
ele para se ver que falava. O problema era
justamente fazê-lo calar, pois, como todos os
esquilos, era um grande falastrão. Deu as boasvindas
a Caspian e ofereceu-lhe uma noz. Caspian
agradeceu e aceitou. Mas, quando Farfalhante se
afastou para ir buscá-la, Caça-trufas disse-lhe
baixinho:
– Não fique olhando. É falta de educação
entre os esquilos seguir alguém que vai à
despensa... ou olhar como se quisesse saber onde
ele guarda as coisas.
Farfalhante voltou com a noz, que Caspian
comeu. O esquilo perguntou se poderia ser útil,
levando algum recado a outros amigos.
– Posso ir a quase todo lugar sem botar o pé
no chão.
Caça-trufas e os anões acharam que era
uma excelente idéia e pediram a Farfalhante que
levasse recados a muita gente de nomes
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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esquisitos, convidando a todos para uma reunião
no Gramado da Dança, à meia-noite, dali a três
dias.
– É bom avisar também os três Ursos
Barrigudos – acrescentou Trumpkin. –
Esquecemos de lhes dizer.
A visita seguinte foi aos sete irmãos do
Bosque Trêmulo. Era um lugar solene, entre
rochedos e altas árvores. Avançaram com
cuidado. Trumpkin chegou junto a uma pedra
achatada, do tamanho da tampa de uma talha de
água, e bateu nela com o pé. Depois de demorado
silêncio, alguém arredou a pedra. Apareceu então
um buraco redondo e escuro, do qual saíam
baforadas de fumaça e calor, e de onde emergiu a
cabeça de um anão, muito parecido com
Trumpkin. Conversaram durante muito tempo.
Embora o anão parecesse mais desconfiado do
que o esquilo ou os ursos, acabou convidando
todos para entrar. Caspian desceu por uma escada
escura, que levava a uma caverna iluminada.
Estavam numa forja, e o clarão vinha da fornalha.
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A um canto passava um riacho subterrâneo. Dois
anões trabalhavam no fole, um terceiro, com um
par de tenazes, segurava na bigorna um pedaço de
metal em brasa, que um quarto anão batia. Outros
dois, limpando as pequenas mãos calosas num
pano engordurado, foram ao encontro dos
visitantes. Não foi fácil convencê-los de que
Caspian era amigo, mas, uma vez convencidos,
gritaram: “Viva o rei!”
Seus presentes eram preciosos: cotas de
malha, elmos e espadas para Caspian, Trumpkin e
Nikabrik. Também quiseram dar o mesmo ao
texugo, mas este disse que era bicho, e bicho que
não soubesse defender-se com as patas e os dentes
não tinha o direito de viver. Caspian jamais vira
armas tão perfeitas, e foi com grande alegria que
aceitou a espada feita pelos anões, em troca da sua
que, comparada com aquela, parecia frágil e tosca.
Os sete irmãos (todos eles anões vermelhos)
prometeram não faltar ao encontro no Gramado da
Dança.
Um pouco adiante, numa ravina seca e
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rochosa, ficava a caverna dos cinco anões negros.
Olharam desconfiados para Caspian, até que o
mais velho disse:
– Se ele é contra Miraz, será o nosso rei.
Outro propôs:
– Gostaria de ir ao despenhadeiro, onde
ainda vivem dois ogres e uma feiticeira?
– Não! – disse Caspian.
– Também acho que não – concordou Caçatrufas.
– Não queremos essa gente conosco.
Nikabrik era de opinião contrária, mas
Trumpkin e o texugo conseguiram fazê-lo calar.
Caspian sentiu um calafrio ao saber que
também as criaturas más das histórias antigas
tinham deixado descendência em Nárnia.
– Perderíamos a amizade de Aslam, se nos
aliássemos a essa ralé horrorosa – disse Caçatrufas,
quando saíram da caverna dos anões
negros.
– Aslam? – indagou Trumpkin, falando
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alegremente e em tom de ligeiro desprezo. –
Muito mais do que isso: vocês perderiam a minha
amizade!
– Você acredita em Aslam? – perguntou
Caspian a Nikabrik.
– Acredito em qualquer um, ou em qualquer
coisa que possa reduzir a pó os bárbaros
telmarinos ou expulsá-los de Nárnia. Seja lá quem
for, Aslam ou a Feiticeira Branca. Está
entendendo?
– Cale-se! – ordenou Caça-trufas. – Você
não sabe o que está dizendo. Ela foi muito pior do
que Miraz e toda a sua raça.
– Para os anões, não – insistiu Nikabrik.
A visita seguinte foi mais agradável. As
montanhas deram passo a um vale arborizado,
atravessado por um rio caudaloso. As margens do
rio estavam atapetadas de papoulas e rosas; no ar
pairava o zumbido das abelhas. Caça-trufas
gritou:
– Ciclone!
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Passado um instante, ouviu-se o ressoar de
cascos, cada vez mais alto e mais próximo, até
que o vale inteiro tremeu. Por fim, pisando e
esmagando flores, apareceu o grande centauro
Ciclone e seus três filhos, as mais imponentes
criaturas que Caspian vira em toda a vida. Os
flancos do centauro eram de um castanho escuro e
brilhante; a barba, que lhe cobria o peito, era
vermelho-dourada. Profeta e vidente, o centauro
não precisou perguntar ao que vinham.
– Viva o rei! – gritou. – Os meus filhos e eu
estamos prontos para a guerra. Quando se trava a
batalha?
Até aquele momento, nem Caspian nem os
outros tinham pensado em guerra. Nutriam a vaga
idéia de uma ou outra incursão nas terras de
algum humano, ou talvez de um ataque a um
grupo de caçadores, caso estes se aventurassem a
penetrar nas regiões selvagens do Sul. No mais,
porém, pensavam apenas em viver isolados nos
bosques e cavernas, tentando reconstruir qualquer
coisa parecida com a antiga Nárnia.
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– Você fala de uma guerra de verdade para
expulsar Miraz? – perguntou Caspian.
– E o que mais poderia ser? – indagou o
centauro. – Que outro motivo teria Vossa Alteza
para andar de cota de malha e espada à cinta?
– Será possível, Ciclone? – perguntou o
texugo.
– É o momento oportuno – respondeu ele. –
Eu observo os céus, texugo, porque compete a
mim vigiar, como a você compete não esquecer.
Tarva e Alambil encontraram-se nos salões do
firma-mento, e na terra voltou a surgir um filho de
Adão para governar e dar nome às criaturas. A
hora do combate soou. O nosso encontro no
Gramado da Dança deve ser um conselho de
guerra.
Falou de tal maneira que nem por um
momento alguém duvidou. Caspian e os outros
achavam agora perfeitamente possível ganhar uma
batalha. Estavam certos de que, fosse como fosse,
deveriam ir em frente.
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Como já passasse do meio-dia, descansaram
junto dos centauros e comeram o que estes tinham
a oferecer: bolos de aveia, maçãs, salada, vinho e
queijo.
Era perto o lugar que pretendiam visitar,
mas tiveram de dar uma grande volta, evitando
uma região habitada pelos homens. A tarde já ia
adiantada quando se acharam em terreno plano.
Num buraco em uma valeta verdejante, Caçatrufas
chamou alguém, e de lá saiu a última coisa
que Caspian poderia esperar: um rato falante.
Claro que era maior que um rato comum –
mais de trinta centímetros, quando ficava em pé
sobre as patas traseiras – , e suas orelhas eram
quase tão compridas quanto as de um coelho, só
que mais largas. Chamava-se Ripchip e tinha um
ar marcial e alegre. Da cinta pendia-lhe um
minúsculo florete, e retorcia os longos pêlos do
focinho como se fossem bigodes.
– Somos doze, Real Senhor – disse, com
rápida e graciosa vênia – , e todos os recursos do
meu povo estão incondicionalmente à sua
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disposição.
Caspian teve de fazer um enorme esforço
para não rir, pois não pôde evitar o pensamento de
que Ripchip e todo o seu exército podiam
facilmente ser carregados às costas, dentro de um
cesto de roupa.
Tomaria um tempo enorme enumerar todos
os animais que Caspian conheceu nesse dia:
Escava-terra, a toupeira, os três Trincadores
(texugos como Caça-trufas), Camilo, a lebre, além
de Barbaças, o ouriço. Descansaram finalmente
junto de um poço à beira de uma campina relvada,
à volta da qual cresciam choupos altos cuja
sombra, ao poente, se alongava sobre o campo. As
margaridas começavam a fechar as pétalas, e os
pássaros buscavam os ninhos. Depois de cearem o
que tinham trazido, Trumpkin acendeu o
cachimbo (Nikabrik não fumava).
O texugo disse:
– Se pudéssemos despertar o espírito destas
árvores e deste poço, poderíamos hoje nos dar por
satisfeitos.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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– E por que não? – perguntou Caspian.
– Não temos poder sobre eles. Desde que os
humanos invadiram o país, derrubando as árvores
e secando as fontes, as dríades e as náiades
mergulharam num sono profundo. Quem sabe se
algum dia voltarão a acordar? Essa é a nossa
grande perda. Os telmarinos têm horror aos
bosques, e bastaria que as árvores avançassem
para eles em fúria, para que os nossos inimigos
ficassem loucos de medo e fugissem de Nárnia a
toda a velocidade.
– Que imaginação têm os animais! – troçou
Trumpkin, que não acreditava nessas coisas. — E
por que só as árvores e as fontes? Não seria ainda
mais engraçado se as próprias pedras começassem
a atirar-se contra o velho Miraz?
O texugo limitou-se a resmungar, e fez-se
um silêncio tão longo que Caspian estava prestes
a adormecer, quando lhe pareceu ouvir uma
música suave, vinda do meio dos bosques. Achou
que estava sonhando e voltou-se para o outro lado.
Mas, ao encostar o ouvido à terra, sentiu ou ouviu
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o rufar longínquo de um tambor. Ergueu-se. O
rufar do tambor tornou-se mais fraco, mas a
música voltou, mais nítida agora. Pareciam
flautas. Viu que Caça-trufas se sentara, olhando a
floresta. O luar estava claro, e Caspian percebeu
que dormira mais do que imaginara. A música
estava cada vez mais nítida, uma melodia alegre e
romântica, acompanhada pelo ruído de muitos pés
ligeiros. Passando do bosque para a campina
inundada de luar, surgiram por fim vultos
bailando, aqueles com que Caspian sonhara a vida
toda. Pouco mais altos que os anões, eram muito
mais esguios e graciosos. Nas cabeças
encaracoladas tinham pequenos chifres, e seu
tronco nu brilhava à luz do luar; as pernas e os pés
eram de bode.
– Faunos! – exclamou Caspian, pondo-se de
pé num salto. Imediatamente todos o rodearam.
Não tardou para que a situação fosse explicada
aos faunos e estes logo aceitassem Caspian. E,
antes mesmo que pudesse dar-se conta, Caspian se
viu dançando. O mesmo aconteceu a Trumpkin,
que acompanhava os outros com movimentos
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pesados e desajeitados. Caça-trufas ia correndo e
pulando de qualquer jeito. Só Nikabrik continuou
no mesmo lugar, olhando em silêncio. Os faunos
rodopiavam à volta de Caspian ao som alegre das
flautas de bambu. Tinham uma expressão
estranha, a um tempo alegre e triste. Eram
dezenas e
dezenas de faunos: entre eles estavam
Mentius, Obentinus, Dumnus, Voluns, Voltinus,
Girbius, Nimienus, Nausus e Oscuns. Farfalhante
não se esquecera de nenhum.
Quando Caspian acordou na manhã
seguinte, teve a impressão de que tudo não
passara de um sonho. Mas a relva estava toda
coberta pelos pequeninos sinais dos cascos...
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7
A ANTIGA NÁRNIA EM
PERIGO
A campina onde se encontraram com os
faunos era o próprio Gramado da Dança. Caspian
e seus amigos ficaram lá até a noite do grande
Conselho. Dormir ao ar livre, beber apenas água,
alimentar-se quase exclusivamente de nozes e
frutos do mato foi uma experiência
completamente nova para quem, como Caspian,
estava habituado a deitar em lençóis de linho no
quarto atapetado de um palácio, a ter as refeições
servidas numa antecâmara, em baixelas de prata e
ouro, com muitos criados prestimosos. Nunca
Caspian fora tão feliz. Nunca o sono o deixara tão
descansado, nem a comida lhe parecera tão
saborosa: assim, começou a ficar maduro de
espírito, e seu rosto adquiriu uma expressão regia.
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Quando a grande noite chegou, e os seus
estranhos súditos começaram a entrar no gramado,
Caspian teve um estremecimento de alegria, ao
verificar que formavam uma multidão. Era quase
lua cheia e estavam presentes todos aqueles com
os quais falara antes: os Ursos Barrigudos, os
anões vermelhos, os anões negros, as toupeiras, os
texugos, as lebres, os ouriços, e mais, muitos que
ainda não conhecia: os cinco sátiros de pêlo
vermelho, todo o contingente dos ratos falantes,
armados até os dentes e marchando ao som de
uma trompa esganiçada, algumas corujas e o
velho corvo da Brenha do Corvo. Por fim,
deixando Caspian de boca aberta, veio com os
centauros um jovem mas autêntico gigante:
Verruma, da Colina do Morto. Trazia às costas
um cesto cheio de anões muito enjoados, que
tinham aceitado a carona e lamentavam agora não
ter feito a viagem a pé.
Os ursos eram de opinião que se fizesse a
festa primeiro e se deixasse o Conselho para mais
tarde... talvez até para o dia seguinte. Ripchip e os
ratos achavam que tanto a festa quanto o
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Conselho podiam esperar, e propunham que se
atacasse o castelo de Miraz naquela mesma noite.
Farfalhante e outros esquilos afirmavam que se
podia comer e falar ao mesmo tempo. Queriam
era começar logo. As toupeiras estavam dispostas,
antes de tudo, a cavar trincheiras em torno do
gramado. Os faunos achavam que se devia
começar por um bailado cerimonial. O velho
corvo pediu que lhe permitissem dirigir algumas
palavras a toda a assistência. Porém, Caspian, os
anões e os centauros puseram de lado todas essas
idéias e resolveram reunir imediatamente um
verdadeiro Conselho de Guerra.
Quando finalmente os bichos concordaram
em sentar-se, em silêncio, num grande círculo, e
depois de se ter conseguido (com a maior
dificuldade) que Farfalhante deixasse de correr de
um lado para outro e de gritar: – Silêncio!
Silêncio! O rei vai falar! – Caspian, um pouco
nervoso, levantou-se.
– Narnianos! – começou, mas não chegou a
dizer mais nada, porque, nesse mesmo instante,
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Camilo, a lebre, gritou:
– Alto! Tem um Homem escondido por aí!
Eram todos criaturas do mato, habituadas a
serem perseguidas; portanto, ficaram logo imóveis
como estátuas. Os animais limitaram-se a voltar a
cabeça na direção que Camilo indicara.
– Cheira a Homem, mas ao mesmo tempo
não parece bem Homem – disse Caça-trufas, num
sussurro.
– Está chegando mais perto – disse Camilo.
– Dois texugos e três anões, avancem
devagarinho – ordenou Caspian.
– Vamos acabar com ele! – declarou um
anão negro, ameaçador, preparando uma flecha.
– Se vier só, não disparem; tragam o
Homem vivo – disse Caspian.
– Por quê? – perguntou um dos anões.
– Faça o que lhe ordenaram – disse o
centauro. Todos guardaram silêncio, enquanto os
três anões e os dois texugos se esgueiravam na
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direção das árvores, a noroeste do gramado.
Ouviu-se de repente a voz aguda de um anão:
– Alto! Quem vem lá? – e logo em seguida
um salto rápido. Instantes depois, uma voz bem
conhecida de Caspian dizia:
– Pronto! Estou desarmado. Se quiserem,
podem algemar-me, nobres texugos. Quero falar
com o rei.
– Doutor Cornelius! – exclamou Caspian,
louco de alegria, precipitando-se ao encontro do
velho preceptor. Todos se aproximaram.
– Hum! – exclamou Nikabrik. – Um anão
renegado! Quase não tem sangue de anão. Que tal
se eu lhe enfiasse a espada?
– Quieto, Nikabrik – disse Trumpkin. – O
pobre não tem culpa de sua ascendência.
– Este é o meu maior amigo, a quem devo a
vida. Se existe alguém aqui que não goste da
companhia dele, pode abandonar imediatamente
minhas fileiras. Caro doutor, não calcula como
estou feliz de vê-lo outra vez. Como conseguiu
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chegar aqui?
– Um truquezinho muito simples –
respondeu o doutor, ainda ofegante da corrida. –
Mas agora não há tempo para explicações. Temos
de fugir daqui. Alguém traiu o meu Real Senhor e
Miraz está a caminho. Amanhã, antes do meiodia,
estarão todos cercados.
– Traídos?! – exclamou Caspian. – Mas por
quem?
– Por quem havia de ser? Algum anão
renegado, é claro – disse Nikabrik.
– Foi Destro, o seu cavalo – disse o doutor
Cornelius. – O pobre animal, não sabendo o que
fazer depois da queda, simplesmente voltou para a
cavalariça do castelo. Fugi, para não ser
interrogado na câmara de tortura de Miraz. Por
meio de minha bola de cristal, sabia muito bem
onde podia encontrá-lo. Mas durante o dia todo –
isso foi há três dias – os homens de Miraz
percorreram os bosques. Ontem soube que o
exército está a caminho. Parece que alguns dos
seus... dos seus anões de puro-sangue... não têm o
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menor sentido de orientação. Deixaram pegadas
por toda a parte. Grave descuido. Seja como for,
alguma coisa avisou Miraz de que a antiga Nárnia
não está extinta, como ele julgava, e por isso ele
entrou em ação.
– Oba! – ouviu-se uma vozinha muito
estridente, junto dos pés do doutor. – Podem vir!
Só peço que o rei me coloque, a mim e aos meus,
na linha de frente.
– Que negócio é esse? – perguntou o
doutor. – Há gafanhotos... ou mosquitos
incorporados ao exército? – Depois, inclinando-se
e olhando atentamente através dos óculos, desatou
a rir, exclamando: – Pela juba do Leão! É um rato.
Senhor Rato, tenho grande prazer em conhecê-lo.
É uma honra encontrar um bicho tão valente.
– Pode contar com a minha amizade, sábio
doutor – guinchou Ripchip. – Qualquer anão... ou
gigante... que se atreva a falar-lhe sem respeito
terá de enfrentar esta espada.
– Ainda há tempo para essas palhaçadas? –
perguntou Nikabrik. – Quais são, afinal, os seus
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planos? Lutar ou fugir?
– Lutar, se for necessário – declarou
Trumpkin. – Mas acho que não estamos
preparados para uma guerra, e aqui temos pouca
defesa.
– Não me agrada fugir – disse Caspian.
– Atenção! Ouçam o que ele diz – gritaram
os ursos. – Haja o que houver, nada de fugir. E
nunca antes da ceia. Nem logo a seguir, é claro.
– Os que fogem primeiro nem sempre são
os que haverão de fugir no final – disse o
centauro. – E por que havemos de deixar que o
inimigo escolha posições, em vez de as
escolhermos nós? Proponho que se procure uma
praça forte.
– O plano é sensato, muito sensato – disse
Caça-trufas.
– Mas para onde iremos? – perguntaram
muitas vozes.
– Real Senhor – começou o doutor
Cornelius – e todas vocês, criaturas, ouçam-me.
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Julgo que seria aconselhável fugir para oeste e,
descendo o rio, penetrar na floresta. Os telmarinos
odeiam aquela região. Sempre tiveram medo do
mar e do que possa vir de além-mar. Por isso
plantaram as florestas. Se a lenda é verdadeira, o
velho castelo de Cair Paravel fica junto à foz do
rio. Toda aquela zona nos é propícia; ao inimigo é
fatídica. Vamos para o Monte de Aslam.
– Monte de Aslam? Que é isso?
– Fica além do Grande Bosque: é um
enorme baluarte que os narnianos construíram há
muito tempo, num lugar de grande poder mágico,
onde estava – e talvez esteja ainda – uma pedra de
grande magia. O Monte foi todo escavado por
dentro em galerias e cavernas, e a Mesa de Pedra
está na caverna central. Lá temos lugar para
guardar provisões e, além disso, todos os que
precisam de um teto, ou os que estão habituados a
viver debaixo da terra, podem ficar acomodados
nas cavernas. Em caso de necessidade, todos nós
(com exceção do nosso digno gigante) poderemos
refugiar-nos no Monte, onde estaremos ao abrigo
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de todos os perigos, menos da fome.
– É uma vantagem enorme ter conosco um
homem instruído – disse Caça-trufas. Mas
Trumpkin resmungou em voz baixa:
– Ora bolas! Seria muito melhor se os
nossos chefes deixassem de lado essas histórias da
carochinha e se preocupassem mais com armas e
víveres.
Mas a proposta de Cornelius foi aceita, e
meia hora mais tarde estavam a caminho. Antes
do romper do dia chegaram ao Monte de Aslam.
O lugar era, na verdade, de assustar: um
morro redondo e verde no cimo de outro morro,
havia muito encoberto de árvores, com apenas um
pequeno e baixo portal como entrada. Lá dentro,
os túneis formavam um verdadeiro labirinto, e as
paredes e o teto eram revestidos de pedras lisas,
nas quais Caspian, olhando com atenção, viu
caracteres estranhos e desenhos sinuosos e muitas
imagens em que se repetia várias vezes a forma de
um Leão. Tudo aquilo parecia pertencer a uma
Nárnia ainda mais antiga do que a Nárnia de que
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ouvira falar.
Foi depois de instalados, dentro e fora do
Monte, que as coisas começaram a correr mal. Os
espiões do rei Miraz deram com o rasto deles, e
não tardou que o rei e o seu exército aparecessem
no extremo do bosque. Como acontece tantas
vezes, verificou-se que o inimigo era muito mais
forte do que se supunha. Caspian sentiu-se
desfalecer ao ver chegar um batalhão atrás do
outro. Se bem que os soldados tivessem medo de
entrar na floresta, tinham ainda muito mais medo
de Miraz; com este comandando-os, entravam
fundo na batalha, chegando por vezes às
proximidades do Monte. Claro que Caspian e os
seus capitães fizeram também repetidas incursões
no campo aberto. Quase não se passava um dia
sem luta, e muitas vezes guerreavam de noite
também. Mas, quase sempre, era o exército de
Caspian que levava a pior.
Chegou por fim uma noite em que as coisas
não podiam ter sido piores. A chuva, que caíra
pesada durante todo o dia, só parou à tardinha,
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para dar lugar a um frio mortal. Para o amanhecer,
Caspian planejara o grande ataque, no qual todos
punham as suas esperanças. Caspian, com a
grande maioria dos anões, deveria atacar de
madrugada a ala direita do exército real. Quando
estivessem no mais aceso da batalha, o gigante
Verruma, acompanhado pelos centauros e pelos
animais mais fortes, deveriam atacar em outro
ponto, a fim de cortar a ala direita de Miraz do
resto do exército. Mas o plano falhou. A verdade é
que ninguém avisara Caspian (porque ninguém
em Nárnia se lembrara disso) de que os gigantes
não costumam brilhar pela inteligência. Ora, o
pobre Verruma, se bem que corajoso como
poucos, era neste aspecto um autêntico gigante.
