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C. S. LEWIS
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
VOL. VII
A Última Batalha
Tradução
Paulo Mendes Campos
Martins Fontes
São Paulo 2002
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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As Crônicas de Nárnia são constituídas por:
Vol. I – O Sobrinho do Mago
Vol. II – O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa
Vol. III – O Cavalo e seu Menino
Vol. IV – Príncipe Caspian
Vol. V – A Viagem do Peregrino da Alvorada
Vol. VI – A Cadeira de Prata
Vol. VII– A Última Batalha
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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ÍNDICE
1. No LAGO DO CALDEIRÃO
2. A PRECIPITAÇÃO DO REI
3. SUAMAJESTADE, O MACACO
4. O QUE ACONTECEU NAQUELA NOITE
5. CHEGA AUXÍLIO PARA O REI
6. UM BOM TRABALHO NOTURNO
7. VIVAM OS ANÕES!
8. AS NOVAS QUE A ÁGUIA TROUXE
9. A GRANDE REUNIÃO NA COLINA DO ESTÁBULO
10. QUEM ENTRARÁ NO ESTÁBULO?
11. ACELERA-SE O PASSO
12. PELA PORTA DO ESTÁBULO
13. OS ANÕES NÃO SE DEIXAM TAPEAR
14. CAI A NOITE SOBRE NÁRNIA
15. PARA CIMA E AVANTE!
16. ADEUS ÀS TERRAS SOMBRIAS
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NO LAGO DO CALDEIRÃO
Nos últimos dias de Nárnia, lá para as
bandas do Ocidente, depois do Ermo do Lampião
e bem pertinho da grande cachoeira, vivia um
macaco. Ele era tão velho que ninguém se
lembrava quando foi que aparecera por aquelas
bandas. E era o macaco mais enrugado, feio e
astuto que se pode imaginar. Ele morava numa
casinha de madeira coberta de folhas, empoleirada
num dos galhos mais altos de uma grande árvore.
Seu nome era Manhoso.
Naquele recanto da floresta havia bem
poucos animais falantes, homens, anões ou
qualquer tipo de gente. Apesar disso, Manhoso
tinha um vizinho, que era também seu amigo, um
jumento chamado Confuso. Pelo menos eles se
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diziam amigos. Na verdade, porém, Confuso era
mais um empregado que amigo de Manhoso. Era
ele quem fazia todo o serviço. Quando iam juntos
para o rio, Manhoso enchia os alforjes de água,
mas quem os carregava até em casa era Confuso.
Quando precisavam de alguma coisa das cidades,
que ficavam bem longe, rio abaixo, era Confuso
quem descia com os paneiros vazios às costas e
voltava depois com eles, pesados de tão cheios. E
tudo que ele trazia de melhor e mais gostoso quem
comia era Manhoso, pois, como este costumava
dizer: “Você bem sabe, Confuso, que eu não
posso comer capim e forragem como você. Por
isso é claro que eu preciso compensar de outras
formas...” E o jumento respondia: “Claro,
Manhoso, claro. Eu sei disso.” Confuso nunca
reclamava, pois sabia que Manhoso era muito
mais sabido que ele, e até achava que, afinal de
contas, era muito gentil da parte dele ser seu
amigo. E se, por acaso, Confuso tentava discutir
com ele sobre alguma coisa, Manhoso sempre
dizia: “Ora, vamos, Confuso, eu sei muito melhor
do que você o que precisa ser feito. Você sabe
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muito bem que não é nada inteligente, não é
mesmo?” E Confuso concordava: “É verdade,
Manhoso. Você tem toda a razão. Eu não sou
sabido mesmo.” E acabavam fazendo sempre o
que Manhoso queria.
Uma manhã, no comecinho do ano, os dois
andavam passeando à margem do Lago do
Caldeirão. O Lago do Caldeirão é o grande lago
que fica logo abaixo dos penhascos na
extremidade oeste de Nárnia. A enorme cachoeira
precipita-se dentro dele com estrondo, como se
fosse um eterno trovão, e o rio de Nárnia brota
pelo outro lado. Por causa da cascata as águas do
lago estão sempre dançando, agitadas,
borbulhando e fazendo círculos como se
estivessem continuamente fervendo. Por isso é
que se chama Lago do Caldeirão. É no comecinho
da primavera que ele fica mais agitado, porque as
águas da cachoeira crescem muito mais com a
neve que derrete nas montanhas do lado de lá de
Nárnia, na floresta ocidental, onde nasce o rio.
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Eles estavam olhando para o Lago do
Caldeirão quando, de repente, Manhoso apontou
com seu dedo escuro e fininho, dizendo:
– Olhe! O que é aquilo?
– Aquilo o quê? – perguntou Confuso.
– Aquela coisa amarela que vem descendo
pela cachoeira. Olhe! Lá está ela de novo,
flutuando na água. Precisamos descobrir o que é
aquilo!
– Precisamos...? – disse Confuso.
– E claro que sim – respondeu Manhoso. –
Pode ser alguma coisa útil. Vamos, seja camarada.
Pule no lago e pegue aquilo lá, para a gente dar
uma olhada.
– Saltar no lago? – resmungou Confuso,
repuxando as orelhas compridas.
– Bem... Como é que vamos pegá-lo se
você não pular? – disse o macaco.
– Mas... Mas... Não seria melhor que você
entrasse no lago? Afinal de contas, quem quer
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saber o que é aquilo é você, e não eu... E você tem
mãos, não é mesmo? Quando se trata de pegar
alguma coisa, você é tão bom quanto qualquer
homem ou anão. Eu só tenho cascos...
– Puxa, Confuso! – exclamou Manhoso. –
Nunca pensei ouvir uma coisa dessas. Nunca
esperei isso de você!
– Por quê? O que foi que eu disse de
errado? – indagou o jumento, numa vozinha muito
humilde, pois percebera que o amigo estava muito
ofendido. – Eu só quis dizer...
– Querendo que eu entre na água... –
queixou-se o macaco. – Como se não soubesse
perfeitamente quanto são fracos os pulmões dos
macacos e quão facilmente eles se resfriam. Tudo
bem, eu vou. Já estou mesmo tremendo de frio por
causa deste vento terrível. Mas vou assim mesmo.
Pode até ser que eu morra. E aí você vai se
arrepender! (E aqui a voz de Manhoso soou como
se ele estivesse prestes a chorar.)
– Não, por favor, não vá! Por favor, não! –
disse Confuso, meio zurrando, meio falando. – Eu
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não quis dizer isso, Manhoso, juro! Você bem
sabe o quanto sou idiota e que não consigo pensar
em duas coisas ao mesmo tempo. Eu esqueci que
você tem o peito fraco. É claro que eu vou. Nem
pense mais nisso. Prometa que não vai, Manhoso!
Então o macaco prometeu, e Confuso saiu
trotando em volta da margem rochosa do lago,
procurando um lugar de onde pudesse pular. Não
era brincadeira saltar dentro daquela água agitada
e espumejante – e isso para não falar do frio!
Confuso ficou um tempão parado, tremendo,
tentando criar coragem.
Mas aí Manhoso gritou lá de trás:
– Talvez seja melhor eu ir, Confuso!
Ao ouvir isso, o jumento apressou-se:
– Não, não! Você prometeu! Já estou indo!
– E pulou.
Um monte de espuma espirrou-lhe na cara,
enchendo-lhe a boca de água e cegando-lhe os
olhos. Durante alguns minutos ficou submerso, e
quando voltou à tona encontrava-se num ponto
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totalmente diferente do lago. Então o redemoinho
o pegou, e foi rodopiando cada vez mais rápido,
carregando-o para mais e mais longe, até deixá-lo
exatamente debaixo da queda-d’água. E a força da
água arrastava-o cada vez mais para o fundo, de
tal forma que ele pensou que não conseguiria reter
o fôlego... Até que começou a subir novamente.
Quando voltou à superfície e afinal conseguiu
chegar perto da coisa que estava tentando
alcançar, esta saiu boiando para longe dele e foi
cair bem embaixo da queda-d’água, que a fez
afundar também. Quando a coisa voltou à tona,
estava muito mais longe do que nunca.
Finalmente, quando já estava quase morto de
cansaço, todo doído e dormente de frio, conseguiu
agarrá-la com os dentes. E lá veio ele pelo lago,
carregando à frente aquela coisa enroscada nas
patas dianteiras, pois era um pelego enorme,
muito pesado, frio e cheio de lodo.
Confuso atirou a coisa aos pés de Manhoso
e ali ficou, todo encharcado, tiritando de frio e
tentando recuperar o fôlego. O macaco, porém,
nem sequer olhou para ele ou perguntou como se
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sentia. Manhoso estava muito ocupado dando
voltas e mais voltas ao redor da coisa. Esticava,
alisava, cheirava... E de repente seus olhos
brilharam com um sorriso malicioso e ele
exclamou:
– É uma pele de leão!
– Eh... ha... ha... é... mesmo? – ofegou
Confuso.
– Eu só queria saber... o que será... será
que... – dizia Manhoso consigo mesmo, pensando
profundamente.
– Quem será que matou o pobre do leão? –
perguntou Confuso depois de alguns instantes. –
Ele precisa ser enterrado. Vamos fazer um
funeral.
– Ora, não era um leão falante – replicou
Manhoso. – Nem precisa se preocupar com isso.
Não existem mais animais falantes do lado de lá
das cascatas, para as bandas da floresta ocidental.
Esta pele deve ter pertencido a um leão mudo e
selvagem.
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A propósito, era isso mesmo. Um caçador
matara o leão e arrancara-lhe a pele em alguma
parte da floresta ocidental, já havia vários meses.
Isso, porém, nada tem a ver com a nossa história.
– Tanto faz, Manhoso – disse Confuso. –
Mesmo que seja a pele de um leão mudo e
selvagem, por que não devemos dar-lhe um
funeral decente? Quer dizer, quando a gente
conhece Ele, todos os leões são dignos de
respeito, você não acha?
– Não comece a meter minhocas na cabeça,
Confuso – retrucou Manhoso. – Você bem sabe
que pensar não é o seu ponto forte. Vamos pegar
esta pele e fazer uma capa bem quentinha para
você usar no inverno.
– Ah, não! Nem pense nisso! – objetou o
jumento.
– Ia parecer... quer dizer, os outros animais
poderiam pensar... isto é, eu não iria sentir-me...
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– Do que você está falando? – interrompeu
Manhoso, coçando-se como costumam fazer os
macacos.
– Eu acho que seria uma falta de respeito
para com o Grande Leão, para com o próprio
Aslam, se um asno como eu andasse por aí metido
numa pele de leão – explicou Confuso.
– Não me venha agora com argumentos,
por favor – disse Manhoso. – O que é que um
burro como você entende dessas coisas? Você
bem sabe que não é um bom pensador, Confuso.
Por que não me deixa pensar por você? Por que
não me trata como eu o trato? Eu não acho que
sou capaz de fazer tudo. Sei que há certas coisas
que você faz muito melhor do que eu. É por isso
que o deixei entrar no lago: sabia que você faria
isso melhor do que eu. Mas por que eu não posso
ter uma chance quando se trata de fazer algo que
posso fazer e você não? Por que será que nunca
posso fazer nada? Seja justo e me dê uma chance,
vá...
– Está bem... se é assim que você pensa...
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– Sabe de uma coisa? – disse Manhoso. –
Por que você não dá um pulinho até Cavacópolis
para ver se encontra algumas laranjas e bananas
para nós?
– Mas, Manhoso, estou tão cansado! –
implorou Confuso.
– Isso é verdade. Mas também está
molhado e com muito frio – disse o macaco. –
Você precisa de alguma coisa que o aqueça, e
uma corridinha vem bem a calhar. Além do mais,
hoje é dia de feira em Cavacópolis.
Nem é preciso dizer que Confuso acabou
concordando. Assim que se viu sozinho, Manhoso
saiu gingando, ora sobre duas patas, ora sobre as
quatro, até chegar à árvore onde morava.
Então começou a pular de galho em galho,
tagarelando e arreganhando os dentes o tempo
todo, e finalmente entrou na casinha. Lá dentro
pegou agulha, linha e uma enorme tesoura
(inteligente como era, havia aprendido a costurar
com os anões). Enfiou o novelo de linha na boca
(era uma linha muito grossa, que mais parecia
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corda), de forma que as bochechas ficaram
estufadas como se ele estivesse chupando um
caramelo bem grandão. Com a agulha entre os
beiços e segurando a tesoura com a mão esquerda,
desceu da árvore e saiu bamboleando até a pele de
leão. Então, acocorado, pôs-se a trabalhar.
Manhoso logo percebeu que o corpo da
pele de leão era grande demais para Confuso e
que o pescoço era muito curto. Portanto, cortou
um bom pedaço do corpo e emendou-o na parte
do pescoço, fazendo uma gola comprida como o
pescoço do jumento. Depois arrancou a cabeça,
costurando a gola entre esta e os ombros. Colocou
umas tiras em ambos os lados da pele de leão, a
fim de amarrá-las por baixo do peito e do ventre
de Confuso. De vez em quando um passarinho
passava voando e Manhoso parava de trabalhar,
olhando ansiosamente para cima; não queria que
ninguém visse o que estava fazendo. Mas como
nenhum dos passarinhos que viu era uma ave
falante, não havia com que se preocupar.
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Quando Confuso voltou já era bem tarde.
Ele não vinha trotando, mas caminhando
lentamente, como fazem os jumentos.
– Não achei laranja nenhuma e banana
também não. Estou é morto de cansado! – disse,
atirando-se ao chão.
– Venha cá. Experimente a sua linda capa
nova, de pele de leão – chamou o macaco.
– Essa pele velha que se dane! – disse
Confuso. –Amanhã eu experimento. Hoje estou
cansado demais.
– Puxa, Confuso, como você é indelicado!
– reclamou Manhoso. – Se você está cansado,
imagine eu! Fiquei o dia inteiro aqui dando duro
para lhe fazer uma capa, enquanto você trotava
tranqüilamente pelo vale. Minhas mãos estão tão
cansadas que mal consigo segurar a tesoura. E
agora você nem me diz obrigado... E nem sequer
olha para a capa... Nem dá bola...
– Manhoso, meu querido – disse Confuso,
erguendo-se de um salto. – Sinto muito. Como fui
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estúpido! É claro que eu adoraria experimentar a
capa. Como é bonita! Vou prová-la agora mesmo.
Coloque-a em mim, por favor!
– Bem, então fique quieto – disse o macaco.
A pele era muito pesada para Manhoso erguê-la
sozinho. Mas até que enfim, depois de muito
puxar, empurrar, soprar, bufar, conseguiu colocá-
la no jumento. Amarrou-a por baixo do corpo de
Confuso e atou as pernas e o rabo da pele nas
pernas e no rabo do jumento. Por dentro da boca
aberta da cabeça de leão ainda dava para ver uma
boa parte do focinho e da cara cinzenta de
Confuso. Quem já tivesse visto um leão de
verdade jamais se enganaria ao vê-lo. Mas alguém
que nunca vira um leão antes, ao ver Confuso
metido naquela pele, poderia muito bem tomá-lo
por um leão, desde que ele não se aproximasse
muito e que a luz não fosse muito boa, e, é claro,
desde que ele não soltasse um zurro nem fizesse
nenhum barulho com os cascos.
– Confuso, você está maravilhoso! Ma-ravi-
lho-so! – disse o macaco. – Se alguém o visse
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agora pensaria que você é o próprio Aslam, o
Grande Leão!
– Oh, não! Isto seria terrível!
– Nem tanto – disse Manhoso. – Todo
mundo iria fazer qualquer coisa que você
mandasse.
– Mas não quero mandar ninguém fazer
nada!
– Imagine só quanta coisa boa a gente
poderia fazer – disse Manhoso. – Eu seria o seu
conselheiro, é claro. Bolaria umas ordens bem
sensatas para você dar. E todo mundo obedeceria
a nós – inclusive o próprio rei. Aí a gente ia dar
um jeito em Nárnia, botar tudo nos eixos.
– Mas já não está tudo nos eixos? –
estranhou Confuso.
– Que nada! – respondeu Manhoso. – Tudo
nos eixos? Quando nem laranja ou banana se
encontra?
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– Bem, você sabe... nem todos... aliás, acho
que ninguém mais além de você gosta dessas
coisas.
– E açúcar? – insinuou Manhoso.
– Hmmm! Até que seria bom se houvesse
mais açúcar...
– Então, está combinado – disse o macaco.
– Você vai fazer de conta que é Aslam, e eu lhe
digo o que dizer.
– Não, não, não! – protestou Confuso. –
Pare com essa história horrível, Manhoso. Vai sair
tudo errado. Posso não ser muito inteligente, mas
isso eu sei muito bem. O que seria de nós se o
verdadeiro Aslam aparecesse?
– Acho que ele ia ficar muito satisfeito –
respondeu Manhoso. – Quem sabe até foi ele
quem nos enviou de propósito a pele de leão, a
fim de que déssemos um jeito em Nárnia? E
depois, ele nunca aparece mesmo, você bem sabe.
Pelo menos, não hoje em dia.
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Naquele momento um enorme trovão
ribombou bem acima da cabeça deles e um ligeiro
terremoto fez tremer o chão. Os dois animais
perderam o equilíbrio e se estatelaram de cara no
chão.
– Viu? ! – gaguejou Confuso, assim que
recuperou o fôlego. – E um sinal, um aviso. Eu
sabia que a gente estava fazendo uma coisa
terrivelmente perigosa. Tire logo de uma vez essa
pele ordinária de cima de mim.
– Não, não – disse o macaco, cuja cabeça
trabalhava muito depressa. – É um outro tipo de
sinal. Eu ia justamente dizer que se o verdadeiro
Aslam, como você o chama, quisesse que
levássemos esta idéia avante, mandaria uma
trovoada e um tremor de terra. Já estava na
pontinha da língua, só que o sinal veio antes que
as palavras saíssem da minha boca. Agora você
tem de fazer. E, por favor, não vamos mais
discutir. Você bem sabe que não entende muito
dessas coisas. O que é que um burro como você
entende de sinais?
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A PRECIPITAÇÃO DO REI
Umas três semanas mais tarde, o último rei
de Nárnia estava sentado debaixo de um grande
carvalho que crescia à entrada do seu alojamento
de caça, onde ele costumava passar uns dez dias
durante a primavera. O alojamento era uma
construção baixa, coberta de sapé, não muito
distante do lado oriental do Ermo do Lampião e
um pouco acima do encontro dos dois rios. O rei
adorava aquela vida tranqüila e relaxada, longe
das preocupações e das pompas de Cair Paravel, a
cidade real. Chamava-se Tirian e tinha entre vinte
e vinte e cinco anos. Seus ombros eram largos e
fortes e os membros rijos e musculosos, mas a
barba era ainda bem rala. Tinha olhos azuis e uma
expressão honesta e corajosa.
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Não havia ninguém com ele naquela manhã
de primavera, exceto seu amigo mais íntimo, o
unicórnio Precioso. Os dois amavam-se como
irmãos e, em guerras anteriores, ambos já haviam
salvo a vida um do outro. O nobre animal estava
bem pertinho do rei e, com o pescoço encurvado,
ocupava-se em lustrar o belo corno azul,
esfregando-o contra a brancura cremosa do
próprio flanco.
– Hoje não tenho a mínima disposição para
trabalhar ou praticar esporte, Precioso – disse o
rei. –Não consigo pensar em outra coisa a não ser
nessa maravilhosa notícia. Você acha que ainda
hoje ouviremos algo mais sobre isso?
– São as novas mais maravilhosas que já
ouvimos em nossos dias, ou mesmo nos dias dos
nossos pais e dos nossos avós, senhor – respondeu
Precioso. – Se é que são verdadeiras.
– E como poderiam não ser verdadeiras? Já
faz mais de uma semana que os primeiros
passarinhos chegaram voando e nos disseram que
Aslam está aqui, que Aslam está de volta a
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Nárnia. Depois disso foram os esquilos. Não o
avistaram, mas disseram que era certo que ele
estava na floresta. E aí chegou o cervo e disse que
o vira com seus próprios olhos, bem de longe, ao
luar, no Ermo do Lampião. Depois veio aquele
moreno barbudo, o mercador da Calormânia. Os
calormanos não ligam muito para Aslam como
nós, mas a maneira como o homem falou não
deixa dúvida alguma. E na noite passada foi o
texugo, que também viu Aslam.
– De fato, senhor – disse Precioso –, eu
acredito. Se parece que não acredito é porque a
minha alegria é tão grande que não consigo
acreditar em mim mesmo. É quase bonito demais
para ser verdade.
– Pois é – disse o rei com um grande
suspiro, quase um estremecimento de prazer. – É
muito além do que eu poderia imaginar em toda a
minha vida.
– Ouça! – exclamou Precioso, voltando a
cabeça para um lado e empinando as orelhas.
– O que é isso? – perguntou o rei.
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– Cascos, senhor – respondeu Precioso. –
Um cavalo a galope. Deve ser um dos centauros.
Veja, lá está ele.
Um grande centauro de barbas douradas,
com suor de homem na testa e suor de cavalo nos
flancos, precipitou-se em direção ao rei, parou e
inclinou-se numa reverência. “Salve, Majestade!”,
exclamou, numa voz profunda como a de um
touro.
– Ei, vocês! – disse o rei, olhando por cima
dos ombros na direção da porta do alojamento de
caça.
– Uma taça de vinho aqui para o nobre
centauro. Bem-vindo, Passofirme. Recupere o
fôlego primeiro e depois transmita-nos a sua
mensagem.
Um pajem saiu da casa trazendo uma
grande taça de madeira curiosamente entalhada e
entregou-a ao centauro. Este ergueu a taça,
dizendo:
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– Bebo a Aslam e à verdade em primeiro
lugar, senhor, e depois à saúde de Vossa
Majestade!
Bebeu o vinho de um trago (a quantidade
era suficiente para seis homens fortes),
devolvendo ao pajem a taça vazia.
– E agora, Passofirme – disse o rei. – Será
que nos traz alguma notícia de Aslam?