Atacara, pois, onde não devia, em momento
pouco oportuno, causando graves perdas aos
batalhões de Caspian e ao seu próprio, e quase
sem causar danos às forças inimigas. O maior dos
ursos ficara ferido, um centauro mais ainda, e era
difícil encontrar no grupo de Caspian quem não
tivesse derramado sangue. Nessa noite, foi uma
multidão deprimida que se juntou debaixo das
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árvores gotejantes para comer uma ceia frugal. O
mais triste de todos era o gigante. Sabia que a
culpa era toda dele. Sentado em silêncio,
derramou enormes lágrimas, que se juntaram na
ponta de seu nariz para caírem depois, em cascata,
sobre o grupo dos ratos, que nesse momento
começava a se aquecer e a pegar no sono.
Levantaram-se de um pulo, sacudindo a água que
lhes entrara pelas orelhas, torcendo os minúsculos
cobertores com que se cobriam, perguntando ao
gigante, em voz esganiçada mas imperiosa, se
achava que eles ainda não estavam
suficientemente encharcados, mesmo sem aquela
choradeira toda. Outros acordaram também
irritados, lembrando aos ratos que tinham sido
incorporados ao exército como sentinelas e não
como banda de música. O infeliz Verruma
afastou-se na ponta dos pés, à procura de um lugar
onde pudesse chorar à vontade. Mas, por cúmulo
do azar, pisou logo numa cauda e o dono desta (a
raposa, como depois se verificou) tacou-lhe uma
dentada. Nada havia a fazer. Estavam todos muito
mal dispostos naquela noite.
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Na caverna mágica no centro do Monte, o
rei Caspian reunia um Conselho de Guerra, com
Cornelius, o texugo, Nikabrik e Trumpkin. Velhas
colunas maciças sustentavam o telhado; ao centro,
a Mesa de Pedra, fendida de lado a lado, coberta
com o que deviam ter sido caracteres de alguma
escrita antiga. Anos e anos de chuva, vento e neve
tinham apagado quase por completo os relevos da
pedra, antes mesmo que o Monte fosse erguido
sobre ela. O Conselho não se reunira à volta da
Mesa, nem estava fazendo uso desta – o seu
caráter sagrado tornava-a imprópria para fins
vulgares. Os membros do Conselho tinham se
sentado em troncos, junto de uma tosca mesa de
madeira sobre a qual ardia uma lamparina de
barro, iluminando-lhes o rosto e projetando nas
paredes sombras imensas.
– Se o rei tenciona algum dia fazer uso da
trompa, acho que chegou a hora – disse Caçatrufas.
– Sem dúvida, estamos numa situação
desesperadora – concordou Caspian. – Mas quem
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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poderá dizer-nos se as coisas não vão piorar? E se
chegarmos a uma situação ainda mais
desesperadora depois de termos tocado a trompa?
– Raciocinando desse jeito, a trompa só será
tocada quando for tarde demais – objetou
Nikabrik.
– É verdade – disse o doutor.
– Que acha, Trumpkin? – perguntou
Caspian.
– Ora, quanto a mim, o rei sabe bem o que
penso da Trompa... e desta pedra rachada... e do
Grande Rei Pedro... e do seu Aslam. Tudo isso é
cascata – declarou o anão, que seguira a conversa
com a mais completa indiferença. – Tanto faz que
se toque a trompa agora, como em qualquer outra
hora. Só peço que não se fale disso com os
soldados. Não vale a pena alimentar esperanças
em auxílios mágicos, que (na minha opinião)
sempre fracassam.
– Então, em nome de Aslam, farei soar a
trompa da rainha Susana – disse Caspian.
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– Temos de pensar ainda numa coisa – disse
o doutor. – Não sabemos sob que forma nos
chegará o auxílio. Pode ser que o próprio Aslam
venha de além-mar, mas me parece mais provável
que, saídos do passado, venham até nós o Grande
Rei Pedro e os seus bravos companheiros. Num
caso ou no outro, nada nos garante que o auxílio
se manifeste aqui...
– Perfeito! – interrompeu Trumpkin.
– É possível – prosseguiu o sábio – que eles
ou ele voltem a alguns dos velhos lugares de
Nárnia. Este, onde nos encontramos agora, é o
mais antigo e mais sagrado de todos, pelo que me
parece provável que a resposta ao nosso apelo se
concretize aqui. Mas não devemos esquecer dois
outros. Um é o Ermo do Lampião perto da
nascente do rio, a leste do Dique dos Castores.
Segundo reza a lenda, foi aí que as crianças reais
entraram em Nárnia. O outro é junto à foz desse
mesmo rio, no local onde outrora se ergueu Cair
Paravel. Se o próprio Aslam vier ao nosso
encontro, será esse o local mais adequado para
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118
recebê-lo, pois em todas as lendas ele é filho do
grande Imperador-de-Além-Mar. Quando vier,
sem dúvida surgirá do mar. Seria bom que
enviássemos mensageiros a esses dois lugares,
para recebê-lo... ou recebê-los. – Já esperava por
isso! – resmungou Trumpkin. – O resultado de
toda essa tolice será perder dois soldados, em vez
de obter auxílio.
– Os esquilos são ideais para cruzar o
território inimigo – disse o texugo.
– Todos os nossos esquilos (e não são
tantos assim!) são assustadiços – disse Nikabrik. –
Farfalhante é o único no qual se pode confiar.
– Pois que se mande Farfalhante – decidiu
Caspian. – E quem será o outro? Sei que você
estaria pronto para partir, Caça-trufas, mas é
muito lento. E o doutor também.
– Eu é que não entro nessa! – declarou
Nikabrik. – Com todos esses humanos e animais
por aqui, tenho de ficar para ver se os anões são
bem tratados.
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– Cale a boca! – gritou Trumpkin, colérico.
– É assim que se fala ao rei? Se quer que eu seja o
mensageiro, Real Senhor, estou pronto para partir.
– Mas, Trumpkin, pensei que você não
acreditava na trompa... – disse Caspian.
– E não acredito mesmo! Mas o que uma
coisa tem a ver com a outra? Sei quando se trata
de dar um conselho ou de receber uma ordem.
– Nunca me esquecerei de sua nobre
atitude, Trumpkin. Chamem Farfalhante aqui
imediatamente. Quando devo tocar a trompa?
– Aconselho que espere o nascer do sol –
disse o doutor Cornelius. – A madrugada costuma
ser favorável às operações de magia branca.
Passados alguns instantes chegava
Farfalhante, a quem explicaram o que tinha a
fazer. Como à maior parte dos esquilos, não lhe
faltava nem coragem, nem entusiasmo, nem
energia, nem espírito de aventura (para não falar
em vaidade); mal fora informado de sua tarefa,
ficou louco para partir. Resolveu-se que iria para
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o Ermo do Lampião, enquanto Trumpkin faria o
percurso mais curto até a foz do rio. Partiram com
os votos de boa sorte do rei, do texugo e do
doutor.
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8
A PARTIDA DA ILHA
Trumpkin continuou... Você já percebeu
que era ele quem, sentado na relva do salão em
ruínas de Cair Paravel, estava contando a história
para as quatro crianças:
– E assim meti no bolso um naco de pão e,
só com o meu punhal, parti de madrugada na
direção dos bosques. Já caminhava havia horas,
quando ouvi um som diferente de tudo quanto
ouvira até ali. E nunca mais me esqueci! Um som
vibrante, forte como o estrondo do trovão, mas
muito mais prolongado; melodioso e doce como a
música sobre a água, mas com intensidade
bastante para estremecer os bosques. Ao ouvi-lo,
disse para mim mesmo: “Macacos me mordam, se
isto não é a trompa!” E fiquei imaginando por que
Caspian não a teria tocado mais cedo...
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– A que horas foi isso? – perguntou
Edmundo.
– Entre nove e dez.
– Exatamente a essa hora estávamos nós na
estação – disseram as crianças, entreolhando-se
com os olhos brilhantes de excitação.
– Por favor, continue – pediu Lúcia ao
anão.
– Bem, como ia dizendo, fiquei pensando
mas fui em frente, o mais depressa que podia.
Andei a noite toda e, hoje de manhãzinha, quando
começava a clarear, comportando-me como um
gigante imbecil, resolvi encurtar caminho. Para
evitar uma curva enorme do rio, meti-me a campo
descoberto. Foi aí que me pegaram. Não caí
prisioneiro do exército, mas de um idiota metido a
besta, que toma conta de um pequeno castelo
perto da costa, último reduto de Miraz. Não
preciso dizer que não arrancaram de mim uma
única palavra, mas eu era um anão, e isso bastava.
Mas, com trinta diabos, foi uma sorte o oficial ser
um bestalhão cheio de prosa. Outro qualquer teria
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acabado comigo ali mesmo. Ele, porém, só se
contentaria com uma execução grandiosa:
entregar-me aos fantasmas, com toda a pompa.
Mas esta jovem (fez com a cabeça um sinal
indicando Susana) recorreu à arte do arqueiro –
que bela pontaria, parabéns! – e aqui estamos
todos, sãos e salvos. No meio disso tudo, só perdi
a armadura. Tendo chegado ao fim, o anão
sacudiu o cachimbo e tornou a enchê-lo
cuidadosamente.
– Fabuloso! – exclamou Pedro. – Então foi
a trompa... a sua trompa, Su.. que ontem de manhã
nos arrancou do banco da estação! É difícil
acreditar nisso, mas a verdade é que tudo se
encaixa...
– Não sei por que é difícil de acreditar, se
você acredita em magia – disse Lúcia. – Não há
tantos casos em que por magia as pessoas são
chamadas a sair de um lugar... até a passar de um
mundo para outro? Nas Mil e uma noites, quando
o mago conjura o gênio, ele tem de aparecer. Foi
mais ou menos o que aconteceu conosco.
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– Exato – concordou Pedro. – Mas o que
faz isso parecer tão estranho é que, nas histórias, é
sempre alguém do nosso mundo que faz o
chamado... E ninguém realmente pára pra pensar
de onde vem o gênio.
– E agora podemos compreender como o
gênio se sente – disse Edmundo, com uma
gargalhada. – Caramba! Não é muito agradável
saber que podemos estar à mercê de um assovio.
Ainda é pior do que ser escravo do telefone, como
papai se queixa tanto.
– Mas não estamos aqui de má vontade,
desde que seja esta a vontade de Aslam – disse
Lúcia.
– E agora? Que vamos fazer? – perguntou o
anão. – Acho que o melhor seria dizer ao rei
Caspian que afinal o auxílio não veio...
– Não veio, o quê! Essa é boa! Veio sim
senhor, e aqui estamos nós!
– Bem... que estão aí, estão... Mas acho
que... – gaguejou o anão, cujo cachimbo parecia
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estar entupido (pelo menos ele fingia estar muito
ocupado limpando-o). – Mas... bem... quer dizer...
– Mas ainda não percebeu quem somos
nós? – gritou Lúcia. – Que anão mais bobo!
– Devem ser as quatro crianças da lenda –
disse Trumpkin. – Tenho muito prazer em
conhecê-los, é claro. Não há dúvida de que este
encontro é muito interessante... Mas, sem querer
ofender... – e voltou a ficar hesitante.
– Vá em frente e diga o que tem a dizer –
falou Edmundo, impaciente.
– Bem, não fiquem ofendidos... Mas, como
já disse, o rei, Caça-trufas e o doutor Cornelius
esperavam por auxílio. Não sei se estão me
entendendo... Para falar mais claro: eles
imaginavam vocês como grandes guerreiros. Não
sendo assim... bem, nós adoramos crianças, mas a
esta altura... em plena guerra... acho que vocês
estão entendendo...
– Ah, você pensa que não agüentamos uma
gata pelo rabo, não é? – disse Edmundo, corando
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muito.
– Por favor, não fique zangado! –
interrompeu o anão. – Asseguro-lhes, caros
amiguinhos...
– E ainda trata a gente por amiguinhos?! É
demais! – protestou Edmundo, levantando-se de
um pulo. – Não acredita então que fomos nós que
ganhamos a batalha do Beruna? Bem, de mim
pode dizer o que quiser, mas a verdade...
– Não vale a pena discutir – disse Pedro.
Vamos à sala do tesouro arranjar uma armadura
nova para ele e armas para nós. Depois
conversamos.
– Isso não adianta... – começou Edmundo.
Lúcia disse-lhe baixinho:
– Melhor fazer o que Pedro está dizendo.
Ele é o Grande Rei e tem decerto uma idéia.
Edmundo concordou e, à luz da lanterna,
todos (inclusive Trumpkin) desceram as escadas e
penetraram na escuridão gelada, ao encontro das
riquezas empilhadas na sala do tesouro.
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Os olhos do anão brilharam ao ver
prateleiras e prateleiras cheias de tesouros
(embora tivesse de andar na ponta dos pés para
ver alguma coisa) e disse para si mesmo: “Nunca
Nikabrik ouviu falar de tanta riqueza, nunca!”
Não foi difícil encontrar uma cota de malha
para o anão, elmo e escudo, arco e aljava, tudo do
tamanho dele. O elmo era de cobre, incrustado de
rubis; o punho da espada era de ouro. Trumpkin
jamais vira coisas tão ricas, nem tampouco
sonhara usá-las um dia. As crianças também
vestiram cotas de malha e puseram elmos.
Escolheram depois uma espada e um escudo para
Edmundo e um arco para Lúcia... Pedro e Susana
não precisavam, porque tinham os presentes.
Quando subiram as escadas, ouvindo o tilintar das
armaduras e sentindo-se mais narnianos do que
meninos de colégio, os rapazes ficaram para trás,
combinando qualquer coisa. Lúcia ouviu
Edmundo dizer:
– Não, deixe comigo!
– Está bem, Ed – concordou Pedro. Quando
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chegaram lá fora, Edmundo voltou-se
delicadamente para o anão:
– Tenho uma proposta a fazer. Não é todo
dia que meninos da minha idade encontram um
grande guerreiro como você. Quer fazer um pouco
de esgrima? Acho que não há nada de mal...
– Mas, garoto, estas espadas estão afiadas...
– Sei disso! Mas não tenho a intenção de
me aproximar, e você saberá como me desarmar
sem me ferir.
– É uma brincadeira perigosa – objetou
Trumpkin – mas, já que insiste, vamos lá!
Num abrir e fechar de olhos,
desembainharam as espadas, enquanto os outros
três pulavam do estrado, para ver o que
aconteceria. E valia a pena. Porque não era um
daqueles ridículos combates à espada, que a gente
vê no cinema. Nem mesmo uma daquelas lutas de
florete, que costumam ser um pouco melhores.
Não, era um verdadeiro combate à espada. O
principal num encontro desses é atacar as pernas e
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os pés do inimigo, visto serem as únicas partes do
corpo sem armadura. E, quando o outro faz o
mesmo, o jeito é pular, para que os golpes passem
por baixo. Para o anão isso foi uma vantagem,
pois Edmundo, sendo muito mais alto, tinha de
abaixar-se a todo momento. E não acho que
Edmundo teria tido alguma chance de ganhar,
caso tivesse enfrentado Trumpkin vinte e quatro
horas antes. Mas, desde que tinham chegado à
ilha, a atmosfera de Nárnia estava atuando sobre
ele; o entusiasmo dos antigos combates invadiu-o
nos braços e nos dedos, e voltou a sentir a antiga
destreza. Era outra vez o rei Edmundo! Os golpes
seguiam-se, obrigando os combatentes a se
moverem em círculo, e Susana, que nunca
conseguira habituar-se a esse gênero de coisas,
gritava:
– Cuidado! Cui-da-do!
A certa altura, num movimento tão rápido
que ninguém conseguiu ver bem o lance (a não ser
Pedro, que já sabia o que ia acontecer), Edmundo,
dando um jeito especial à espada, desarmou o
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anão, deixando Trumpkin a esfregar a mão vazia,
como a gente faz depois de ser picado por uma
abelha.
– Espero que não tenha se machucado,
amigo! – disse Edmundo, ainda um pouco
ofegante, ao guardar a espada na bainha.
– Agora estou entendendo. – disse
Trumpkin, secamente. – Você sabe um truque que
eu não sei.
– É pura verdade – apressou-se a concordar
Pedro. – O melhor espadachim do mundo não
resiste a um golpe desconhecido. Por isso, acho
justo que se dê a Trumpkin uma oportunidade, em
qualquer outra coisa. E se fosse tiro ao alvo, ali
com a minha irmã? Não pode haver truque!
– Estou vendo que vocês gostam de se
divertir. Como se eu não conhecesse a pontaria
dela depois do que aconteceu hoje de manhã!
Mas, vá lá! Quero ver.
Falou como quem está mal-humorado, mas
seus olhos brilhavam, porque, entre os seus, era
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atirador famoso.
Foram os cinco para o pátio.
– Qual é o alvo? – perguntou Pedro.
– Pode ser aquela maçã naquele ramo em
cima do muro – propôs Susana.
– Perfeitamente! – concordou o anão. – E
aquela amarelinha no meio do arco, não é?
– Não, aquela não! – replicou Susana. A
outra, a vermelha, lá em cima, sobre as ameias.
O entusiasmo do anão sumiu.
– Parece mais uma cereja! – resmungou
consigo mesmo, sem coragem para falar alto.
Jogaram cara ou coroa, para grande
admiração do anão, que nunca tinha visto aquilo.
Susana perdeu. O lugar escolhido para atirar foi o
alto das escadas que conduziam do salão para o
pátio. Pelo jeito de o anão tomar posição e
preparar o arco, via-se logo que ele sabia o que
estava fazendo.
Ziiim! – a corda vibrou. Foi um golpe
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esplêndido. A maçã estremeceu, quando a flecha
roçou por ela e uma folha saiu voando. Susana foi
para o alto das escadas e segurou o arco. Não
estava tão à vontade como Edmundo na
competição anterior. Não que sentisse medo de
errar, mas era tão boa que lhe custava derrotar
alguém que já tinha sido derrotado. Enquanto
erguia o arco à altura do rosto, o anão não tirou os
olhos dela. Um instante depois, com um
barulhinho seco, perfeitamente audível, a maçã
trespassada pela flecha tombava na relva.
– Sensacional, Su! – gritaram as crianças.
– Não é que a minha pontaria seja melhor
do que a sua – disse Susana para o anão. – É que
havia uma brisa soprando quando você atirou.
– Não havia brisa coisa nenhuma! – disse
Trumpkin. – Não precisa se desculpar. Sei muito
bem quando sou derrotado com lealdade. Logo
que eu ficar bom do braço, nem vou me lembrar
mais do ferimento...
– O quê! Está ferido? – perguntou Lúcia. –
Mostre-me.
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– Não é espetáculo para menininhas –
começou Trumpkin, mas calou-se logo. – Já estou
dizendo bobagens outra vez. Afinal, quem me
garante que você não é uma excelente enfermeira,
assim como seu irmão é um grande espadachim e
sua irmã uma fabulosa arqueira?
Sentou-se num degrau, tirou a cota de
malha, arregaçou a manga da camisa, mostrando
um braço peludo e musculoso como o de um
marinheiro em miniatura. Lúcia começou a tirar a
ligadura que desajeitadamente envolvia o ombro
do anão. O ferimento tinha um mau aspecto, e o
braço estava muito inchado.
– Pobre Trumpkin! – exclamou ela. – Isto
está muito ruim.
Com cuidado, deixou cair sobre a ferida
uma gota do precioso elixir do frasco.
– Ei, o que é isso?! – perguntou Trumpkin,
que, por mais que voltasse a cabeça e revirasse os
olhos e sacudisse a barba, não conseguia ver o
ombro. Sentia-se agora perfeitamente bem,
conseguindo fazer com os braços e com os dedos
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movimentos difíceis, como se sentisse cócegas
num lugar inatingível. Por fim gritou:
– Com trinta mil demônios! Parece novinho
em folha! – E desandou a rir, dizendo: – Nunca
um anão fez um papel tão imbecil quanto eu hoje.
Apresento minhas humildes homenagens a Vossas
Majestades. Agradeço-lhes terem salvo a minha
vida, tratado do meu braço, o almoço, e agradeço
também a lição que me deram.
Não havia nada a agradecer, disseram as
crianças.
– Se agora está disposto a acreditar em
nós... – disse Pedro.
– Claro que estou! – falou o anão.
– Então sabemos o que temos de fazer –
continuou Pedro. – Devemos ir logo ao encontro
do rei.
– Quanto mais depressa, melhor! –
concordou o anão. – A minha burrice já nos fez
perder uma hora.
– Se formos pelo caminho por onde você
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veio, serão uns dois dias de viagem – disse Pedro.
– Para nós, é claro, pois não conseguimos andar
dia e noite como os anões. – E voltando-se para os
outros acrescentou: – O que Trumpkin chama de
Monte de Aslam é, sem dúvida, a Mesa de Pedra.
A gente andava uma manhã toda, talvez um pouco
menos, para ir dali às margens do Beruna...
Lembram-se?
– Ponte do Beruna – interrompeu o anão.
– No nosso tempo não havia ponte. E do
Beruna até aqui era mais de um dia. Andando a
passo normal, a gente costumava chegar no
segundo dia, mais ou menos na hora do lanche.
Com um pouco de esforço, talvez possamos fazer
o caminho em um dia e meio.
– Não se esqueçam: agora é tudo floresta –
disse Trumpkin – , e temos de evitar o inimigo.
– Mas será que precisamos seguir o
caminho por onde veio o nosso caro amiguinho? –
perguntou Edmundo.
– Pare com isso, Majestade, se me quer bem
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– implorou o anão.
– Pois não – concordou Edmundo. – Posso
então chamá-lo de N.C.A.?
– Está bem, menino... quero dizer,
Majestade – disse Trumpkin, com uma
gargalhada. – E, a partir daí, muitas vezes o
trataram por N.C.A., até quase se esquecerem do
que significava.
– Mas, como ia dizendo – continuou
Edmundo – , acho que podemos ir por outro
caminho. Por que não vamos de barco em direção
à baía do Espelho d’Água e seguimos depois lá
por cima? Sairíamos por trás da colina da Mesa de
Pedra e, ao menos enquanto estivéssemos no mar,
estaríamos seguros. Se partirmos imediatamente,
poderemos chegar ao Espelho d’Água antes do
anoitecer, descansar ali um pouco e estar com
Caspian amanhã de manhã.
– Não há nada como conhecer a costa –
disse Trumpkin. – Nunca tinha ouvido falar do
Espelho d’Água.
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– E quanto à comida? – perguntou Susana.
– Teremos de nos contentar com maçãs –
disse Lúcia. – Mas vamos embora! Há quase dois
dias que estamos aqui e ainda não fizemos nada.
– Mas fiquem sabendo desde já que meu
chapéu não servirá mais de cesto para peixe.
Arranjem-se como quiserem! – declarou
Edmundo.
Com uma capa de chuva fizeram uma
espécie de saco, que encheram de maçãs. Depois,
foram beber água no poço, porque só no Espelho
d’Água voltariam a encontrar água doce. E
seguiram para o barco. As crianças tiveram pena
de deixar Cair Paravel, porque, mesmo em ruínas,
sentiam-se bem lá.
– É melhor que N.C.A. fique no leme –
sugeriu Pedro. – Ed e eu tomaremos conta dos
remos. Um momento... Será melhor tirarmos as
armaduras, senão daqui a pouco estaremos
suando. As meninas vão na proa, para darem
indicações ao N.C.A., pois ele não conhece a
costa. Melhor pegar o mar alto até termos passado
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a ilha.
Daí a pouco, a costa arborizada e verdejante
foi ficando para trás. As pequenas baías e cabos
pareciam cada vez menores, e o barco vagava
acompanhando a suave ondulação. O mar
começou a alargar, e, se a distância a água parecia
agora mais azul, perto era verde e borbulhante.
Tudo cheirava a sal, e só se ouvia o chapinhar dos
remos e o deslizar da água, que batia – clopeclope
– contra os lados do barco. O sol começou a
ficar quente.
Lúcia e Susana, na proa, se deliciavam
brincando, tentando em vão enfiar as mãos dentro
d’água. Embaixo via-se a areia branca, colorida às
vezes de algas vermelhas.
– Tudo como antigamente! Você lembra
quando fomos a Terebíntia... e a Galma... e às
Ilhas Solitárias... e às Sete Ilhas...?
– Se me lembro! E me lembro também do
nosso barco, o Esplendor Hialino, com a cabeça
de cisne na proa e as longas asas entalhadas que
chegavam quase ao meio do barco...
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– Lembra das velas de seda? E dos grandes
lampiões da popa?
– E das festas no convés? E dos músicos?
– E daquela vez em que os músicos foram
tocar flauta no alto dos mastros e a música parecia
vir do céu?
Passado algum tempo, Susana tomou o
lugar de Edmundo no remo, e este foi sentar-se
perto de Lúcia. Tinham passado a ilha e
aproximavam-se agora da costa arborizada e
deserta. Se não se lembrassem do tempo em que
era aberta ao mar e
sempre cheia de amigos, é possível que a
tivessem achado muito bonita.
– Puxa! Isso acaba com um homem! – disse
Pedro.
– Posso remar um pouquinho? – perguntou
Lúcia.
– Os remos são grandes demais para você –
foi só o que Pedro disse, não porque estivesse
aborrecido, mas porque não podia gastar energia
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falando.
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9
O QUE LÚCIA VIU
Susana e os dois meninos estavam exaustos
quando dobraram o último cabo, iniciando a etapa
final rumo ao Espelho d’Água. Os reflexos na
água e as longas horas ao sol tinham provocado
em Lúcia uma tremenda dor de cabeça. Até
Trumpkin estava ansioso pelo fim da viagem. O
banco em que ia sentado junto ao leme fora feito
para homens, e não para anões, de modo que não
chegava com os pés ao chão. E todo mundo sabe
como é incômodo ficar dez minutos sentado com
os pés no ar. Quanto mais cansados, mais
desanimados ficavam. Até esse momento, só
tinham pensado em como alcançar Caspian.
Agora já imaginavam o que haveriam de fazer
quando o encontrassem e como é que anões e
criaturas dos bosques poderiam derrotar um
exército de humanos.
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Enquanto contornavam lentamente as baías
do Espelho d’Água, o crepúsculo ia descendo –
crepúsculo que se adensava à medida que as
margens se aproximavam e as copas das árvores
se tocavam. O murmúrio do mar morria à
distância, e reinava uma calma tão perfeita que se
ouvia o deslizar dos fios de água que, vindos da
floresta, se lançavam no Espelho d’Água.
Finalmente pularam para terra, tão cansados
que nem pensaram em acender uma fogueira.
Uma ceia de maçãs (embora não quisessem mais
ver maçãs na sua frente) parecia-lhes melhor do
que caçar ou pescar. Comeram em silêncio e
deitaram-se sobre o musgo e as folhas secas, entre
quatro grandes árvores.
Não tardou que adormecessem todos,
menos Lúcia. Como não estava tão cansada
quanto os outros, não conseguiu arranjar uma
posição cômoda. Além disso, tinha-se esquecido
de que todos os anões roncam. Sabia que para
adormecer não há nada como deixar de se esforçar
para isso; assim, abriu os olhos. Por entre os
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ramos avistava apenas uma mancha de água e o
céu em cima. Então, numa vibração de memória,
voltou a ver, depois de tantos anos, as estrelas
cintilantes de Nárnia. Conhecera-as antigamente,
melhor do que as estrelas do nosso mundo,
porque, como rainha de Nárnia, costumava deitarse
muito mais tarde do que como criança na
Inglaterra. E lá estavam elas agora. Distinguia
pelo menos três constelações de verão: o Navio, o
Martelo e o Leopardo.
– Querido Leopardo! – murmurou, feliz.
Mas, em vez de adormecer, estava cada vez
mais desperta... desperta daquela forma estranha e
sonhadora, como se está às vezes em plena noite.
E o Espelho d’Água brilhava cada vez mais.
Embora não visse a lua, sabia que se refletia nele.
Lúcia começou a sentir que, com ela, toda a
floresta despertava. Quase sem saber o que fazia,
levantou-se rapidamente e afastou-se um pouco.
– Que lindo!
O ar estava fresco, e no ar pairavam aromas
deliciosos. Ali pertinho, um rouxinol começou a
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cantar, parou, recomeçou. Um pouco adiante
estava mais claro. Lúcia avançou para a luz e
chegou a um lugar onde havia poucas árvores,
mas muitas manchas de luar. O luar e as sombras
penetravam-se de tal modo que se tornava difícil
dizer onde estava uma coisa ou a outra. Nesse
mesmo instante, o rouxinol, satisfeito com o
ambiente, rompeu em pleno canto.
Lúcia foi-se habituando à luz e via agora
quase distintamente as árvores mais próximas.
Invadiu-a enorme saudade dos tempos em que as
árvores de Nárnia falavam. Sabia exatamente
como é que cada uma daquelas árvores falaria, se
ela tivesse o poder de despertá-las, e que forma
humana assumiria. Olhou para uma bétula
prateada: teria uma voz doce e cascateante e seria
uma mocinha esbelta, com longos cabelos
esvoaçando à volta do rosto, e que gostava de
dançar. Olhou depois para o carvalho: velhote,
alegre, de cabelo grisalho e barba frisada, rosto e
mãos cheios de verrugas donde brotavam pêlos.
Depois olhou para a faia, debaixo da qual parará,
e pensou que seria ela a mais bela de todas – uma
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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deusa graciosa, suave e imponente, a senhora dos
bosques.
– Oh, árvores! – exclamou Lúcia (embora
sua intenção não fosse falar). – Vamos acordar,
árvores! Não se lembram mais? Será possível que
não se lembram mais de mim? Dríades e
hamadríades, acordem para falar comigo!
Não soprava a mais leve aragem, mas as
árvores estremeceram, e o sussurrar das folhas era
como um murmúrio de palavras. O rouxinol
calou-se.
Lúcia sentiu que de um momento para outro
seria capaz de compreender a linguagem das
árvores. Mas esse momento não veio, e o
murmúrio foi-se desvanecendo. O rouxinol
recomeçou o canto. Embora inundado de luar, o
bosque perdera o encanto. Lúcia teve a sensação
(tão freqüente, quando se tem um nome ou uma
data na ponta da língua e que não se consegue
lembrar) de ter perdido alguma coisa por um triz:
como se, por uma fração de segundo, tivesse
dirigido o seu apelo às árvores cedo ou tarde
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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demais, ou como se tivesse proferido todas as
palavras certas, menos uma, ou tivesse
acrescentado uma palavra errada.
De repente, começou a sentir-se cansada.
Voltou ao lugar onde tinham acampado, aninhouse
entre Susana e Pedro e, dentro em pouco,
dormia a sono solto.
Na manhã seguinte o despertar foi triste e
desconfortável. O sol ainda não nascera e, na luz
cinzenta da madrugada, os bosques surgiam,
úmidos e sujos.
– Viva a maçã! – gritou Trumpkin com um
trejeito gaiato. – Tenho de concordar que os reis e
as rainhas de antigamente não estragam os
cortesãos com agradinhos!
Levantaram-se, sacudiram-se e olharam em
torno. O bosque era espesso. Para onde quer que
olhassem, não conseguiam ver mais do que uns
metros adiante do nariz.
– Suponho que Vossas Majestades
conheçam bem o caminho – disse o anão.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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– Eu não! – exclamou Susana. – Nunca vi
esses bosques na minha vida. Sempre achei que
deveríamos ter ido pelo rio.
– Devia ter falado isso na hora – disse
Pedro, com perdoável impaciência.
– Ora, não ligue para o que ele está
dizendo! – interrompeu Edmundo. – Susana não
tem o menor sentido de orientação. Está com a
bússola aí, Pedro? Ora, vejam. Estamos certinhos.
É só continuar para noroeste... atravessar aquele
riozinho... como é mesmo?... O Veloz, não é isso?
– É, o Veloz – concordou Pedro. – Aquele
afluente do Grande Rio.
– Isso. Atravessa-se o rio, sobe-se a
encosta, e lá pelas oito ou nove horas estamos na
Mesa de Pedra, isto é, no Monte de Aslam. Espero
que o rei Caspian nos ofereça um bom almoço!
– Se Deus quiser! – disse Susana. – A
verdade é que não me lembro nada disso aqui.
– Mulher é assim – disse Edmundo,
voltando-se para Pedro e para o anão – , nunca
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consegue guardar um mapa na cabeça.
– É porque já temos a cabeça cheia de
outras coisas – replicou Lúcia.
A princípio tudo correu muito bem.
Julgaram a certa altura ter encontrado um velho
atalho. Se você entende alguma coisa de floresta,
sabe que a todo momento a gente julga ter
descoberto um atalho imaginário. Passados cinco
minutos, o tal atalho desaparece, mas logo a
seguir vem outro (que a gente espera que não seja
outro, mas uma continuação do primeiro), volta a
desaparecer, e, só quando já estamos de todo
desnorteados, compreendemos que afinal não
eram atalhos coisa nenhuma. Os rapazes e o anão,
porém, muito acostumados à floresta, só por
momentos se deixavam iludir.
Caminhavam havia cerca de meia hora (e
três deles ainda tinham o corpo dolorido de
remar), quando Trumpkin, de repente, disse
baixinho:
– Parem! – todos pararam. – Estamos sendo
seguidos – continuou, sempre em voz baixa. – Ou
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melhor, há alguém que nos acompanha ali do lado
esquerdo.
Ficaram imóveis, esforçando-se para ouvir
ou ver qualquer coisa.
– É melhor prepararmos as flechas – disse
Susana ao anão. Trumpkin fez com a cabeça um
sinal de assentimento e, quando os dois estavam
prontos, a caravana voltou a marchar.
Muito atentos, avançaram uns metros por
uma parte da floresta em que as árvores cresciam
afastadas. Assim chegaram a um lugar coberto de
arbustos espessos. Ao passarem por um maciço,
alguma coisa rosnou, precipitando-se depois como
um raio por entre os ramos partidos. Lúcia
recebeu um esbarrão e foi derrubada. No
momento em que caía, ouviu vibrar uma seta.
Quando se recuperou do susto, viu um enorme
urso cinzento, de terrível aspecto, trespassado no
dorso pela seta de Trumpkin.
– Desta vez, Su, o N.C.A. saiu vencedor! –
disse Pedro, com um sorriso amarelo. Porque até
ele ficara um tanto abalado com a aventura.
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– Atirei tarde demais – justificou-se Susana
muito embaraçada. – Tive medo que fosse um
daqueles ursos... sabe?... um daqueles que falam.
A verdade é que ela tinha horror a matar,
fosse o que fosse.
– Pois aí é que está o problema! –
concordou Trumpkin. Os animais, na sua maioria,
ficaram mudos e tornaram-se inimigos. Nunca se
sabe de que gênero são; se a gente espera, pode
ser tarde demais.
– Coitado do urso! – murmurou Susana. –
Acha que ele era dos maus?
– Claro que sim! – disse o anão. – Vi bem o
focinho dele e ouvi seu rosnado. O que ele queria
era uma garotinha para o café da manhã. E, a
propósito, não quis desanimar Vossas Majestades,
quando disseram há pouco que esperavam que
Caspian lhes desse um bom almoço. Mas agora
devo dizer que, no acampamento, a carne não
costuma ser muito farta. E carne de urso não é
nada má! Seria uma vergonha deixar aí a carcaça
sem levar um pedaço; isso pode levar no máximo
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meia hora. Espero que os dois rapazes, quero
dizer, reis... saibam como tirar pele de urso...
– Melhor a gente ficar longe – disse Susana
para Lúcia. – Já estou imaginando que horrível
espetáculo vai ser isso.
Lúcia concordou, toda arrepiada, e quando
se sentaram disse:
– Sabe, Su, acaba de me ocorrer uma idéia
terrível.
– O que foi?
– Não seria medonho se um dia, no nosso
mundo, os homens se transformassem por dentro
em animais ferozes, como os daqui, e
continuassem por fora parecendo homens, e a
gente assim nunca soubesse distinguir uns dos
outros?
– Já temos preocupações que cheguem aqui
em Nárnia – disse Susana, sempre muito prática. –
Para que inventar ainda outros problemas?
Quando foram encontrar com os outros,
estes já tinham cortado toda a carne que podiam
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carregar. Não é lá nada agradável encher os bolsos
de carne crua, mas eles se arranjaram como
puderam, embrulhando os nacos em folhas verdes.
Sabiam já todos por experiência própria que,
depois de uma boa caminhada e caindo de fome,
seriam capazes de olhar com olhos gordos para
aqueles embrulhos moles e repugnantes.
Continuaram a andar até o sol nascer. Os
pássaros começaram a cantar e as moscas (mais
do que seria de desejar) a zumbir entre as avencas.
Pararam junto do primeiro regato que
encontraram para lavar três pares de mãos, que
precisavam mesmo ser lavadas. À medida que o
cansaço desaparecia, voltava a boa disposição.
Quando o sol começou a esquentar, tiraram os
elmos da cabeça.
– Acho que estamos no caminho certo, não
é?
– perguntou Edmundo, quase uma hora
depois.
– Desde que não nos desviemos muito para
a esquerda, acho que não haverá erro – declarou
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Pedro. – E, se formos demais para a direita, o
máximo que pode acontecer é encontrarmos o
Grande Rio mais abaixo.
Voltaram a avançar, num silêncio quebrado
pelos passos e pelo tilintar das cotas de malha.
– Afinal onde se meteu esse maldito Veloz?
– perguntou Edmundo, depois de grande silêncio.
– Já esperava que tivesse aparecido –
confessou Pedro. – Mas agora não há remédio: é
ir em frente.
– Ambos sabiam que o anão estava aflito,
embora nada dissesse.
Daí a pouco, começaram a achar que as
cotas de malha eram pesadas e aumentavam o
calor. Pedro exclamou de repente:
– Que é isso aqui?!
Quase sem perceberem, tinham chegado a
um pequeno precipício que se elevava sobre um
desfiladeiro, no fundo do qual corria um rio. Do
outro lado os rochedos eram imensos. Tirando
Edmundo (e talvez Trumpkin), nenhum deles era
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grande alpinista.
– Desculpem! – disse Pedro. – Foi por
minha culpa que viemos por aqui. Perdemos o
caminho. Não faço idéia do lugar onde estamos.
O anão começou a assoviar baixinho entre
os dentes. Susana disse, impaciente:
– O melhor é voltar e ir pelo outro lado.
Sabia que a gente acabaria se perdendo neste
mato!
– Susana! – exclamou Lúcia em tom de
censura.
– Não vá implicar com Pedro. É feio e,
além disso, é injusto. Ele fez o que podia.
– E você não implique com a Su! –
interrompeu Edmundo. – Ela tem toda a razão.
– Com seiscentos milhões de macacos! –
exclamou Trumpkin. – Se a gente se perdeu
vindo, quem vai garantir que a gente não se perca
indo? Se temos de voltar à ilha e começar pelo
princípio... supondo que sejamos capazes, vou
logo dizendo que o melhor é desistir já. De um
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jeito ou de outro, antes de chegarmos lá, Miraz já
terá liquidado Caspian.
– Acha então que devemos continuar? –
perguntou Lúcia.
– Não estou convencido de que o Grande
Rei se tenha enganado – disse Trumpkin. –
Afinal, por que aquele rio não pode ser o Veloz?
– Porque o Veloz não corre num
desfiladeiro! Só por isso! – declarou Pedro,
fazendo um esforço para não se mostrar irritado.
– Vossa Majestade diz “corre”, mas não
seria mais certo dizer “corria”? Conheceu este
país há centenas... talvez milhares de anos. Pode
muito bem ter mudado. Um desabamento de terra
pode ter arrastado parte daquela encosta, deixando
a rocha a descoberto e dando origem aos
precipícios do outro lado do desfiladeiro. E
depois, durante anos e anos, o Veloz foi
escavando o leito, até que deste lado se formaram
estes pequenos precipícios. Também pode ter
havido um tremor de terra ou qualquer coisa
parecida.
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– Não tinha pensado nisso – disse Pedro.
– De qualquer modo, mesmo que este não
seja o Veloz, a verdade é que corre para o Norte e
certamente vai desaguar no Grande Rio. Acho
que, ao vir, passei por lá. Se formos para a direita,
seguindo a corrente, chegaremos ao Grande Rio.
Talvez não precisamente no ponto que
pretendíamos, mas não será pior do que se
tivéssemos vindo por onde eu dizia.
– Bem bolado, Trumpkin – disse Pedro. –
Vamos embora! Por aqui, por este lado do
desfiladeiro.
– Olhem, olhem! – gritou Lúcia.
– O quê? Onde? – disseram todos.
– O Leão! – disse Lúcia. – Aslam! Vocês
não viram? – Estava transfigurada, com os olhos
em fogo.
– Você acha mesmo que...? – começou a
dizer Pedro.
– Onde você pensa que o viu? – indagou
Susana.
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– Por favor, não falem como pessoas
grandes! – disse Lúcia batendo o pé. – Não penso
que vi! Vi mesmo!
– Mas onde, Lu? – perguntou Pedro.
– Lá em cima, entre aquelas roseiras do
mato. Não, deste lado do precipício. Lá em cima,
não embaixo. Do lado contrário ao que vocês
querem ir. Aslam queria que fôssemos por onde
ele estava... lá em cima.
– Como é que sabe o que ele queria? –
perguntou Edmundo.
– Bem... ele... pela cara dele!
Perplexos, os outros entreolharam-se em
silêncio.
– Pode ser muito bem, Real Senhora, que
tenha visto um leão – disse Trumpkin. – Dizem
que há leões nestas florestas. Mas quanto a ser um
leão amigo, daqueles que falam, sei lá: pode ser
como o urso...
– Que besteira! – exclamou Lúcia. – Acha
que não sou capaz de reconhecer Aslam se o vir?
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– Se é um conhecido de outros tempos,
deve estar bastante velho! – replicou Trumpkin. –
E, ainda que seja o mesmo, quem é que nos
garante que não se tenha tornado feroz como
tantos outros?
Lúcia ficou vermelha de raiva. Se Pedro
não a segurasse pelo braço, teria caído em cima
do anão.
– O N.C.A. não entende. E como haveria de
entender? Você tem de partir de um princípio,
Trumpkin: nós realmente conhecemos Aslam...
um pouco, é claro. E não deve mais falar dele
desse jeito. Em primeiro lugar, não é coisa que lhe
dê boa sorte. Além disso, é asneira grossa. O
problema é saber se Aslam estava de fato lá em
cima.
– Mas eu tenho certeza! – gritou Lúcia, com
os olhos cheios de lágrimas.
– Ora, Lúcia, você tem certeza, mas nós não
temos! – disse Pedro.
– O melhor é pôr em votação – propôs
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Edmundo.
– Apoiado! – concordou Pedro. – O N.C.A.
é o mais velho. Seu voto: vamos por cima ou por
baixo?
– Por baixo. Não entendo nada de Aslam.
Mas sei que, se voltarmos à esquerda e formos lá
por cima, poderemos andar um dia inteiro sem
conseguir passar para o outro lado. Mas, se
cortarmos pela direita e seguirmos por baixo, em
poucas horas estaremos no Grande Rio. Além
disso, se há mesmo leões, acho que é mais
interessante fugir do que ir ao encontro deles.
– Qual a sua opinião, Susana?
– Não fique zangada, Lu, mas acho que
realmente é melhor ir por baixo... Estou muito
cansada, e o que me interessa é sair quanto antes
desta mata horrível. E, para dizer a verdade, só
você, ninguém mais, viu alguma coisa!
– Você, Edmundo?
– Bem, há uma coisa a considerar – disse
Edmundo, falando depressa, muito corado. –
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Quando descobrimos Nárnia, há um ano... ou há
mil, sei lá... foi justamente Lúcia quem descobriu
primeiro, e nós não quisemos acreditar nela. Eu
fui o pior, sei disso. Ora, ela tinha razão. Não
seria justo que desta vez acreditássemos? Por
mim, proponho que se vá por cima.
– Oh, Ed! – exclamou Lúcia, agarrando-lhe
as mãos.
– É sua vez, Pedro – disse Susana – e
espero que...
– Cale a boca... deixe-me pensar! Prefiro
não votar.
– Você é o Grande Rei – censurou
Trumpkin.
– Vamos por baixo – disse Pedro, depois de
longo silêncio. – Pode ser que Lúcia tenha razão,
mas não tenho certeza. Mas temos de decidir uma
coisa ou outra.
Assim puseram-se a caminho, seguindo a
corrente do rio pela margem direita. Lúcia ia atrás
de todos, chorando amargamente.
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10
O RETORNO DO LEÃO
Seguir à beira do precipício não era tão fácil
como parecia. Mal tinham andado alguns metros,
encontraram pela frente abetos novos. Depois de
terem gasto uns bons dez minutos a querer
avançar de rastos, compreenderam que, naquele
passo, levariam uma hora para cobrir pouco mais
de meio quilômetro. Voltaram atrás e resolveram
contornar o pinhal. Foram sair muito para a
direita, num lugar de onde não avistavam os
penhascos nem ouviam o rio, e receavam tê-lo
perdido de todo. Ninguém sabia que horas eram,
mas o calor estava no auge.
Quando conseguiram por fim chegar à beira
do desfiladeiro (cerca de quilômetro e meio
abaixo do ponto de partida), viram que os
rochedos ali eram muito menores e mais
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recortados. Não tardou que encontrassem um
caminho, que os levou ao fundo do desfiladeiro,
continuando depois pela margem do rio. Antes
pararam para descansar e beber água. Já ninguém
falava na possibilidade de almoçar ou mesmo
jantar com Caspian.