O centauro fitou-o muito sério, franzindo
um pouco as sobrancelhas.
– Senhor – disse ele –, bem sabeis há
quanto tempo venho estudando as estrelas, pois
nós, os centauros, vivemos mais do que vós,
homens, e ainda mais do que vós, unicórnios.
Jamais, em toda a minha vida, vi coisas tão
terríveis escritas nos céus quanto as que vêm
aparecendo a cada noite, desde o início deste ano.
As estrelas nada dizem sobre a vinda de Aslam,
nem sobre paz ou alegria. Pelos meus
conhecimentos, sei bem que, nestes quinhentos
anos, jamais ocorreu tão desastrosa conjunção de
planetas. Já estava pensando em vir prevenir
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Vossa Majestade de que algum grande mal está
por abater-se sobre Nárnia. Mas na noite passada
ouvi rumores de que Aslam encontra-se em
Nárnia. Senhor, não acrediteis nessa história. Não
pode ser. As estrelas nunca mentem, mas os
homens e os animais, sim. Se Aslam estivesse
realmente vindo para Nárnia, os céus o teriam
predito. Se ele estivesse mesmo por vir, todas as
estrelas mais formosas estariam reunidas em sua
homenagem. É tudo mentira!
– Mentira! — explodiu o rei. — Que
criatura, em Nárnia ou no mundo inteiro, ousaria
inventar uma mentira dessas? – E, sem nem
pensar no que estava fazendo, levou a mão à
bainha da espada.
– Isso eu não sei, meu senhor – disse o
centauro. – Só sei que na terra existem
mentirosos; nenhum, porém, entre as estrelas.
– Eu me pergunto – interveio Precioso – se
Aslam não poderia vir de qualquer forma, mesmo
sem ter sido previsto pelas estrelas. Ele não é
escravo das estrelas, mas, sim, o criador delas.
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Não é o que se diz em todas as narrativas antigas,
que ele não é um leão domesticado?
– Isso mesmo, Precioso, isso mesmo! –
exclamou o rei. – São exatamente estas as
palavras: ele não é um leão domesticado. Isso
aparece em inúmeras histórias.
Passofirme ergueu a mão e ia fazendo uma
reverência para dizer ao rei algo muito grave,
quando de repente os três se voltaram, pois
acabavam de ouvir um som de lamentação que se
aproximava cada vez mais rápido. Do lado direito
de onde eles estavam, a mata era tão espessa que
ainda não dava para enxergar quem vinha vindo.
Logo, porém, distinguiram as palavras.
– Ai, ai, ai! – gemia a voz. – Ai de meus
irmãos e minhas irmãs! Ai das árvores sagradas!
As matas estão arrasadas. O machado voltou-se
contra nós. Estamos sendo derrubadas. Árvores
enormes estão caindo, caindo, caindo...
E, junto com o último “caindo”, apareceu o
dono da voz. Parecia uma mulher, mas era tão alta
que sua cabeça ficava no mesmo nível da do
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centauro. E ela própria parecia uma árvore. Para
quem nunca viu uma dríade é difícil explicar. Mas
quem já viu uma não se engana, pois há algo
diferente nela, na cor, na voz, no cabelo... O rei
Tirian logo percebeu que se tratava da ninfa de
uma faia.
– Misericórdia, senhor rei! – chorava ela. –
Venha em nosso auxílio! Proteja nosso povo!
Estão nos derrubando no Ermo do Lampião.
Quarenta árvores grandes dentre as minhas irmãs
já estão por terra.
– O quê? ! Derrubando o bosque do
Lampião? Assassinando as árvores falantes? ! –
exclamou o rei, dando um salto e sacando a
espada. – Como ousam? Quem se atreve a fazer
isso? Pela Juba do Leão, vou...
– Ah-h-h! – ofegou a dríade, estremecendo
como se sentisse dores. E de instante em instante
estremecia novamente, como se estivesse
recebendo golpes contínuos. Então, de súbito, caiu
de lado, tão de repente como se alguém lhe tivesse
arrancado de um golpe ambos os pés debaixo do
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corpo. Durante alguns segundos eles a viram ali,
estirada na grama, morta; depois ela se
desvaneceu. Sabiam o que havia acontecido: a
árvore dela, a quilômetros de distância, tinha sido
derrubada.
O rei ficou tão furioso que, por algum
tempo, nem conseguiu falar. Por fim disse:
– Venham, meus amigos. Vamos subir o rio
e descobrir quem são os vilões que estão fazendo
isso, o mais depressa possível. Não deixaremos
nem um deles vivo!
– Sim, senhor, com todo o prazer! –
concordou Precioso.
Mas Passofirme retrucou:
– Senhor, cuidado com a vossa justa ira.
Coisas muito estranhas andam acontecendo. Se
existirem rebeldes armados lá para as bandas do
Ermo do Lampião, nós três somos muito poucos
para enfrentá-los. Caso vos dignásseis a esperar
um pouco, enquanto...
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– Não vou esperar nem um décimo de
segundo! – interrompeu o rei. – Mas enquanto eu
e Precioso seguimos, galope o mais rápido que
puder até Cair Paravel. Tome aqui o meu anel
como garantia. Arranje-me um batalhão de
homens armados, todos bem montados, e também
um batalhão de cães falantes, dez anões (todos
eles excelentes arqueiros!), um leopardo ou coisa
parecida e ainda o gigante Pé-de-Pedra. Leve
todos eles ao nosso encontro o mais depressa
possível.
– Com todo o prazer, senhor – disse
Passofirme, voltando-se de uma vez para o
Oriente. E disparou a galope na direção do vale.
O rei afastou-se a passos largos, ora falando
sozinho, ora cerrando os punhos. Precioso seguia
ao seu lado, sem dizer nada; entre os dois não se
ouvia som algum, a não ser o leve tilintar de uma
rica corrente de ouro que o unicórnio trazia ao
pescoço e o barulho de dois pés e quatro patas.
Logo alcançaram o rio e começaram a subir
por uma estrada coberta de grama. Agora tinham a
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água à sua esquerda e a floresta à direita. Pouco
depois chegaram a um lugar onde o terreno era
ainda mais irregular e uma mata espessa descia
até a beira da água. A estrada – aliás, o que
restava dela – seguia agora pela margem sul e eles
tiveram de vadear o rio para alcançá-la. A água
dava quase nos ombros de Tirian. Precioso, que
por ter quatro pernas tinha muito mais
estabilidade, colocou-se à sua direita a fim de
quebrar a força da corrente. Com seus braços
fortes Tirian agarrou-se ao potente pescoço do
unicórnio e assim os dois chegaram a salvo do
outro lado. O rei ainda estava com tanta raiva que
mal se deu conta do frio da água. Mesmo assim,
logo que chegaram à outra margem, ele enxugou
cuidadosamente a espada na manga da capa, que
era a única parte seca em todo o seu corpo.
Agora avançavam para o Oeste, tendo à
direita o rio e, bem à sua frente, o Ermo do
Lampião. Ainda não haviam caminhado um
quilômetro quando ambos pararam, falando ao
mesmo tempo:
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– O que é isso? – perguntou o rei, enquanto
Precioso exclamava:
– Olhe!
– É uma balsa – disse Tirian.
E era mesmo. Uma meia dúzia de troncos
de árvores, todos recém-cortados e cujos galhos
acabavam de ser podados, tinham sido amarrados
um ao outro formando uma balsa e vinham
deslizando velozmente rio abaixo. Na frente ia um
rato-d’água, dirigindo-a com um varapau.
– Ei, rato-d’água! O que está fazendo? –
gritou o rei.
– Levando estes troncos rio abaixo para
vender aos calormanos, senhor – respondeu o rato,
fazendo uma continência e tocando na orelha
como quem toca no chapéu.
– Calormanos? ! — vociferou Tirian. – O
que você quer dizer com isso? Quem deu ordem
para derrubar essas árvores?
O rio corre tão rapidamente nessa época do
ano que a balsa já tinha passado pelo rei e por
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Precioso. Mas o rato-d’água olhou para trás e
gritou por cima dos ombros:
– Ordens do Leão, senhor. Do próprio
Aslam! –Ele ainda disse mais alguma coisa, mas
eles não conseguiram entender.
O rei e o unicórnio se entreolharam. Nunca,
em nenhuma batalha, pareceram tão assustados
quanto agora.
– Aslam – disse finalmente o rei, numa voz
quase inaudível. – Aslam. Será verdade? Será
possível que Ele esteja derrubando as árvores
sagradas e matando as dríades?
– A não ser que todas as dríades tenham
feito algo terrivelmente errado... – murmurou
Precioso.
– Mas vendê-las para os calormanos? ! –
pasmou o rei. – Será possível?
– Não sei... – disse Precioso, desolado. –
Ele não é um leão domesticado...
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– Bem – suspirou o rei, depois de alguns
instantes. –Vamos em frente e vejamos que
aventura nos espera.
– É a única coisa que nos resta fazer, senhor
–disse o unicórnio.
Naquele momento, nem ele nem o rei se
deram conta da loucura que estavam fazendo,
indo avante só os dois. Sua precipitação, no
entanto, acabaria por trazer muitos males.
De repente, o rei inclinou-se, encostando-se
no pescoço do amigo, e disse, abanando a cabeça:
– Precioso, o que será de nós? Pensamentos
horríveis começam a me perturbar. Ah, se
tivéssemos morrido antes de hoje! Teria sido
melhor para nós.
– Sim – disse Precioso. – Acho que
vivemos demais. Não poderia ter nos acontecido
coisa pior.
Ficaram ali parados durante uns dois
minutos e depois seguiram em frente. De longe
podiam ouvir o barulho dos machados devastando
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a floresta, embora ainda não conseguissem ver
nada, pois o terreno elevava-se logo à frente deles.
Quando alcançaram o topo, avistaram o Ermo do
Lampião; o rosto do rei ficou branco como cera.
Bem no meio daquela antiga floresta – a
mesma floresta onde, muitos anos atrás, cresciam
árvores de ouro e de prata e onde certa vez uma
criança do nosso mundo plantara a Arvore da
Proteção — já fora aberta uma vasta clareira. Era
uma faixa horrorosa, parecendo uma ferida aberta
na terra, cheia de sulcos barrentos por onde as
árvores derrubadas eram arrastadas para o rio.
Havia uma porção de gente trabalhando em meio
ao estalar de chicotes; cavalos resfolegavam e
bufavam arrastando as toras de madeira. A
primeira coisa que o rei e o unicórnio notaram foi
que pelo menos metade dos trabalhadores eram
homens e não animais falantes. Depois
perceberam que aqueles homens não eram os
louros narnianos, mas, sim, barbudos e morenos
homens da Calormânia, o país grande e cruel que
fica para lá da Arquelândia, ao sul do deserto. Não
existia, é claro, razão alguma para não haver
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calormanos em Nárnia, fossem eles mercadores
ou embaixadores, pois naqueles dias havia paz
entre Nárnia e Calormânia. O que Tirian não
conseguia entender era por que havia tantos deles
ali, nem por que razão estavam abatendo as
florestas narnianas. Apertou ainda mais o punho
da espada, enrolando a capa sobre o braço
esquerdo, e em questão de segundos já se
encontravam no meio daqueles homens.
Dois calormanos montavam um cavalo ao
qual haviam atrelado um tronco. O rei os alcançou
justo no momento em que o tronco atolara numa
poça de lama.
– Vamos, filho de uma lesma! Puxa, seu
porco preguiçoso! – gritaram os calormanos,
estalando os chicotes. O cavalo já se esforçara ao
máximo; seus olhos estavam vermelhos e o corpo
coberto de espuma.
– Trabalhe, sua besta molenga! – berrou um
dos calormanos, açoitando selvagemente o cavalo
com o chicote.
Aí então uma coisa terrível aconteceu.
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Até aquele momento Tirian imaginara que
os calormanos estivessem usando seus próprios
cavalos: animais mudos e irracionais como os
cavalos do nosso mundo. E, embora detestasse ver
qualquer cavalo, mesmo mudo, sendo maltratado,
naquele momento estava mais preocupado com o
assassinato das árvores. Nunca lhe passara pela
cabeça que alguém teria a ousadia de atrelar um
dos livres cavalos falantes de Nárnia, e muito
menos de chicoteá-lo. O cavalo, porém, ao ser
atingido por aquele golpe selvagem, empinou-se e
soltou um grito estridente:
– Seu tirano idiota! Não vê que estou me
esforçando ao máximo? !
Ao verem que o cavalo era um dos seus
próprios narnianos, tanto Tirian quanto Precioso
foram tomados de tamanha fúria que perderam
totalmente a noção do que estavam fazendo. A
espada do rei subiu e o corno do unicórnio desceu.
Os dois avançaram de uma vez. Em questão de
segundos os dois calormanos jaziam mortos no
chão, um decepado pela espada de Tirian e o
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outro com o coração traspassado pelo corno de
Precioso.
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3
SUA MAJESTADE, O
MACACO
– Mestre cavalo! Mestre cavalo! —
exclamou Tirian, cortando-lhe apressadamente os
arreios. – Como é que esses estranhos o
escravizaram? Houve porventura alguma batalha
em Nárnia? Alguém a conquistou?
– Não, senhor – respondeu o cavalo
ofegante. –Aslam está aqui. É tudo por ordem
dele. Foi ele quem mandou...
– Cuidado, senhor rei! – gritou Precioso. –
Tirian levantou os olhos e viu que, de todas as
direções, começaram a aparecer calormanos e,
junto com eles, alguns animais falantes. Como os
dois homens tinham morrido sem dar um único
grito, algum tempo se passou antes que os outros
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percebessem o que havia acontecido. Mas agora já
sabiam. A maioria deles já vinha com a cimitarra
desembainhada.
– Rápido! Em minhas costas! – gritou
Precioso.
O rei montou de um salto o velho amigo,
que se virou e partiu a galope. Assim que se viram
fora das vistas dos inimigos, mudaram de direção
umas duas ou três vezes. Depois de atravessarem
um riacho, Precioso gritou, sem diminuir a
velocidade:
– E agora, senhor, para onde vamos? Para
Cair Paravel?
– Agüente firme aí, amigo, que vou descer
–disse Tirian, escorregando do lombo do
unicórnio e colocando-se frente a frente com ele.
– Precioso – disse o rei –, o que fizemos foi
terrível!
– Fomos cruelmente provocados, senhor –
replicou o unicórnio.
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– Mas atacá-los desprevenidos... Sem
desafiá-los... E, ainda por cima, desarmados...
Que vergonha! Somos dois assassinos, Precioso.
Estou desonrado para sempre.
Precioso baixou a cabeça. Ele também
estava envergonhado.
– E o cavalo disse que eram ordens de
Aslam – continuou o rei. – E o rato disse a mesma
coisa. Todo mundo diz que Aslam está por aqui. E
se for verdade?
– Mas, senhor, como é que Aslam iria dar
ordens tão terríveis?
– Ele não é um leão domesticado – retrucou
Tirian. – Como poderíamos saber o que ele
pretende? Logo nós, uns assassinos. Precioso, vou
voltar. Vou entregar minha espada, render-me
àqueles calormanos e pedir-lhes que me levem à
presença de Aslam. Que Ele mesmo me faça
justiça.
– Mas assim estará caminhando para a
morte!
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– E você acha que eu me importo se Aslam
me condenar à morte? Isso ainda seria pouco,
muito pouco. Melhor morrer do que viver com
esse terrível temor de que Aslam voltou e não é
nada parecido com o Aslam em quem sempre
acreditamos e por quem tanto esperamos. É como
se de repente a gente acordasse e visse o sol
nascer escuro...
– Eu sei – disse Precioso. – Ou como se a
gente bebesse um copo d’água e esta fosse seca.
Tem razão, senhor. É o fim de tudo. Vamos voltar
e entregar-nos.
– Não é preciso irmos os dois, Precioso.
– Pelo amor que sempre nos uniu, Tirian,
deixe-me ir com você agora – implorou o
unicórnio. – Se você morrer, e se Aslam não for
mesmo Aslam, de que me adianta continuar
vivendo?
Os dois retomaram o caminho de volta,
chorando amargamente. Quando chegaram ao
lugar onde os homens estavam trabalhando,
ouviu-se uma gritaria e os calormanos avançaram
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para cima deles de armas na mão. O rei, porém,
ergueu sua espada com o punho voltado contra
eles, dizendo:
– Eu, que era o rei de Nárnia e sou agora
um cavaleiro desonrado, rendo-me à justiça de
Aslam. Levem-me à presença dele.
– Eu também me rendo – disse Precioso.
Viram-se, então, cercados por uma enorme
multidão de homens escuros, cheirando a alho e
cebola, os olhos brancos faiscando terrivelmente
nos rostos morenos. Passaram uma corda em volta
do pescoço de Precioso. Tomaram a espada do rei
e amarraram-lhe as mãos às costas. Um dos
calormanos, que usava um elmo em lugar de
turbante e que parecia estar no comando, arrancou
o diadema de ouro da cabeça de Tirian, fazendo-o
desaparecer sutilmente por entre suas roupas.
Depois os prisioneiros foram conduzidos colina
acima, até chegarem a uma clareira. E eis o que os
dois viram.
No centro da clareira, que era também o
ponto mais alto da colina, havia uma pequena
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cabana coberta de palha. A porta estava fechada.
Na frente desta, sentado na grama, encontrava-se
um macaco. Tirian e Precioso, que esperavam ver
Aslam e nunca tinham ouvido coisa alguma a
respeito de tal macaco, ficaram completamente
desnorteados ao verem aquela cena.
Nem é preciso dizer que o macaco era o
próprio Manhoso. Só que agora ele parecia dez
vezes mais feio do que quando vivia no Lago do
Caldeirão, pois estava trajado a rigor. Vestia uma
jaqueta escarlate que não lhe assentava muito
bem, pois fora feita para um anão. Nas patas
traseiras ele enfiara umas sandálias cheias de jóias
que o deixavam ainda mais ridículo, porque, como
todo mundo sabe, as patas traseiras de um macaco
mais parecem mãos. Na cabeça colocara algo
parecido com uma coroa de papel. Havia ao seu
lado um montão de nozes, e ele ficava o tempo
todo quebrando-as com os dentes e cuspindo as
cascas no chão. E toda hora levantava a jaqueta
escarlate para se cocar. De pé, voltados para ele,
havia uma porção de animais falantes, e
praticamente cada rosto naquela multidão trazia
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uma expressão aturdida e preocupada. Assim que
viram quem eram os prisioneiros, começaram a
gemer e a soluçar.
– O, grande Manhoso, porta-voz de Aslam
–disse o chefe calormano. – Trazemos
prisioneiros. Graças à nossa coragem e habilidade
e com a permissão do grande deus Tash,
capturamos vivos estes dois perigosos assassinos.
– Dêem-me a espada daquele homem –
ordenou o macaco.
Eles pegaram a espada do rei e a
entregaram, com tiracolo e tudo, para o macaco,
que a pendurou em seu próprio pescoço, o que o
fez parecer ainda mais ridículo.
– Sobre esse dois conversaremos mais tarde
– resmungou o macaco, cuspindo uma casca de
noz na direção dos prisioneiros. – Tenho outros
assuntos a tratar primeiro. Esses aí podem esperar.
Agora ouçam-me todos vocês. A primeira coisa
que quero dizer é sobre as nozes. Onde está o
esquilo-chefe?
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– Aqui, senhor – disse um esquilo
vermelho, adiantando-se nervosamente e fazendo
uma ligeira reverência.
– Ah! Aí está você. Pois bem – falou o
macaco com um olhar de desdém –, quero... isto
é, Aslam deseja... mais nozes. Essas que você me
trouxe não dão nem para o cheiro. Você tem que
trazer mais, ouviu bem? Duas vezes mais! E elas
têm de estar aqui amanhã, antes do pôr-do-sol. E
cuide para que não haja entre elas uma única noz
pequena ou estragada.
Ouviu-se entre os esquilos um murmúrio de
desânimo, e o esquilo-chefe muniu-se de toda a
coragem para dizer:
– Por favor, será que o próprio Aslam não
poderia conversar conosco sobre isso? Se ao
menos nos fosse permitido vê-lo...
– Bem, isso não vai dar – respondeu o
macaco. – Mas pode ser que ele, num ato de muita
generosidade, resolva sair um pouquinho hoje à
noite, embora isso seja muito mais do que a
maioria de vocês merece. Aí todos poderão dar
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uma espiadinha nele. Mas nada de aglomerações
ao redor dele ou de incomodá-lo com
perguntinhas tolas. Tudo o que quiserem dizer-lhe
terá de ser por meu intermédio – isso se eu achar
que é algo que valha a pena. Enquanto isso,
esquilos, é melhor vocês irem se virando para
arranjar as nozes. E dêem um jeito de trazê-las
aqui até amanhã à noite, senão vão se arrepender!
Os pobres esquilos saíram todos em
disparada, como que perseguidos por um cão de
caça. Aquela nova ordem era o fim para todos
eles: as nozes que haviam armazenado
cuidadosamente para o inverno já tinham sido
quase todas comidas; e do pouco que ainda lhes
restava já haviam dado ao macaco muito mais do
que podiam dispensar.
Subitamente, do outro lado da multidão,
ouviu-se uma voz muito profunda. Era um grande
javali peludo e de presas enormes.
– Mas por que nós não podemos ver Aslam
e falar com ele? – perguntou o javali. – Quando
ele aparecia em Nárnia, antigamente, qualquer
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pessoa podia vê-lo face a face e conversar com
ele.
– Isso é pura conversa! – disse o macaco. –
E mesmo que fosse verdade, os tempos mudaram.
Aslam disse que tem sido generoso demais com
vocês, mas que agora não vai mais ser tão mole.
Desta vez vai colocá-los todos nos eixos. Vai
ensiná-los a não pensar mais que ele é um leão
domesticado e bonzinho.
Ouviu-se entre os animais um murmúrio
surdo, entremeado de suspiros, e a seguir houve
um silêncio de morte, ainda mais terrível.
– E tem mais uma coisa que acho bom
vocês saberem – continuou o macaco. – Ouvi
dizer que andam falando por aí que sou um
macaco. Pois bem, não sou, não. Sou um homem.
Se pareço com macaco é só porque já vivi demais:
tenho centenas e centenas de anos nas costas. E
justamente por ser tão velho é que sou tão sábio. E
é porque sou muito sábio que sou o único com
quem Aslam sempre vai falar. Ele não pode dar-se
ao incômodo de andar por aí falando com um
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monte de animais bobocas. Ele me dirá o que
vocês têm de fazer e eu o transmitirei a todos. E
acho bom escutarem meu conselho e agirem duas
vezes mais rápido, pois Aslam não está para
brincadeira.
O silêncio era mortal, a não ser pelo
barulho de um pequenino texugo que chorava e da
mãe tentando acalmá-lo.
– E agora tem mais uma coisa – continuou
o macaco, enfiando uma noz fresquinha na boca.
– Alguns cavalos andam dizendo por aí: “Vamos
nos apressar e acabar de carregar essa madeira o
mais rápido possível, e assim ficaremos livres de
novo.” Pois bem, é melhor tirarem essa idéia da
cabeça de uma vez. E não só os cavalos. Daqui
para a frente, todo mundo que tem condições de
trabalhar vai ter o que fazer. Aslam já acertou
tudo com o rei da Calormânia, o Tisroc, como é
chamado pelos nossos amigos calormanos. Todos
vocês – cavalos, touros e burros – serão enviados
à Calormânia para trabalhar pelo resto da vida...
puxando carroças e transportando coisas, igual aos
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outros animais de carga do mundo inteiro. E
quanto a vocês, toupeiras, coelhos e os outros
bichos que cavam buracos, irão todos juntos com
os anões para trabalhar nas minas do Tisroc. E
também...
– Não! Não! Pare! – interromperam os
animais. – Não pode ser verdade! Aslam nunca
nos venderia como escravos para o rei da
Calormânia!
– Esperem aí! – rosnou asperamente o
macaco. – Para que essa barulheira toda? Quem
falou em escravidão? Vocês não vão ser escravos
coisa nenhuma. Serão pagos, aliás, muito bem
pagos. Quer dizer, o salário de vocês irá para o
tesouro de Aslam e ele utilizará tudo para o bem
de todos.
Então olhou de soslaio e deu uma piscadela
para o chefe calormano, que fez uma reverência e
replicou, à pomposa maneira dos calormanos:
– Ó, sapientíssimo porta-voz de Aslam! O
Tisroc (que ele viva para sempre!) está
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perfeitamente de acordo com Sua Excelência no
que diz respeito a esse sábio plano.
– Viram só? – disse o macaco. – Está tudo
acertado. E é tudo para o bem de vocês. Com todo
esse dinheiro que irão ganhar poderemos fazer de
Nárnia um país digno de se viver. Haverá laranjas
e bananas à vontade... Haverá estradas, cidades
grandes, escolas, escritórios, como também
autoridades e armas, e selas, e cadeias, canis,
prisões... Tudo, tudo!
– Mas não queremos nada disso! – bradou
um velho urso. – Queremos ser livres. E queremos
que o próprio Aslam fale com a gente.
– Não comecem a discutir agora, pois não
vou tolerar isso – esbravejou o macaco. – Sou um
homem e você não passa de um urso velho, gordo
e bobo. E o que é que você entende de liberdade?
Pensa que liberdade significa fazer o que a gente
bem entende? Pois está muito enganado. Isso não
é a verdadeira liberdade. Liberdade de verdade
significa fazer aquilo que eu lhes digo.
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– Rrrrrr! — grunhiu o urso, cocando a
cabeça. Para ele essas coisas eram muito difíceis
de entender.
– Por favor! Por favor! – exclamou uma
ovelhinha felpuda, tão novinha que todos se
admiraram de que ela tivesse coragem de dizer
alguma coisa.
– E agora, o que se passa? – estranhou o
macaco. – Seja rápida!
– Por favor – disse a ovelha. – Eu não
compreendo. O que temos nós a ver com os
calormanos? Nós pertencemos a Aslam; eles
pertencem a Tash. Têm um deus chamado Tash.
Dizem que ele tem quatro braços e cabeça de
abutre, e que humanos são mortos em seu altar.
Não acredito que esse tal de Tash exista, mas, se
existe, como é que Aslam pode ser amigo dele?
Todos os animais se voltaram e todos os
pares de olhos chamejaram na direção do macaco.
Todos sabiam que aquela era a melhor pergunta
que alguém ali já fizera.
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O macaco deu um salto e cuspiu na ovelha.
– Sua fedelha! Bebezinho chorão! Por que
não vai para casa mamar? ! O que é que você
entende dessas coisas? Agora, vocês todos,
escutem aqui. Tash é apenas um outro nome de
Aslam. Toda aquela velha história de que nós
estamos certos e os calormanos errados é pura
bobagem. Agora já sabemos melhor das coisas.
Embora os calormanos falem uma outra
linguagem, querem dizer a mesma coisa. Tash e
Aslam, são apenas dois nomes diferentes, vocês
bem sabem de quem... Por isso é que nunca pode
haver qualquer discórdia entre eles. Metam isso
na cabeça de uma vez por todas, seus brutos
idiotas: Tash é Aslam, e Aslam é Tash.
Quem tem um cachorrinho sabe muito bem
como ele pode ficar com a carinha triste de vez
em quando.
Agora pensem nisso e depois imaginem
como ficou a cara de cada um dos animais
falantes, naquela hora. Imaginem todos aqueles
pássaros, ursos, texugos, coelhos, toupeiras e
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ratos, tão leais e humildes, agora desconcertados e
mais tristes do que nunca. Todos os rabinhos
estavam caídos e todas as orelhas, murchas. Só de
olhar cortava o coração. De todos eles, apenas um
parecia não estar triste. Era um gato ruivo – um
bichano enorme, no vigor dos anos – que se
postara todo empinado, com a cauda enrolada em
volta dos pés, entre os animais que estavam na
fileira da frente. Ficara o tempo todo ali,
encarando firmemente o macaco e o chefe
calormano, sem piscar uma única vez.
– Queira me desculpar – disse o gato com
polidez –, mas isto realmente me interessa. Será
que o seu amigo calormano também pensa a
mesma coisa?
– Certamente – disse o calormano. – O
iluminado macaco... quero dizer, homem... está
absolutamente certo. Aslam significa nada mais,
nada menos que Tash.
– E, principalmente, Aslam significa nada
mais que Tash, não é? – insinuou o gato.
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– Mais, não... De forma alguma! –
protestou o calormano, encarando firmemente o
gato.
– Está satisfeito, Ruivo? – perguntou o
macaco.
– Oh, certamente – respondeu Ruivo com
frieza. – Muito obrigado. Eu só queria que as
coisas ficassem bem claras. Acho que estou
começando a entender.
Até aquele momento, nem Tirian nem
Precioso haviam dito coisa alguma. Estavam
esperando que o macaco lhes desse permissão
para falar, pois achavam que não era polido
interromper uma conversa. Agora, porém,
olhando ao redor e vendo as feições desesperadas
dos narnianos, e ao perceber que todos iam acabar
acreditando que Aslam e Tash eram uma e a
mesma pessoa, o rei não pôde mais se conter.
– Macaco! – gritou bem alto. – Você está
mentindo! Mentindo terrivelmente. Mentindo
como um calormano. Mentindo como um macaco.
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Ele pretendia ir adiante e perguntar como o
terrível deus Tash, que se alimentava do sangue
do seu povo, podia ser a mesma pessoa que o bom
Leão, que dera o próprio sangue para salvar
Nárnia inteira. Se lhe tivesse sido permitido falar,
o domínio do macaco teria acabado naquele
mesmo dia, pois os animais teriam percebido a
verdade. Antes, porém, que pudesse dizer uma
palavra mais, dois calormanos taparam-lhe a boca
com toda a força, e um terceiro veio por trás e
deu-lhe um chute nas pernas, derrubando-o
bruscamente. Ao vê-lo cair, o macaco começou a
guinchar, furioso e aterrorizado.
– Tirem ele daqui! Levem-no embora!
Carreguem-no para onde ninguém possa ouvi-lo e
nem ele a nós! Amarrem-no a uma árvore! Eu
vou... isto é, Aslam vai... fazer-lhe justiça mais
tarde.
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4
O QUE ACONTECEU
NAQUELA NOITE
O rei ficou tão tonto com as pancadas que
recebeu, que só percebeu o que estava
acontecendo quando os calormanos lhe
desamarraram os pulsos e abaixaram-lhe os
braços, esticando-os firmemente de cada lado do
corpo. Depois colocaram-no de costas contra o
tronco de uma árvore e passaram-lhe cordas em
volta dos tornozelos, dos joelhos, da cintura e do
peito. E foram embora.
O que mais o incomodava naquele
momento (pois geralmente as coisinhas pequenas
são as mais difíceis de suportar), era que seu lábio
estava sangrando e ele não conseguia limpar o
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filete de sangue que escorria, fazendo-lhe
cócegas.
De onde ele estava ainda dava para ver o
macaco sentado na frente do pequeno estábulo, lá
no topo da colina. Podia ouvi-lo falando ainda e,
de vez em quando, uma ou outra resposta da
multidão, mas não conseguia discernir o que
diziam.
– Só queria saber o que fizeram com
Precioso – pensou o rei.
De repente, a multidão dispersou e os
animais começaram a se mover em várias
direções. Alguns deles passaram pertinho de
Tirian, olhando para ele como se estivessem
assustados e, ao mesmo tempo, penalizados por
vê-lo amarrado, mas ninguém disse nada. Logo
todos tinham ido embora e a floresta ficou em
silêncio.
Muitas horas se passaram, e Tirian
começou a sentir sede e depois fome. Quando
chegou o final da tarde e a noite se aproximou,
começou a sentir frio também. Suas costas doíam
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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muito. Finalmente, o Sol se pôs e o crepúsculo
desceu.
Já estava quase escuro quando Tirian ouviu
um leve tamborilar de pés miúdos e viu umas
criaturinhas se aproximando. Os três da esquerda
eram ratos e no meio vinha um coelho; à direita
estavam duas toupeiras. Estas traziam às costas
uns sacos pequenos, o que lhes dava uma
aparência curiosa na escuridão (tanto que, no
primeiro instante, ele ficou imaginando que
bichos seriam aqueles). Então, num dado
momento, todos se levantaram sobre as patas
traseiras e, pousando as patas dianteiras nos seus
joelhos, começaram a dar-lhe beijinhos de animal.
(Podiam alcançar-lhe os joelhos porque os
animaizinhos falantes de Nárnia são maiores do
que os animais mudos do nosso mundo.)
– Senhor rei! Querido senhor rei! –
exclamaram. – Sentimos muito pelo senhor. Não
ousamos desamarrá-lo porque Aslam poderia ficar
zangado conosco. Mas lhe trouxemos algo para
comer.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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Em questão de segundos o primeiro rato já
estava lá em cima, empoleirado na corda que
atava o peito de Tirian e franzindo o focinho
áspero bem na frente do rosto do rei. Em seguida
subiu o segundo rato, dependurando-se bem
debaixo do primeiro. Então os outros animais se
ergueram no chão e começaram a passar as coisas
para cima.
– Beba, senhor, e assim terá condições de
comer – disse o rato de cima. Então Tirian viu que
este segurava bem à frente de seus lábios uma
pequenina taça de madeira. Era uma tacinha do
tamanho de um ovo; portanto, mal ele conseguira
provar o vinho, já a havia esvaziado. Mas o rato
passou-a para baixo e os outros a encheram
novamente, passando-a de mão em mão até
chegar lá em cima de novo, onde Tirian a
esvaziou pela segunda vez. E assim foi, até que
ele havia bebido o suficiente – e desse modo foi
muito melhor, pois beber em doses pequenas mata
muito mais a sede do que tomar um longo trago.
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– Agora é queijo, senhor – disse o rato. –
Mas não muito, pois não queremos que fique com
sede.
Depois do queijo deram-lhe bolinhos de
aveia com manteiga fresquinha e, então, um
pouco mais de vinho.
– Agora me passem a água para eu lavar o
rosto do rei, que está sujo de sangue – disse o
primeiro rato.
Tirian sentiu no rosto uma espécie de
esponja muito pequena, que lhe trouxe uma
sensação muito agradável.
– Meus amiguinhos – disse Tirian –, como
poderei agradecer-lhes por tudo isso?
– Não precisa, não precisa – responderam
as vozinhas. – O que mais quer que façamos? Não
queremos outro rei. Somos o seu povo. Se fossem
apenas os calormanos e aquele macaco que
estivessem contra o senhor, teríamos lutado até
virar picadinho para não deixar que o amarrassem
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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desse jeito. Teríamos mesmo. Mas não podemos ir
contra Aslam...
– Vocês acham que é mesmo Aslam? –
perguntou o rei.
– É, sim! É, sim! – disse o coelho. – Ele
saiu do estábulo ontem à noite. Todos nós o
vimos.
– E como era ele? – quis saber Tirian.
– Como um Leão grande e terrível, pode
crer – respondeu um dos ratos.
– E vocês acham que é realmente Aslam
quem está matando as ninfas da floresta e fazendo
de vocês escravos do rei da Calormânia?
– Ah! Isso é ruim, não é? – disse o segundo
rato.
– Preferia ter morrido antes disso tudo
começar. Mas não há dúvida alguma. Todo
mundo diz que são ordens de Aslam. E nós
mesmos o vimos. Puxa! Queríamos tanto que
Aslam voltasse para Nárnia! Não imaginávamos
que ele fosse assim!
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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– Parece que, desta vez, ele voltou muito
bravo – disse o primeiro rato. – Acho que, sem
saber, todos nós andamos fazendo algo realmente
terrível. Ele só pode estar nos castigando por
alguma coisa. Mas acho que ele pelo menos
poderia nos dizer do que se trata!
– Suponho que o que estamos fazendo
agora deve estar errado – disse o coelho.
– E daí? – replicou uma das toupeiras. –
Para mim, tanto faz. Se for preciso, faço outra
vez.
Nesse momento alguém disse: “Cuidado,
pessoal!”; e outro acrescentou: “Vamos, rápido!”
Então todos falaram: “Sentimos muito, querido
rei, mas temos de ir agora. Se nos pegam aqui...”
– Deixem-me de uma vez, amigos – disse
Tirian.
– Não quero, por nada neste mundo,
colocá-los em dificuldades.
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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– Boa noite! Boa noite! – disseram os
animais, roçando cada um o focinho em seus
joelhos. – Voltaremos, se pudermos.
Depois que todos se foram, a floresta
pareceu muito mais escura, fria e solitária do que
antes. As estrelas surgiram no céu e o tempo foi
passando, lenta e vagarosamente, enquanto o
último rei de Nárnia permanecia ali, o corpo todo
dolorido e rigidamente imprensado contra a
árvore à qual o haviam amarrado.
Finalmente, porém, alguma coisa
aconteceu. Lá longe surgiu uma luzinha
avermelhada, que desapareceu por um instante
para logo voltar, maior e mais forte. Então ele
avistou vultos se movimentando do lado de cá da
luz, carregando uns embrulhos que atiravam ao
chão. Por fim conseguiu ver do que se tratava: era
uma fogueira recém-acesa, na qual atiravam
feixes de lenha. De repente, a labareda subiu e
Tirian viu que a fogueira ficava bem no alto da
colina. Agora podia enxergar perfeitamente o
estábulo por detrás da fogueira, todo iluminado
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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pelo clarão, e, entre este e o lugar onde se
encontrava, uma grande multidão de homens e
animais. O pequeno vulto agachado ao lado do
fogo devia ser o macaco. Estava dizendo alguma
coisa para a multidão, mas Tirian não conseguia
ouvir. Depois o macaco foi até a porta da cabana e
inclinou-se três vezes até o chão; em seguida
levantou-se e abriu a porta. Então alguma coisa
saiu lá de dentro – algo que se movia rigidamente
sobre quatro pernas – e postou-se de frente para a
multidão.
Ergueu-se no ar um grande murmúrio (ou
seriam bramidos?), tão alto que Tirian pôde até
ouvir algumas palavras:
– Aslam! Aslam! Aslam! – suplicavam os
animais. – Fale conosco! Conforte-nos! Não fique
mais zangado conosco!
De onde Tirian estava não dava para ver
muito bem que bicho era aquele; via apenas que
era amarelo e peludo. Ele nunca tinha encontrado
o Grande Leão. Para dizer a verdade, nunca
sequer vira um leão comum. Por isso não tinha
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certeza se aquilo era mesmo Aslam. Jamais
esperara que Aslam pudesse se parecer com
aquela coisa tesa que estava ali, parada, sem dizer
uma palavra. Mas como é que alguém poderia
saber ao certo? Durante alguns instantes,
pensamentos horríveis passaram-lhe pela mente.
Lembrou-se então do absurdo que ouvira sobre
Tash e Aslam serem um só, e concluiu que tudo
aquilo só podia ser trapaça.
O macaco chegou bem pertinho da coisa
amarela, encostando sua cabeça na dela como que
tentando escutar algo que lhe fosse cochichado ao
ouvido. Então virou-se e falou para a multidão,
que começou a lamentar-se novamente. Depois a
coisa amarela voltou-se desajeitadamente e saiu
andando (talvez fosse melhor dizer gingando)
para o estábulo de novo, e o macaco fechou a
porta às suas costas.
Depois disso parece que alguém apagou a
fogueira, pois a luz se extinguiu subitamente.
Tirian ficou mais uma vez sozinho com o frio e a
escuridão. À sua mente vieram, então, os outros
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reis que tinham vivido e morrido em Nárnia nos
tempos antigos. Nunca nenhum deles, pensou
Tirian, fora tão infeliz. Lembrou-se do rei Rilian,
bisavô de seu bisavô, que, ainda bem jovem, fora
raptado por uma feiticeira que o conservara
escondido, durante anos e anos, nas escuras
cavernas dos subterrâneos da terra dos gigantes do
norte. Mas no final tudo acabara bem, pois duas
misteriosas crianças apareceram de repente,
vindas das terras de Além-Mundo, e o libertaram;
e depois que ele regressou a Nárnia teve um longo
e próspero reinado. “Comigo não acontece nada
disso”, disse Tirian consigo mesmo. Então ele foi
ainda mais longe e pensou no pai de Rilian,
Caspian, o Navegador, cujo perverso tio, o rei
Miraz, tentara assassiná-lo, e em como Caspian
conseguira escapar para as matas e viver entre os
anões. Mas essa história também acabara bem,
pois Caspian igualmente fora ajudado por crianças
– só que dessa vez eram quatro, vindas de algum
lugar para lá do fim do mundo e que, numa grande
batalha, lutaram até conseguir recolocá-lo no
trono de seu pai. “Mas isso foi há muito tempo”,
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pensou Tirian. “Hoje em dia essas coisas não
acontecem mais.” E aí ele lembrou (pois, quando
menino, sempre fora muito bom em História) que
essas mesmas crianças que ajudaram Caspian já
tinham estado em Nárnia, anteriormente, havia
milhares e milhares de anos, e que fora naquela
época que tinham realizado os feitos mais
notáveis. Haviam derrotado a temível Feiticeira
Branca, pondo fim ao Inverno dos Cem Anos.
Depois disso reinaram, os quatro de uma vez, em
Cair Paravel, até que não eram mais crianças e,
sim, poderosos reis e adoráveis rainhas; e seu
reinado fora o período áureo de Nárnia. E,
naquela história, Aslam aparecera uma porção de
vezes. Aliás, nas outras histórias ele também
aparecera muitas vezes, lembrava agora Tirian.
“Aslam... e crianças de um outro mundo”, pensou.
“Sempre que as coisas estavam na pior, eles
apareciam. Ah, se ao menos pudessem vir agora!”
Então exclamou em voz bem alta: “Aslam!
Aslam! Venha ajudar-nos agora!” Mas a
escuridão, o frio e a quietude continuaram do
mesmo jeito.
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– Que eu seja morto! – gritou o rei. – Nada
peço para mim. Mas, por favor, venha salvar
Nárnia!
A noite e a floresta continuaram do mesmo
jeito. Dentro de Tirian, porém, alguma coisa
começou a mudar. Sem saber por que, viu nascer
dentro de si uma pontinha de esperança e sentiuse
um pouco mais forte. “Oh, Aslam! Aslam!”,
suspirou. “Se não vier pessoalmente, mande-me
pelo menos os ajudantes de Além-Mundo!” E
então, quase sem se dar conta do que estava
fazendo, subitamente gritou bem alto:
– Crianças! Crianças! Amigos de Nárnia!
Venham, rápido! Eu vos chamo através dos
mundos! Eu, Tirian, rei de Nárnia, senhor de Cair
Paravel e imperador das Ilhas Solitárias!
E no mesmo instante mergulhou em um
sonho (se é que aquilo era um sonho) mais vivido
do que qualquer outro que já tivera em toda a sua
vida.
Pareceu-lhe estar em pé numa sala
iluminada onde havia sete pessoas sentadas em
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volta de uma mesa. Pelo jeito, tinham acabado de
comer naquele instante. Duas delas eram bem
idosas – um senhor de barbas brancas e uma
senhora de olhos inteligentes, brilhantes e joviais.
O rapaz sentado à direita do velho mal acabara de
sair da adolescência e era certamente ainda mais
jovem que o próprio Tirian, mas já trazia no rosto
a expressão de um rei e guerreiro. E quase se
poderia dizer o mesmo quanto ao outro jovem que
se sentava à direita da senhora. Bem à frente de
Tirian, no outro lado da mesa, sentava-se uma
moça loura, ainda mais jovem que os outros dois,
e de cada lado dela um menino e uma menina
ainda mais novos. Tirian pensou consigo mesmo
que nunca vira roupas mais esquisitas do que
aquelas que eles trajavam.
Mas nem teve tempo de deter-se nesses
detalhes, pois de repente o menino mais novo e as
duas meninas levantaram-se de um pulo e uma
delas deu um gritinho. A senhora ergueu-se de
súbito, prendendo firmemente a respiração. O
velho também deve ter feito algum movimento
brusco, pois o copo de vinho que tinha na mão
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direita saiu voando da mesa. (Tirian até escutou o
barulho do vidro estilhaçando no chão.)