Fora acertada talvez a decisão de seguirem
o Veloz, em vez de irem lá por cima. Assim
tinham a certeza do rumo; desde que se tinham
perdido no pinhal, o que mais receavam era
afastarem-se do caminho e se perderem na
floresta. Era uma velha floresta, sem caminhos,
onde não se podia pensar em seguir em linha reta.
A todo o momento, maciços de arbustos, árvores
caídas, charcos pantanosos e uma densa vegetação
rasteira cortavam o avanço. Mas o desfiladeiro
também não era convidativo para viajantes, isto é,
nada agradável para gente apressada. Para um
passeio ou um piquenique seria maravilhoso.
Nada faltava ali das coisas que dão encanto a um
momento desses: cascatas prateadas, profundos
lagos nacarados, penedos musgosos, avencas de
todos os tipos, insetos coloridos; de vez em
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quando, um falcão voando alto e até (pelo menos
foi o que pensaram Pedro e Trumpkin) uma águia.
E claro que agora queriam encontrar o mais
depressa possível o Grande Rio, o Beruna e o
caminho para o Monte de Aslam.
À medida que avançavam, o Veloz se fazia
mais caudaloso. A viagem perdeu o ar de passeio
e começou a parecer cada vez mais uma escalada,
bem perigosa aqui e ali, pois tinham de passar
sobre rochas escorregadias, que ameaçavam
precipitá-los em abismos tenebrosos, do fundo dos
quais se elevava o rugido furioso do rio.
Você não calcula com que ansiedade
observavam os rochedos à esquerda, à procura de
um caminho por onde pudessem subir; mas os
rochedos permaneciam fechados, sem piedade.
Era de enlouquecer, tanto mais porque
sabiam que, se saíssem do desfiladeiro, teriam à
esquerda uma encosta suave, e pouco precisariam
andar para se juntar a Caspian.
O anão e os meninos achavam que era hora
de parar para acender uma fogueira e assar um
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pouco de carne. Susana se opunha. Só pensava em
“ir em frente e acabar logo com tudo aquilo,
saindo daquelas malditas matas!” Lúcia estava tão
cansada e deprimida que nem chegava a ter
opinião. Aliás, como ali não havia lenha seca,
pouco valia a opinião de cada um. Esfomeados, os
jovens chegaram a perguntar se a carne crua seria
mesmo tão repugnante como se diz. O anão
garantiu-lhes que sim.
– Finalmente! – exclamou Susana.
– Oba! – exclamou Pedro.
O rio acabava de fazer uma curva, e se
desenrolava diante deles um vasto panorama.
Rasgava-se a seus pés o campo descoberto, que
alcançava a própria linha do horizonte, e a separálos
dele a larga fita prateada do Grande Rio.
Reconheceram o sítio largo e baixo a que outrora
chamavam de Passo do Beruna e por sobre o qual
se elevava agora uma grande ponte com muitos
arcos. Do outro lado da ponte via-se uma pequena
cidade.
– Ora, viva! – exclamou Edmundo. – Foi ali
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que travamos a batalha do Beruna.
Essa idéia, mais do que outra qualquer,
animou o grupo. Pois ninguém pode deixar de
sentir-se mais forte em face do lugar onde, séculos
antes, teve uma vitória retumbante, para não se
falar de um reino. Passado um pouco, Pedro e
Edmundo estavam de tal modo entusiasmados a
discutir a batalha que se esqueceram dos pés
doloridos e do peso incômodo das cotas de malha.
O entusiasmo contagiara o anão.
O caminho parecia-lhes agora mais suave, e
avançavam todos com o passo mais rápido. Ainda
que à esquerda continuassem a ver somente
penhascos, à direita o terreno ia ficando cada vez
menos acidentado. Não tardou que o desfiladeiro
se transformasse num vale. Depois desapareceram
as quedas-d’água e voltaram a penetrar em
floresta fechada.
Aí... de repente... zzzt! E logo em seguida
um ruído que parecia coisa de pica-pau. As
crianças, espantadas, se perguntavam onde é que
(havia anos e anos) tinham ouvido um som
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parecido, e por que este lhes desagradava tanto,
quando Trumpkim gritou:
– Todo mundo no chão!
No mesmo instante o anão obrigou Lúcia
(era quem estava mais perto) a deitar-se sobre as
avencas. Pedro, que estivera olhando para todos
os lados, para ver se descobria um esquilo, viu do
que se tratava: uma longa seta, passando-lhe por
cima da cabeça, fora cravar-se no tronco de uma
árvore. No momento em que obrigava Susana a
deitar-se e se atirava ele próprio ao chão, outra
seta raspou-lhe o ombro e cravou-se na terra.
– Depressa! Vamos fugir de rastos! –
repetia Trumpkin, ofegante.
Voltaram-se e, ocultando-se nas avencas,
rastejaram colina acima, perseguidos por
verdadeira nuvem de moscardos, que zumbiam
sinistramente. As setas cruzavam-se em torno.
Com uma vibração metálica, uma foi bater no
elmo de Susana, fazendo ricochete. Rastejaram
mais depressa, encharcados de suor. Levantaramse
e, quase dobrados em dois, começaram a
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correr.
Era de matar... ter de subir outra vez a
encosta toda, pelo mesmo caminho que tinham
percorrido. Quando sentiram que mesmo para
salvar a vida não conseguiriam dar nem mais um
passo, deixaram-se cair ofegantes no musgo
úmido, perto de uma cascata, detrás de um
penedo. Ficaram admirados com a distância que
tinham conseguido subir.
Nenhum som denunciava que estivessem
sendo perseguidos.
– Parece que estamos salvos! – disse
Trumpkin, respirando fundo. – Devem ser
sentinelas. Agora já sabemos que Miraz tem aqui
um posto avançado. Com trinta mil diabos! A
coisa está feia!
– Eu merecia ser esfolado vivo por ter
trazido vocês por este caminho – disse Pedro.
– De modo algum, Real Senhor –
contrariou o
anão. – Até porque foi o seu Real Irmão
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quem primeiro sugeriu que viéssemos pelo
Espelho d’Água.
– O N.C.A. tem razão – concordou
Edmundo, que se esquecera completamente disso
quando as coisas começaram a correr mal.
– Além disso – continuou Trumpkin – , se
tivéssemos ido por onde eu dizia, o mais certo era
cairmos direitinho neste novo posto. Ou pelo
menos teríamos encontrado a mesma dificuldade
em evitá-lo. Pensando bem, este caminho parece o
mais seguro.
– Pode ser até uma bênção disfarçada –
falou Susana.
– Muito bem disfarçada! – exclamou
Edmundo.
– O jeito agora é voltar e subir o
desfiladeiro – disse Lúcia.
– Muito bem, Lúcia! – falou Pedro. – Não
há maneira mais delicada de dizer: “Eu não
falei?”. Vamos.
– E quando chegarmos à floresta, digam lá
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o que disserem, acendo uma fogueira e faço o
jantar – declarou Trumpkin. – Mas temos é de cair
fora daqui. Quanto antes!
Nem vale a pena contar o que lhes custou
subir o desfiladeiro. Mas, por estranho que pareça,
todos se sentiam mais animados. A palavra
“jantar” tinha produzido neles um efeito mágico.
Era ainda dia quando chegaram ao pinhal
que tantas complicações lhes trouxera e
acamparam numa cavidade que ficava por cima.
Juntar lenha para a fogueira foi uma tarefa
enjoada; mas depois foi esplêndido, quando as
labaredas começaram a subir e todos tiraram da
bolsa os embrulhos úmidos e engordurados da
carne de urso, que teriam parecido repugnantes a
quem tivesse passado o dia em casa. O anão era
muito bom de culinária. Tinham ainda algumas
maçãs: cada uma foi envolvida numa fatia de
urso, como se fosse uma torta de maçã – só que,
em vez de massa, era uma camada grossa de carne
– espetada num pau, para ser assada. O sumo da
maçã penetrou na carne, como acontece com a
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carne de porco com molho de maçã. Quando o
urso se alimenta principalmente de outros
animais, não é lá muito saboroso, mas quando
come muita fruta e mel é pra lá de bom; por feliz
coincidência, aquele urso era exatamente desses.
Foi uma refeição de lamber os beiços. E no fim
nem sequer havia louças para lavar... Deitaram-se,
estenderam as pernas e ficaram conversando,
observando o fumo que se elevava do cachimbo
de Trumpkin. Estavam todos cheios de esperança
de encontrar Caspian no dia seguinte; e tinham
também a esperança de derrotar Miraz dentro de
poucos dias. Claro que toda essa boa disposição
não era muito lógica, mas a verdade é que se
sentiam felizes.
Não demorou que adormecessem.
Lúcia acordou de um sono profundo, com a
sensação de que uma voz (a que mais queria no
mundo) a estava chamando. Pensou que talvez
fosse a voz do pai, mas não tinha certeza disso.
Pensou depois que fosse a de Pedro, mas logo viu
que também não podia ser. Não tinha vontade de
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se levantar, não porque ainda estivesse cansada
(pelo contrário, sentia-se extraordinariamente
repousada e as dores do corpo tinham
desaparecido por completo), mas porque se sentia
bem e extremamente feliz. Olhava a lua de
Nárnia, que é maior do que a nossa, e o grande
céu estrelado, pois tinham acampado num lugar
descoberto.
– Lúcia! – ouviu chamar, outra vez, uma
voz que não era nem do pai nem de Pedro.
Sentou-se, tremendo de excitação, mas sem
medo. O luar brilhava tanto que a paisagem
florestal em redor tinha a claridade do dia, embora
de aspecto mais fantástico. Por detrás dela ficava
o pinhal; à direita, um pouco longe, o desfiladeiro
terminava em penedos escarpados; em frente
estendia-se um relvado que terminava ao alcance
de uma flechada, dando lugar a uma clareira, onde
cresciam algumas árvores.
– Parece que estão mexendo! – falou para si
mesma. – Estão andando!
Com o coração batendo
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descompassadamente, levantou-se e avançou para
lá. Pairava na clareira um certo murmúrio, como o
que faz a ventania na copa das árvores, ainda que
não corresse nem a mais leve aragem. Mas
também não era o sussurro costumeiro da
folhagem. Lúcia sentiu que naquele murmúrio
havia uma certa melodia, que todavia não
conseguia captar, assim como na véspera não fora
capaz de entender as palavras, quando as árvores
pareciam falar-lhe. Mas já não podia haver dúvida
de que as árvores estavam andando., passando
umas pelas outras e cruzando-se como se
executassem uma complicada dança campestre.
Já estava quase entre as árvores. A primeira
para a qual olhou pareceu-lhe ser não uma árvore,
mas um homem enorme, de barba desgrenhada e
grandes tufos cabeludos. Isso para ela já não era
novidade, e não se assustou. Mas, quando voltou a
olhar, a árvore, se bem que continuasse a mexerse,
era apenas uma árvore. O que não percebia
bem era se tinha raízes ou pés, pois quando as
árvores se deslocam não andam na superfície da
terra: deslizam por dentro dela, como fazemos nós
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na água. O mesmo aconteceu com todas as outras
árvores. Num momento pareciam encantadores
gigantes, forma que assumem quando qualquer
poder mágico amigo as chama plenamente à vida.
Logo em seguida, voltavam a ser simplesmente
árvores. O engraçado é que, como árvores, eram
árvores estranhamente humanas, e, como pessoas,
eram estranhamente folhosas e ramalhudas... e o
tempo todo aquele ruído alegre, nascente,
rumorejante.
– Estão quase despertando! – disse,
sentindo-se ela própria mais acordada do que
nunca.
Meteu-se pelo meio, muito confiante,
dançando e saltando para um lado e para o outro,
temerosa apenas de que algum daqueles
gigantescos dançarinos esbarrasse nela. Mas isso
só a preocupava um pouco, pois seu desejo era ir
além das árvores, ao encontro de alguma outra
coisa, porque fora de lá que chamara a voz
querida.
Não demorou a atingir o outro lado,
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perguntando a si mesma se tivera de afastar os
ramos com as mãos ou se fora levada pelos
gigantescos dançarinos. Finalmente saiu da
mobilidade confusa dos maravilhosos contrastes
de sombra e luz.
Em redor de um macio relvado, árvores
negras bailavam. E então... que alegria! No meio
delas, o Grande Leão, branco de luar, projetava
uma enorme sombra escura.
Se não fosse o movimento da cauda,
poderia ser tomado por uma estátua. Lúcia nem
sequer pensou nessa hipótese. Nem um instante
duvidou... Correu para ele. Não podia perder um
só momento. Envolveu-lhe o pescoço com os
braços, beijando-o, enterrando a cabeça no sedoso
pêlo de sua juba.
– Aslam! Querido Aslam! – soluçou. – Até
que enfim!
O grande animal deitou-se de lado, de modo
que Lúcia caiu, ficando meio sentada e meio
deitada entre as suas patas dianteiras. Ele
inclinou-se e com a língua tocou o nariz da
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menina, que se sentiu envolvida pelo seu bafo
quente. Ela levantou os olhos e fixou-os no grande
rosto sério.
– Foi bom ter vindo – disse ele.
– Aslam, como você está grande!
– É porque você está mais crescida, meu
bem.
– E você, não?
– Eu, não. Mas, à medida que você for
crescendo, eu parecerei maior a seus olhos.
Lúcia sentia-se tão feliz que nem queria
falar. Aslam quebrou o silêncio.
– Lúcia, não podemos nos demorar muito
aqui. Vocês têm uma tarefa a cumprir e hoje já
perderam muito tempo.
– Que vergonha, não acha? Tinha certeza de
que era você. Mas eles não quiseram acreditar...
São todos uns...
Lá muito de dentro, das próprias entranhas
de Aslam, veio qualquer coisa que, vagamente,
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sugeria um rosnar de impaciência.
– Desculpe! – disse Lúcia, ao entender
tudo. – Não queria pôr a culpa nos outros. Mas a
verdade é que a culpa não foi minha.
O Leão fitou-a bem nos olhos.
– Oh, Aslam, acha que eu errei? Como é
que eu... podia deixar os outros e vir sozinha
encontrar-me com você? Não olhe para mim desse
jeito... bem... de fato... talvez eu pudesse. Sei que
com você não estaria sozinha. Mas ia adiantar
alguma coisa?
Aslam não respondeu.
– Mesmo assim teria sido melhor? –
perguntou Lúcia, com a voz sumida. – Mas como?
Aslam, por favor, diga-me.
– Dizer o que teria acontecido? Não, a
ninguém jamais se diz isso.
– Oh, que pena! – exclamou Lúcia.
– Mas todos podem descobrir o que vai
acontecer – continuou Aslam. – Se voltar agora e
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acordar os outros para contar-lhes outra vez o que
viu, e disser que eles se levantem imediatamente e
me sigam... que acontecerá? Só há um modo de
saber...
– É o que quer que eu faça?
– É, minha criança – respondeu Aslam.
– E os outros também vão ver... você.
– A princípio, não. Talvez mais tarde.
– Mas aí eles não vão acreditar!
– Não faz mal.
– Ora essa, ora essa! E eu que estava tão
feliz por tê-lo encontrado de novo. Pensei que
ficaria a seu lado. Pensei que você viria rugindo e
que os inimigos fugiriam de medo... como da
outra vez. Afinal, vai ser horrível.
– Será difícil para você, querida, mas as
coisas nunca acontecem duas vezes da mesma
maneira. Todos nós já passamos momentos
difíceis em Nárnia.
Lúcia escondeu o rosto na juba. Mas devia
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haver nela algum poder mágico, pois ela se sentiu
invadida pela força do Leão. Sentando-se de
repente, disse:
– Desculpe, Aslam. Estou pronta.
– Agora você é uma leoa – disse ele. –
Nárnia inteira será renovada. Venha, não temos
tempo a perder.
Levantou-se e sem ruído dirigiu-se
majestosamente para o círculo das árvores
dançarinas. Lúcia pousava na juba sua mão
trêmula. As árvores afastavam-se para deixá-los
passar, assumindo nesse instante a plena forma
humana. Num relance, Lúcia viu deuses e deusas
da floresta, altos e graciosos, curvando-se perante
o Leão. Daí a pouco, eram outra vez árvores, mas
curvando-se ainda, com movimentos tão graciosos
dos ramos e troncos, que a própria reverência era
uma espécie de dança.
– Espero por você aqui – disse Aslam,
depois de terem ultrapassado as árvores. – Vá
acordar os outros: eles devem segui-la. Se não
quiserem vir, você pelo menos terá de
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acompanhar-me.
É desagradável ter de acordar quatro
pessoas mais velhas, ainda por cima cansadas,
para dizer-lhes uma coisa em que provavelmente
não irão acreditar, e para convencê-las a fazer
aquilo que não querem. Lúcia disse para si
mesma: “É melhor nem pensar! Tenho é de ir em
frente e aceitar o desafio!”
Sacudiu Pedro, chamando baixinho:
– Pedro! Depressa, Aslam está aqui.
Mandou que a gente vá atrás dele imediatamente.
– É claro, Lu! Como quiser – concordou
Pedro, para o espanto dela. A resposta fora
animadora, mas logo Pedro virou-se para o outro
lado e continuou a dormir.
Voltou-se para Susana, que acordou
mesmo, mas apenas para dizer, com o ar
aborrecido de um adulto:
– Vá dormir, Lúcia. Você deve estar
sonhando.
Resolveu tentar com Edmundo. Não foi
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fácil acordá-lo, mas, quando de fato acordou,
sentou-se logo:
– Hein?! – disse, numa voz cheia de sono. –
Que é que você está dizendo?
Ela repetiu tudo do princípio, e esta era a
parte pior da missão, porque, cada vez que falava,
a coisa lhe parecia menos convincente.
– Aslam! – exclamou Edmundo, dando um
pulo.
– Puxa vida! Onde está ele?
Lúcia voltou-se para onde o Leão a
esperava, com os olhos meigos fixos nela.
Apontou: – Ali.
– Onde?
– Ali. Não está vendo? Perto daquela
árvore. Edmundo olhou atentamente e disse:
– Está ali coisa nenhuma! Foi o luar que
pôs você meio pateta! Isso acontece! Também
achei que vi alguma coisa, mas foi uma daquelas
coisas óticas... como é mesmo?...
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– Mas eu estou vendo Aslam! – insistiu
Lúcia.
– E ele está olhando para nós!
– Então, diga-me uma coisa: por que não
vejo Aslam?!
– Ele disse... que talvez... você não pudesse
vê-lo.
– Ora essa! Por quê?
– Não sei. Foi ele que disse.
– Mas que chateação! Seria melhor que
você deixasse de ter visões. Enfim, de qualquer
modo, vamos acordar os outros.
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11
O LEÃO RUGE
Quando finalmente todos estavam
acordados, Lúcia contou a história pela quarta
vez. Nada podia ser mais desanimador do que o
silêncio que se seguiu.
– Não consigo ver nada – declarou Pedro,
depois de ter olhado tão fixamente que os olhos
lhe doíam. – Está vendo alguma coisa, Su?
– Claro que não! – disse Susana, malhumorada.
– Pois se não há nada para ver! Ela
anda é sonhando. É melhor você dormir, Lúcia.
– Só queria que vocês viessem comigo –
disse Lúcia, com voz trêmula. – Porque... porque,
se não quiserem, terei de ir sozinha.
– Não diga tolice – resmungou Susana. –
Você sabe muito bem que não pode ir sozinha.
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– Se ela tiver mesmo de ir, eu vou com ela
– disse Edmundo. – Da outra vez quem tinha
razão era ela.
– Sei disso – replicou Pedro – , e pode até
ser que ela estivesse certa também hoje de manhã.
A verdade é que aquela idéia do desfiladeiro foi
um passo em falso. Mas... a esta hora da noite... E
por que Aslam iria ficar invisível para nós? Nunca
esteve!... Não é coisa dele! Que diz você, N.C.A.?
– Não digo nada – respondeu o anão. – Se
todos forem, também vou. Se se dividirem, fico
com o Grande Rei. Só assim poderei cumprir o
meu dever para com ele e para com o rei Caspian.
Mas, se querem o parecer de um anão ignorante,
acho que não há grandes possibilidades de
encontrarmos o caminho à noite, uma vez que
nem de dia demos com ele. E não gosto nada
desses leões milagrosos, que sabem falar mas não
falam, que são bons mas não mostram isso, e que,
ainda por cima, são enormes e aparecem de
repente, e não há quem consiga vê-los. Para mim,
isso tudo é lorota – na minha modesta opinião.
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– Está batendo com a pata no chão para
andarmos depressa – disse Lúcia. – Tenho de ir
logo... pelo menos eu vou!
– Você não tem o direito de impor a sua
vontade. Afinal, somos três contra um – declarou
Susana – e você é a caçula.
– Vamos embora! – disse Edmundo,
impaciente. – É claro que temos de ir; enquanto
não formos, não ficaremos sossegados.
Estava firmemente decidido a apoiar Lúcia,
mas a idéia de perder a noite lhe era incômoda;
vingava-se então fazendo tudo com má vontade.
– Então, a caminho! – disse Pedro, com um
ar cansado, passando o braço pela correia do
escudo e colocando o elmo. Em outra
circunstância, não deixaria de dizer a Lúcia uma
palavra amável, mesmo porque era sua irmã
favorita, e sabia também que ela não tinha culpa
do que estava acontecendo. Mas, ao mesmo
tempo, não podia deixar de sentir-se um tanto
aborrecido com ela. Susana foi a pior.
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– E imaginem se agora eu começasse a
fazer a mesma coisa que Lúcia! Podia ameaçar de
ficar aqui, mesmo que todos fossem embora.
Acho até que vou fazer isso.
– Obedeça ao Grande Rei, Real Senhora, e
vamos partir – disse Trumpkin. – Já que não me
deixam dormir, tanto faz caminhar como ficar
aqui conversando.
Puseram-se a caminho. Lúcia ia à frente,
mordendo os lábios, dominando-se para não dizer
a Susana tudo o que pensava dela. Mas, logo que
encontrou o olhar de Aslam, foi-se a irritação. Ele
avançava uns trinta metros à frente deles. Os
outros tinham de guiar-se apenas pelas indicações
de Lúcia, porque não ouviam nem viam Aslam.
Suas grandes patas aveludadas pousavam na relva
sem o menor barulho.
Aslam levou-os direitinho às árvores
dançantes (se dançavam naquele momento é que
ninguém sabe, pois Lúcia não tirava os olhos do
Leão, e os outros não tiravam os olhos dela) e
seguiu em direção ao desfiladeiro.
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– Com mil bombas! – resmungou
Trumpkin. – Espero que essa brincadeira toda não
vá acabar numa escalada ao luar, com pernas e
braços quebrados.