Só então Tirian deu-se conta de que aquelas
pessoas podiam vê-lo; e o fitavam estarrecidas,
como se vissem um fantasma. Notou, porém, que
o jovem com aparência de rei sentado à direita do
velho não fez um único movimento (embora
tivesse empalidecido), a não ser cerrar o punho
com força. Em seguida, disse:
– Fale, se é que você não é um fantasma ou
uma visão. Existe em você algo que lembra
Nárnia. E nós somos os sete amigos de Nárnia.
Tirian quis falar, e tentou gritar em alta voz
que ele era Tirian de Nárnia e que necessitava
muito de ajuda. Mas descobriu (como muitas
vezes nos acontece em sonhos) que sua voz não
fazia o menor ruído.
Aquele que já lhe falara uma vez ergueu-se
e falou, encarando-o firmemente:
– Espectro ou espírito ou seja lá o que for!
Se você é de Nárnia, ordeno-lhe em nome de
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Aslam que fale comigo. Eu sou Pedro, o Grande
Rei.
A sala começou a tremer diante dos olhos
de Tirian. Ele escutava as vozes dos sete, todas
falando ao mesmo tempo e ficando cada vez mais
fracas: “Vejam! Está desaparecendo!”, “Está
sumindo!”, “Está...”
No momento seguinte, achou-se
completamente acordado, ainda amarrado à
árvore, mais frio e enrijecido do que nunca. A
mata estava repleta da luz pálida e monótona que
antecede o nascer-do-sol, e ele estava todo
ensopado de orvalho. Já era quase manhã.
Aquele despertar foi talvez o pior momento
que já tivera em toda a sua vida.
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CHEGA AUXÍLIO PARA O
REI
Seu sofrimento, porém, não durou muito.
Quase no mesmo instante ouviu um baque surdo,
e depois mais um, e à sua frente surgiram duas
crianças. Momentos antes, a mata diante dele
estava completamente vazia, e ele sabia que elas
não tinham saído de trás da árvore, pois as teria
escutado. Elas simplesmente haviam aparecido de
lugar nenhum. Logo notou que usavam os
mesmos trajes esquisitos e desbotados que as
pessoas do sonho, e imediatamente percebeu que
eram o menino e a menina mais novos daqueles
sete.
– Caramba! – disse o menino. – Isso deixa
qualquer um sem fôlego! Eu pensei...
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– Rápido! Vamos desamarrá-lo – disse a
menina. – Depois a gente conversa. E, voltando-se
para Tirian, acrescentou: – Sinto muito pela
demora. Viemos assim que pudemos.
Enquanto ela falava, o menino tirou uma
faca do bolso e rapidamente cortou as cordas que
prendiam o rei. E cortou até rápido demais, pois o
rei estava com o corpo tão duro e entorpecido que,
quando a última amarra se soltou, caiu para a
frente sobre as mãos e os joelhos. E só conseguiu
levantar-se novamente depois de uma boa
massagem nas pernas dormentes.
– Ah! – disse a menina. – Foi você que nos
apareceu naquela noite, quando estávamos todos
jantando, há cerca de uma semana, não foi?
– Uma semana, gentil senhorita? ! –
exclamou Tirian. – Mas... meu sonho me levou ao
seu mundo há menos de dez minutos!
– É aquela costumeira confusão dos
tempos, Jill – disse o menino.
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– Ah, agora me lembro – disse Tirian. –
Isso ocorre também nas histórias antigas. O tempo
no estranho mundo de vocês é diferente do nosso.
Mas por falar em tempo, acho bom irmos embora
daqui. Meus inimigos estão bem pertinho. Vocês
vêm comigo?
– É claro que sim – respondeu a menina. –
Viemos aqui para ajudá-lo.
Tirian pôs-se de pé e os conduziu
rapidamente colina abaixo, afastando-se do
estábulo rumo ao Sul. Ele sabia muito bem para
onde ir; entretanto, seu primeiro objetivo era
alcançar as regiões rochosas onde não deixariam
pista alguma. O segundo era encontrar alguma
água que pudessem atravessar sem deixar rastro.
Isso lhes custou cerca de uma hora, escalando e
vadeando. Enquanto isso, ninguém tinha fôlego
para conversar. Assim mesmo, de vez em quando
Tirian olhava de soslaio para os seus
companheiros. O fato de estar andando lado a lado
com criaturas de um outro mundo deixava-o meio
tonto; mas também fazia com que todas as antigas
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histórias parecessem muito mais reais do que
nunca. Qualquer coisa podia acontecer agora.
– Estamos livres daqueles vilões por algum
tempo, e podemos caminhar com mais facilidade
–disse Tirian quando chegaram ao topo de um
pequeno vale que descia à frente deles, entre
pequenas moitas de bétulas. O sol já havia nascido
e gotas de orvalho brilhavam em cada galho. Os
pássaros cantavam alegremente.
– Que tal “bater uma bóia”? Quer dizer, o
senhor, pois nós dois já tomamos nosso café –
disse o menino.
Tirian ficou um tempão imaginando o que
seria “bater uma bóia”. Mas quando o menino
abriu a bojuda mochila que trazia às costas e tirou
lá de dentro um pacote mole e gorduroso, então
ele entendeu. Tirian estava morto de fome, se bem
que até aquele momento ainda não pensara nisso.
Havia dois sanduíches de ovos cozidos, dois
sanduíches de queijo e ainda dois outros com uma
espécie de patê. Se não estivesse com tanta fome,
Tirian nem teria ligado muito para aquele patê,
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pois é o tipo de coisa que ninguém come em
Nárnia. Quando acabou de comer os seis
sanduíches, já estavam chegando ao fundo do
vale, onde encontraram um penhasco cheio de
musgo de onde brotava uma pequena fonte. Os
três pararam, beberam e lavaram o rosto.
– E agora – disse a menina, ajuntando os
cabelos molhados na testa e atirando-os para trás
–, não vai nos contar quem é você, por que estava
amarrado e tudo o mais?
– Com todo o prazer, minha donzela –
respondeu Tirian. – Mas acho melhor
continuarmos andando.
Assim, à medida que caminhavam, ele lhes
contou quem era e tudo o que lhe havia
acontecido.
– E agora – disse, por fim – estamos indo
para uma certa torre, uma das três que foram
construídas na época dos meus ancestrais para
proteger o Ermo do Lampião contra certos
marginais perigosos que viviam por ali naquele
tempo. Por graça de Aslam não me roubaram as
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chaves. Nessa torre encontraremos suprimentos de
armas e cotas de malha e também mantimentos
(embora nada mais que biscoitos secos). Também
lá estaremos a salvo enquanto traçamos nossos
planos. E, agora, por que não me dizem quem
são? Gostaria de saber a sua história.
– Eu sou Eustáquio e esta é Jill – disse o
menino. – Já estivemos aqui uma vez, séculos e
séculos atrás, e há mais de um ano, segundo o
nosso tempo. Tinha um sujeito chamado príncipe
Rilian, que estava preso no mundo subterrâneo, e
aí Brejeiro...
– Ah! – exclamou Tirian. – Então vocês são
o Eustáquio e a Jill que libertaram o rei Rilian do
seu longo encantamento? !
– É, somos nós mesmos – disse Jill. – Quer
dizer, então, que ele agora é o rei Rilian, hein? É
claro, tinha que ser... Eu ia me esquecendo...
– Bem – disse Tirian –, eu sou o último na
sua descendência. Ele morreu há mais de duzentos
anos.
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Jill fez uma careta, dizendo:
– Bolas! Isso é que é chato quando se volta
a Nárnia! – Eustáquio, porém, continuou:
– Bem, senhor, agora já sabe quem somos
nós. E foi assim que aconteceu: o professor
Digory e tia Polly tinham reunido todos nós, os
amigos de Nárnia.
– Esses nomes eu não conheço – disse
Tirian.
– São os dois que vieram a Nárnia bem no
comecinho, no dia em que todos os bichos
aprenderam a falar.
– Pela Juba do Leão! – exclamou Tirian. –
Aqueles dois! Lorde Digory e Lady Polly! Pela
madrugada! E ainda vivos, no mesmo lugar? !
Maravilha das maravilhas! Mas me contem, me
contem!
– Para dizer a verdade, ela não é bem nossa
tia – disse Eustáquio. – O nome dela é senhorita
Plummer, mas nós a chamamos de tia Polly. Pois
bem: os dois reuniram todos nós, em parte para
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nos divertirmos um pouco, para a gente bater um
bom papo a respeito de Nárnia (pois, como sabe,
não tem ninguém mais com quem a gente possa
conversar sobre essas coisas). Mas também
porque o professor tinha a impressão de que, de
alguma forma, alguém estava precisando de nós
por aqui. E foi então que você apareceu lá feito
um fantasma, ou sei lá o quê, e quase nos matou
de susto, e depois se evaporou sem dizer uma
palavra. Depois disso, já sabíamos por certo que
alguma coisa errada andava acontecendo. A
questão agora era como chegar até aqui. A gente
não pode vir assim, só por querer. Depois de
muita discussão, o professor chegou à conclusão
de que o único jeito era usar os anéis mágicos. Foi
através desses anéis que ele e tia Polly chegaram
aqui, muito tempo atrás, quando ainda eram
crianças. Mas os anéis haviam sido enterrados no
quintal de uma casa em Londres (Londres é a
nossa grande cidade, senhor), e a casa tinha sido
vendida. O problema agora era como conseguilos.
Você nem imagina o que acabamos fazendo!
Pedro e Edmundo (isto é, Pedro, o Grande Rei,
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aquele que falou com você) foram a Londres,
planejando entrar no quintal pelos fundos, de
manhã bem cedinho, antes que o pessoal da casa
acordasse. Vestiram-se de trabalhadores, porque
se alguém os visse pensaria que tinham ido fazer
algum reparo nos esgotos. Gostaria de ter estado
ali com eles. Deve ter sido divertido pra valer. E
acho que deu tudo certo, pois no dia seguinte
Pedro nos mandou um telegrama (é um tipo de
recado, senhor; qualquer hora dessas eu lhe
explico), dizendo que havia conseguido os anéis.
No dia seguinte, Jill e eu teríamos de voltar para a
escola; do grupo todo, somos os únicos que ainda
estudam, e estamos na mesma escola. Ficou
combinado que Pedro e Edmundo nos
encontrariam num determinado lugar a caminho
da escola, para nos entregar os anéis. Tinha de ser
nós dois, pois os mais velhos já não podiam mais
vir a Nárnia. Assim, embarcamos no trem (uma
coisa que as pessoas usam para viajar em nosso
mundo: uma porção de vagões engatados um no
outro). O professor, tia Polly e Lúcia vieram
conosco, pois queríamos ficar todos juntos, o
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máximo de tempo possível. Pois bem, lá
estávamos nós no trem. Ao chegarmos à estação
onde os outros deveriam nos encontrar, pus-me a
olhar pela janela para ver se conseguia avistá-los,
quando, de repente, veio um tremendo solavanco
e um barulhão. E aí nos achamos em Nárnia e
vimos Sua Majestade amarrado àquela árvore.
– Quer dizer que vocês nem usaram os
anéis?
– Não – disse Eustáquio. – Nem sequer os
vimos. Aslam fez tudo por nós à sua própria
maneira, sem anel algum.
– Mas o rei Pedro deve estar com os anéis –
disse Tirian.
– Sim – respondeu Jill. – Mas não creio que
possa utilizá-los. Quando os outros dois (quer
dizer, o rei Edmundo e a rainha Lúcia) estiveram
aqui a última vez, Aslam lhes disse que eles nunca
mais voltariam a Nárnia. E disse a mesma coisa
ao Grande Rei, só que há muito mais tempo. Eu
lhe garanto que, se Aslam deixasse, ele viria que
nem uma bala!
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– Caramba! – queixou-se Eustáquio. – Este
sol está ficando quente. Já estamos chegando,
senhor?
– Vejam! – disse Tirian, apontando à frente.
Não muito adiante deles erguiam-se umas
muralhas cinzentas acima do topo das árvores.
Depois de andarem alguns minutos deram com
uma clareira toda coberta de grama, onde corria
um pequeno riacho. No extremo deste, via-se uma
torre baixa e quadrada, com umas poucas janelas
estreitas e, na parede de frente, uma porta que
parecia bem pesada.
Tirian olhou cuidadosamente para um lado
e para o outro, certificando-se de que não havia
nenhum inimigo à vista. Então dirigiu-se para a
torre e ficou uns minutos parado, tentando pegar
um molho de chaves que usava por baixo do traje
de caça, preso a uma correntinha de prata que ele
trazia ao pescoço. Era um belo molho de chaves:
duas eram de ouro e havia várias outras ricamente
enfeitadas. Via-se logo que eram chaves feitas
para abrir salas solenes e secretas de algum
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palácio, ou gavetas e cofres de madeira perfumada
contendo tesouros reais. No entanto, a chave que
ele meteu na fechadura da porta era uma chave
comum, grande e rústica. A fechadura estava
emperrada e por um momento Tirian chegou a
temer que a chave não girasse; finalmente, porém,
conseguiu movê-la, e a porta se abriu com um
rangido.
– Bem-vindos, amigos – disse ele. – Temo
que, no momento, seja este o melhor palácio que o
rei de Nárnia pode oferecer aos seus convidados.
Tirian ficou contente ao notar que os dois
hóspedes eram bem-educados. Ambos disseram
que não falasse assim, que tinham certeza de que
aquele era um ótimo lugar. Mas, para falar a
verdade, não era tão bom assim. Era muito escuro
e tinha um terrível cheiro de umidade. Havia
apenas um compartimento, que ia dar direto no
telhado de pedra. Uma escadaria de madeira em
um canto dava para um alçapão por onde se podia
chegar às muralhas. Para dormir, havia alguns
beliches bem rústicos encravados na parede. Um
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monte de baús trancados e uma infinidade de
embrulhos espalhavam-se pelo chão. Havia
também uma lareira que, pelo jeito, não via fogo
há anos e anos.
– Acho melhor a gente sair e ajuntar
alguma lenha primeiro – observou Jill.
– Ainda não, minha amiga – disse Tirian.
Ele não queria correr o risco de serem pegos
desarmados. Por isso começou a remexer nos
baús, lembrando com gratidão que sempre tivera o
cuidado de mandar inspecionar aquelas torres de
guarnição pelo menos uma vez por ano, para
garantir que elas se mantivessem devidamente
estocadas com todo o necessário. Ali estavam os
arcos com as cordas sedosas e cuidadosamente
lustradas com óleo; as espadas e as lanças
estavam untadas para não enferrujar, e as
armaduras brilhavam dentro das caixas. Havia
uma coisa, porém, que era ainda melhor.
– Olhem aqui – disse Tirian, tirando uma
comprida cota de malha de um modelo muito
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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curioso e fazendo-a brilhar ante os olhos das
crianças.
– Que malha mais engraçada, senhor! –
disse Eustáquio.
– De fato, meu jovem – concordou Tirian. –
Ela não foi feita por nenhum anão narniano. E
uma malha da Calormânia, porcaria estrangeira.
Sempre conservei algumas dessas vestimentas em
prontidão, pois nunca se sabe quando será preciso
passar pelas terras do Tisroc sem ser visto. E
vejam só esta garrafa de pedra. Aqui dentro tem
um líquido que, esfregado no rosto e nas mãos,
faz a gente ficar moreno como os calormanos.
– Oba! – exclamou Jill. – Um disfarce!
Adoro disfarces!
Tirian mostrou-lhes como pingar um
pouquinho do líquido na palma da mão e depois
esfregar no rosto e no pescoço, descendo para os
ombros, fazendo depois o mesmo nas mãos e
cotovelos. Ele mesmo se besuntou também.
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– Depois que isto seca na pele – explicou
ele –, pode-se até lavar que a cor não muda. Só
com óleo e cinza se fica branco de novo. E agora,
Jill querida, vamos ver como fica esta malha em
você. É um pouco comprida, mas não tanto
quanto eu pensei. Sem dúvida, pertenceu a algum
pajem do séquito de um dos tarcaãs calormanos.
Depois de vestir as cotas de malha,
colocaram uns elmos calormanos, pequenos e
redondos, que encaixam bem na cabeça e têm uma
ponta no alto. Em seguida, Tirian tirou do baú uns
rolos compridos de uma coisa branca e foi
enrolando por cima dos elmos até que estes
viraram turbantes; mesmo assim, a pontinha do
elmo ainda aparecia. Ele e Eustáquio armaram-se
com espadas curvas calormanas e escudos
pequenos e redondos. Como não havia uma
espada que fosse leve o bastante para Jill, o rei
deu-lhe uma faca de caça comprida e reta; em
caso de emergência, esta lhe serviria de espada.
– Sabe manejar o arco, senhorita? –
perguntou o rei.
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– Não muito bem – respondeu a menina,
corando. – Eustáquio é que é bom nisso.
– Conversa dela, senhor – disse Eustáquio.
– Nós dois praticamos arco e flecha desde que
voltamos de Nárnia a última vez, e ela é quase tão
boa quanto eu. Não que a gente seja tão bom,
mas...
Então Tirian entregou a Jill um arco e uma
aljava cheia de flechas. Agora era tratar de
acender um fogo, pois, por dentro, aquela torre
mais parecia uma caverna do que uma casa, e
dava até calafrios. Mas só de juntar lenha eles já
se aqueceram (agora o sol já estava a pino); e
quando as labaredas começaram a crepitar
chaminé acima o lugar ficou até agradável. O
almoço, no entanto, foi uma comida muito sem
graça, pois o máximo que conseguiram fazer foi
picar umas bolachas duras, que acharam num dos
baús, e colocá-las para ferver com água e sal,
fazendo uma espécie de mingau. Para beber, é
óbvio, nada além de água.
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– Ah, se eu tivesse trazido uns saquinhos de
chá! – suspirou Jill.
– Ou uma lata de chocolate em pó –
acrescentou Eustáquio.
– Até que não seria mau se a gente achasse
um barril de vinho nessas torres – disse Tirian.
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6
UM BOM TRABALHO
NOTURNO
Só umas quatro horas mais tarde Tirian
atirou-se num dos beliches para tirar uma soneca.
As duas crianças já estavam roncando: ele as
fizera ir para a cama mais cedo porque teriam de
ficar acordadas a maior parte da noite, e Tirian
sabia que, sem dormir, crianças daquela idade não
agüentariam. Além disso, deixara os dois
cansados demais. Primeiro tinha treinado arco e
flecha com Jill e descobrira que, embora não
atingisse os padrões narnianos, ela de fato não era
tão ruim assim. Na verdade, conseguira acertar
um coelho (não um coelho falante, é claro;
naquela região de Nárnia existem muitos coelhos
comuns), que já estava sem o couro, limpo e
dependurado. Tirian descobrira que as duas
crianças sabiam tudo sobre esse trabalho
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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deprimente e malcheiroso, que haviam aprendido
na sua grande viagem pela terra dos gigantes, nos
dias do príncipe Rilian. Em seguida, tentara
ensinar Eustáquio a usar a espada e o escudo. O
menino já aprendera bastante sobre o uso da
espada lutando nas suas primeiras aventuras, mas
ele só conhecia a espada reta narniana. Nunca
havia manejado uma cimitarra calormana, e não
foi nada fácil, pois muitos dos golpes são
completamente diferentes, e alguns hábitos que
ele adquirira usando a espada comprida tinham de
ser aprendidos de novo. Tirian percebeu, no
entanto, que ele tinha bom olho e era muito rápido
com os pés. Ficou surpreso com a força das duas
crianças: na verdade, ambas pareciam agora muito
mais fortes, maiores e mais maduras do que
quando as encontrara pela primeira vez, poucas
horas atrás. Esse é um dos efeitos que a atmosfera
de Nárnia produz nos visitantes do nosso mundo.
Os três concordaram que a primeira coisa a
fazer era voltar à Colina do Estábulo e tentar
libertar Precioso, o unicórnio. Depois, se fossem
bem-sucedidos, fugiriam para o leste, ao encontro
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do pequeno exército que Passofirme, o centauro,
estaria trazendo de Cair Paravel.
Um guerreiro e caçador experiente como
Tirian jamais tem dificuldade de despertar à hora
que deseja. Assim, depois de ter dito a si mesmo
que acordaria às nove horas da noite, deixou todas
as preocupações de lado e adormeceu no mesmo
instante. Quando despertou, teve a impressão de
que haviam transcorrido não mais que alguns
minutos, mas sabia, pela luminosidade e pelo
próprio aspecto das coisas, que dormira
exatamente o tempo que havia determinado.
Levantou-se, colocou o elmo-turbante (ele
dormira com a cota de malha) e então sacudiu as
crianças para acordá-las. A bem da verdade, elas
pareciam muito desoladas e abatidas quando
saltaram dos beliches onde dormiam, bocejando
muito.
– Bem – disse Tirian –, daqui vamos para o
Norte. Por sorte, a noite está estrelada, e nossa
jornada agora será bem mais curta, pois esta
manhã nos desviamos muito, ao passo que agora
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iremos direto. Se formos interpelados, mantenham
a calma; farei o possível para falar como um
detestável, cruel e orgulhoso lorde calormano. Se
eu puxar a espada, Eustáquio, faça o mesmo; e
você, Jill, coloque-se atrás e fique com o arco a
postos. Mas se eu gritar “Para casa”, então fujam
para a torre. E, quando eu tiver dado o sinal de
retirada, não tentem lutar – nem um golpe sequer
–, pois esse tipo de falsa bravura em guerras já
arruinou muitos planos excelentes. E agora
sigamos, amigos, em nome de Aslam.
Então saíram na noite fria. Todas as
grandes estrelas setentrionais flamejavam acima
do topo das árvores. A estrela polar em Nárnia é
chamada de Ponta da Lança e brilha mais do que a
nossa.
Por algum tempo seguiram em linha reta,
na direção da Ponta da Lança, mas então, tendo
chegado a uma mata espessa, tiveram de desviarse
de seu curso para contorná-la. Depois disso
ficou difícil retomar o curso, pois os galhos ainda
atrapalhavam sua visão. Foi Jill que os levou de
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volta ao caminho correto: na Inglaterra ela fora
uma excelente bandeirante. E, obviamente,
conhecia muito bem as estrelas de Nárnia, pois
viajara muito pelas terras desérticas do Norte e
podia encontrar a direção das outras estrelas,
mesmo quando a Ponta da Lança estava oculta.
Ao perceber que ela era o melhor rastreador dos
três, Tirian colocou-a à frente. E ficou espantado
ao ver quão silenciosamente ela deslizava na
frente deles, quase como se fosse invisível.
– Pela Juba do Leão! – murmurou,
dirigindo-se a Eustáquio. – Essa garota é uma
extraordinária dama dos bosques. Se tivesse
sangue de dríade nas veias, dificilmente faria isso
melhor.
– O que ajuda é que ela é pequena –
sussurrou Eustáquio de volta. Jill, à frente, apenas
disse:
– Psiu! Não façam barulho.
Ao redor deles, a floresta estava muito
quieta. Na verdade, quieta demais. Numa noite
comum, ali em Nárnia, estariam ouvindo ruídos –
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de quando em quando, um cordial “boa noite” de
um ouriço, o grito de uma coruja vindo do alto,
talvez o som de uma flauta à distância a dizer que
os faunos dançavam, ou o barulho latejante das
marteladas dos anões embaixo da terra. Mas tudo
estava em silêncio: escuridão e medo reinavam
em Nárnia.
Após algum tempo, iniciaram a íngreme
caminhada colina acima; as árvores cresciam cada
vez mais afastadas umas das outras. Ainda que
indistintamente, Tirian já podia divisar o topo da
colina e o estábulo. Jill seguia agora com mais
cautela, e o tempo todo fazia sinais com a mão
para que os outros fizessem o mesmo. Então
parou, totalmente imóvel, e Tirian viu-a afundarse
na grama e desaparecer sem o menor ruído.
Daí a alguns instantes ela estava de volta e,
chegando a boca bem pertinho do ouvido de
Tirian, sussurrou o mais baixo possível: “Abaixese!
Dá para ver melhor!”
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Tirian abaixou-se rápido, quase tão
silencioso quanto Jill, mas não tanto, pois era
mais velho e mais pesado.
Daquela posição, deitado no chão, avistou
dois vultos negros recortados contra o céu coberto
de estrelas: um era o estábulo e o outro, poucos
metros adiante, um sentinela calormano. O
homem montava uma péssima guarda: não estava
andando, nem sequer de pé, mas sentado, com a
lança recostada ao ombro e o queixo afundado no
peito. “Ótimo!”, disse Tirian a Jill. Ela lhe
mostrara exatamente o que ele precisava saber.
Então eles se levantaram e Tirian retomou a
liderança. Com muito cuidado, mal ousando
respirar, encaminharam-se lentamente para um
pequeno amontoado de árvores que ficava a uns
poucos metros de onde estava o sentinela.
– Esperem aqui até eu voltar – sussurrou ele
para os dois. Se eu fracassar, fujam.
Então saiu caminhando decididamente, a
plena vista do inimigo. Ao vê-lo, o homem
estremeceu e já ia dar um pulo para ficar de pé,
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pensando que era um dos seus próprios oficiais e
que ele estava em apuros por encontrar-se
sentado. Antes, porém, que conseguisse pôr-se de
pé, Tirian já havia se ajoelhado sobre uma perna,
ao seu lado, dizendo:
– És um guerreiro do Tisroc (que ele viva
para sempre)? Meu coração alegra-se por
encontrar-te aqui entre todos esses animais e
demônios de Nárnia. Dá-me tua mão, amigo.
Antes que pudesse dar-se conta do que
estava acontecendo, o guarda calormano sentiu
sua mão direita dominada por um poderoso aperto
de mão. E, logo a seguir, alguém ajoelhou-se
sobre as suas pernas, e ele sentiu a pressão de uma
adaga contra o pescoço:
– Um ruído e você está morto – disse-lhe
Tirian ao ouvido. – Diga-me onde está unicórnio,
se quiser continuar vivo.
– A-a-trás do estábulo, gr-grande m-mestre
–gaguejou o infeliz.
– Ótimo. Levante-se e leve-me até lá.
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O homem ergueu-se, sempre com a ponta
da adaga encostada ao pescoço. Esta só se moveu
(fria e fazendo cócegas) quando Tirian passou
para trás dele, colocando-a num ponto estratégico,
abaixo da orelha. Tremendo de medo, ele deu a
volta e dirigiu-se para trás do estábulo.
Embora estivesse escuro, Tirian logo
enxergou o vulto branco de Precioso.
– Silêncio! – disse ele. – Não relinche! Sim,
Precioso, sou eu mesmo. Como é que o
prenderam?
– Pearam-me as quatro patas e puseram-me
umas rédeas amarradas a uma campainha na
parede do estábulo – ouviu-se a voz de Precioso.
– Sentinela, fique aqui, com as costas
contra a parede. Assim. Agora, Precioso, encoste
a ponta do seu chifre contra o peito desse
calormano.
– Com todo o prazer, senhor – disse o
unicórnio.
– Se ele se mexer, espete-lhe o coração.
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Em poucos minutos, Tirian cortou as
cordas. Com o que conseguiu aproveitar delas
amarrou o sentinela, atando-lhe as mãos aos pés.
Finalmente, fez o homem abrir a boca, entulhou-a
de capim e, em seguida, amordaçou-o de tal forma
que lhe seria impossível fazer qualquer ruído;
depois colocou-o sentado no chão, de costas
contra a parede.
– Fui um pouco indelicado com você,
soldado – disse Tirian. – Mas eu precisava fazer
isso. Caso nos encontremos de novo, espero poder
tratá-lo um pouco melhor. E agora, Precioso,
vamos sair daqui, com cuidado.
Tirian passou o braço esquerdo em volta do
pescoço do animal, inclinou-se e beijou-lhe o
focinho; estavam ambos muito felizes. Tão
silenciosamente quanto possível, voltaram para o
lugar onde Tirian havia deixado as crianças.
Embaixo das árvores estava muito mais escuro, e
ele quase esbarrou em Eustáquio antes de
enxergá-lo.
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– Tudo bem – sussurrou. – Um bom
trabalho noturno. Agora, para casa.
Viraram-se e já haviam dado alguns passos
quando Eustáquio chamou:
– Jill, onde está você? – Ninguém
respondeu. –Senhor, por acaso Jill está do seu
lado? – perguntou.
– O quê? ! – disse Tirian. – Pensei que ela
estivesse do seu lado!
Foi um momento terrível. Não ousaram
gritar, mas sussurravam o nome dela o mais alto
possível. Ninguém respondia.
– Ela saiu de perto de você enquanto eu
estava fora? – perguntou Tirian.
– Não vi nem escutei nada – respondeu
Eustáquio. – Mas ela pode muito bem ter saído
sem eu perceber. Ela é silenciosa como um gato;
você mesmo viu.
Naquele momento eles escutaram um
longínquo rufar de tambores. Precioso inclinou as
orelhas para a frente.
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– Anões – disse ele.
– E são anões traiçoeiros, inimigos, muito
provavelmente – murmurou Tirian.
– E aí vem algum bicho de cascos, muito
mais perto – disse Precioso.
Os dois humanos e o unicórnio ficaram
imóveis como defuntos. Agora havia tantas coisas
com que se preocupar que nem sabiam o que
fazer. O barulho dos cascos foi chegando mais
perto. Então, bem pertinho deles, uma voz
sussurrou:
– Ei, vocês! Estão todos aí? Que alívio! Era
Jill.
– Em que buraco você se meteu? – estourou
Eustáquio, num furioso cochicho, pois ficara
morto de medo.
– No estábulo – ofegou Jill, com uma voz
que parecia a de alguém que está se segurando
para não dar uma gargalhada.
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– Ah, é? ! – resmungou Eustáquio,
indignado. –E você ainda acha engraçado, hein?
Pois só quero dizer que...
– Conseguiu libertar Precioso, senhor? –
perguntou Jill ao rei.
– Sim. Ele está aqui. E que animal é esse
que está com você?
– É ele – respondeu Jill. – Mas vamos
embora antes que alguém desperte. – E ouviramse
novamente pequenas explosões de riso.
Os outros obedeceram imediatamente, pois
já haviam demorado demais naquele lugar
perigoso, e os tambores dos anões pareciam estar
cada vez mais perto. Só depois de andarem um
bom tempo rumo ao Sul é que Eustáquio falou:
– Você trouxe ele? Que história é essa?
– O falso Aslam – disse Jill.
– O quê? ! – exclamou Tirian. – Onde você
estava? O que você fez?
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– Bem, senhor – respondeu Jill. – Assim
que eu vi que o sentinela estava fora de combate,
pensei que seria bom dar uma olhadinha no
estábulo para ver o que realmente havia lá.
Naturalmente, estava muito escuro ali dentro e
cheirava a estábulo como qualquer outro. Então
acendi um fósforo e... adivinhem o que vi? Nada
mais, nada menos que este velho jumento, com
uma pele de leão amarrada às costas! Aí peguei a
minha faca e disse-lhe que ele tinha de vir
comigo. Para falar a verdade, eu nem precisava tê-
lo ameaçado com a faca. Ele estava cheio do
estábulo e prontinho para me acompanhar – não é,
Confuso?
– Papagaios! – exclamou Eustáquio. –
Devo estar biruta. Ainda agorinha estava louco da
vida com você, e ainda acho que foi sujeira sua
sumir daqui sem a gente. Mas devo admitir... quer
dizer... bem, o que você fez foi realmente incrível.
Se ela fosse um menino merecia ser armada
cavaleiro, não acha, senhor?
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– Se ela fosse um menino – respondeu
Tirian –, ia é levar uma bronca por ter
desobedecido às minhas ordens. – Naquela
escuridão, não dava para ver se ele dissera aquilo
com uma carranca ou um sorriso. Logo a seguir
ouviu-se um ruído de metal sendo amolado.
– O que está fazendo, senhor? – perguntou
Precioso, desconfiado.
– Amolando a minha espada para decepar a
cabeça desse asno maldito – respondeu Tirian,
com uma voz terrível. – Saia daí, garota!
– Oh, não! Por favor, não! – exclamou Jill.
– Não pode fazer isso. Não foi culpa dele. Foi
tudo invenção daquele macaco. Ele não sabia de
nada e sente muito pelo que aconteceu. Ele é um
jumento muito bom. O nome dele é Confuso. E eu
já estou abraçada ao pescoço dele. E...
– Jill – disse Tirian –, você é a mais
corajosa e a mais entendida em florestas dentre
todos os meus súditos. Mas é também a mais
atrevida e desobediente. Pois bem: que o asno
fique vivo. O que tem a dizer em seu favor, asno?
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– Eu, senhor? – ouviu-se a voz do jumento.
– Só sei que sinto muito mesmo se fiz alguma
coisa errada. O macaco me disse que Aslam
queria que eu me vestisse daquele jeito. E eu
achava que ele é que devia saber. Não sou
inteligente como ele. Fiz apenas o que me
mandaram. Não teve graça nenhuma para mim
ficar o tempo todo dentro daquele estábulo. E nem
mesmo sei o que anda acontecendo aqui fora. Ele
nem me deixava sair, a não ser por um ou dois
minutos, à noite. Tinha dias que até se esqueciam
de me dar água...
– Senhor – disse Precioso –, aqueles anões
estão chegando cada vez mais perto. Vamos
deixar que nos alcancem?
Tirian pensou um pouco e de repente soltou
uma enorme gargalhada. Então falou, agora sem
cochichar, mas em voz bem alta.
– Pela Juba do Leão! – exclamou. – Devo
estar ficando retardado. Encontrá-los? Mas é claro
que vamos encontrá-los! Agora podemos
encontrar qualquer pessoa. Temos conosco este
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asno para lhes mostrar. Eles precisam ver a coisa
que tanto temeram e a quem reverenciaram.
Podemos contar-lhes a verdade sobre a vil trapaça
do macaco. Descobrimos o segredo dele. Agora as
coisas mudaram. Amanhã mesmo vamos pendurar
aquele macaco na árvore mais alta de Nárnia.
Chega de cochichos, covardia e disfarces. Onde
estão esses simpáticos anões? Temos boas-novas
para eles!
Quando a gente passa horas e horas
cochichando, o simples fato de alguém falar em
voz alta tem um efeito incrivelmente animador. A
turma inteira começou a conversar e a rir; até
Confuso ergueu a cabeça e soltou um comprido
zurro, coisa que o macaco não lhe permitira fazer
havia muito tempo. Então seguiram na direção
dos tambores. O barulho foi ficando cada vez
mais forte e logo enxergaram também luzes de
tochas. Foram dar numa dessas estradas
esburacadas (se fosse na Inglaterra, dificilmente
se chamaria aquilo de estrada) que levam ao Ermo
do Lampião. E ali, marchando pesadamente
caminho afora, vinham cerca de trinta anões,
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todos carregando no ombro suas enxadinhas e
picaretas. Dois calormanos armados comandavam
a fila e dois outros guardavam a retaguarda.
– Parem! – bradou Tirian, ao sair na
estrada. – Parem, soldados! Para onde estão
levando esses anões narnianos, e por ordem de
quem?
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7
VIVAM OS ANÕES!
Ao ver o que eles pensaram ser um tarcaã
ou um grande lorde acompanhado de dois pajens
armados, os dois soldados calormanos que
comandavam o grupo pararam e ergueram as
lanças, com uma reverência.
– Salve, mestre – disse um deles. – Estamos
levando esses anões para a Calormânia, a fim de
trabalharem nas minas do Tisroc (que ele viva
para sempre!).
– Pelo grande deus Tash! Como são
obedientes! – disse Tirian. E de repente voltou-se
para os próprios anões. De cada seis deles, um
carregava uma tocha; e por aquela luz bruxuleante
viam-se seus rostos barbudos, todos olhando para
ele com expressão dura e obstinada.
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– Terá o Tisroc porventura empreendido
uma grande batalha, conquistando a terra de
vocês, anões? – perguntou. – Por que caminham
assim tão passivos para a morte nas minas de sal
de Pugrahan?
Os dois soldados fitaram-no, surpresos; mas
todos os anões responderam:
– Ordens de Aslam, senhor, ordens de
Aslam. Ele nos vendeu. O que podemos fazer
contra ele?
– Grande porcaria, o Tisroc! – resmungou
um deles, com uma cusparada. – Ele que se
atrevesse para ver!
– Cala a boca, seu cachorro! – berrou o
soldado-chefe.
– Olhem aqui – disse Tirian, empurrando
Confuso na direção da luz. – É tudo trapaça!
Aslam não esteve em Nárnia coisíssima nenhuma.
Vocês foram todos tapeados por aquele macaco.
Era isto aqui que ele tirava do estábulo para
mostrar a vocês. Olhem bem!
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O que os anões viram, agora bem de perto,
foi o suficiente: como era possível terem sido
enganados daquele jeito? Depois de todo aquele
tempo preso dentro do estábulo, a pele de leão já
tinha se soltado toda do corpo de Confuso e, com
a caminhada pela mata escura, estava toda torta e
desajeitada. A maior parte encontrava-se
embolada por cima de um de seus ombros. A
cabeça, além de caída para um lado, estava tão
afastada para trás que qualquer um podia ver por
trás dela a cara ingênua, tola e bondosa do
jumento. Num canto da boca havia uma porção de
capim, pois, durante a caminhada, ele aproveitara
para dar umas mordiscadas na grama.
– Não tive culpa de nada... Não sou muito
esperto. Nunca disse que eu era ele... –
resmungava baixinho o jumento.
Os anões fitaram Confuso por um instante,
de olhos arregalados e boca escancarada. De
repente, um dos soldados disse, rispidamente:
– Estás louco, meu mestre? ! O que estás
fazendo com os escravos?
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– Quem és tu? – perguntou o outro.
Nenhuma das lanças agora erguia-se em
saudação; ambas estavam abaixadas e prontas
para a ação.
– Qual é a senha? – disse o soldado-chefe.
– Esta é a minha senha – exclamou o rei,
sacando a espada. – Dissipem-se as trevas da
mentira e brilhe a luz da verdade! Agora, canalha,
em guarda, pois sou Tirian de Nárnia!
O rei partiu como um raio para cima do
soldado-chefe. Eustáquio, que já havia sacado a
espada, ao ver Tirian fazer o mesmo, avançou
contra o outro soldado: seu rosto estava pálido
como o de um defunto e com toda a razão. Mas
ele teve a sorte que muitas vezes têm os
principiantes: esquecendo-se de tudo que Tirian
lhe havia ensinado naquela tarde, saiu golpeando
selvagemente (para dizer a verdade, acho até que
ele estava de olhos fechados) e, de repente, para
sua própria surpresa, descobriu que o calormano
jazia morto aos seus pés. Se, por um lado, isso lhe
trouxe um grande alívio, naquele momento,
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porém, foi muito mais assustador. A luta do rei
durou um ou dois segundos mais e logo também
ele havia matado seu adversário, gritando para
Eustáquio: “Cuidado com os outros dois!” Mas os
anões já haviam dado um jeito nos dois
calormanos restantes. Não havia mais inimigos.
– Bela luta, Eustáquio! – exclamou o rei,
dando-lhe um tapinha nas costas. – Agora, anões,
vocês estão livres. Amanhã eu os comandarei para
libertarmos Nárnia inteira. Três vivas para Aslam!
O que aconteceu a seguir, porém, foi a
maior decepção. Houve uma leve tentativa por
parte de alguns anões (talvez uns cinco), mas que
de repente se desvaneceu totalmente. Outros
soltaram apenas um rosnado mal-humorado.
Muitos deles não disseram absolutamente nada.
– Será que não entenderam? – estranhou
Jill, impaciente. – O que é que há de errado com
vocês, anões? Não ouviram o que o rei disse? Está
tudo acabado. O macaco não vai mais governar
Nárnia. Todo mundo pode voltar à sua vida de
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sempre. Podem divertir-se à vontade de novo. Não
estão contentes com isso?
Após um breve silêncio, ouviu-se a voz não
muito agradável de um anão de barba e cabelos
pretos cheios de fuligem:
– Posso saber quem é a senhorita?
– Sou Jill – respondeu ela. – A mesma Jill
que libertou o rei Rilian do encantamento. E este
aqui é Eustáquio, que estava comigo também.
Estamos voltando do nosso mundo após centenas
de anos, e viemos a mando de Aslam.
Todos os anões se entreolharam com um
sorriso – não um sorriso de alegria, mas de
malícia e zombaria.
– Escutem aqui, meus chapas – disse o anão
negro, cujo nome era Grifo –, não sei quanto a
vocês, mas já estou cheio dessa história de Aslam.
Já escutei sobre ele mais do que gostaria de ouvir
para o resto da vida.
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– Isso mesmo, isso mesmo! – rosnaram os
outros anões. – Tudo não passa de trapaça, uma
maldita trapaça!
– O que querem dizer com isso? –
exclamou Tirian. Durante toda a luta ele não
empalidecera uma única vez; agora, porém, seu
rosto estava lívido. Imaginara que aquele seria um
momento lindo. Em vez disso, começava a
parecer um pesadelo.
– Vocês devem estar pensando que somos
fracos da bola, isso, sim – disse Grifo. –Já fomos
enrolados uma vez e agora querem nos enganar de
novo. Não queremos mais saber de conversa sobre
Aslam. Vejam só! Olhem para ele! Um burro
velho de orelhas compridas!
– Pela madrugada! Vocês estão me
deixando maluco! – disse Tirian. – Quem foi que
disse que isto é Aslam? Isto é apenas a imitação
que o macaco fez de Aslam. Será que não
compreendem?
– E, pelo jeito, você conseguiu uma
imitação ainda melhor! – retrucou Grifo. – Não,
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muito obrigado. Já nos fizeram de bobos uma vez
e ninguém vai nos enganar de novo.
– Não enganei ninguém! – explodiu Tirian,
com raiva. – Eu sirvo ao verdadeiro Aslam!
– E onde está ele? Quem é ele? Queremos
vê-lo! – gritaram vários anões.
– Vocês acham que eu o tenho guardado no
bolso, seus idiotas? ! – disse Tirian. – Quem sou
eu para fazer Aslam aparecer assim, com uma
simples ordem minha? Ele não é um leão
domesticado!
Ao dizer isso, Tirian percebeu que
cometera um erro. No mesmo instante, os anões
começaram a repetir em coro, em tom de chacota:
– Não é domesticado! Não é domesticado!
– Era isso mesmo que aquele outro vivia
dizendo! – acrescentou um deles.
– Quer dizer, então, que não acreditam no
verdadeiro Aslam? – disse Jill. – Mas eu já o vi!
Foi ele quem nos enviou para cá, vindos de um
mundo diferente deste.
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– Mas é claro! – disse Grifo com um largo
sorriso de mofa. – Isso é o que você diz. Eles lhe
ensinaram direitinho toda essa baboseira. Está
repetindo a lição, não é, queridinha?
– Seu estúpido! – exclamou Tirian. – Ousa
chamar uma senhorita de mentirosa, assim na
frente dela?
– Acho bom falar com mais jeito, senhor! –
replicou o anão. – Aliás, acho que não queremos
mais rei nenhum – se é que você é Tirian, o que
eu duvido muito. E não queremos mais saber de
Aslans nem de coisa alguma. Daqui para a frente
vamos é tratar de nossa própria vida, sem prestar
reverência a ninguém. Não é mesmo, pessoal?
– É isso mesmo! – responderam os outros
anões.
– Vamos viver por nossa própria conta.
Chega de Aslam, chega de reis e de conversas
fiadas sobre outros mundos. Vivam os anões!
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Então começaram a formar fila novamente,
aprontando-se para marchar de volta para o lugar
(sabe-se lá onde) do qual tinham vindo.