Durante muito tempo, Aslam manteve-se no
cimo do desfiladeiro, mas, quando apareceu um
tufo de árvores à direita, virou para lá e
desapareceu entre elas. Lúcia teve um sobressalto,
pois lhe pareceu que ele sumira no abismo. Não
teve muito tempo para pensar. Apressou o passo e
desapareceu também no arvoredo. Podia ver agora
uma vereda íngreme que se contorcia entre
penhascos, conduzindo ao desfiladeiro. Aslam
avançava por lá. Lúcia bateu palmas de alegria e
começou a descer atrás dele. Ouviu os outros
gritarem:
– Lúcia! Pare! Espere, pelo amor de Deus!
Você está na beirada do abismo! Volte!
Daí a pouco era Edmundo que dizia:
– Oh, ela tem razão! Está tudo bem. Há um
caminho.
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Quando Edmundo conseguiu alcançá-la,
perguntou, excitado:
– Olhe, ali, uma sombra mexendo!...
– É a sombra dele – respondeu Lúcia.
– Acho que você tem razão, Lu. Como é
que não vi Aslam antes? Mas onde ele está?
– Ao pé da sombra, evidente! Não está
vendo?
– Bem... por um instante acho que vi
qualquer coisa. Está uma luz tão esquisita.
– Para a frente, rei Edmundo – veio lá de
trás e lá de cima a voz de Trumpkin.
E ainda mais atrás e mais acima Pedro
dizia:
– Vamos, Susana, dê a mão. Deixe de
enjoamento. Qualquer criança seria capaz de
descer por aqui.
Passados alguns minutos, estavam no fundo
do desfiladeiro, com a água rugindo-lhes ao
ouvido. Avançando cautelosamente, como se
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fosse um gato, Aslam atravessou o rio, saltando
de pedra em pedra. No meio da corrente parou,
baixou-se para beber e, ao levantar a cabeça,
sacudiu a juba orvalhada, virando-se para eles.
Dessa vez Edmundo pôde vê-lo.
– Oh, Aslam! – gritou, precipitando-se a
seu encontro. Mas o Leão deu meia-volta e
começou a subir a encosta do outro lado do Veloz.
– Pedro, Pedro! – gritou Edmundo. – Você
o viu?
– Vi, vi qualquer coisa. Mas está tudo tão
confuso com este luar. Vamos em frente, e três
vivas para Lúcia. Já nem me sinto tão cansado.
Sem hesitar, Aslam foi subindo à esquerda.
Tudo naquela caminhada era estranho, como se
acontecesse em sonho: o rio bramindo, a relva
úmida, os penhascos cintilantes... Mais
extraordinário que tudo, a marcha silenciosa do
grande animal. Agora, todos o viam, menos
Susana e o anão.
Outro atalho, tão íngreme como o primeiro,
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ziguezagueava por novos precipícios, muito mais
altos do que os anteriores. Longa e difícil foi a
subida. Felizmente a lua brilhava bem sobre a
garganta, de modo que nenhum dos lados estava
na sombra.
Lúcia estava quase desfalecendo quando a
cauda e as patas traseiras de Aslam desapareceram
no alto. Com um esforço final, arrastou-se atrás
dele e encontrou-se, ofegante e trêmula, no cimo
da colina que tinham tentado alcançar desde a
partida do Espelho d’Água. Uma vasta encosta
alongava-se suavemente por cerca de um
quilômetro, coberta de espinheiros e relva e, de
quando em quando, salpicada de grandes
rochedos, brancos ao luar, desaparecendo depois
numa confusão de árvores. Era a colina da Mesa
de Pedra, que Lúcia conhecia bem. Com um
tilintar de cotas de malha, os outros subiram atrás
dela, continuando depois atrás de Aslam.
– Lúcia! – chamou Susana, baixinho.
– Que é?
– Agora estou vendo Aslam. Desculpe-me.
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– Não tem importância.
– Mas sou muito pior do que você pensa.
Acreditei que era ele... acreditei ontem mesmo...
quando ele não queria que fôssemos pelo pinhal.
E acreditei também hoje, quando você nos
acordou. Isto é... no fundo acreditei... Ou podia ter
acreditado, se quisesse... Mas estava com tanta
pressa de sair da floresta... e... não sei como vou
explicar. O que vou dizer a ele agora?
– Talvez não precise dizer mais nada.
Não tardou que se encontrassem junto das
árvores e vissem através delas o Monte de Aslam,
construído sobre a Mesa de Pedra, já tempos
depois do tempo deles.
– A guarda não está no posto – resmungou
Trumpkin. – Já deviam ter barrado a nossa
marcha...
– Psiu! – fizeram os outros quatro, porque
Aslam parará e, tendo-se voltado, olhava para eles
com um aspecto tão majestoso que todos ficaram
contentes, tão contentes quanto é possível a
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pessoas que sentem medo, e tão cheios de medo
quanto é possível a pessoas que se sentem
contentes. Os rapazes avançaram. Lúcia afastouse
para lhes dar passagem. Susana e o anão
recuaram.
– Aslam! – exclamou Pedro, pondo um
joelho em terra e levantando a pesada pata do
Leão até tocar com ela no rosto. – Estou tão
contente... e tão triste! Desde que partimos que os
tenho trazido por caminho errado, e ontem foi pior
do que nunca.
– Meu filho! – disse Aslam.
Depois voltou-se para Edmundo e deu-lhe
as boas-vindas:
– Muito bem! – foram as suas palavras. –
Depois de um silêncio terrível, disse com voz
grave: – Susana! – Susana não respondeu e
pareceu aos outros que estava chorando. – Você
deixou que o medo a dominasse. Venha, deixe
que sopre sobre você. Esqueça seus receios. Está
melhor agora?
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– Um pouco, Aslam – disse Susana.
– Pois bem! – continuou Aslam, em voz tão
forte que quase parecia um rugido, fustigando os
flancos com a cauda. – Onde está aquele
anãozinho, esse famoso espadachim e arqueiro,
que não acredita em leões? Aproxime-se, filho da
Terra, venha aqui\ – A última palavra já não
parecia um rugido, era quase um rugido de
verdade.
– Com mil demônios! – murmurou
Trumpkin, com a voz sumida.
As crianças, que conheciam Aslam o
suficiente para perceber que ele gostava muito do
anão, não ficaram impressionadas. Mas com
Trumpkin, que nunca tinha visto um leão, e muito
menos aquele, o caso foi diferente. Fez a única
coisa sensata que poderia fazer naquele momento.
Em vez de fugir, cambaleou na direção de Aslam,
que se lançou sobre ele.
Você já viu alguma vez uma gata com o
filhote entre os dentes? Pois foi muito parecido. O
anão,
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encolhido num feixe miserável, pendia
entre os dentes de Aslam, que o sacudia. A
pequenina armadura tilintou como se fosse um
guizo e em seguida... zztl... o anão foi atirado para
o ar. Se estivesse na cama não estaria mais seguro,
mas ele não se sentia assim. Ao cair, as enormes
patas aveludadas envolveram-no como se fossem
braços de mãe e depuseram-no no chão (com a
cabeça para cima e os pés para baixo).
– Filho da Terra, seremos amigos? –
perguntou Aslam.
– S... S... Sim! – respondeu o anão, ainda
ofegante.
– Bem, não tarda que a Lua fique encoberta.
Vejam como a aurora está rompendo. Não temos
tempo a perder. Depressa, para o Monte! – disse
Aslam.
O anão ainda não conseguia dizer uma
palavra, e ninguém se atreveu a perguntar se
Aslam iria com eles. Desembainharam as espadas,
saudaram o Leão e, voltando-se com um tinir de
armaduras, desapareceram na luz indecisa da
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manhã. Lúcia reparou que a expressão de cansaço
lhes desaparecera do rosto, e tanto o Grande Rei
como o rei Edmundo pareciam agora mais
homens do que meninos.
As meninas, junto de Aslam, ficaram
olhando até eles se perderem de vista. O dia
estava clareando. No oriente, perto da linha do
horizonte, Ara-vir, a estrela da manhã de Nárnia,
brilhava como um pequeno sol. Aslam, que
parecia muito maior, levantou a cabeça, sacudiu a
juba e rugiu.
O som, a princípio grave e vibrante como o
de um órgão que se começa a tocar em nota baixa,
foi-se elevando e tornando mais forte, até fazer
vibrar a terra e o ar. Partindo da colina, espalhouse
pelo país todo. No acampamento de Miraz, os
homens acordaram, entreolharam-se assustados e
precipitaram-se para as armas. Lá embaixo, no
Grande Rio, onde o frio era intenso naquela hora,
as cabeças e os ombros das ninfas e a grande
cabeça barbuda e coroada de junco do deus do rio
emergiram da água. Mais longe, em todos os
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campos e nos bosques, as orelhas atentas dos
coelhos saíram das tocas, as aves sonolentas
retiraram as cabeças de debaixo das asas, as
corujas piaram, as raposas ganiram, os porcosespinhos
grunhiram, as árvores estremeceram.
Nas cidades e aldeias, as mães, com olhos
rasgados de espanto, apertaram os filhinhos ao
peito, os cães latiram, os homens levantaram-se às
pressas em busca de uma luz. Muito ao longe, na
fronteira norte, os gigantes da montanha
espreitaram pelos portões sombrios de seus
castelos.
O que Lúcia e Susana viram foi uma coisa
indefinida e escura que avançava para elas dos
quatro pontos cardeais. Pareceu-lhes a princípio
um nevoeiro negro e rastejante, depois ondas
enormes de um mar negro crescendo, até que por
fim compreenderam que era a floresta em marcha.
Todas as árvores do mundo pareciam precipitar-se
para Aslam. Mal se aproximavam, no entanto, já
não eram árvores. Quando se juntaram ao redor
dele, fazendo mesuras e reverências e acenando
com seus braços longos e finos, o que Lúcia viu
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foi uma multidão de formas humanas. Pálidas
bétulas-meninas balançavam a cabeça; salgueirosmulheres
afastavam os cabelos do rosto
ensimesmado para olharem Aslam; faias
majestosas adoravam-no imóveis; e havia
carvalhos felpudos, olmos esguios e melancólicos,
azevinhos desgrenhados (eles próprios escuros,
mas suas mulheres lindas, enfeitadas com
frutinhas), e as alegres sorveiras. Todos se
inclinavam e se erguiam de novo aos gritos de
“Aslam, Aslam”, nas suas vozes variadas: roucas,
rangentes ou ondulantes.
A multidão era tão densa e o bailado tão
rápido (porque de novo as árvores começaram a
bailar), que Lúcia ficou tonta. E nunca chegou a
perceber de onde vieram os bailarinos, que em
breve cabriolavam por entre as árvores. Um deles
era um jovem, vestido com uma pele de corça e
trazendo uma coroa de parreira nos cabelos
encara-colados. Se não fosse a expressão
selvagem que o animava, o rosto teria sido quase
belo demais para um rapaz. Na presença dele,
sentia-se, como disse Edmundo dias mais tarde,
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ao vê-lo:
– Aí está um sujeito capaz de fazer qualquer
coisa!...
Parecia ser conhecido por muitos nomes,
dentre os quais Bromios, Bassareus e Áries.
Acompanhava-o um grupo de moças, tão
estouvadas quanto ele. E, coisa estranha, por fim
apareceu até alguém montado num burro. Todos
se puseram a rir e gritar:
– Euan, euan, ê-oooi!
– Isto é uma brincadeira, Aslam? –
perguntou o jovem.
E bem podia ser. Mas cada um parecia ter
uma idéia diferente sobre do que estavam
brincando. Era muito semelhante a cabra-cega, só
que se comportavam como se todos tivessem os
olhos vendados. Lembrava o jogo do chicotequeimado,
mas nunca ninguém encontrava o
chicote. E ficou impossível definir a brincadeira
quando o homem velho e imensamente gordo,
montado no burro, de repente começou a gritar:
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“Bebidas! Hora das bebidas!,” e pulou do burro.
Os outros voltaram a colocá-lo em cima do
animal, enquanto este, julgando-se num circo,
fazia exibições sobre as patas traseiras. Ramos de
videira iam aparecendo em profusão cada vez
maior. Eram videiras mesmo, que se enroscavam
pelas pernas do povo da floresta. Lúcia levou a
mão à cabeça para puxar os cabelos para trás e
verificou que puxava um ramo de videira. O burro
também estava envolto em vides e tinha a cauda
toda emaranhada. De suas orelhas pendia alguma
coisa escura. Lúcia olhou atentamente e viu que
era um cacho de uvas. E, logo em seguida, quase
nada restava do burro: só havia cachos, da cabeça
aos pés.
– Bebidas! Bebidas! – gritava o velho.
Todos se puseram a comer, e tenho certeza
de que você nunca provou uvas tão boas: firmes e
rijas por fora, mas que explodiam numa fresca
doçura quando postas na boca. Eram daquelas
uvas que Susana e Lúcia nunca se cansavam de
comer e que raramente tinham comido antes.
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Havia uvas aos montes, mais do que se poderia
desejar, e absolutamente nada de boas-maneiras.
Ecoavam gritos e gargalhadas, até que de repente
sentiram que a brincadeira (fosse ela qual fosse) e
a festa tinham chegado ao fim. Sentaram-se
cansados, voltados para Aslam, à espera de ouvir
o que ele ia dizer. Nesse momento, o sol começou
a despontar. Lembrando-se de algo, Lúcia disse
para Susana:
– Já sei quem eles são!
– Eles, quem?
– O rapaz de expressão selvagem é Baco; o
velho é Sileno. Não se lembra de que o Sr.
Tumnus nos falou deles... há muitos anos?
– É mesmo, é verdade, mas, Lu...
– Mas o quê?
– Se Aslam não estivesse aqui, não me teria
sentido lá muito segura com Baco e suas
estouvadas companheiras.
– Nem eu!
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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12
MAGIA NEGRA E
REPENTINA VINGANÇA
Enquanto isso, Trumpkin e os dois meninos
chegaram ao escuro arco de pedra que levava ao
interior do Monte, e os dois texugos que estavam
de sentinela (Edmundo só conseguiu distinguir as
duas manchas brancas da cara) saltaram sobre
eles, de dentes arreganhados, grunhindo:
– Quem vem lá?
– Trumpkin! – respondeu o anão. – Trago
comigo o Grande Rei de Nárnia, vindo do
passado.
Os texugos tocaram com os focinhos nas
mãos dos meninos.
– Até que enfim! Até que enfim!
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
201
– Quer dar-nos uma tocha, amigo? – pediu
Trumpkin.
Os texugos acenderam uma tocha,
entregando-a ao anão.
– É melhor o N.C.A. ir na frente – disse
Pedro – , já que não sabemos o caminho.
Trumpkin empunhou a tocha e avançou
pelo túnel escuro. Era um lugar frio, cheio de teias
de aranha; de vez em quando, um morcego
esvoaçava em redor da luz. Os meninos, que
tinham vivido quase sempre ao ar livre desde que
deixaram a estação, tiveram a sensação de entrar
numa masmorra ou de cair numa armadilha.
– Pedro, repare naquelas coisas gravadas na
parede – disse Edmundo baixinho. – Parecem
muito velhas e, apesar disso, somos muito mais
velhos do que elas. Ainda não existiam quando
aqui estivemos.
O anão continuou a andar, virou à direita,
depois à esquerda, desceu alguns degraus e voltou
a virar para a esquerda. Por fim avistaram luz à
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
202
frente, por baixo de uma porta. Tinham chegado à
entrada do subterrâneo central e, pela primeira
vez, ouviram vozes. Vozes exaltadas, aliás.
Alguém falava tão alto que a chegada do anão e
dos meninos passou despercebida.
– Hum!... Isto não está me agradando! –
segredou Trumpkin para Pedro. – Vamos escutar
um pouco.
Ficaram imóveis do lado de fora da porta.
– Você sabe muito bem por que motivo não
toquei a trompa naquela madrugada — disse uma
voz. (“É o rei”, segredou Trumpkin.) – Já se
esqueceu que, mal Trumpkin partiu, Miraz caiu
em cima de nós e durante mais de três horas
lutamos com todas as nossas forças para salvar a
pele? Toquei a trompa logo que pude.
– Claro que não me esqueci – respondeu
uma voz irritada. – Como ia me esquecer, se
foram os meus anões que suportaram o ataque e se
vários deles morreram no campo de batalha?
– É Nikabrik – informou Trumpkin.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
203
– Você devia ter vergonha, anão – censurou
uma voz grossa. (“Este é o Caça-trufas!” explicou
Trumpkin.) – Todos lutaram tanto quanto os
anões, e ninguém mais do que o rei.
– Não faz a menor diferença! – respondeu
Nikabrik. – O fato é que ou se tocou a trompa
tarde demais, ou ela não possui poder mágico
coisa nenhuma. Não veio nem auxílio, nem meio
auxílio. Você, seu feiticeiro, seu sabe-tudo, ainda
acha que devemos ter esperança em Aslam, no rei
Pedro... nessa cambada toda?
– Bem... devo confessar que... não nego
que... estou bastante desapontado – foi o que se
ouviu.
– É o doutor Cornelius – informou
Trumpkin.
– Para falar às claras – declarou Nikabrik –
, sua sacola está vazia, seus ovos estão estragados
e suas promessas não se cumpriram... Seu peixe
papou a isca e se foi! Agora o jeito é você ficar de
fora e deixar os outros trabalharem. É por isso
que...
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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– O auxílio ainda vem! – disse Caça-trufas.
– Continuo a confiar em Aslam. Por que vocês
não são persistentes como nós, os animais? O
auxílio há de vir! Pode ser até que já esteja à
nossa porta.
– Pois é – rosnou Nikabrik – , se
dependesse de vocês, texugos, ficaríamos
esperando que o céu viesse abaixo e a terra se
abrisse. Já se foi o tempo de esperar! A comida é
pouca, a cada embate sofremos mais baixas do
que podemos suportar, e os nossos soldados
começam a nos deixar.
– E por quê? – perguntou Caça-trufas. – Se
você não sabe, eu digo. Porque se espalharam
rumores de que invocamos em nosso auxílio os
reis dos velhos tempos e eles não responderam.
Lembrem-se de que as últimas palavras de
Trumpkin antes de partir (quem sabe se ao
encontro da morte?) foram estas: “Não deixem o
exército saber por que estão tocando a trompa, se
tiverem de tocá-la!” Pois na mesma tarde não
havia um soldado que não soubesse de tudo!
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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– Com que direito está insinuando que fui
eu que espalhei a informação? Por que não vai
enfiar seu focinho numa colméia de abelhas
bravas?! — vociferou Nikabrik. – Retire
imediatamente o que acabou de dizer... ou...
– Acabem com isso! – pediu o rei Caspian.
– Gostaria de saber o que Nikabrik sugere que
façamos. Mas, antes de mais nada, quero saber
quem são aqueles dois forasteiros, que estão ali
parados, ouvindo o que se passa, sem dizer uma
palavra.
– São amigos meus – declarou Nikabrik. –
Por que razão você próprio está aqui, a não ser
pelo fato de ser amigo de Trumpkin e do texugo?
E por que está aqui aquele velho bobo, vestido de
preto, senão por ser seu amigo? Por que só eu não
poderia convidar os meus amigos?
– Você está falando com o rei, a quem jurou
fidelidade! – disse Caça-trufas com voz severa.
– Mesuras da corte! – debochou Nikabrik. –
Aqui neste buraco, cada um pode dizer o que
pensa. Todo mundo sabe que este rapaz telmarino
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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nunca será rei de coisa alguma e de ninguém, a
não ser que o ajudemos a sair da embrulhada em
que se meteu.
– Talvez os seus novos amigos prefiram
falar por eles mesmos – sugeriu o doutor
Cornelius. – Vocês aí, digam quem são e o que
pretendem.
– Digno doutor e mestre — ouviu-se uma
vozinha fina e lamurienta – , sou apenas uma
velha, que, com sua licença, está muito grata a
este digno anão. Sua Alteza, abençoado seja tão
formoso jovem, nada tem a recear de uma
velhinha quase entrevada pelo reumatismo e que
nem mesmo tem lenha para acender o fogo.
Conheço algumas artes mágicas... nada que se
compare com as suas, digno mestre... pequenos
feitiços e sortilégios, que poderia usar contra os
seus inimigos, se todos estiverem de acordo.
Porque detesto a todos eles. Mais do que
ninguém.
– Hum! Tudo isso é muito interessante...
Muito curioso! – disse o doutor Cornelius. – Creio
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que já sei quem é a senhora. E agora, Nikabrik,
talvez o seu outro amigo também queira falar.
Um calafrio percorreu Caspian, quando
uma voz cinzenta e pesada respondeu:
– Sou a fome e a sede. Aquilo que eu
mordo, guardo-o comigo até morrer, e, mesmo
depois da morte, têm de cortar do meu inimigo
aquilo que eu mordi e enterrá-lo comigo. Posso
dormir cem noites sobre o gelo, sem gelar. Sou
capaz de beber um rio de sangue sem estourar.
Mostrem-me os seus inimigos.
– É na presença desses dois amigos que
você propõe expor o seu plano? – perguntou
Caspian.
– É – respondeu Nikabrik. – E é com a
ajuda deles que penso executá-lo.
Durante alguns minutos, Trumpkin e os
meninos ouviram Caspian falar em voz baixa com
os seus dois amigos, sem perceberem o que
diziam. Por fim Caspian disse em voz alta:
– Pois bem, Nikabrik, ouviremos o seu
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plano. A pausa que se seguiu foi tão prolongada
que os
rapazes chegaram a duvidar que Nikabrik
iria mesmo falar. Por fim começou num tom
muito baixo, como se ele mesmo não estivesse
gostando do que dizia.
– Para ir direto ao assunto – murmurou – ,
nenhum de nós sabe a verdade sobre a antiga
Nárnia. Trumpkin nunca acreditou em nenhuma
dessas histórias. Quanto a mim, acho que, antes de
acreditar, deveríamos colocá-las à prova. Já
experimentamos a trompa e ela falhou. Se algum
dia existiu um Grande Rei Pedro e uma rainha
Susana, um rei Edmundo e uma rainha Lúcia,
então eles não nos ouviram ou não têm o poder de
aparecer... ou são nossos inimigos.
– Ou estão a caminho – acrescentou Caçatrufas.
– Você pode insistir nisso até que Miraz
faça de nós ração para seus cães. Mas, como ia
dizendo, experimentamos um dos pontos das
velhas lendas e não adiantou nada. Pois bem! As
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lendas falam de outros poderes, além desses reis e
rainhas do passado. Não seria bom invocá-los?
– Se está falando de Aslam, tanto faz
invocá-lo ou invocar os reis – disse Caça-trufas. –
Pois os reis são súditos dele. Se não manda os
seus súditos (e eu não tenho dúvidas de que o
fará), acha provável que ele próprio venha?
– Claro que não. Neste ponto estamos de
acordo – replicou Nikabrik. – Os reis e Aslam são
aliados. Portanto, ou Aslam morreu ou está contra
nós. Ou então... algum poder maior do que ele não
deixa que ele venha. E ainda que ele viesse...
quem nos garante que ficará do nosso lado? A
julgar pelo que tenho ouvido, nem sempre foi
muito bom para os anões. Nem mesmo para todos
os animais. Perguntem aos lobos. Seja como for,
só esteve uma vez em Nárnia, pelo que me consta,
e não se demorou muito aqui. O melhor, portanto,
é a gente não contar com Aslam. Não era dele que
eu falava.