– Criaturinhas abomináveis – berrou
Eustáquio.
– Não vão nem agradecer por terem sido
salvos de ir para as minas de sal?
– Ora, já entendemos tudo! – resmungou
Grifo por cima dos ombros. – Vocês só queriam
nos usar, por isso nos libertaram. Nós é que não
vamos entrar no seu jogo. Vamos embora,
companheiros!
Agora o grupo inteiro seguia em silêncio.
Confuso continuava muito infeliz e ainda não
conseguia entender absolutamente nada do que
estava acontecendo. Jill, apesar de decepcionada
com os anões, estava muito impressionada com a
vitória de Eustáquio sobre o calormano, mas
também um pouco assustada. Quanto a Eustáquio,
seu coração ainda batia descompassadamente.
Tirian e Precioso, muito tristes, vinham bem atrás,
caminhando lado a lado. O rei passara o braço
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pelo pescoço do unicórnio, e este de vez em
quando acariciava o rosto do amigo com o
focinho macio. Ninguém tentava consolar um ao
outro com palavras. Naquele momento, não era
nada fácil pensar em algo confortador para dizer.
Tirian nunca imaginara que o fato de um macaco
inventar um falso Aslam pudesse levar as pessoas
a deixar de acreditar no verdadeiro Aslam. No
momento em que contara aos anões que haviam
sido ludibriados, quase tivera a certeza de que eles
tomariam o seu partido. Seu plano era levá-los, na
noite seguinte, até a Colina do Estábulo e mostrar
Confuso para todas as criaturas; aí todos se
voltariam contra o macaco e, provavelmente
depois de uma boa luta com os calormanos, tudo
chegaria ao fim. Agora, porém, pelo que tudo
indicava, já não podia contar com nada mais.
Quantos outros narnianos acabariam seguindo o
exemplo dos anões?
– Acho que tem alguém nos seguindo –
disse Confuso, de repente.
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Pararam para escutar. Agora tinham certeza
de terem ouvido uns passinhos miúdos atrás deles.
– Quem vem aí? – gritou o rei.
– Sou eu, senhor – ouviu-se uma voz. –
Apenas eu, o anão Poggin. Acabo de me safar dos
outros. Estou do seu lado, senhor, e também do
lado de Aslam. Se houver por aí uma espada de
anão que eu possa usar, terei todo o prazer em
distribuir uns bons golpes por aí, antes que tudo se
acabe.
Todo mundo se reuniu ao redor dele,
dando-lhe boas-vindas, elogiando-o e dando-lhe
tapinhas nas costas. É claro que um anão a mais
não iria fazer muita diferença, mas bem que era
animador contar com pelo menos um deles. O
grupo inteiro se iluminou de novo. Mas a alegria
de Jill e Eustáquio não durou muito, pois logo
começaram a bocejar e cochilar: estavam tão
cansados que não conseguiam pensar em outra
coisa a não ser na cama.
Foi na hora mais fria da noite, justamente
antes do alvorecer, que alcançaram a torre
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novamente. Bem que gostariam de ter encontrado
uma refeição prontinha à sua espera. Agora,
porém, nem queriam pensar no trabalho e no
tempo que gastariam preparando algo para comer.
Após beberem água da fonte e lavarem o rosto,
atiraram-se nos beliches: todos, menos Confuso e
Precioso, que disseram sentir-se mais à vontade lá
fora. E acho que foi bem melhor assim, pois um
unicórnio e um jumento gordo e grandão dentro
de casa sempre fazem o lugar parecer cheio
demais.
Os anões narnianos, embora não tenham
mais que um metro de altura, são, considerando-se
o seu tamanho, as criaturas mais fortes e
resistentes que existem; tanto assim que Poggin,
apesar de ter tido um dia duríssimo e haver
dormido tarde, foi o primeiro a despertar,
totalmente recuperado. Sem hesitar, pegou o arco
de Jill, saiu e caçou uma porção de patos
selvagens. Depois foi sentar-se ao pé da escada e
ficou batendo papo com Confuso e Precioso,
enquanto depenava os patos. Confuso parecia
sentir-se consideravelmente melhor naquela
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manhã. Sendo um unicórnio e, portanto, um
animal muito nobre e gentil, Precioso fora muito
amável com ele, conversando sobre coisas de que
ambos entendiam, como capim, torrões de açúcar
ou como cuidar dos cascos. Quando, por volta das
dez e meia, Jill e Eustáquio saíram da torre, ainda
bocejando e esfregando os olhos, o anão mostroulhes
onde poderiam colher punhados de uma erva
narniana chamada frésia-silvestre, que mais se
parece com a nossa azedinha mas é muito mais
gostosa quando cozida. (Para ficar mesmo
deliciosa é preciso um pouco de manteiga e
pimenta, mas isso eles não tinham no momento.)
Assim, pegando uma coisinha aqui, outra ali,
acabaram juntando os ingredientes para fazer um
bom cozido para o café ou almoço, ou seja lá o
que se quisesse chamar àquela hora do dia. Tirian
avançou um pouco mais floresta adentro e voltou
com galhos secos para fazer lenha. Enquanto a
comida cozinhava (o que lhes pareceu um tempo
enorme, especialmente quando o cheiro começou
a se alastrar, cada vez mais delicioso), o rei foi
providenciar um traje completo para Poggin: cota
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de malha, elmo, escudo, espada, cinto e uma
adaga. Depois foi dar uma olhada na espada de
Eustáquio e descobriu que este a colocara de volta
na bainha toda lambuzada de sangue do
calormano. O rei o repreendeu e o fez limpar e
polir a espada de novo.
Enquanto isso, Jill caminhava de um lado
para outro, ora mexendo a panela, ora olhando
com inveja para o unicórnio e o jumento, que
pastavam, felizes da vida. “Ah, se eu também
pudesse comer capim!”, pensou ela inúmeras
vezes naquela manhã.
Mas quando chegou a hora da refeição todo
mundo achou que valera a pena esperar, e todos se
serviram mais de uma vez. Depois de comerem
até se fartar, os três humanos e o anão foram
sentar-se nos degraus; os quadrúpedes deitaram-se
no chão, de frente para eles. O anão (com
permissão de Tirian e Jill) acendeu seu cachimbo.
– Agora, Poggin – disse o rei –, conte-nos
tudo o que sabe sobre o inimigo. Em primeiro
lugar, como é que explicaram a minha fuga?
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– Inventaram a história mais absurda que se
poderia imaginar, senhor – disse Poggin. – Quem
contou foi o gato Ruivo, e garanto que foi ele
mesmo quem inventou tudo. Nunca vi gato mais
velhaco do que esse tal de Ruivo. Pois ele disse
que ia passando pela árvore à qual o haviam
amarrado, senhor, e que Vossa Majestade estava
resmungando, praguejando e amaldiçoando
Aslam. “Numa linguagem que eu não ouso
repetir”, foram as palavras que ele usou, todo
empertigado e cheio de si... Vossa Alteza bem
sabe como um gato pode ser metido a importante
quando quer. E então, contou Ruivo, o próprio
Aslam apareceu de repente, num clarão de luz, e
devorou Vossa Majestade. Só de ouvir essa
história, todos os animais estremeceram e houve
até quem desmaiasse na mesma hora. E o macaco,
é óbvio, aproveitou-se direitinho da situação,
advertindo: “Viram só o que Aslam faz com quem
não o respeita? Que isto sirva de aviso para todos
vocês.” As pobres criaturas se lamentaram e
choraram, mas aquiesceram. Como vê, senhor,
sua fuga não os levou a pensar que ainda existem
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amigos leais que podem ajudá-los; ao contrário,
deixou-os muito mais apavorados e obedientes ao
macaco.
– Que astúcia infernal! – disse Tirian. – E
esse Ruivo, então, ajustou-se direitinho às idéias
do macaco. Os dois são a tampa e a panela.
– Do jeito que vão as coisas, senhor, a
questão agora é saber se o macaco se ajusta às
idéias dele – replicou o anão.
– O macaco deu para beber, sabe? Creio
que a trama, agora, é muito mais coisa do ruivo e
de Rishda, o capitão calormano. E tenho a
impressão de que algumas coisas que o gato
andou espalhando por aí entre os anões são a
principal causa do troco que lhe deram hoje. E já
lhe digo por quê. Anteontem, logo depois de
acabar uma daquelas odiosas reuniões da meianoite,
eu já ia a meio caminho de volta para casa
quando percebi que havia esquecido meu
cachimbo. Como era um cachimbo realmente bom
e um velho preferido meu, decidi voltar para
procurá-lo. Antes, porém, que chegasse ao lugar
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onde estivera sentado (estava escuro como breu),
ouvi uma voz de gato dizer: “Miau!”, e uma voz
de calormano responder: “Estou aqui... Fale
baixo!” No mesmo instante fiquei parado como
uma estátua e vi que os dois eram Ruivo e Rishda
Tarcaã, como o chamam por aí. “Nobre tarcaã,”
disse o gato naquela sua vozinha macia, “só
queria saber exatamente o que ambos quisemos
dizer hoje quanto a ser Aslam nada mais do que
Tash.” “Sem dúvida alguma, ó mais sagaz de
todos os gatos!”, respondeu o outro. “Tu
entendeste muito bem o que eu quis dizer com
isso.” “Você quis dizer que não existe nenhum
dos dois”, disse o gato. “Qualquer ser inteligente
sabe disso”, observou o tarcaã. “Então nós dois
podemos nos entender”, ronronou o gato. “Por
acaso você não está cheio desse macaco?” “Ele
não passa de um bobalhão ganancioso”,
respondeu o outro, “mas no momento precisamos
dele. Tu e eu podemos arranjar tudo às escondidas
e manejar o macaco para fazer o que quisermos.”
E Ruivo disse: “Você não acha que seria melhor
pôr alguns dos narnianos mais espertos a par dos
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nossos planos? Um por um, à medida que os
considerarmos aptos. Porque os animais que
realmente acreditam em Aslam podem mudar de
idéia a qualquer momento; e o farão se, por
insensatez, o macaco trair seu segredo. Aqueles,
porém, para quem tanto faz Tash ou Aslam, desde
que as coisas revertam em seu próprio benefício, e
que visam também à recompensa que lhes dará o
Tisroc quando Nárnia se tornar uma província
calormana, estes ficarão firmes.” “Excelente,
gato!”, disse o capitão. “Mas tenha muito cuidado
ao fazer a escolha.”
Enquanto o anão falava, o dia parecia
mudar. Quando eles se sentaram, o sol estava
brilhando. Agora, porém, Confuso sentia
calafrios. Precioso virava a cabeça de um lado
para outro, inquieto. Jill olhou para cima.
– Está fechando o tempo – disse ela.
– E está tão frio! – disse Confuso.
– Frio até demais, pelo Leão! – completou
Tirian, soprando nas mãos. – Cruzes! Que cheiro
nojento é esse?
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– Credo! – ofegou Eustáquio. – Parece
cheiro de coisa podre. Tem algum passarinho
morto por aí? Mas... como é que a gente não
notou isso antes?
Subitamente, Precioso deu um pulo,
sobressaltado, e apontou com o chifre.
– Olhem! – exclamou. – Vejam só aquilo!
Olhem, olhem!
E então todos os seis viram e todos
empalideceram na mesma hora, tomados de
profundo temor.
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AS NOVAS QUE A ÁGUIA
TROUXE
À sombra das árvores, no lado mais distante
da clareira, alguma coisa se movia. Vinha vindo
vagarosamente rumo ao Norte. À primeira vista,
quem a visse a confundiria com fumaça, pois era
acinzentada e meio transparente. Mas o cheiro era
de morte e não de fumaça... Além disso, a coisa
tinha uma forma constante, em vez de se revolver
e espalhar como fumaça. Lembrava ligeiramente a
forma de um homem, mas a cabeça era de pássaro
– parecia uma ave de rapina, com um bico curvo e
cruel. Tinha quatro braços, que trazia erguidos
acima da cabeça, esticados em direção ao Norte,
como se quisesse abarcar Nárnia inteira com suas
garras. E os dedos, todos os vinte, eram curvos
como o bico, e no lugar de unhas havia umas
garras compridas e pontudas como as de uma
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águia. Em vez de caminhar, a coisa flutuava sobre
a grama, que parecia murchar à medida que ela
passava.
Ao ver aquilo, Confuso deu um zurro
estridente e disparou para dentro da torre. Jill (que
não era nada covarde, como vocês sabem)
escondeu o rosto entre as mãos, tentando apagar
aquela visão horrível. Os outros, estarrecidos,
fitaram a coisa durante cerca de um minuto, até
que ela desapareceu entre as árvores mais
espessas, do lado direito da floresta. Então o sol
voltou a brilhar e ouviu-se novamente o canto dos
pássaros.
Um a um, eles começaram a respirar e a se
mexer de novo. Todos haviam ficado imóveis
como defuntos enquanto aquela coisa se movia.
– O que era aquilo? – perguntou Eustáquio,
num sussurro.
– Eu já vi isso uma vez, antes – disse
Tirian. – Mas estava gravado numa pedra e
revestido de ouro, e tinha olhos de diamante.
Naquela época eu era da idade de vocês e tinha
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ido a Tashbaan a convite do Tisroc. Ele me levou
ao grande templo de Tash, e foi lá que eu o vi,
esculpido acima do altar.
– Quer dizer que aquilo... aquela coisa... era
Tash? – ofegou Eustáquio.
Mas em vez de responder-lhe, Tirian
passou o braço pelos ombros de Jill, perguntandolhe:
– Como se sente, senhorita?
– T-t-tudo b-bem... – respondeu ela, tirando
as mãos do rosto e tentando sorrir. – Agora estou
bem. Só fiquei um pouquinho tonta por uns
instantes.
– É, pelo visto, o tal de Tash existe mesmo
–disse o unicórnio.
– É – disse o anão. – E aquele tolo do
macaco, que não acreditava em Tash, vai ter bem
mais do que ele imaginava. Chamou o demônio,
aí está ele!
– Para onde terá ido ele... aquilo... a coisa?
– gaguejou Jill.
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– Para o Norte, para o centro de Nárnia –
respondeu Tirian. – Ele veio para ficar.
Chamaram-no e ele veio mesmo.
– Bem feito! – disse o anão, dando uma
risadinha e esfregando as mãos peludas. – O
macaco vai ter uma bela surpresa. Ninguém deve
chamar o demônio sem saber o que está fazendo.
– Será que Tash vai se tornar visível para o
macaco? – indagou Precioso.
– Para onde foi Confuso? – perguntou
Eustáquio. Todo mundo começou a gritar por ele
e Jill saiu caminhando em volta da torre para ver
se o encontrava do outro lado. Já estavam
cansados de procurá-lo quando viram sua
cabeçorra cinzenta aparecer cuidadosamente para
fora da porta, dizendo:
– Cadê ele? Já foi embora?
Quando finalmente conseguiram convencê-
lo a sair, ele tremia como vara verde.
– Agora percebo como fui um jumento
ruim –disse Confuso. – Nunca deveria ter dado
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ouvidos a Manhoso. Jamais pensei que essas
coisas pudessem acontecer.
– Se você tivesse passado menos tempo
dizendo que não era esperto e mais tempo
tentando ser esperto... – começou Eustáquio, mas
Jill o interrompeu:
– Deixe o pobre Confuso em paz! Foi tudo
um engano, não foi, Confuso? – E beijou-lhe o
focinho.
Apesar de muito abalados pelo que tinham
acabado de ver, todos sentaram-se novamente e
reiniciaram a conversa.
Precioso tinha muito pouco a lhes contar.
Enquanto prisioneiro, passara quase todo o tempo
amarrado nos fundos do estábulo e, naturalmente,
nada ouvira dos planos do inimigo. Tinha
recebido chutes e pancadas (e, é claro, dado uns
bons coices também) e fora ameaçado de morte,
caso não dissesse que acreditava ser Aslam quem
tinha sido apresentado aos animais naquela noite,
à luz da fogueira. Na verdade, teria sido
executado naquela manhã mesmo, se não tivesse
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sido libertado. E não tinha a mínima idéia do que
acontecera à ovelha.
A questão agora era decidir se voltariam à
Colina do Estábulo naquela noite, para mostrar
Confuso aos narnianos e tentar convencê-los de
que haviam sido enganados, ou se era melhor
seguir para Leste ao encontro do centauro Passofirme,
que vinha trazendo ajuda de Cair Paravel, e
assim ir ao encalço do macaco e seus calormanos
já com reforços. Tirian preferia a primeira opção,
pois detestava a idéia de deixar o macaco ludibriar
o seu povo por um momento mais que fosse. Por
outro lado, o comportamento dos anões na noite
passada fora uma advertência. Pelo visto,
ninguém podia prever como o povo iria reagir,
mesmo depois de ver Confuso. Depois ainda
havia os soldados calormanos. Pelos cálculos de
Poggin, havia pelo menos trinta. Tirian tinha
certeza de que, se os narnianos ficassem do seu
lado, ele, Precioso, Poggin e as crianças (com
Confuso não dava mesmo para contar) teriam uma
boa chance de vencer. Mas, e se a metade dos
narnianos, inclusive todos os anões, resolvessem
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apenas sentar e ficar assistindo? Ou, o que era
pior, lutassem contra eles? O risco era grande
demais. Além do mais, havia agora o fantasma de
Tash. O que fazer?
Poggin ponderou que não havia mal algum
em deixar o macaco lidar com seus próprios
problemas por um ou dois dias. Agora ele já não
tinha Confuso para tirar do estábulo e expor aos
narnianos. Sabe Deus que mentira ele – ou Ruivo
–inventaria agora para explicar o ocorrido. Todas
as noites os animais imploravam para ver Aslam,
e se este não aparecesse com certeza até o mais
ingênuo deles iria desconfiar.
Finalmente, todos chegaram à conclusão de
que a melhor coisa era partir ao encontro de
Passofirme. Foi impressionante como todos se
animaram assim que a decisão foi tomada.
Sinceramente, não creio que isso tenha acontecido
porque algum deles estivesse com medo de uma
luta (com exceção, talvez, de Jill e Eustáquio).
Mas tenho para mim que, no fundo, cada
um deles estava contente por não precisar chegar
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perto (pelo menos não ainda) daquela pavorosa
coisa com cabeça de pássaro que, visível ou
invisível, já deveria estar rondando a Colina do
Estábulo. De qualquer forma, a gente se sente
bem melhor depois de tomar uma decisão.
Tirian disse que era melhor tirar os
disfarces, para não serem confundidos com os
calormanos, evitando assim a possibilidade de que
algum narniano leal os atacasse pelo caminho. O
anão pegou um pouco da graxa que usava para
esfregar nas espadas e nas lanças e misturou-a
com uma porção de cinzas de lareira, fazendo uma
mistura de aparência repugnante. Então eles
tiraram as armaduras calormanas e desceram para
o riacho. A mistura nojenta fazia espuma como
um sabonete: era até divertido ver Tirian e as duas
crianças ajoelhados à beira da água, esfregando a
nuca, ofegando e bufando, no esforço de enxaguar
o pescoço. Quando voltaram para a torre, tinham
o rosto vermelho e brilhante, como quem acaba de
tomar um bom banho antes de ir a uma festa.
Equiparam-se, novamente, desta vez ao
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verdadeiro estilo narniano, com espadas retas e
triangulares.
– Agora, sim – disse Tirian. – Assim é bem
melhor. Sinto-me de novo um homem de verdade.
Confuso implorou que lhe tirassem a pele
de leão, dizendo que esta era quente demais e,
embolada como estava em suas costas, muito
desconfortável; além disso, ele se sentia um
bobalhão com aquilo. Mas os outros disseram que
ele teria de agüentar um pouquinho mais, pois
queriam mostrá-lo naqueles trajes para os outros
bichos, embora tivessem de ir primeiro ao
encontro de Passofirme.
O que restara da carne de pato e de coelho
não valia a pena levar, mas eles pegaram alguns
biscoitos. Tirian trancou a porta da torre e assim
acabou-se a estada deles naquele lugar.
Passava um pouco das duas horas da tarde
quando saíram. Aquele era o primeiro dia
realmente quente da primavera. As folhinhas
verdes pareciam muito mais vistosas do que no
dia anterior: já não havia mais qualquer sinal de
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neve e viam-se, aqui e acolá, quantidades de
margaridas silvestres. Os raios de sol filtravam-se
através das árvores, os pássaros cantavam e ouviase
sempre (embora geralmente fora de vista) o
barulho de água corrente. Era difícil pensar em
coisas ruins, como Tash, por exemplo. As
crianças suspiravam: “Finalmente! Isto, sim, é a
verdadeira Nárnia!” Também Tirian tinha o
coração um pouco mais leve e caminhava à frente
deles, cantarolando uma velha marchinha
narniana, cujo refrão era assim:
Bate o tambor: Pã-rã-rã! Pram! Pram!
Bate e rebate: Pã-rã! Pram! Prrram!
Atrás do rei seguiam Eustáquio e o anão
Poggin, que ia dizendo para o companheiro os
nomes de todos os pássaros, árvores e plantas
narnianas que ele ainda não conhecia. Às vezes,
era Eustáquio quem lhe falava sobre as coisas da
Inglaterra.
Mais atrás vinha Confuso, seguido de Jill e
Precioso, que caminhavam bem pertinho um do
outro. Jill estava, por assim dizer, completamente
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apaixonada pelo unicórnio. Ela achava (e não
estava totalmente enganada) que ele era o animal
mais brilhante, gentil e elegante que já havia
conhecido. E seu jeito de falar era tão suave e
agradável, que mal dava para acreditar que
pudesse ser tão terrível e violento numa batalha.
– Ah, que maravilha! – disse Jill. – Ficar
andando por aí, à toa... Bem que eu gostaria de
viver mais aventuras deste tipo. Pena que esteja
sempre acontecendo tanta coisa em Nárnia!