Ninguém replicou, e por um momento o
silêncio foi tão completo que Edmundo pôde
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ouvir distintamente a respiração ruidosa do
texugo.
– Então, do que está falando? – perguntou
Caspian.
– Falo de um poder muito maior do que o
de Aslam e que, se a lenda diz a verdade,
dominou Nárnia durante anos e anos.
– A Feiticeira Branca?! – exclamaram três
vozes ao mesmo tempo. Pelo barulho que se
ouviu, Pedro teve a certeza de que três pessoas
tinham-se levantado de um salto.
– Sim! – disse Nikabrik, falando distinta e
pausadamente. – Falo da Feiticeira Branca!
Precisamos de uma força, de uma força que se
ponha ao nosso lado. E não diz a lenda que a
feiticeira derrotou Aslam e o algemou e o matou
sobre aquela mesa que está lá perto daquela luz?
– A lenda diz também que ele ressuscitou –
acrescentou o texugo com voz cortante.
– Sim, há quem diga isso... – respondeu
Nikabrik. – Mas não se esqueça de que pouco se
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conta do que ele fez depois. Desapareceu logo da
história. Se de fato ressuscitou, como se explica
isso? Não acha muito mais natural que tenha
continuado morto e que a lenda não fale mais dele
pela simples razão de que não há nada mais a
falar?
– Foi ele quem coroou os reis e as rainhas –
disse Caspian.
– Um rei que alcança uma grande vitória
pode muito bem coroar-se a si próprio, sem
precisar da ajuda de um leão de circo – retrucou
Nikabrik.
Nessa altura ouviu-se um rosnar irritado,
muito provavelmente de Caça-trufas.
– Seja como for – continuou Nikabrik – ,
que aconteceu a esses reis e ao seu reinado?
Desapareceram também! Com a Feiticeira Branca
a coisa é diferente! Dizem que reinou cem anos...
cem anos de inverno sem parar. A isso é que eu
chamo poder. Isso tem sentido prático.
– Ora essa! — exclamou o rei. – Pois
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sabemos todos que ela foi o pior inimigo de
Nárnia! Não foi uma tirana dez vezes pior do que
Miraz?
– Talvez. Talvez ela tenha sido inimiga dos
humanos, se é que havia alguns nesse tempo.
Talvez tenha sido má para alguns animais. Parece
que foi ela que exterminou os castores: pelo
menos não há vestígios deles. Mas foi sempre leal
com os anões, e eu, que sou anão, tenho de
defender o meu povo. Afirmo uma coisa: nós, os
anões, não temos medo da Feiticeira Branca.
– Mas vocês são nossos aliados! – observou
Caça-trufas.
– E temos lucrado imensamente com isso,
sem dúvida! – ironizou Nikabrik. – Quem é que
vocês mandam para as incursões perigosas? Os
anões! Quando falta mantimento, cortam a ração
de quem?! Dos anões! Quem...?
– Mentira! Tudo isso é mentira! – gritou o
texugo.
– E é por isso que, se não são capazes de
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ajudar o meu povo, procurarei alguém que o
ajude!
Nesse momento Nikabrik já gritava.
– Trata-se, portanto, de traição, Nikabrik? –
perguntou o rei.
– Meta a espada na bainha, Caspian – disse
Nikabrik. – É esse o seu jogo, assassinar-me em
pleno Conselho? Não se atreva. Acha que tenho
medo de você? São três do seu lado e três do meu:
estamos iguais.
– Pois então, vamos! – rosnou Caça-trufas.
Mas imediatamente uma voz o interrompeu.
– Parem com isso! – gritou o doutor
Cornelius. – Estão indo depressa demais! A
feiticeira está morta. Todas as lendas são
unânimes nesse ponto. O que, pois, Nikabrik quer
dizer com invocá-la?
A voz cinzenta e pesada, que até agora
falara apenas uma vez, voltou a ouvir-se:
– Ah, sim. Está morta?...
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E logo a voz estridente e lamurienta
continuou:
– Oh! O meu querido principezinho não
deve preocupar-se com o fato de que a Dama
Branca (é assim que costumamos chamá-la) esteja
morta. Eminentíssimo doutor, está apenas
querendo brincar com uma pobre velha como eu,
ao dizer isso. Amável doutor, sapientíssimo
doutor, onde é que já se viu uma feiticeira morrer?
É sempre possível invocar uma feiticeira!
– Invoque – ordenou a voz cinzenta. –
Estamos todos prontos. Trace o círculo e prepare
o fogo azul.
A voz de Caspian elevou-se sobre o rosnar
cada vez mais forte do texugo e a exclamação
irritada de Cornelius.
– Com que então é esse o seu plano,
Nikabrik? Você quer recorrer à magia negra e
invocar um espírito maldito? Já vejo agora quem
são os seus amigos: uma megera e um
lobisomem!
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Seguiu-se grande confusão. Os animais
rosnavam e ouvia-se o tinir do metal. Trumpkin e
os meninos entraram correndo, e Pedro, de
relance, viu uma criatura cinzenta, horrivelmente
descarnada, meio homem e meio lobo, atirar-se a
um jovem, que devia ter a idade dele. Ao mesmo
tempo, Edmundo viu um anão e um texugo
agarrados um ao outro, como se fossem dois gatos
enfurecidos. Trumpkin encontrou-se frente a
frente com a megera, cujo nariz e queixo se
projetavam como se fossem um quebra-nozes, e
seus cabelos cinzentos e imundos caíam-lhe sobre
o rosto. Agarrara o pescoço do doutor. Com um só
golpe de espada, Trumpkin fez-lhe saltar a cabeça.
A luz apagou-se e durante algum tempo só se
ouviu o ruído de espadas, dentes, garras, punhos e
pés.
– Você está bem, Ed?
– Acho que sim – respondeu ele, ofegante.
– Peguei o bruto desse Nikabrik, mas ele continua
vivo.
– Com trinta diabos! – exclamou uma voz
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zangada. – Você está é em cima de mim! Parece
um leão!
– Desculpe, N.C.A. – disse Edmundo. –
Está melhor agora?
– Não! – rugiu Trumpkin. – Você está com
os pés na minha cabeça. Quer tirá-los?
– Onde está o rei Caspian? – perguntou
Pedro.
– Estou aqui – respondeu uma voz sumida.
— Se é que ainda sou eu!
Alguém riscou um fósforo. Foi Edmundo.
A pequena chama iluminou-lhe o rosto pálido e
sujo. Às apalpadelas ele conseguiu encontrar uma
vela (o azeite da lamparina tinha acabado) e
colocá-la acesa em cima da mesa. Várias pessoas
se levantaram com esforço, e seis rostos se fitaram
na luz indecisa.
– Parece que acabamos com os nossos
inimigos – disse Pedro. A megera está ali, morta –
e rapidamente desviou os olhos dela. – Nikabrik
está morto também. Acho que isto aqui é um
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lobisomem. Há tempos que não via um bicho
desses! Tem corpo de homem e cabeça de lobo, o
que significa que o matamos no momento em que
passava de homem para lobo. Você, acho, é o rei
Caspian...
– Sim, mas não faço a menor idéia de quem
seja você.
– E o Grande Rei Pedro! – declarou
Trumpkin.
– Bem-vindo, Real Senhor! – disse
Caspian.
– Bem-vindo igualmente, Majestade. Não
vim para tomar o seu lugar, mas para que ele lhe
seja restituído.
– Majestade – ouviu-se uma voz à altura do
ombro de Pedro. Este voltou-se e deu de cara com
o texugo. Pedro inclinou-se, envolvendo-o com os
braços, e beijou-lhe a cabeça peluda: não por
sentimentalismo, mas por ser o Grande Rei.
– Valente texugo! Em nenhum momento
duvidou de nós!
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– Isso é de família, Real Senhor! – disse
Caça-trufas. – Sou bicho, e os bichos não mudam
assim de uma hora para outra. Além do mais, sou
texugo, e os texugos são fiéis.
– Tenho pena de Nikabrik – falou Caspian –
, ainda que me tenha odiado desde o momento em
que nos conhecemos. De tanto sofrer e odiar ficou
azedo por dentro. Se tivéssemos conseguido uma
vitória fácil, é possível que em tempo de paz
acabasse um bom anão. A única coisa que me
consola é não saber quem de nós o matou.
– Você está perdendo sangue! – disse
Pedro.
– Foi uma dentada – respondeu Caspian. –
Daquela., daquela espécie de lobo.
Levou tempo a desinfetar e a limpar a
ferida. Depois Trumpkin disse:
– Pois muito bem! Antes de qualquer coisa,
vamos almoçar.
– Aqui, não! – disse Pedro.
– Oh, não! – concordou Caspian com um
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calafrio. – Temos de mandar retirar os corpos
imediatamente.
– Que esses canalhas sejam atirados a um
poço! – disse Pedro. – Quanto ao anão, proponho
que seja entregue ao seu povo, para que o
enterrem à maneira deles.
Almoçaram em outro dos escuros
subterrâneos do Monte. Não foi um almoço ideal:
Caspian e Cornelius teriam preferido pastéis
folheados de faisão; Pedro e Edmundo gostariam
de ovos mexidos e café bem quentinho. E, afinal,
o que coube a cada um deles foi um pedaço da
carne de urso fria (que os meninos traziam no
bolso), um pedaço de queijo duro, uma cebola e
uma caneca de água. Mas, julgando pela maneira
com que se atiraram à comida, qualquer um de
nós teria imaginado que saboreavam um petisco
delicioso.
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13
O GRANDE REI ASSUME O
COMANDO
Quando todos acabaram de comer, Pedro
disse:
– Aslam e as meninas (refiro-me às rainhas
Susana e Lúcia) estão perto. Não sabemos quando
Aslam intervirá; será quando ele achar melhor.
Entretanto, sem dúvida, o seu desejo é que
façamos antes o que pudermos. Dizia você,
Caspian, que não podemos enfrentar Miraz em
batalha campal...
– Receio que não, Grande Rei – disse
Caspian, que sentia grande simpatia por Pedro,
mas se encontrava um pouco atrapalhado. Era
muito mais estranho para ele encontrar-se com os
grandes reis das velhas lendas do que era para
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estes o encontrar.
– Pois bem – disse Pedro – , sendo assim,
desafiarei Miraz para se bater comigo em duelo.
Ninguém tinha pensado nessa hipótese.
– Mas não poderia ser eu? – perguntou
Caspian. – Sempre desejei vingar a morte de meu
pai.
– Você está ferido – respondeu Pedro. – E,
seja como for, é bem possível que não levasse a
sério um desafio seu. Sabemos que você é um
guerreiro, mas para ele é um garoto.
– Mas aceitará um desafio, mesmo seu? –
perguntou o texugo, que não tirava os olhos de
Pedro.
– Miraz sabe perfeitamente que o exército
dele é mais forte do que o nosso.
– Provavelmente não, mas não custa nada
tentar. E, ainda que recuse, levaremos grande
parte do dia enviando emissários de parte a parte.
Nesse meio-tempo, pode ser que Aslam faça
alguma coisa e, pelo menos, também terei tempo
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de passar em revista o exército e fortalecer nossa
posição. Vou escrever imediatamente o desafio.
Tem aí papel e tinta, doutor?
– Um estudioso tem sempre à mão papel e
tinta, Real Senhor.
– Então, eu dito – disse Pedro. E enquanto o
doutor desenrolava o pergaminho, abria o tinteiro
de chifre e afiava a pena Pedro recostou-se e, de
olhos semicerrados, tentou relembrar os termos
em que, havia muito tempo, na Idade de Ouro de
Nárnia, costumava redigir tais mensagens.
– Bem! – exclamou, enfim. – Está pronto,
doutor? O doutor Cornelius molhou a pena e
esperou.
Pedro ditou o seguinte:
“Pedro, por graça de Aslam, por eleição,
por direito e por conquista, Grande Rei,
poderoso sobre todos os reis de Nárnia,
Imperador das Ilhas Solitárias e Senhor de
Cair Paravel, Cavaleiro da Mui Nobre
Ordem do Leão, a Miraz, Filho de Caspian
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VIII, outrora Príncipe Regente de Nárnia e
que arroga o título de Rei de Nárnia,
saudações.”
– Pronto?
– ... vírgula, saudações – repetiu o doutor.
Pronto, meu senhor.
– Então, parágrafo – disse Pedro.
Para evitar derramamento de sangue, bem
como os demais inconvenientes, que é
natural decorrerem das guerras que se
travam em nosso reino de Nárnia, apraznos
arriscar a nossa real pessoa em prol do
mui fiel e bem-amado Caspian, propondolhe
provar em combate real com Vossa
Excelência que o já mencionado Caspian é,
por dom nosso e segundo a lei dos
telmarinos, legítimo Rei de Nárnia e que
Vossa Excelência é réu de dupla traição
quer por ter subtraído o domínio de Nárnia
ao dito Caspian, quer por ter levado a cabo
o abominável – não se esqueça do acento,
doutor – , sanguinário e desumano
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assassínio de seu mui amável senhor e
irmão, o Rei Caspian IX. Pelo que, de bom
grado, provocamos e desafiamos Vossa
Excelência para o dito combate, enviando
estas cartas pelo nosso mui estimado e real
irmão Edmundo, outrora Rei de Nárnia,
sob a nossa jurisdição, Duque do Ermo do
Lampião e Conde do Marco Ocidental,
Cavaleiro da Nobre Ordem da Mesa, a
quem foram conferidos plenos poderes para
determinar, de acordo com Vossa
Excelência, as condições do combate.
Lavrado na morada nossa do Monte de
Aslam, no décimo segundo dia do mês dos
Prados Floridos, no primeiro ano do
reinado de Caspian X de Nárnia.
– Creio que assim está bom – disse Pedro,
respirando fundo. – Agora temos de escolher duas
pessoas para acompanhar o rei Edmundo. O
gigante pode ser uma delas.
– Bem... quer dizer... ele não é lá muito
esperto – objetou Caspian.
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– Sei disso – falou Pedro. – Mas qualquer
gigante impressiona, desde que não abra a boca. E
sempre o animará um pouquinho. Mas quem há de
ser o outro?
– Se querem algum capaz de fuzilar só com
os olhos, mandem Ripchip – propôs Trumpkin.
– É mesmo, ele não é de brincadeira – disse
Pedro com uma gargalhada. – É pena ser tão
pequenininho.
– Então mandem Ciclone – sugeriu Caçatrufas.
– Nunca ninguém riu de um centauro.
Uma hora mais tarde, dois grandes senhores
do exército de Miraz, lorde Glozelle e lorde
Sopespian, que passeavam ao longo das tropas
alinhadas palitando os dentes depois do almoço,
levantaram os olhos e viram que da floresta saíam
o centauro e o gigante Verruma, a quem já tinham
visto em combate, e, no meio deles, um vulto que
não conseguiam identificar. Nem mesmo os
colegas de Edmundo o teriam reconhecido, se o
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vissem. Porque Aslam soprara sobre ele, e uma
grandeza qualquer o envolvia.
– Que será isto? Um ataque?
– Trazem ramos verdes. Querem
parlamentar – disse o outro. – Devem estar
dispostos a render-se.
– Aquele que vem entre o centauro e o
gigante não tem ar de quem vai se render –
objetou Glozelle. – Quem será ele? Não é o jovem
Caspian.
– Não, não é. Mas é um guerreiro temível,
seja lá quem for. Aqui pra nós, tem um ar bem
mais majestoso do que Miraz. E que magnífica
cota de malha! Nunca nas nossas forjas se fez uma
coisa parecida!
– Aposto o meu cavalo como vem para
desafiar – disse Glozelle.
– Bem, temos o inimigo na mão. Miraz não
seria maluco de arriscar nossa superioridade para
aventurar-se em duelo.
– Podemos dar um jeito de levá-lo a isso –
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sugeriu Glozelle, em voz baixa.
– Cuidado! – disse Sopespian. – Mais para
cá, uma sentinela pode ouvir-nos. Aqui não há
perigo. Entendi bem o que você disse?
– Se o rei aceitasse o desafio, um ou outro
morreria...
– Certo – concordou Sopespian.
– Se ele vencesse, a luta estaria ganha.
– Claro. E do contrário?
– Do contrário, as probabilidades de que
vençamos a guerra seriam as mesmas, com o rei
ou sem ele. Toda a gente sabe que Miraz não é um
grande guerreiro. Nós alcançaríamos a vitória,
com a vantagem de ficarmos sem rei.
– Está sugerindo que nós dois poderíamos
tomar conta do reino?
Glozelle franziu a testa, dizendo:
– Não devemos esquecer que fomos nós
que o colocamos no trono. E afinal, durante todos
estes anos de reinado, o que lucramos? Alguma
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vez ele mostrou gratidão por isto?
– Basta por ora – disse Sopespian. – Olhe,
estão nos chamando à tenda do rei.
Quando lá chegaram viram que Edmundo e
os seus dois companheiros, sentados do lado de
fora da tenda, eram recebidos com doces e vinho.
Entregue o desafio, tinham-se retirado, esperando
que o rei tomasse uma decisão. Ao verem os três
assim de perto, os dois lordes telmarinos acharam
que tinham um ar temível.
Lá dentro, Miraz, desarmado, acabava de
almoçar. Estava muito vermelho e parecia
irritado.
– Vejam isto! – rosnou, atirando-lhes o
pergaminho por cima da mesa. – Vejam só a
infantilidade e a prosápia do meu sobrinho!
– Se me permite, Majestade – começou
Glozelle.
– Se o jovem guerreiro que está lá fora é o
rei Edmundo de que se fala aqui, isso não me
parece nem um pouco uma brincadeira de
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crianças. Parece um cavaleiro perigoso.
– Ora, o rei Edmundo! – escarneceu Miraz.
– Então acredita nessas lendas de Pedro e
Edmundo e essa cambada toda?
– Acredito no que os meus olhos vêem,
senhor
– respondeu Glozelle.
– Passemos adiante. No que respeita ao
desafio, parece-me que não pode haver duas
opiniões entre nós.
– Certamente, Real Senhor – concordou
Glozelle.
– O que acha que se deve fazer? –
perguntou o rei.
– Recusar, sem dúvida – disse Glozelle. –
Nunca fui um covarde, mas tenho de confessar
que me faltaria coragem para enfrentar aquele
jovem em combate corpo a corpo. Se, como é
muito provável, o irmão, o Grande Rei, é ainda
mais perigoso do que ele... suplico que o meu
senhor não queria nada com ele.
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– Aos diabos! – exclamou Miraz. – Não foi
essa a opinião que pedi. Não perguntei se devia ou
não ter medo de enfrentar Pedro (se é que essa
criatura existe!). Acha que tenho medo dele?
Queria apenas saber a sua opinião sobre o aspecto
político da questão. Estando a vantagem toda do
nosso lado, devemos arriscar a vitória num
combate individual?
– A minha resposta é que, por todos os
motivos, o desafio deve ser recusado – declarou
Glozelle. – Há no rosto daquele estranho cavaleiro
uma ameaça de morte.
– Estamos voltando para a mesma coisa! –
disse Miraz, zangado. – Acham que sou covarde
como vocês?
– Vossa Majestade pode pensar o que
quiser – replicou Glozelle, mal-humorado.
– Você está falando como uma velha
maluca – disse o rei. – Que acha, Sopespian?
– Não se arrisque, Real Senhor – foi a
resposta. – O aspecto político da questão vem
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mesmo a calhar, oferecendo-lhe excelente motivo
para uma recusa, sem deixar que se ponham em
dúvida a sua honra e a sua coragem.
– Chega! – exclamou Miraz, levantando-se
de repente.
A conversa seguia exatamente o rumo que
os dois lordes desejavam, e por isso nada
disseram.
– Compreendo! – prosseguiu Miraz, depois
de fitá-los com os olhos esbugalhados. – Vocês
são uns coelhos medrosos e têm a ousadia de
achar que sou também um covarde! Vocês são
soldados? São telmarinos? São homens? Se eu
recusar (como aconselham as razões de chefia e
política militar) iriam pensar e levar os outros a
pensar que o fiz por medo. É ou não é?
– Nenhum soldado sensato se atreveria a
chamar de covarde um homem da sua idade,
apenas por não querer bater-se com um grande
guerreiro na flor da juventude – disse Glozelle.
– Ah, quer dizer que não só sou covarde,
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mas sou também um velho com um pé na cova?!
Pois então, senhores, fiquem sabendo de uma
coisa: seus conselhos de maricás (que sempre se
afastaram do ponto essencial, que é a política)
conseguiram justamente o contrário do que vocês
queriam. A minha intenção era recusar. Mas agora
aceitarei o desafio! Não vou cobrir-me de
vergonha só porque a traição ou algumas artes
mágicas (sei lá o quê!) gelaram o seu sangue!
– Majestade, suplico... – começou Glozelle.
Mas Miraz já se precipitara para fora da tenda e os
dois lordes ouviram-no gritando para Edmundo
que aceitava o desafio.
Entreolharam-se e sorriram.
– Tinha a certeza de que, bem manejado,
acabaria por aceitar – disse Glozelle. – Mas não
esquecerei que me chamou de covarde. Há de
pagar por isso!
No Monte de Aslam, houve grande agitação
quando a notícia chegou e foi transmitida às
várias criaturas. Edmundo e um dos capitães de
Miraz já tinham escolhido o local para o combate,
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que foi cercado com cordas e estacas. Em dois dos
cantos e no meio de um dos lados deviam ficar
três teimarmos, como árbitros da peleja. Três
outros seriam escolhidos pelo Grande Rei. Pedro
estava justamente explicando para Caspian que
ele não podia ser um dos árbitros, visto que estava
em jogo o seu direito ao trono, quando uma voz
grossa e sonolenta disse:
– Por favor, Majestade! – Pedro voltou-se e
viu o mais velho dos Ursos Barrigudos. – Por
favor, Majestade – repetiu. – Eu... eu sou um
urso!
– Sem dúvida nenhuma, e um bom urso –
disse Pedro.
– Bem, é um velho direito nosso que um
dos árbitros da peleja seja um urso.
– Não deve permitir – segredou Trumpkin a
Pedro. – É um bom urso, mas iria envergonhar a
nós todos. Está sempre dormindo ou chupando os
dedos. Será uma vergonha em frente do inimigo.
– Não posso opor-me – disse Pedro. – Ele
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tem razão. Ê um privilégio dos ursos. Não
compreendo como é que, numa época em que
tantas coisas foram esquecidas, esse privilégio foi
mantido.
– Por favor – insistiu o urso.
– Você será um dos árbitros – declarou
Pedro. – Mas prometa-me uma coisa: não vai
chupar os dedos.
– Prometo, é claro – disse o urso, meio
envergonhado.
– Mas se já começou a chupar desde agora!
– gritou Trumpkin.