Mas o unicórnio explicou-lhe que ela estava
enganada. Disse-lhe que os Filhos e Filhas de
Adão e Eva só eram trazidos de seu estranho
mundo para Nárnia quando havia agitação e
problemas, mas que Nárnia não era sempre
daquele jeito. Entre uma e outra de suas visitas,
transcorriam-se centenas e milhares de anos em
que reis pacíficos sucediam uns aos outros – eram
tantos que mal dava para recordar o nome de
todos eles ou contar quantos eram, sendo até
muito difícil citá-los todos nos livros de História.
E falou-lhe de velhas rainhas e heróis de quem ela
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nunca ouvira falar antes. Contou-lhe da rainha
Cisne Branco, que vivera muito antes de aparecer
a Feiticeira Branca e o Grande Inverno. Era tão
linda, disse ele, que, quando se mirava em
qualquer lago da floresta, o reflexo de seu rosto
passava um ano e um dia resplandecendo nas
águas como uma estrela à noite. Contou-lhe de
Bosque de Luar, uma lebre de ouvidos tão
aguçados que, se estivesse lá no Lago do
Caldeirão, era capaz de escutar, mesmo sob o
estrondoso barulho da grande queda-d’água,
qualquer homem que estivesse cochichando em
Cair Paravel. Depois contou-lhe como o rei
Furacão, o nono na descendência do rei Franco (o
primeiro de todos os reis de Nárnia), saíra
velejando pelos mares do Oriente, onde libertara
as Ilhas Solitárias de um dragão, recebendo como
recompensa as próprias ilhas, que se tornaram
parte das terras leais a Nárnia para sempre. Faloulhe
de séculos inteiros em que Nárnia fora tão
feliz, que sensacionais festas e danças, no máximo
torneios, eram a única coisa de que podiam
lembrar-se, e cada dia e cada semana era sempre
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melhor que o anterior. À medida que ia falando, a
imagem de todos aqueles anos felizes, milhares e
milhares deles, ia-se acumulando na mente de Jill,
como se ela estivesse olhando do alto de uma
montanha e enxergasse lá embaixo uma agradável
planície cheia de florestas, campos e rios, que se
estendiam cada vez mais para longe até perder-se
de vista. Então ela disse:
– Oh! Tomara que a gente consiga logo dar
um jeito naquele macaco e voltar à calma
daqueles bons tempos! E, aí, espero que estes
durem para sempre, eternamente. O nosso mundo
eu sei que vai acabar um dia. Mas quem sabe este
aqui não tenha o mesmo destino. Oh, Precioso!
Não seria maravilhoso se Nárnia nunca acabasse e
fosse para sempre como a Nárnia que você acaba
de descrever?
– Não, irmãzinha – respondeu Precioso. –
Todos os mundos caminham para um fim, exceto
a própria terra de Aslam.
– Bem, pelo menos – disse Jill –, espero
que o fim deste mundo ainda esteja a milhões de
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milhões de milhões de anos... Opa! Por que é que
estamos parando?
O rei, Eustáquio e o anão olhavam
pasmados para o céu. Jill arrepiou-se toda,
lembrando-se das coisas horrorosas que já tinham
visto. Mas desta vez não era nada disso. Era uma
coisa pequena e escura que se recortava contra o
céu azul.
– Pelo vôo, posso até jurar que é uma ave
falante – disse o unicórnio.
– Também acho – disse o rei. – Mas será
amigo ou espião do macaco?
– Para mim, senhor – disse o anão –, parece
ser a águia Sagaz.
– Não será melhor a gente se esconder entre
as árvores? – perguntou Eustáquio.
– Nada disso – disse Tirian. – O melhor é
ficarmos parados como estátuas. Se nos
mexermos, é certo que nos verá.
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– Vejam! – exclamou Precioso. – Está
voando em círculos. Agora já nos viu e está vindo
para cá.
– Apronte a flecha, senhorita – ordenou
Tirian a Jill – Mas não atire em hipótese alguma, a
não ser que eu ordene. Pode ser um amigo.
Se soubessem o que iria acontecer, teriam
desfrutado de um espetáculo belíssimo: a enorme
ave planava, suavemente, com extrema graça e
beleza, descendo ao seu encontro. Pousou num
rochedo a uns poucos metros de Tirían, fez uma
reverência com a cabeça emplumada e depois
falou, na sua estranha voz de águia:
– Salve, ó rei!
– Salve, Sagaz! – respondeu Tirian. – Já
que me chama de rei, devo acreditar que não é um
dos seguidores do macaco e de seu falso Aslam.
Estou realmente contente com a sua vinda.
– Senhor – disse a águia –, depois de ouvir
o que tenho a dizer, ficará mais triste com a minha
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vinda do que com a maior calamidade que já lhe
sobreveio.
Ao ouvir essas palavras, Tirian sentiu como
se o seu coração parasse de bater. Tentou, porém,
manter a calma:
– Vamos, fale! – disse ele.
– Duas coisas eu acabo de ver – falou
Sagaz. –A primeira foi Cair Paravel cheia de
narnianos mortos e de calormanos vivos. O
estandarte do Tisroc avançou contra as suas reais
muralhas, senhor, e vi os seus súditos fugindo da
cidade para todos os lados, rumo às florestas. Cair
Paravel foi tomada pelo mar. Vinte grandes
navios calormanos ali aportaram na escuridão da
noite, dois dias atrás.
Ninguém disse uma palavra.
– E a outra visão, umas cinco léguas para cá
de Cair Paravel, foi o centauro Passofirme atirado
ao chão, morto, traspassado por uma flecha
calormana. Estive com ele no seu derradeiro
momento e ele mandou esta mensagem para
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Vossa Majestade: “Lembre-se de que todos os
mundos chegam ao fim. E uma morte nobre é um
tesouro que ninguém é pobre demais para
comprar.”
– Quer dizer, então – disse o rei, após um
longo silêncio –, que Nárnia já não existe.
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9
A GRANDE REUNIÃO NA
COLINA DO ESTÁBULO
Durante um bom tempo ninguém conseguiu
dizer uma palavra nem derramar uma lágrima.
Então o unicórnio bateu com o casco no chão,
sacudiu a crina e começou a falar:
– Senhor, agora já não há mais necessidade
de um Conselho. Vemos que os planos do Macaco
foram muito além do que imaginávamos. Não há
dúvida de que ele já vinha tramando a coisa
secretamente com o Tisroc há muito tempo e,
assim que achou a pele de leão, mandou avisá-lo
que preparasse uma armada para tomar Cair
Paravel e Nárnia inteira. Agora nada mais nos
resta a fazer a não ser voltar à Colina do Estábulo;
vamos contar a verdade aos narnianos e enfrentar
a aventura para a qual Aslam nos enviou. E se,
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por um grande milagre, nós sete conseguirmos
derrotar os trinta calormanos que estão com o
macaco, devemos voltar novamente e morrer
lutando contra o grande exército deles, que logo
marchará de Cair Paravel.
Tirian assentiu com a cabeça. Voltando-se
para as crianças, disse:
– Agora, amigos, chegou a hora de
regressarem ao seu próprio mundo. Sem dúvida
alguma, já cumpriram a missão para a qual foram
enviados.
– M... mas... mas não fizemos nada! – disse
Jill, que tremia toda, não propriamente de medo,
mas porque aquilo tudo lhe parecia terrível
demais.
– É claro que sim – disse o rei. – Soltaramme
daquela árvore. Você rastejou que nem uma
cobra à minha frente ontem à noite e trouxe
Confuso. E você, Eustáquio, matou o seu
calormano. Contudo, são jovens demais para
participar de um fim tão sangrento como este que
nos espera hoje à noite ou, quem sabe, daqui a três
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dias. Eu lhes imploro – não, eu ordeno! – que
regressem ao seu lugar. Para mim seria uma
vergonha deixar guerreiros assim tão jovens
tombar em batalha ao meu lado.
– Não, não e não!!! – disse Jill (de muito
pálida que estava ao começar a falar, ficou
subitamente muito vermelha e depois empalideceu
de novo). – Não vamos embora, não importa o
que você diga. Vamos grudar em você, aconteça o
que acontecer. Não é, Eustáquio?
– É, sim. E não adianta criar caso por isso –
respondeu Eustáquio, que tinha enfiado as mãos
nos bolsos, sem se dar conta do quanto isso fica
esquisito quando se está usando uma cota de
malha. – Pois, como vê, não temos alternativa.
Não adianta falar em nos mandar de volta. De que
jeito? Não temos nenhuma mágica para fazer isso!
Ele tinha toda a razão, mas Jill detestou-o
por ter falado assim. Eustáquio tinha essa mania
de ser terrivelmente prático quando os outros
ficavam exaltados.
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Ao perceber que os dois estranhos não
podiam voltar para casa (a não ser que Aslam os
fizesse subitamente desaparecer dali), a primeira
atitude de Tirian foi tentar convencê-los a
atravessar as Montanhas do Sul rumo à
Arquelândia, onde provavelmente estariam a
salvo. Mas eles não sabiam o caminho e não havia
ninguém que pudesse ir com eles. E depois, como
ponderou Poggin, uma vez conquistada Nárnia, os
calormanos com certeza tomariam Arquelândia
logo a seguir: o Tisroc sempre desejara as terras
do Norte. No final das contas, Jill e Eustáquio
tanto suplicaram que Tirian acabou concordando
que eles o acompanhassem e assumissem seu
risco – ou, como disse ele, com muito mais
sensibilidade, “que enfrentassem a aventura para a
qual Aslam os enviava”.
A idéia do rei era que só deveriam regressar
à Colina do Estábulo (só de pensar nesse nome
eles já se sentiam mal) depois que escurecesse.
Mas o anão lhes disse que, se chegassem lá à luz
do dia, provavelmente encontrariam o lugar
deserto, a não ser talvez por um sentinela
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calormano. Os bichos estavam tão apavorados
com o que o macaco (e agora também o Ruivo)
lhes havia contado sobre esse novo Aslam furioso
(ou Tashlam), que não tinham coragem de se
aproximar dele, a não ser quando eram
convocados para aquelas terríveis reuniões à
meia-noite. Além do mais, os calormanos nunca
foram bons em andar no mato. Poggin achava
que, mesmo à luz do dia, eles facilmente
conseguiriam atingir a parte de trás do estábulo
sem ser vistos. Isso seria muito mais difícil depois
que anoitecesse, quando o macaco tivesse
convocado a bicharada, e os calormanos já
estivessem de guarda. Assim, depois de iniciada a
reunião, levariam Confuso para trás do estábulo,
completamente despercebidos, até o momento de
exibi-lo. Isso realmente seria o melhor, pois a
única chance que tinham era pegar os narnianos
de surpresa.
Todos concordaram, e assim o grupo inteiro
partiu numa outra direção (norte-leste), rumo à
detestada Colina. A águia de vez em quando
sobrevoava o grupo de um lado para outro e, às
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vezes, pousava nas costas de Confuso. Nenhum
deles (nem mesmo o próprio rei, exceto em caso
de extrema necessidade) sequer sonharia cavalgar
um unicórnio.
Eustáquio e Jill caminhavam juntos. No
momento em que imploraram a Tirian que lhes
permitisse ir com os outros, haviam sido muito
corajosos. Agora, porém, não sentiam o mínimo
de coragem.
– Jill – murmurou Eustáquio –, devo
confessar-lhe que estou morrendo de medo.
– Para você, tudo bem, meu caro –
respondeu Jill. – Você pode lutar. Mas, e eu?
Estou tremendo como vara verde, se é que você
quer saber.
– Ora, tremer não é nada – disse Eustáquio.
– Já estou quase vomitando.
– Pelo amor de Deus, nem me fale nisso –
disse Jill.
Permaneceram calados por uns dois
minutos.
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– Jill – disse Eustáquio, de repente.
– O que é?
– E se a gente morrer aqui, como é que vai
ser?
– Ficamos mortos, suponho.
– Não... quero dizer... o que vai acontecer
no nosso mundo? Será que a gente vai despertar e
se encontrar de novo naquele trem? Ou será que
vamos simplesmente sumir, e pronto, nunca mais
se ouve falar de nós? Ou será que vamos aparecer
mortos na Inglaterra?
– Papagaios! Nunca pensei nisso!
– Já pensou que esquisito se Pedro e os
outros me vissem acenando pela janela, e aí,
quando o trem parasse, não encontrassem a gente
em parte alguma? Ou então se nos achassem
mortos, lá na Inglaterra?
– Nossa! Que idéia horrível! – exclamou
Jill, com uma careta.
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– Para nós, até que não seria tão terrível
assim –disse Eustáquio. – Não iríamos estar lá,
mesmo...
– Eu quase gostaria... Não, não gostaria.
Esqueça.
– O que é que você ia dizer?
– Eu ia dizer que gostaria de nunca ter
vindo. Mas não, não e não! Mesmo que a gente
morra. Prefiro morrer lutando por Nárnia a crescer
e ficar uma velha caduca em casa, quem sabe até
andando por aí numa cadeira de rodas, e depois
acabar morrendo do mesmo jeito.
– Ou então ser esmagado nos trilhos da
estrada de ferro...
– Por que você diz isso?
– Porque... Bem, quando deu aquele terrível
solavanco (aquele que nos atirou aqui para
Nárnia), pensei que fosse um acidente de trem que
estava acontecendo. Por isso fiquei muito contente
ao descobrir que estávamos voltando a Nárnia.
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Enquanto Jill e Eustáquio conversavam
sobre essas coisas, os outros discutiam seus
planos. Isso os fazia sentir-se menos infelizes,
pois enquanto planejavam o que fazer naquela
mesma noite, a idéia do que acontecera a Nárnia
(de que todas as suas glórias e alegrias tinham
chegado ao fim) ficava em segundo plano. No
momento em que parassem de conversar, ficariam
tristes de novo – assim, continuavam falando. O
anão estava muito animado com o trabalho que
teriam de fazer à noite. Tinha certeza de que o
javali e o urso, e provavelmente todos os cães,
tomariam o partido do rei. E não acreditava que
todos os anões ficassem do lado de Grifo. Lutar à
luz da fogueira e sob as árvores seria vantajoso
para o lado mais fraco. Portanto, caso
conseguissem vencer naquela noite, que
necessidade haveria de desperdiçar suas vidas
num encontro com todo o exército calormano,
alguns dias mais tarde? Por que não se
esconderem nas matas ou mesmo lá para as
bandas do Bosque Ocidental, além da grande
cachoeira, e ali viverem como fora-da-lei? Então,
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se fortaleceriam pouco a pouco, pois a cada dia
novos animais falantes e habitantes da
Arquelândia se juntariam a eles. Finalmente
sairiam do seu esconderijo e varreriam do país os
calormanos (que, àquela altura, já andariam meio
descuidados), e
Nárnia voltaria à vida. Afinal, algo muito
parecido acontecera nos dias do rei Miraz.
Tirian escutava tudo, pensando: “Mas, e
Tash?” E, lá no fundo do coração, sentia que nada
disso iria acontecer. Mas não falou nada.
Ao se aproximarem da Colina do Estábulo,
todos foram ficando calados. Aí é que começou
mesmo o trabalho na floresta. Desde o primeiro
instante em que avistaram a colina, até o momento
em que todos chegaram aos fundos do estábulo,
passaram-se mais de duas horas. É o tipo de coisa
que não dá para descrever com precisão, a não ser
que se escrevam páginas e páginas sobre o
assunto. Cada corrida de um cantinho escondido
para outro era uma aventura isolada, para não
falar nas longas esperas entre cada uma e nos
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vários alarmes falsos. Se você é um bom escoteiro
ou uma boa bandeirante, então já deve ter uma
idéia de como deve ter sido. O sol já estava se
pondo quando todos conseguiram chegar a salvo e
esconder-se numa moita de azevinhos a uns
quinze metros dos fundos do estábulo. Depois de
mastigarem alguns biscoitos, deitaram-se.
Aí é que veio o pior: a espera. Felizmente
para as crianças, puderam dormir algumas horas.
Acordaram com o frio da noite e, o que era pior,
sedentos, mas não havia a menor chance de
conseguir algo para beber. Confuso, de pé e sem
dizer uma palavra, tremia de nervosismo.
Tirian, porém, com a cabeça recostada
contra o flanco de Precioso, dormia a sono solto,
roncando como se estivesse no seu leito real em
Cair Paravel, até que o barulho de um gongo o
despertou. O rei sentou-se e, vendo a fogueira
acesa do lado de lá do estábulo, percebeu que
havia chegado a hora.
– Precioso, dê-me um beijo – disse ele. –
Esta é, com certeza, a nossa última noite aqui na
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terra. E se alguma vez eu o ofendi de alguma
maneira, perdoe-me agora.
– Querido rei – disse o unicórnio –, quase
desejaria que isso já houvesse acontecido a fim de
poder perdoá-lo agora. Adeus. Já vivemos muitas
alegrias juntos. Se Aslam me desse uma chance de
escolher, não escolheria outra vida além da que eu
tive, nem morte diferente da que vamos ter agora.
Então acordaram Sagaz, que dormia com a
cabeça enfiada debaixo da asa, e saíram
rastejando na direção do estábulo. Deixaram
Confuso logo atrás deste (não sem antes lhe
dirigirem algumas palavras de carinho, pois
ninguém estava zangado com ele agora), dizendolhe
que não saísse dali até que alguém viesse
buscá-lo. Depois postaram-se de um dos lados do
estábulo.
A fogueira, que ficava a apenas alguns
metros de onde se encontravam, fora acesa há
bem pouco tempo e as labaredas começavam a
subir. Havia, do lado de lá, uma grande multidão
de narnianos, mas a princípio Tirian não
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conseguiu enxergá-los muito bem, embora visse
dezenas de pares de olhos brilhando ao reflexo do
fogo, tal e qual acontece com os olhos dos gatos e
dos coelhos quando se focaliza neles a luz de um
carro. Tirian acabara de encontrar um lugar para
ficar, quando o gongo parou de bater e três figuras
surgiram de algum lugar à sua esquerda. Um era
Rishda Tarcaã, o capitão calormano. O segundo
era o macaco, que vinha de mãos dadas com o
tarcaã e resmungava a cada instante: “Devagar!
Não ande tão depressa, que não estou nada bem.
Ai, a minha pobre cabeça! Estas reuniões à
meia-noite estão ficando pesadas demais para
mim. Macaco não foi feito para ficar acordado à
noite. Não sou nenhum rato ou morcego... Ai,
minha cabeça!” Do outro lado do macaco, num
passo muito macio e imponente e com a cauda
graciosamente erguida no ar, vinha o gato Ruivo.
Os três dirigiam-se para a fogueira, parando tão
perto de Tirian que, se algum deles tivesse olhado
bem na sua direção, com certeza o teria visto.
Felizmente isto não aconteceu. Mas Tirian
escutou Rishda dizer a Ruivo, baixinho:
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– Agora, gato, para o teu posto. Vê se
representas direitinho o teu papel.
– Miau! Miau! Conte comigo! – disse
Ruivo. Em seguida, passou pela fogueira e foi
sentar-se na primeira fila com os outros bichos: na
platéia, como se diria.
Pois, na verdade, aquilo tudo mais parecia
um teatro. A multidão de narnianos seria o povo
sentado nas poltronas; o pequeno gramado à
frente do estábulo, onde se acendia a fogueira e
onde o macaco e o capitão postavam-se em pé
para falar à multidão, parecia o palco; e o estábulo
propriamente dito seria o cenário aos fundos do
palco. Para completar, Tirian e seus amigos
seriam os “penetras”, que espiavam por detrás do
cenário. Era uma excelente posição. Se, por acaso,
algum deles desse pelo menos um passo na
direção do clarão da fogueira, no mesmo instante
todos os olhos se fixariam nele. Por outro lado,
enquanto permanecessem quietos à sombra da
parede do estábulo, a possibilidade de serem
vistos era quase nula.
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Rishda Tarcaã empurrou o macaco para
mais perto do fogo. Os dois encararam a multidão
(o que significava, obviamente, que agora
estavam de costas para Tirian e seus amigos).
– Agora, Mico – disse Rishda, bem
baixinho –, transmite as palavras que mentes mais
sábias colocaram na tua boca. E levanta a cabeça!
– Dito isso, aplicou-lhe um pequeno chute ou
cutucão por trás, com a ponta do dedão do pé.
– Deixe-me em paz! – resmungou
Manhoso. Depois empertigou-se e começou a
falar, agora em voz alta. – Agora, escutem bem,
todos vocês. Aconteceu uma coisa terrível. Uma
desgraça! A coisa mais desprezível que já se fez
em Nárnia. Aslam...
– Tashlam, seu idiota! – sussurrou Rishda.
–... quero dizer, Tashlam, naturalmente –
emendou o macaco –, está muito zangado por
isso.
Um pesado silêncio caiu sobre os narnianos
enquanto esperavam para ouvir que nova desgraça
lhes estava reservada. Até o grupinho escondido
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atrás da parede prendeu a respiração. O que viria
agora?
– Sim – disse o macaco. – Neste exato
momento, em que o Temível Ser encontra-se entre
nós (ali mesmo no estábulo, bem atrás de mim),
algum animal miserável resolveu fazer o que
ninguém sequer imaginaria que alguém fosse
capaz de fazer, mesmo que ele estivesse a milhas
e milhas daqui. O dito animal vestiu uma pele de
leão e anda vagando por essas matas, fingindo ser
Aslam.
Jill, por um momento, pensou que o
macaco tivesse enlouquecido. Será que ele ia
contar toda a verdade? Um urro de horror e de
fúria partiu dos animais. “Grrrr!”, rosnaram,
indignados. “Quem é ele? Onde está? Ah, se eu
ponho os dentes nele!”
– Ele foi visto a noite passada – continuou
o macaco –, mas desapareceu. É um jumento. Um
simples e miserável asno! Se algum de vocês vir
aquele...
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– Grrrr! – urravam os animais. – Vamos
encontrá-lo, ora se vamos! É melhor que ele suma
da nossa frente!
Jill voltou-se para o rei: ele tinha a boca
aberta e seu rosto estampava profundo terror. Só
aí ela compreendeu a diabólica astúcia do plano
inimigo: misturando um pouquinho de verdade à
mentira anterior, eles a haviam levado muito mais
longe. E agora, de que adiantaria contar aos
bichos que alguém tinha fantasiado um jumento
com uma pele de leão para enganá-los? O macaco
iria dizer apenas: “Foi justamente o que eu disse!”