O urso tirou a mão da boca e fez de conta
que não tinha ouvido.
– Real Senhor! – ouviu-se uma vozinha
esganiçada, vinda do chão.
– Ah... Ripchip! – disse Pedro, depois de ter
olhado para todos os lados, para cima, para baixo
e em torno, como sempre acontecia quando o rato
se dirigia a alguém.
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– Real Senhor! A minha vida está
inteiramente a seu dispor, mas tenho de defender a
minha honra. O único trompeteiro do seu exército
é um dos meus. Julguei por isso que nos
enviariam para acompanhar os emissários que
levaram a Miraz o seu desafio. O meu povo está
magoado, senhor. Se fosse o seu desejo designarme
árbitro, talvez isso satisfizesse o meu povo.
Nesse momento o gigante Verruma desatou
a rir, com aquelas gargalhadas pouco inteligentes
a que são propensos mesmo os gigantes mais
simpáticos. O riso lembrava o ribombar do trovão.
Quando Ripchip descobriu de onde vinha o
barulho, o gigante conteve-se imediatamente e
ficou sério e vermelho como um rabanete.
– Acho que será impossível – disse Pedro,
falando com grande seriedade. – Há humanos que
têm medo dos ratos...
– Já notei isso, meu senhor.
– Assim sendo, não seria leal para com
Miraz colocá-lo na presença de qualquer coisa que
possa fazer-lhe perder o ânimo.
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– Vossa Majestade é a própria encarnação
da honra – declarou o rato, fazendo uma das suas
mais rasgadas reverências. – Nesse ponto, não há
motivo para discórdia... Mas, ainda há pouco,
parece que ouvi alguém rindo... Se há alguém aqui
que pretenda rir-se às minhas custas, estou à sua
disposição... quando quiser... com a minha
espada!
Essa observação foi seguida por um terrível
silêncio, que Pedro quebrou, dizendo:
– O gigante Verruma, o urso e o centauro
serão os nossos árbitros. O combate terá lugar às
duas horas da tarde, e o almoço será ao meio-dia
em ponto.
– Bom – disse Edmundo, quando os outros
se afastavam – , acho que está tudo em ordem.
Creio que você será capaz de vencê-lo, não é?
– Veremos! – disse Pedro.
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14
CONFUSÃO GERAL
Um pouco antes das duas horas, Trumpkin
e o texugo estavam já sentados com todas as
outras criaturas na orla do bosque, olhando para a
linha dos homens de Miraz, à distância de duas
flechadas. Entre uns e outros, um relvado
quadrado fora marcado para a luta. Nos dois
cantos mais afastados postavam-se Glozelle e
Sopespian, de espada desembainhada: nos dois
mais próximos estavam o gigante Verruma e o
Urso Barrigudo, que, apesar de todas as
recomendações, tinha os dedos na boca e, para
dizer a verdade, estava fazendo uma figura muito
ridícula. Em contrapartida, Ciclone, o centauro, à
direita, absolutamente imóvel, a não ser quando
escarvava a relva com um dos cascos, tinha um ar
bem mais imponente do que o barão telmarino
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que, à esquerda, estava voltado para ele. Pedro
acabara de apertar a mão de Edmundo e do doutor
e dirigia-se para o combate. Reinava uma grande
tensão, como a que precede o sinal de partida
numa corrida importante, com a diferença de ser
bem maior.
– Quem me dera que Aslam tivesse
aparecido antes que as coisas chegassem a este
ponto! – disse Trumpkin.
– Quem dera! – concordou Caça-trufas. –
Mas... olhe!
– Com trinta diabos! – exclamou o anão. –
Quem é esta gente? Criaturas enormes... bonitas...
parecem deuses e gigantes e deusas. Centenas...
milhares! Quem serão?
– São hamadríades, dríades e silvanos –
respondeu Caça-Trufas. – Aslam os despertou.
– Hum! – murmurou o anão. — Não há
dúvida de que nos serão muito úteis, caso o
inimigo tente atraiçoar-nos. Mas não há ajuda que
valha ao Grande Rei, se Miraz se mostrar mais
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hábil do que ele no manejo da espada.
O texugo não respondeu, porque nesse
momento Pedro e Miraz, de cotas de malha, elmos
e escudos, entravam a pé na arena, vindos de
lados opostos. Cruzaram-se numa saudação e
pareceram trocar algumas palavras, que ninguém
conseguiu entender. Logo depois, as espadas
flamejavam ao sol. Apenas por um instante se
ouviu o tinir do metal, logo abafado pelos
partidários de ambos os lados, que gritavam como
se estivessem numa partida de futebol.
– Muito bem, Pedro! – gritou Edmundo,
quando Miraz foi obrigado a recuar quase dois
passos. – Agora! Vamos!
Pedro atacou e, por uma fração de segundo,
chegou a parecer que o combate estava ganho.
Mas
Miraz recompôs-se e começou a tirar
partido de sua altura e de seu peso.
– Miraz! Miraz! Viva o rei! – gritavam os
telmarinos. Caspian e Edmundo ficaram brancos
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feito papel.
– Pedro está sofrendo golpes terríveis –
disse Edmundo.
– E agora? O que aconteceu? – perguntou
Caspian.
– Afastaram-se; acho que estão cansados.
Mas estão recomeçando e agora com mais técnica.
Cada um está experimentando a defesa do outro.
– Este Miraz parece ser bom com a espada
– murmurou o doutor. Mal tinha pronunciado
essas palavras, um barulho ensurdecedor de
relinchos e palmas e bater de cascos elevou-se
entre os antigos narnianos.
– O que está havendo? – perguntou o
doutor. – Meus olhos cansados já não ajudam.
– O Grande Rei atingiu Miraz debaixo do
braço – exclamou Caspian, ainda aplaudindo. – A
ponta da espada entrou pela cava da cota de
malha. É o primeiro sangue derramado.
– É... mas as coisas não vão bem –
comentou Edmundo. – Pedro não está segurando
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o escudo como devia... Deve estar ferido no braço
esquerdo.
Era verdade. Todos notaram que o escudo
lhe pendia do braço, e os gritos dos telmarinos
redobravam.
– Você, que está mais habituado a
combater, acha que temos esperança? – perguntou
Caspian.
– Muito pouca – respondeu Edmundo. –
Com sorte, talvez Pedro ainda consiga vencer.
– Oh! Por que fomos permitir este
combate? – lamentou-se Caspian.
De repente os gritos esmoreceram.
Edmundo ficou perplexo por um instante e disse:
– Estou entendendo. Resolveram descansar
um pouco. Vamos, doutor. Talvez possamos
ajudar o Grande Rei.
Correram para a arena e Pedro saiu ao
encontro deles, encharcado de suor, muito
vermelho, respirando com esforço.
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– Está com o braço ferido? – perguntou
Edmundo.
– Não é bem um ferimento. Tive de
agüentar o peso dele sobre o escudo... como se
fosse uma carroça de tijolos... e a borda do escudo
fincou-me no pulso. Se atarem o meu pulso bem
apertado, acho que posso agüentar-me.
Enquanto fazia isso, Edmundo perguntou,
ansioso:
– Que tal é ele, Pedro?
– Difícil, muito difícil mesmo. Talvez haja
uma esperança, se conseguir agüentá-lo até que a
falta de fôlego e o próprio peso o cansem... o peso
e este sol de rachar. Para falar com franqueza, é
com o que posso contar. Se acontecer alguma
coisa, Ed, dê lembranças minhas a todos, lá em
casa... Miraz está voltando. Adeus, meu velho.
Adeus, doutor. Ed, não se esqueça de dizer a
Trumpkin que me lembrei dele. Tem sido um
amigão.
Edmundo não encontrou palavras para
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responder. Com uma horrível sensação de malestar,
voltou com o doutor para junto dos seus.
O segundo encontro correu bem. Pedro
parecia manejar o escudo com mais facilidade e
não parava um instante. Quase que brincava de
esconder com Miraz; mudava constantemente de
posição, mantendo-se fora do alcance do inimigo
e obrigando-o a mexer-se.
– Covarde! – gritaram os telmarinos. – Por
que não luta de frente? Está com medo, hein?
Aqui não é lugar de dançar, palhaço!
– Tomara que ele não se importe com o que
dizem! – exclamou Caspian.
– Ele?! Você não conhece o Pedro,
Caspian. Opa!
Miraz acabara de vibrar um golpe no elmo
de Pedro. Este escorregou e caiu sobre um joelho.
A gritaria dos telmarinos elevou-se como o rugido
do mar.
– Vamos, Miraz! Mate ele logo!
Mas o usurpador não precisava que o
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incitassem. Já dominava Pedro. Edmundo mordeu
os lábios até tirar sangue quando a espada baixou
sobre o irmão. Teve a impressão de que a cabeça
deste ia saltar. Mas (Deus seja louvado!) a lâmina
atingiu apenas o ombro direito. A cota de malha,
fabricada pelos anões, era resistente e não cedeu.
– Formidável! – exclamou Edmundo. – Está
de pé outra vez. Coragem, Pedro!
– Não consegui ver o que aconteceu – disse
o doutor. – Como é que ele se levantou?
– Agarrou-se ao braço de Miraz quando
caiu – explicou Trumpkin, pulando de alegria. –
Puxa! Como ele é valente! Usa o braço do inimigo
como se fosse uma escada. Viva o Grande Rei!
Viva a antiga Nárnia!
– Atenção! – disse Caça-trufas. – Miraz está
furioso. A coisa vai indo muito bem.
Miraz e Pedro atiravam-se um ao outro
como tigres irados. Os golpes se cruzavam tão
rápidos que parecia impossível que algum deles
viesse a escapar. A medida que a excitação
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crescia, os gritos diminuíam. Os espectadores
seguravam a respiração. A luta era terrível e
magnífica.
De súbito, levantou-se um clamor entre os
antigos narnianos. Miraz estava no chão... não
derrubado por Pedro, mas simplesmente caído,
com a cara na terra, depois de ter tropeçado num
tufo de relva. Pedro recuou, esperando que se
levantasse.
– Ora bolas! Ora bolas! – repetiu Edmundo
para consigo mesmo. – Que idéia é essa de ser tão
delicado? Bem, vá lá! Trata-se de um cavaleiro e
ainda por cima de um Grande Rei! Certamente
que Aslam aprova a sua atitude. Mas não tarda
que aquele bruto se levante e então...
Aquele bruto, no entanto, não chegou a
levantar-se. Lorde Glozelle e lorde Sopespian
tinham lá os seus planos. Logo que viram o rei
caído, saltaram para a arena, gritando:
– Traição! Traição! O traidor de Nárnia
apunhalou o rei pelas costas quando ele estava
indefeso. Às armas! Às armas, Teimar!
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Pedro mal teve tempo de compreender o
que se passava. Dois homens enormes avançavam
para ele, de espada em punho. Um outro saltou
para a arena vindo da esquerda. Aí Pedro gritou:
– Às armas, Nárnia! Traição!
Se os três tivessem logo se atirado sobre
Pedro, teriam acabado com ele. Glozelle, porém,
deteve-se ainda para apunhalar o próprio rei,
caído por terra.
– Tome! E em paga do insulto desta manhã
– disse baixinho, ao cravar-lhe a espada.
Pedro voltou-se para enfrentar Sopespian,
vibrou-lhe um golpe nas pernas e, invertendo
imediatamente o movimento, fez-lhe saltar a
cabeça. Nesse momento, Edmundo já estava junto
dele, gritando:
– Nárnia! Pelo Leão!
O exército telmarino avançava em peso
para eles. Mas o gigante começou a avançar
também, baixando-se para um e para outro lado e
fazendo vibrar sua clava. Os centauros iniciaram o
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ataque. Pam, pam, ouvia-se lá atrás. Por sobre as
cabeças... zim, zim... zuniam as flechas dos anões.
À esquerda lutava Trumpkin. Era a plena batalha.
– Vá-se embora, Ripchip, seu palerma! –
gritou Pedro. – Isto não é lugar para ratos. Você
vai acabar sendo morto.
Mas os ridículos animaizinhos continuaram
a saltar de um lado para outro, espada na mão,
entre os pés dos combatentes. Nesse dia, muitos
telmarinos
julgaram ter assentado o pé de repente
numa dúzia de espetos, tentaram equilibrar-se
numa perna só, amaldiçoando a dor, e muitas
vezes acabaram por cair. Se caíam, os ratos
acabavam com eles; se não caíam, alguém
aparecia para resolver o caso.
Ainda os narnianos não tinham
propriamente organizado o ataque, quando
verificaram que o inimigo cedia. Guerreiros
terríveis ficaram de repente brancos feito cal e, de
olhos esbugalhados, fixavam não os antigos
narnianos, mas alguma coisa que estava por detrás
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deles. Deixaram cair as armas e gritaram:
– O bosque! O bosque! É o fim do mundo!
Não demorou que seus gritos e o tinir das
armas fossem abafados pelo rugir oceânico das
árvores despertas, que se infiltravam pelas fileiras
de Pedro e continuavam em perseguição aos
telmarinos.
Você já viu algum dia uma grande floresta
atacada por um vento furioso? Imagine o rugir do
vento. Imagine também que a floresta não está
imóvel, mas se precipita para você, e que já não é
feita de árvores, mas de gente. Homens enormes,
mas semelhantes a árvores, porque os braços que
agitam parecem ramos, e, sacudindo a cabeça,
deixam cair à volta uma chuva de folhas.
Foi a sensação que tiveram os telmarinos. A
verdade é que o espetáculo era um tanto
alarmante, mesmo para os narnianos. Dentro de
instantes, todos os homens de Miraz fugiam em
direção ao Grande Rio, na esperança de
atravessarem a ponte para a cidade de Beruna e aí
se defenderem, ao abrigo de barricadas e portões
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fechados.
Chegaram de fato ao rio, mas não
encontraram a ponte, que tinha desaparecido na
véspera. Tomados de pânico, todos se renderam.
Mas o que acontecera à ponte?
Naquela manhã, bem cedinho, as meninas,
ao despertar, ouviram Aslam dizer:
– Hoje é dia de festa!
Esfregaram os olhos e olharam em redor.
As árvores ainda podiam ser vistas ao longe,
avançando para o Monte de Aslam, em mancha
escura e maciça. Baco, as mênades (suas loucas e
estouvadas companheiras) e Sileno tinham ficado.
Lúcia, já refeita, levantou-se. Todos estavam
acordados e riam ao som das flautas e timbales.
De todos os lados apareciam animais, mas não
falantes.
– Que aconteceu, Aslam? – perguntou
Lúcia, com os olhos a bailar e os pés desejosos de
fazer o mesmo.
– Vamos, minhas filhas – disse ele. – Hoje
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vão andar outra vez nas minhas costas.
– Que bom! – gritou Lúcia.
E as duas meninas subiram para o dorso
quente e fulvo, como tinham feito sabe-se lá há
quantos anos. Todo o grupo se pôs em
movimento. Aslam à frente, seguido de Baco e
das mênades – que corriam e saltavam e davam
cambalhotas – , depois os animais cabriolando e
finalmente Sileno, montado no seu burro.
Cortaram à direita, lançaram-se por uma
encosta a pique e foram sair no Passo do Beruna.
Da água emergiu uma cabeça coroada de juncos,
maior
que a de um homem e com a barba a pingar.
Olhou para Aslam e disse, numa voz grave:
– Salve, senhor! Liberte-me dos meus
grilhões.
– Quem é? – perguntou Susana num
murmúrio.
– Psiu! – disse Lúcia. – Deve ser o deus do
rio.
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– Baco, liberte-o das cadeias! – ordenou
Aslam. “Deve estar falando da ponte” – pensou
Lúcia. E era, de fato. Baco e sua gente avançaram
chapinhando pela água pouco profunda; um
instante depois, aconteciam as coisas mais
estranhas. Troncos grossos e fortes enrolavam-se
pelos pilares da ponte e, alastrando-se como o
fogo, envolviam as pedras, separando-as, fazendoas
estalar. As grades da ponte transformaram-se
por um momento em bonitas sebes de espinheiro
branco. De repente, toda a construção desabou
com estrondo e foi engolida pelas águas. Entre
nuvens de salpicos e gritos de riso, parte do alegre
grupo atravessou o rio a vau, enquanto outros o
atravessaram a nado ou a bailar, saltando para a
outra margem. Entraram todos na cidade.
– Viva! É outra vez o Passo do Beruna! –
gritaram as meninas.
Ao vê-los, toda a gente da cidade desatou a
correr.
A primeira casa que encontraram foi uma
escola, uma escola de meninas, onde uma porção
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de alunas de Nárnia, com o cabelo muito esticado
e golas muito apertadas e feias, e usando meias
muito grossas, assistia a uma aula de História.
A História que se aprendia em Nárnia
durante o reinado de Miraz era mais insípida do
que a história mais verdadeira que se possa
imaginar e muito menos verdadeira do que o mais
apaixonante conto de aventuras.
– Goendolina, se continuar olhando para
fora e não prestar atenção, dou-lhe um castigo! –
disse a professora.
– Por favor... – disse Goendolina.
– Ouviu ou não ouviu o que eu disse?
– Mas, professora – insistiu Goendolina – lá
fora tem um leão!
– Em vez de um, vou lhe dar dois castigos,
para você não dizer bobagens. E agora...
Um rugido cortou-lhe a palavra. E a hera
começou a crescer e a enroscar-se pelas janelas da
sala de aula. As paredes ficaram atapetadas de um
verde cintilante e o teto cobriu-se de folhas. De
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repente, a professora percebeu que estava na
floresta, numa clareira relvada. Quis agarrar-se à
carteira para apoiar-se e viu que esta se
transformava numa roseira. Gente selvagem,
como ela nunca imaginara que pudesse existir,
comprimia-se ao redor. Ao ver o Leão, começou a
gritar e a fugir, e com ela toda a classe, formada
na maior parte por meninas rechonchudas e de
pernas roliças. Goendolina hesitou:
– Quer ficar conosco, querida? – perguntou
Aslam.
– Posso? Mesmo? Muito obrigada.
E imediatamente deu a mão a duas
mênades, que a fizeram rodopiar numa dança
frenética e a ajudaram a despir parte da roupa
desnecessária e incômoda que trazia.
Por todos os lados por onde passavam, a
cena se repetia. A maioria das pessoas fugia e
umas poucas juntavam-se a eles. Quando saíram
da cidade formavam um grupo muito maior e
mais animado.
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Correram pelos campos planos da margem
esquerda do rio. De todas as quintas saíam
animais que vinham ter com eles. Burros velhos e
tristes, que nunca tinham conhecido uma hora de
alegria, rejuvenesciam de um momento para
outro; cães que estavam presos quebravam as
correntes; os cavalos escoiceavam até deixar as
carroças em frangalhos e acompanhavam o bando
a galope – clope, clope, clope – , relinchando e
sacudindo a lama dos cascos.
Junto de um poço, num pátio, um homem
espancava um rapaz. O chicote transformou-se
numa flor. O homem tentou soltá-la, mas estava
agarrada à sua mão. Seu braço transformou-se
num ramo, o corpo num tronco, os pés criaram
raízes. O rapaz, que há pouco chorava, desatou a
rir e foi com eles.
Numa cidadezinha, a meio caminho do
Dique dos Castores, encontraram outra escola,
onde uma mocinha com ar cansado ensinava
Aritmética a uns meninos muito parecidos com
porquinhos. A mocinha olhou pela janela e viu o
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grupo brincalhão. Tremeu de alegria. Aslam parou
debaixo da janela e olhou para ela.
– Oh, não! Queria muito, mas não posso.
Tenho de trabalhar. As crianças morreriam de
susto se vissem você.
– Morrer de susto? – disse um menino que,
mais do que qualquer outro, parecia um leitão. –
Com quem está falando? Temos de dizer ao
diretor que ela fica conversando com as pessoas à
janela quando a obrigação dela é dar aula.
– Só quero ver quem é! – disse outro
menino, e todos se levantaram.
Mas no momento em que as carinhas
bobocas assomaram à janela Baco soltou o seu
euan-euan-eoooi, e os meninos começaram a
gritar assustados e atropelaram-se para sair pela
porta ou saltar pela janela. Diz-se que esses
meninos nunca mais foram vistos, mas que nessa
região apareceu uma raça muito apurada de
porquinhos que até então nunca havia existido.
– Venha, minha cara – disse Aslam à
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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senhorita. E ela foi.
No Dique dos Castores voltaram a
atravessar o rio e chegaram a uma casinha onde
uma menina chorava.
– Por que chora, meu bem? – perguntou
Aslam. A criança, que nunca vira um leão, nem
mesmo desenhado, não se assustou.
– Minha tia está muito doente e vai morrer.
Aslam quis entrar pela porta, mas era
pequena demais para ele. Enfiou a cabeça, fez
força com os ombros (nessa altura, Lúcia e Susana
escorregaram e caíram) e, levantando toda a casa,
colocou–a abaixo.
Na cama, agora ao ar livre, via–se deitada
uma velhinha franzina, que parecia ter sangue de
anão. Estava às portas da morte, mas, quando
abriu os olhos e viu a juba brilhante do Leão, não
gritou nem desfaleceu. Exclamou apenas:
– Oh, Aslam! Sabia que era verdade.
Esperei a vida toda por este momento. Veio para
me levar?
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– Sim, minha querida – disse Aslam. – Mas
ainda não para a viagem final.
E, enquanto falava, como o rubor que se
insinua nas nuvens ao nascer do sol, a cor voltou–
lhe ao rosto pálido, os olhos readquiriram brilho e,
sentando–se, ela disse:
– Estou muito melhor. Acho que seria capaz
de comer alguma coisa.
– Aqui, titia – disse Baco, enchendo uma
bilha no poço.
Mas a bilha, em vez de água, continha o
mais perfumado dos vinhos, vermelho como
geléia de groselha, suave como o azeite, forte
como um bom bife, reconfortante como o chá,
geladinho como o orvalho.
– Oh! – exclamou a velha. – O poço
mudou, sem dúvida. Está muito melhor assim! – E
saltou da cama.
– Suba às minhas costas – disse Aslam, e,
para as duas meninas: – Vocês terão de ir a pé.
– Adoramos correr. – E partiram
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imediatamente.
Foi assim que, entre saltos, danças, cantos e
ruídos de animais, o bando chegou finalmente ao
lugar onde o exército de Miraz se alinhava, de
espadas no chão e mãos para o ar, e onde os
homens de Pedro, com uma expressão severa mas
alegre, e ainda de armas nas mãos, cercavam,
ofegantes, os vencidos. Então, a velha desceu das
costas de Aslam e correu para Caspian... e caíram
nos braços um do outro. Porque era, nem mais
nem menos, a velha ama do príncipe.
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15
ASLAM ABRE UMA
PORTA NO AR
Ao ver Aslam, os soldados telmarinos
ficaram lívidos, seus joelhos começaram a bater, e
muitos caíram de cara no chão. Nunca tinham
acreditado em leões, e a descrença aumentava
ainda mais seu terror. Os próprios anões
vermelhos, que sabiam que vinha como amigo,
ficaram boquiabertos e mudos. Alguns dos anões
negros, que tinham tomado o partido de Nikabrik,
correram a esconder–se. Os animais falantes,
porém, reuniram–se todos à volta do Leão.
Alegres, rosnavam, guinchavam, relinchavam, ora
acariciando o Leão, roçando–se nele, farejando–o
delicadamente, ora andando de um lado para
outro, por entre suas pernas. Se alguma vez você
já viu um gatinho fazendo festas a um cachorro
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grande, no qual confia, poderá imaginar o que foi
aquilo. Então Pedro, acompanhado de Caspian,
abriu caminho por entre a bicharada.
– Permita que me apresente, Senhor! – disse
Caspian, ajoelhando e beijando a pata do Leão.
– Bem–vindo seja, príncipe – disse Aslam.
Sente–se bastante forte para reinar em Nárnia?
– Bem, não sei – respondeu Caspian. – Não
passo de um garoto.
– Muito bem! – replicou Aslam. – Se
dissesse que tinha a certeza, seria prova de que
não estava apto a reinar. Por isso, abaixo de mim
e do Grande Rei, será rei de Nárnia, Senhor de
Cair Paravel e Imperador das Ilhas Solitárias.
Você e os seus descendentes, enquanto durar a sua
raça. A sua coroação... Mas o que vem a ser isso?
Nesse momento, um estranho cortejo
aproximava–se: onze ratos, seis dos quais
transportavam alguma coisa numa liteira feita de
ramos. Nunca ninguém viu ratos mais tristes do
que aqueles. Cobertos de lama (alguns também de
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sangue), as orelhas e os bigodes caídos,
arrastavam a cauda pela relva. O que abria o
cortejo tocava numa flauta uma melodia triste. O
que jazia na maça parecia um monte de pêlo
úmido: era tudo o que restava de Ripchip.
Respirava ainda, mas estava já mais morto do que
vivo, muito ferido, com uma pata esmagada; e
onde antigamente era a cauda havia agora só um
coto de rabo muito curtinho.
– É a sua vez, Lúcia! – disse Aslam.
Num abrir e fechar de olhos, Lúcia pegou
seu frasco de diamante. Ainda que bastasse uma
gota em cada ferimento, Ripchip tinha tantos que
se fez um longo e pesado silêncio, até que ela
finalmente acabou e o Senhor Rato saltou da
maça. Levou imediatamente a mão ao punho da
espada, enquanto com a outra torcia os bigodes.
Fez uma reverência.
– Salve, Aslam! – disse, na sua vozinha
aguda. –Tenho a honra de... – Mas parou de
repente.
A verdade é que continuava sem cauda, ou
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porque Lúcia se esquecera desse pormenor ou
porque o bálsamo, capaz de curar as feridas, não
tinha o dom de fazer crescer as coisas outra vez.
Foi quando fazia a reverência que Ripchip tomou
consciência de sua perda. Talvez porque a falta de
cauda lhe alterasse o equilíbrio. Olhou por cima
do ombro direito. Não vendo a cauda, esticou o
pescoço até conseguir voltar os ombros e depois
todo o tronco. Mas nessa altura também as pernas
se voltaram e nada viu. Estendeu de novo o
pescoço sem resultado. Só depois de ter dado três
voltas completas se apercebeu da amarga verdade.
– Estou perplexo! — declarou, dirigindo–se
a Aslam. – Estou absolutamente fora de mim.
Peço a sua indulgência pelo fato de apresentar–me
de maneira tão imprópria.
– Pelo contrário, até lhe fica muito bem,
pequenino – disse Aslam.
– Mesmo assim, se se pudesse fazer alguma
coisa... talvez Vossa Majestade... – acrescentou,
curvando–se para Lúcia.
– Mas para que você quer uma cauda? –
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perguntou Aslam.
– Senhor – replicou o rato –, é verdade que,
sem ela, posso comer e dormir e dar a vida pelo
meu rei. Mas a cauda sempre foi a honra e a glória
de um rato.
– Parece que às vezes você se preocupa
demais com a sua honra – disse Aslam.
– Rei poderoso sobre todos os Grandes Reis
–respondeu Ripchip –, permita recordar–lhe que a
nós, os ratos, foi dado um tamanho muito
pequeno, de modo que, a não ser que
conservemos a nossa dignidade, alguns dos que
medem as pessoas aos palmos seriam bem
capazes de se permitir brincadeiras de mau gosto
às nossas custas. Por isso é que não perco a
oportunidade de afirmar que todo aquele que não
quiser sentir esta espada bem perto do coração
deve evitar, na minha presença, toda referência a
ratoeiras e queijo frito. Não admito, Senhor... nem
ao mais alto idiota de Nárnia.
Nesse momento, olhou furioso para
Verruma; mas o gigante, sempre atrasado, ainda
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não tinha conseguido descobrir o que se discutia
lá embaixo, de modo que não entendeu o
comentário.
– Por que todos os seus seguidores estão de
espada na mão? – perguntou Aslam.
– Com licença de Vossa Majestade – disse
o segundo rato, que se chamava Pipcik. – Estamos
todos prontos a cortar a cauda se o nosso chefe
ficar sem a dele. Não queremos ostentar uma
honra que é negada ao Grande Rato.
– Ah! – rugiu Aslam. Vocês venceram! São
muito corajosos. Não pela sua dignidade, Ripchip,
mas pelo amor que o liga ao seu povo e, mais
ainda, pela bondade que o seu povo mostrou para
comigo, há muitos anos, quando roeu as cordas
que me prendiam à Mesa de Pedra (se bem que
tenham esquecido, foi nessa ocasião que
começaram a falar), você terá de novo a sua
cauda.
Mal Aslam acabara de pronunciar estas
palavras e já a cauda estava em seu lugar. Então,
seguindo as instruções de Aslam, Pedro conferiu a
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Caspian a dignidade de Cavaleiro da Ordem do
Leão, e Caspian, uma vez armado cavaleiro,
conferiu a honra a Caça–trufas, Trumpkin e
Ripchip, declarando o doutor Cornelius seu
Supremo Magistrado e confirmando ao Urso
Barrigudo o direito hereditário de Arbitro. Tudo
isto no meio de grandes aplausos.
Os soldados telmarinos foram então
conduzidos, firmemente, mas sem insultos nem
pancada, para a outra margem do Beruna, e
ficaram prisioneiros na cidade, recebendo aí carne
e bebida. Fizeram grande berreiro quando
atravessaram o rio a vau, porque detestavam a
água corrente, tanto quanto detestavam e temiam
os bosques e animais. Por fim, também essa
balbúrdia acabou e começou a parte mais
agradável daquele longo dia.
Lúcia, sentada junto de Aslam e sentindo–
se divinamente feliz, perguntava a si própria o que
é que as árvores estariam fazendo. A princípio
achou que estivessem simplesmente dançando,
pois moviam–se lentamente em dois círculos, um
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que girava da esquerda para a direita, outro que ia
da direita para o meio dos círculos. Parecia às
vezes que cortavam longas mechas de cabelos.
Outras, porém, davam a idéia de que arrancavam
pedaços dos dedos... mas, se assim era, deviam ter
dedos para dar e vender e (parecia) não sentiam
nem um pouquinho de dor. Fosse o que fosse que
atirassem, ao tocar o chão se transformava em
lenha seca. Três ou quatro anões vieram e atearam
fogo à lenha, que começou a estalar e a fazer
labaredas, até que crepitou como uma grande
fogueira em noite de São ,’ João. Fizeram um
círculo em redor.
Então Baco, Sileno e as mênades deram
início a uma dança muito mais animada do que a
das árvores. Não era apenas uma dança de
divertimento e beleza, mas também uma dança
mágica de abundância, porque, onde quer que as
suas mãos ou os seus pés tocassem, surgia um
verdadeiro banquete: nacos de carne assada, que
enchiam o bosque com o seu delicioso aroma;
bolos de aveia e trigo; mel e doces de muitas
cores; creme de leite espesso, pêssegos, ameixas,
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romãs, pêras, uvas, morangos... verdadeiras
cataratas de frutas. Depois foi a vez dos vinhos
em taças de madeira e vasos entrelaçados com
hera. Vinhos escuros e espessos como licor de
amoras, outros de um vermelho–vivo como geléia
rubra e derretida, e ainda outros amarelos e
verdes, e outros amarelo–esverdeados e verde–
amarelados.
Para as árvores a comida era diferente.
Quando Lúcia viu que Escava–terra e suas
toupeiras revolviam a terra em lugares que Baco
lhes indicava, compreendeu que as árvores iriam
comer terra e sentiu um arrepio. Mas, quando viu
as terras que lhes eram oferecidas, mudou de
opinião. Começaram a comer um esplêndido
torrão castanho, que quase não se distinguia do
chocolate, tão parecido que Edmundo provou um
pouquinho, mas não achou nada bom. Depois de
terem acalmado a fome com o torrão, as árvores
voltaram–se para uma terra quase cor–de–rosa, da
qual diziam ser leve e doce. Na hora do queijo,
comeram uma porção de solo calcário, seguindo–
se depois petiscos delicados, preparados com as
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areias mais finas e polvilhados com areia
prateada. Beberam muito pouco vinho, mas
mesmo assim as quaresmeiras ficaram muito
falantes; quase sempre matavam a sede com
longos goles de mistura de chuva e orvalho,
aromatizada com flores campestres e perfumada
com a suave fragrância das nuvens mais
transparentes. Assim Aslam ofereceu aos
narnianos um banquete, que durou até muito
depois do pôr–do–sol e do despertar das primeiras
estrelas. E a grande fogueira, agora mais rubra e
menos crepitante, brilhava como um farol no meio
dos bosques escuros. Ao vê–la, lá longe, os
telmarinos, aterrados, perguntaram–se o que seria
aquilo. O melhor da festa foi que ela não acabou,
nem as pessoas foram embora. Simplesmente, à
medida que a conversa se espaçava e perdia a
animação, um e outro, sentindo a cabeça pesada,
adormecia entre os amigos, de pés voltados para a
fogueira. Até que finalmente caiu o silêncio e se
ouviu de novo o parolar da água que saltitava de
pedra em pedra no Passo do Beruna. Durante toda
a noite, Aslam e a Lua contemplaram–se com
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imensa alegria.
No dia seguinte, despacharam–se
mensageiros (principalmente esquilos e pássaros)
por todo o país, com uma comunicação aos
telmarinos dispersos, sem esquecer os que
estavam presos em Beruna. Foi–lhes anunciado
que Caspian era agora o rei e que, a partir daquele
momento, Nárnia pertencia não só aos humanos
como aos animais falantes, aos anões, às dríades,
aos faunos e a todas as outras criaturas. Quem
quisesse aceitar as novas condições poderia ficar;
para aqueles que não estivessem satisfeitos,
Aslam arranjaria outro país. Os interessados em
mudar–se, deveriam apresentar–se a Aslam e aos
reis dali a cinco dias, ao meio–dia em ponto, no
Passo do Beruna.
Você pode imaginar a indecisão que isto
causou entre os telmarinos. Muitos deles,
principalmente os mais novos, como acontecera a
Caspian, tinham ouvido histórias dos velhos
tempos e ficaram encantados com a idéia de esses
tempos voltarem. Já tinham até começado a fazer
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amigos entre as outras criaturas e resolveram ficar
em Nárnia. Mas grande parte dos mais velhos,
sobretudo os que tinham ocupado cargos
importantes durante o reinado de Miraz, estavam
irritados e não queriam viver num país onde não
pudessem mandar.
– Era só o que faltava! Ficar vivendo aqui
com um bando de animais de circo! E ainda por
cima com fantasmas! – acrescentavam outros,
tremendo de medo. – É, porque essas dríades são
fantasmas, não passam disso! Seria uma loucura!
E também estavam desconfiados.
– Não confio neles – diziam. – De mais a
mais, com aquele Leão medonho! Tenham certeza
de que ele vai usar as suas garras, vocês vão ver!
Por outro lado, desconfiavam igualmente da
tal proposta de um novo país.
– Vai é levar a gente para um covil e
devorar um por um!
E, quanto mais discutiam entre si, mais
irritados e desconfiados ficavam. No dia marcado,
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porém, mais da metade apareceu.
Num dos extremos da clareira, Aslam
mandara espetar duas estacas, mais altas do que
um homem e afastadas cerca de um metro. Outra
estaca mais leve foi posta horizontalmente em
cima das duas primeiras, reunindo–as de modo
que parecessem uma porta, que vinha não se sabe
de onde e dava não se sabe para onde. Em frente
da porta postou–se Aslam, com Pedro à direita e
Caspian à esquerda. Em torno, reuniram–se
Susana, Lúcia, Trumpkin, Caça–trufas, doutor
Cornelius, Ciclone, Ripchip e os outros. As
crianças e os anões tinham aproveitado bem o
guarda–roupa do antigo castelo de Miraz, que era
agora de Caspian. Com sedas, brocados e linhos
alvos, armaduras de prata e espadas incrustadas de
pedras preciosas, elmos dourados e chapéus de
plumas, ofereciam um espetáculo tão
deslumbrante que feria a vista. Até os animais
traziam ao pescoço colares preciosos. Mas
ninguém reparava neles ou nas crianças. O ouro
da juba de Aslam excedia a tudo. Os outros
antigos narnianos estavam de pé, de ambos os
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lados da clareira; no outro extremo, os telmarinos.
O sol brilhava intensamente, as bandeiras
ondulavam ao vento.
– Homens de Teimar – começou Aslam. –
Vocês, que procuram nova pátria, ouçam–me.
Mandá–los–ei para a sua terra, que eu conheço e
vocês não!
– Não nos lembramos mais de Teimar. Não
sabemos onde fica nem como é – murmuraram os
telmarinos.
– Vocês vieram de Teimar para Nárnia –
disse Aslam. – Mas chegaram a Teimar
provenientes de outro lugar. Não pertencem a este
mundo. Chegaram aqui há algumas gerações,
vindos do mesmo mundo a que pertence o Grande
Rei Pedro.
Ao ouvirem isto, alguns dos telmarinos
começaram a resmungar.
– Não falei? Vai liquidar a gente. Vai
mandar a gente para o outro lado do mundo.
Outros começaram, empertigados, a dar
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pancadinhas nas costas uns dos outros, dizendo:
– Agora entendemos tudo. Não era tão
difícil adivinhar que não pertencíamos ao mundo
desta gente esquisita e detestável. Corre em
nossas veias sangue real.
Até Caspian, Cornelius e as crianças se
voltaram para Aslam, com ar de espanto.
– Silêncio! – disse Aslam, num tom de voz
baixo que mais se aproximava do seu rugido
normal. A terra pareceu estremecer um pouco, e
todos os seres vivos ficaram imóveis como
estátuas.
– Você, Caspian – disse Aslam –, bem
podia ter adivinhado que não poderia ser o
verdadeiro rei de Nárnia se não fosse, como os
antigos reis, filho de Adão, vindo do mundo dos
filhos de Adão. É o que você é. Há muitos anos
aconteceu que, nesse outro mundo, em um lugar
chamado Mar do Sul, um barco de piratas foi
arrastado para uma ilha por uma tempestade. Os
piratas fizeram o que costumam fazer: mataram os
indígenas, tomaram as mulheres por esposas,
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dormiram à sombra das palmeiras, acordaram,
discutiram, matando–se de vez em quando uns aos
outros. Numa dessas refregas, seis deles,
obrigados a fugir, foram com as mulheres para o
centro da ilha; subiram depois a montanha e se
esconderam numa caverna. Acontece que a
caverna era um lugar mágico, uma das fendas
abertas entre aquele mundo e este. E foi assim que
caíram ou rolaram pela tal passagem e se
encontraram de repente neste mundo, na terra de
Teimar, que era então desabitada. Por que era
desabitada é uma longa história, que não contarei
agora. Os seus descendentes viveram em Teimar e
formaram um povo arrogante e temido; passadas
muitas gerações, houve em Teimar uma grande
fome e por isso invadiram Nárnia, onde reinava
então uma certa desordem (outra longa história), e
conquistaram–na e submeteram–na. Está
compreendendo, rei Caspian?
– Compreendo, Senhor. Estava pensando
que gostaria de ter tido uma ascendência mais
honrosa.
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– Descende de Adão e Eva – tornou Aslam.
– É honra suficientemente grande para que o
mendigo mais miserável possa andar de cabeça
erguida, e também vergonha suficientemente
grande para fazer vergar os ombros do maior
imperador da Terra. Dê–se assim por satisfeito.
Caspian baixou a cabeça.
– E agora, homens e mulheres de Teimar,
querem vocês voltar para essa ilha no mundo dos
homens, de onde vieram os seus pais? A raça de
piratas que ali desembarcou já se extinguiu, e a
ilha está desabitada. Há fontes de água fresca,
solo fértil, madeira para construções, e as lagoas
são muito ricas em peixes. Os outros homens
desse outro mundo ainda não descobriram a ilha.
A passagem está aberta para o regresso de vocês.
Logo que estiverem do outro lado, ela se fechará
para sempre.
Durante alguns segundos, fez–se silêncio.
Depois, um dos soldados telmarinos, um sujeito
forte e simpático, avançou e disse:
– Pois bem! Aceito a proposta.
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– Aprovo a sua escolha – disse Aslam. – E,
porque foi o primeiro a decidir–se, um poder
mágico se exercerá sobre você. Será feliz nesse
outro mundo. Em frente!
O homem, agora um pouco pálido,
avançou. Aslam e os outros afastaram–se,
deixando–lhe livre acesso à porta feita de estacas.
– Atravesse–a, meu filho – disse Aslam,
inclinando–se e tocando o nariz do homem com o
seu próprio nariz.
No momento em que sentiu o bafo do Leão,
os seus olhos adquiriram uma expressão nova (um
pouco de surpresa, mas não de tristeza), como se
ele quisesse lembrar–se de alguma coisa.
Endireitou–se e entrou pela porta.
Todos os olhares estavam cravados nele.
Todos viam as três estacas de madeira e, através
delas, do outro lado, as árvores, a relva e o céu de
Nárnia. Viram o homem entre os dois postes;
depois, de repente, desapareceu.
Do outro extremo da clareira ouviu–se o
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pranto dos telmarinos:
– Ai! Que terá acontecido? Quer matar a
todos nós? Não iremos para lá.
Então um dos telmarinos mais inteligentes
disse:
– Não vemos nenhum outro mundo além
daqueles postes. Se quer que acreditemos no que
diz, por que um dos seus não atravessa a porta?
Os seus amigos mantêm–se bem afastados dela.
Logo Ripchip avançou e fez uma
reverência.
– Se meu exemplo pode servir de alguma
coisa, Aslam, a uma ordem sua passarei com onze
ratos por debaixo daquele arco... sem a menor
hesitação!
– Não, meu filho – disse Aslam, pousando
de leve a pata sobre a cabeça de Ripchip. – Fariam
coisas terríveis com vocês naquele mundo: seriam
exibidos nas feiras. São outros que têm de passar.
– Vamos! – disse Pedro de repente,
voltando–se para Edmundo e Lúcia. – Chegou a
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nossa hora.
– Que quer dizer com isso? – perguntou
Edmundo.
– Por aqui – disse Susana, que parecia estar
a par de tudo. – Temos de voltar à floresta, para
mudar...
– Mudar o quê? – perguntou Lúcia.
– A roupa, naturalmente! – declarou
Susana. – Bonita figura iríamos fazer na estação
da estrada de ferro com estas roupas.
– Mas as nossas estão no castelo de Caspian
–objetou Edmundo.
– Não! – disse Pedro, continuando no rumo
da floresta mais cerrada. – Estão aqui. Vieram
esta manhã. Está tudo em ordem.
– Era disso que Aslam falava com você e
Susana esta manhã? – perguntou Lúcia.
– Era disso e de outras coisas – disse Pedro,
com um ar muito solene. – Não posso contar–lhes
tudo. Há coisas que ele queria dizer a Su e a mim,
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porque não voltaremos a Nárnia.
– Nunca mais?! – exclamaram Edmundo e
Lúcia, consternados.
– Vocês hão de voltar – explicou Pedro. –
Pelo menos, pelo que ele disse, fiquei convencido
de que ele deseja a volta de vocês um dia. Su e eu
é que não. Aslam diz que já estamos muito
grandes.
– Mas, Pedro, que azar! – exclamou Lúcia.
– Acho que já estou conformado – replicou
Pedro. – É tudo muito diferente do que eu
pensava. Compreenderá quando chegar a sua vez.
Agora vamos arrumar as coisas.
Foi uma sensação esquisita e não muito
agradável despir os trajes reais e voltar a aparecer
com os uniformes de colégio, já um tanto usados.
Um ou dois dos telmarinos esboçaram uns
risinhos de troça. Mas as outras criaturas
levantaram–se e aclamaram o Grande Rei Pedro, a
rainha Susana, da trompa mágica, o rei Edmundo
e a rainha Lúcia. As crianças despediram–se
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afetuosamente dos velhos amigos, e Lúcia até
chegou a chorar.
Os animais beijaram as crianças, os Ursos
Barrigudos deram–lhes tapinhas amáveis,
Trumpkin apertou–lhes a mão e, para terminar,
não faltou um abraço bem apertado de Caça–
trufas, que lhes fez cócegas com o bigode. É claro
que Caspian voltou a oferecer a trompa a Susana,
e é claro que esta lhe disse que a guardasse.
Depois, magnífica e terrível, seguiu–se a
despedida de Aslam. Pedro tomou então o seu
lugar, com Susana atrás, pousando–lhe as mãos
nos ombros, e as mãos de Edmundo nos ombros
dela, e as do primeiro telmarino nos de Lúcia. E
assim, numa longa fila, avançaram para a porta.
Seguiu–se um momento indescritível, durante o
qual as crianças viram três coisas ao mesmo
tempo. Viram a boca de uma caverna,
descobrindo o verde e o azul brilhantes de uma
ilha do Pacífico – a ilha em que os telmarinos
iriam encontrar–se no momento em que
transpusessem a porta. Viram uma clareira em
Nárnia e os rostos dos anões e dos animais e os
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olhos profundos de Aslam e as manchinhas
brancas do focinho do texugo. A terceira visão,
porém, foi aquela que rapidamente dominou as
outras duas: uma plataforma cinzenta e arenosa de
uma estação de estrada de ferro provinciana, um
banco com malas ao lado, eles sentados no banco,
como se nunca tivessem saído de lá... O
espetáculo por um instante lhes pareceu um pouco
monótono, depois de tudo o que tinham vivido,
mas, inexplicavelmente, tinha também o seu
encanto, com o cheiro característico e familiar das
estações ferroviárias, e o céu da terra natal e as
perspectivas do primeiro período de aulas.
– Bem – disse Pedro – foi uma esplêndida
aventura!
– Ora bolas! – exclamou Edmundo. –
Deixei minha lanterna nova em Nárnia...
Fim do Vol. III
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV
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Próximo volume:
A Viagem do Peregrino da Alvorada
Parabéns a pessoa que escreveu Isso tudo
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