De que valia agora mostrar-lhes Confuso vestido
com a pele de leão? Eles iriam deixá-lo em
frangalhos. “Furaram o nosso balão!”, cochichou
Eustáquio. “Puxaram o tapete sob os nossos pés!”,
disse Tirian. “Que maquinação maldita!”, disse
Poggin. “Posso até jurar que esta nova mentira é
coisa do Ruivo.”
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10
QUEM ENTRARÁ NO
ESTÁBULO?
Jill sentiu alguma coisa roçando de leve em
sua orelha. Era Precioso, sussurrando algo para
ela com um enorme cochicho de cavalo. Assim
que entendeu o que ele estava dizendo, acenou
com a cabeça e saiu na ponta dos pés até onde
estava Confuso. Rápida e silenciosamente, cortou
as últimas cordas que atavam a ele a pele de leão.
Imaginem se alguém o pegasse com aquilo,
depois do que o macaco acabara de dizer! Bem
que ela gostaria de esconder a pele em algum
canto bem longe dali, mas era pesada demais. O
máximo que conseguiu fazer foi chutá-la para
debaixo das moitas mais espessas. Depois fez
sinal a Confuso para que a seguisse, e os dois
reuniram-se aos demais.
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O macaco voltara a falar:
–...e depois de uma coisa tão terrível,
Aslam – digo, Tashlam – está mais enfurecido do
que nunca. Ele disse que tem sido complacente
demais com vocês, aparecendo todas as noites.
Pois bem, agora não aparecerá mais!
Uivos, miados, grunhidos e guinchos foram
a resposta dos animais àquelas palavras. Mas, de
repente, uma voz completamente diferente
rompeu numa estrondosa gargalhada.
– Escutem só o que o macaco está dizendo
– falava, rindo à solta. – Querem saber mesmo por
que ele não nos mostra o seu precioso Aslam?
Pois eu lhes digo: é porque ele não tem leão
algum! A única coisa que havia lá dentro o tempo
todo era um jumento velho com uma pele de leão
nas costas. E agora, que este desapareceu, ele não
sabe o que fazer.
Tirian não conseguia enxergar muito bem
os rostos do outro lado da fogueira, mas logo
imaginou que quem estava falando só podia ser
Grifo, o chefe dos anões. E já estava quase certo
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disso quando, logo a seguir, todos os anões
ergueram as vozes em coro:
– Não sabe o que fazer! Não sabe, não sabe,
não sabe o que fazer!
– Silêncio! – trovejou Rishda Tarcaã. –
Calai a boca, imundos! E vós, os outros narnianos,
prestai atenção, antes que eu ordene aos meus
guerreiros que partam para cima de vós com o fio
da espada. Lorde Manhoso já contou-vos sobre
aquele asno maldito. Por acaso pensais que o
verdadeiro Tashlam não está dentro daquele
estábulo? Pois cuidado, cuidado!
– Que nada! Que nada! — zombava a
maioria dos animais.
– Está bem, moreninho, é claro que ele está
lá! – disseram os anões. – Vá lá, Mico, mostre-nos
o que está dentro do estábulo. Queremos ver para
crer!
Depois de um momento de silêncio, o
macaco falou:
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– Vocês, anões, acham que são muito
espertos, não é? Mas vamos com calma. Eu nunca
lhes disse que não poderiam ver Tashlam.
Qualquer um que queira pode vê-lo.
O auditório inteiro ficou em silêncio.
Depois, passado cerca de um minuto, ouviu-se a
voz pausada e arrastada de um urso:
– Agora mesmo é que eu não entendo mais
nada! Pensei que você tinha dito...
– Você pensou! – interrompeu-o o macaco.
– Como se se pudesse chamar de pensamento o
que vai nesta sua cabeça! Escutem aqui, vocês
todos. Qualquer um pode ver Tashlam. Mas ele
não vai sair do estábulo. Quem quiser vê-lo terá
de ir lá dentro.
– Oh, obrigado! Muito obrigado! –
exclamaram centenas de vozes. – Era isso o que
estávamos esperando. Podemos entrar e vê-lo face
a face. Agora ele vai ser bondoso e tudo voltará ao
que era antes!
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Os pássaros começaram a gorjear e os cães
latiram excitados. De repente, ouviu-se um grande
rebuliço de criaturas se mexendo, erguendo-se
sobre as patas e, em questão de segundos, havia
uma verdadeira avalanche de bichos correndo e se
amontoando na porta do estábulo. Mas o macaco
berrou:
– Para trás! Calma! Para que tanta pressa?
Os bichos pararam, muitos deles ainda com
uma pata no ar, outros abanando a cauda e todos
com a cabeça voltada para o lado.
– Pensei que você tinha dito... – começou o
urso, mas foi interrompido por Manhoso.
– Qualquer um pode entrar — disse ele. –
Mas tem de ser um de cada vez. Quem vai ser o
primeiro? Aliás, ele disse que não está de bom
humor hoje. Desde que devorou aquele maldito
rei, na noite passada, vive lambendo os beiços.
Hoje de manhã não parava de urrar. Eu mesmo
não gostaria muito de entrar nesse estábulo hoje à
noite. Mas vocês é que sabem. Vamos lá, quem
vai entrar primeiro? Ninguém me culpe se ele
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devorar alguém de uma vez, ou se o reduzir a
cinzas com um simples olhar. Problema de vocês.
E agora, vamos ao primeiro? Quem será? Que tal
um de vocês, anões?
– Venham, seus bobos, para a boca do lobo!
– cantarolou Grifo, em tom de mofa. — Como é
que vamos saber o que vocês esconderam lá
dentro?
– Hã-hã! – fez o macaco. – Então vocês
estão começando a acreditar que existe alguma
coisa lá dentro, hem? Pois bem, um minuto atrás
estavam todos fazendo o maior alarido. E agora,
perderam a fala? Vamos, quem será o primeiro?
Os bichos, porém, limitaram-se a olhar uns
para os outros e, aos poucos, foram se afastando
do estábulo. Agora já quase não se viam mais
caudas abanando. O macaco gingava de um lado
para outro, dando gargalhadas e escarnecendo
deles:
– Ah, ah, ah! Pensei que estavam doidinhos
para ver Tashlam face a face! Mudaram de idéia,
é?
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167
Tirian abaixou a cabeça para escutar o que
Jill tentava cochichar-lhe ao ouvido. “O que você
acha que há realmente lá dentro?”, perguntou ela.
“Quem sabe? Talvez dois calormanos com as
espadas desembainhadas, um de cada lado da
porta, provavelmente”, respondeu ele. “Não acha
que poderia ser... você sabe o quê... aquela coisa
horrorosa que nós vimos?”, gaguejou a menina.
“O próprio Tash? Ê muito provável... Mas,
coragem, minha amiga: todos nós estamos nas
patas do verdadeiro Aslam.”
Foi aí que aconteceu o mais inesperado.
Numa voz calma e fria, sem demonstrar a mínima
excitação, o gato Ruivo disse:
– Eu vou, se vocês quiserem...
Todas as criaturas voltaram-se para o gato,
encarando-o fixamente. “Pode contar por certo,
senhor”, disse Poggin ao rei. “Esse gato
desgraçado faz parte da trama! O que quer que
esteja lá dentro, não lhe fará mal algum, eu
garanto. Então Ruivo sairá novamente dizendo
que viu algo excepcional.”
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Mas Tirian nem teve tempo de responder,
pois o macaco estava chamando o gato para a
frente.
– Ora, essa é muito boa! Quer dizer que
você, seu bichano atrevido, quer vê-lo face a
face?! Pois venha, eu lhe abro a porta. Não me
culpe se ele lhe arrancar os bigodes da cara. O
problema é seu.
O gato levantou-se e saiu do meio da
multidão, caminhando todo empertigado e
afetado, com a cauda bem empinada, sem arrepiar
sequer um fio do seu pêlo macio e lustroso.
Passou pela fogueira e parou tão perto de Tirian
que este, do lugar onde estava, com o ombro
encostado na parede de fora do estábulo,
conseguiu enxergar direitinho a cara dele. Seus
grandes olhos verdes nem sequer piscavam. (“Que
frieza”, murmurou Eustáquio. “Isso é porque ele
sabe que não há nada a temer.”) O macaco,
mofando e fazendo caretas, saiu arrastando as
patas ao lado do gato; ergueu a mão, levantou a
tranca e abriu a porta. Tirian teve a impressão de
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ouvir o gato ronronar enquanto passava pela porta
escura.
– Miiiaaaauuuuuu!
O pavoroso miado fez todo mundo pular.
Você já deve ter acordado no meio da noite com o
barulho de gatos brigando ou fazendo amor no
telhado, e bem sabe a gritaria que eles fazem. Pois
dessa vez foi muito pior. O gato escapuliu do
estábulo numa velocidade tão grande que se
chocou violentamente contra o macaco, fazendo-o
virar uma enorme cambalhota. Quem não
soubesse que era um gato, pensaria que se tratava
de um relâmpago avermelhado. Ruivo estatelouse
no chão, no meio da multidão, lá atrás.
Ninguém quer topar com um gato numa hora
dessas. Era bicho correndo para todo lado. Ruivo
precipitou-se contra uma árvore, rodopiou e
tombou a cabeça. A cauda se eriçou toda, até ficar
quase tão grossa quanto o seu próprio corpo. Os
olhos pareciam duas bolas de fogo verde, e cada
pêlo das suas costas estava totalmente arrepiado.
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– Eu daria tudo para saber se esse bruto está
só fingindo ou se realmente encontrou algo lá
dentro que o apavorasse tanto – disse Poggin.
– Silêncio, meu amigo – disse Tirian, pois
queria escutar o que o capitão e o macaco estavam
cochichando. A única coisa que conseguiu ouvir,
porém, foi o macaco choramingando de novo:
“Ai, minha cabeça! Minha cabeça!” Mas teve a
impressão de que aqueles dois estavam tão
desconcertados quanto ele com o comportamento
do gato.
– Agora, Ruivo, chega de barulho – disse o
capitão. – Conta a eles o que viste lá dentro.
– Ah, ah, ahu! Aaaaiiiiu! – guinchava o
gato.
– És ou não és um gato falante? –
perguntou o capitão. – Então pára com essa
barulheira e fala de uma vez.
Foi então que algo terrível aconteceu.
Tirian tinha quase certeza (e os outros também) de
que o gato estava tentando dizer alguma coisa,
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mas nada saía de sua boca, a não ser o barulho
comum e feio que emitiria qualquer bichano bravo
ou assustado no fundo de qualquer quintal. E
quanto mais ele miava, menos se parecia com um
animal falante. Os outros animais romperam em
apreensivos lamentos e guinchinhos agudos.
– Vejam! Vejam! — ouviu-se a voz do
urso. — Ele não consegue falar! Esqueceu como é
que se fala! Voltou a ser um animal mudo. Vejam
a cara dele!
Todo mundo viu que era verdade. Então um
profundo pavor apoderou-se de todos aqueles
narnianos. Todos haviam aprendido desde
pequeninos que, no começo do mundo, Aslam
transformara os bichos de Nárnia em animais
falantes, advertindo-os de que, caso se portassem
mal algum dia, voltariam a ser como antes, iguais
aos animais irracionais de qualquer outro mundo.
“E agora está acontecendo conosco”,
lamentavam-se.
– Misericórdia! Misericórdia! – imploraram
eles. – Lorde Manhoso, tenha piedade de nós!
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Seja o mediador entre nós e Aslam e fale-lhe
sempre em nosso favor. Nós não ousamos!
Ruivo desapareceu entre as árvores e nunca
mais foi visto por ninguém.
Tirian continuava com a mão no punho da
espada e de cabeça baixa. Estava estupefato com
os horrores que vira naquela noite. Às vezes,
pensava que o melhor seria sacar a espada de uma
vez e avançar contra os calormanos. Mas, em
seguida, ponderava que seria mais prudente
esperar para ver o que mais poderia acontecer. E,
de fato, algo novo ocorreu logo depois.
– Meu pai – falou alguém numa voz clara e
ressonante, vinda do lado esquerdo da multidão.
Tirian viu logo que quem falava era um
calormano, pois no exército do Tisroc os soldados
comuns chamam os oficiais de “meu mestre”, e os
oficiais chamam os seus superiores de “meu pai”.
Jill e Eustáquio não sabiam disso mas, depois de
olhar para um lado e para outro, conseguiram ver
quem estava falando, pois naturalmente era bem
mais fácil enxergar quem estava dos lados do que
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quem estava no meio, onde o brilho da fogueira
fazia com que todos parecessem mais escuros. Era
um homem jovem, alto, esbelto e até bonito para
os padrões calormanos.
– Meu pai – disse ele ao capitão. – Eu
também quero entrar no estábulo.
– Fica quieto, Emeth – respondeu o capitão.
–Quem te chamou aqui? Como é que um fedelho
como tu ousa falar?
– Meu pai – disse o jovem –, é bem verdade
que eu sou mais jovem do que tu. Tenho, no
entanto, sangue de tarcaã, assim como tu, e sou
igualmente servo de Tash. Portanto...
– Silêncio! – berrou Rishda Tarcaã. – Não
sou eu porventura o capitão? Tu nada tens a ver
com este estábulo. Ele é para os narnianos.
– Nada disso, meu pai – replicou Emeth. –
Tu disseste que o Aslam deles e o nosso Tash são
um só. E, se isso é verdade, então é o próprio
Tash quem está ali dentro. Portanto, por que dizes
que nada tenho a ver com ele? Eu,
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prazerosamente, morreria mil mortes só para
poder ver uma única vez a face de Tash.
– És um grande tolo e nada entendes – disse
Rishda Tarcaã. – Isso é uma coisa muito séria.
O rosto de Emeth tornou-se ainda mais
grave.
– Então não é verdade que Tash e Aslam
são um só? Quer dizer que o macaco mentiu para
nós?
– É claro que os dois são um só! – interveio
o macaco.
– Jura, macaco – falou Emeth.
– Oh, céus! – soluçou Manhoso. – Por que
é que vocês não param de me importunar? Estou
morrendo de dor de cabeça! Está bem, eu juro, eu
juro.
– Neste caso, meu pai – disse Emeth –,
estou definitivamente decidido a entrar.
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– Idiota... – começou a dizer Rishda, mas
foi interrompido pelos anões, que começaram a
berrar de uma vez:
– Vamos lá, moreno! Por que não deixa ele
entrar?
Por que os narnianos podem entrar e a sua
gente tem de ficar de fora? O que é que tem lá
dentro que você não quer que seus próprios
homens encontrem?
Tirian e seus amigos só conseguiam ver as
costas de Rishda, por isso não tinham a menor
idéia de qual era a expressão do seu rosto quando
sacudiu os ombros, dizendo: “Sejam todos
testemunhas de que não sou culpado do sangue
deste jovem tolo. Vá lá, menino imprudente,
entra. E depressa!”
Então, da mesma forma que Ruivo, Emeth
saiu andando em direção ao gramado que
separava a fogueira do estábulo. Tinha os olhos
brilhantes, o rosto solene, a mão pousada no
punho da espada e a cabeça erguida. Jill quase
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chorou ao olhar para o rosto dele. Precioso
sussurrou ao ouvido do rei:
– Pela Juba do Leão! Eu quase chego a
amar este jovem guerreiro calormano. Ele é digno
de um deus melhor do que Tash.
– Eu realmente gostaria de saber o que
existe lá dentro – disse Eustáquio.
Emeth abriu a porta e penetrou na boca
negra do estábulo, fechando a porta atrás de si.
Passaram-se apenas alguns minutos (mas pareceu
muito mais) antes que a porta se abrisse
novamente. Uma figura trajada com armadura
calormana cambaleou para fora, caindo
pesadamente ao chão; a porta fechou-se às suas
costas. O capitão correu até ele e abaixou-se para
ver-lhe o rosto. Fez um gesto de surpresa e,
recuperando-se do susto, voltou-se para a
multidão, exclamando:
– Este jovem precipitado ganhou o que
queria. Olhou para Tash e agora está morto. Que
isto sirva de aviso para todos vocês.
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– Está bem, está bem! – disseram os pobres
bichos.
Tirian e seus amigos, porém, olharam
estarrecidos para o calormano morto e depois um
para o outro. Já que estavam tão perto, podiam ver
o que a multidão, de muito longe e do lado de lá
do fogo, não podia enxergar: o homem que ali
jazia morto não era Emeth. Era um homem
completamente diferente: mais velho, mais
corpulento, não tão alto e com uma barba enorme.
– Eh, eh, eh! – cacarejava Manhoso. –
Alguém mais? Quem mais deseja entrar? Bem, já
que são tão tímidos, vou escolher o próximo. Ah,
já sei! Você, javali. Venha cá. Calormanos,
tragam-no aqui. Ele vai ver Tashlam face a face.
– Grrrunfu! – grunhiu o javali, erguendo-se
pesadamente. – Venham, se é que têm coragem!
Venham sentir o gostinho das minhas presas!
Ao ver o corajoso animal aprontando-se
para lutar em defesa de sua vida, e os soldados
calormanos aproximando-se dele com as
cimitarras desembainhadas, sem que ninguém
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viesse em seu auxílio, alguma coisa ferveu dentro
de Tirian. Já não lhe importava mais se esse era
ou não o momento apropriado para intervir.
– Sacar a espada! – sussurrou baixinho para
os outros. – Aprontar o arco! Avançar!
Logo a seguir os atônitos narnianos viram
sete figuras saltarem para a frente do estábulo,
quatro delas com armaduras brilhantes. A espada
do rei lampejou à luz da fogueira quando ele a
brandiu acima da cabeça, exclamando em alta
voz:
– Aqui estou eu, Tirian de Nárnia, em nome
de Aslam, a fim de provar com o meu próprio
corpo que Tash é um espírito imundo, o macaco
um grande traidor e esses calormanos dignos de
morte! Quem for narniano de verdade que fique
do meu lado. Ou vão esperar até que os seus
novos senhores os matem todos, um por um?
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ACELERA-SE O PASSO
Rápido como um relâmpago, Rishda Tarcaã
deu um pulo para trás, colocando-se fora do
alcance da espada do rei. Ele não era um covarde
e poderia até lutar com uma só mão contra Tirian
e o anão, se preciso fosse. Mas enfrentar também
a águia e o unicórnio era demais para ele. Rishda
sabia muito bem que as águias podem voar contra
o rosto das pessoas, dando-lhes bicadas nos olhos
e cegando-as com as asas. E seu próprio pai (que
já enfrentara os narnianos em batalha) lhe dissera
que homem nenhum é capaz de resistir a um
unicórnio, a não ser com flechas ou uma lança
bem comprida, pois este se empina sobre as patas
traseiras e se atira de corpo inteiro para cima da
gente, de tal forma que é preciso lidar com os
cascos, o chifre e os dentes ao mesmo tempo.
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Assim, o capitão precipitou-se para a multidão,
berrando:
– Segui-me, guerreiros do Tisroc (que ele
viva para sempre!)! Segui-me, todos os narnianos
leais, ou a ira de Tashlam cairá sobre todos vós!
Enquanto isso, duas outras coisas
aconteciam. O macaco não se dera conta, tão
rápido quanto o tarcaã, do perigo que corria.
Durante cerca de um minuto permaneceu
agachado ao lado da fogueira, olhando estupefato
para os recém-chegados. Então Tirian lançou-se
em direção à criatura, agarrou-a pela nuca e partiu
como um raio para o estábulo, gritando: “Abram a
porta!” Poggin obedeceu.
– Vá lá e beba do seu próprio remédio,
Manhoso! – disse Tirian, arremessando o macaco
contra a escuridão.
Assim que o anão fechou a porta de novo,
uma ofuscante luz azul-esverdeada resplandeceu
do lado de dentro do estábulo, a terra tremeu e
ouviu-se um estranho ruído – um cacarejar
estridente como se fosse a voz rouca de algum
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pássaro monstruoso. Os bichos começaram a
soluçar e uivar, implorando em alta voz:
“Tashlam! Por favor, escondam-nos!”
Muitos caíram no chão e outros esconderam
a cara entre as asas ou as patas. Ninguém, a não
ser a águia Sagaz, cuja visão é melhor que a de
qualquer outra criatura, viu o rosto de Rishda
Tarcaã naquele momento. E, pelo que viu, a águia
percebeu na hora que Rishda estava tão surpreso e
quase tão apavorado quanto qualquer um deles.
“Eis aí alguém que invocou deuses em que não
crê”, pensou a águia. “E agora, se eles vierem
mesmo, o que ele vai fazer?”
A terceira coisa (que também aconteceu ao
mesmo tempo) foi a única realmente bonita
daquela noite. Todos os cães falantes que estavam
no meio da multidão (havia uns quinze deles)
vieram saltando e latindo alegremente para o lado
do rei. A maioria deles eram cães enormes,
corpulentos e de mandíbulas ferozes. Sua chegada
foi como o rebentar de uma grande onda na beira
da praia: quase derruba a gente no chão. Pois,
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embora falantes, todos eram tão “cães” como
qualquer outro: levantaram-se, colocando as patas
dianteiras nos ombros dos humanos, e lamberamlhes
os rostos. E disseram, todos ao mesmo
tempo: “Bem-vindos, pessoal-al-al! Contem
conosco, já, já, já! Digam: qual é o nosso
trabalho? Qual, qual, qual?”
Foi uma cena tão emocionante que dava
vontade de chorar. Finalmente alguma coisa saía
como eles queriam. Quando, pouco depois, vários
animaizinhos (ratos, toupeiras, esquilos e outros)
se aproximaram com seus passinhos miúdos,
tagarelando alegremente e dizendo: “Aqui! Aqui!
Tem mais gente aqui!”, e quando, depois disso,
chegaram também o urso e o javali, Eustáquio
começou a acreditar que, afinal de contas, tudo
poderia acabar dando certo. Tirian, porém, deu
uma olhadela ao redor e constatou que, do grupo
inteiro, eram realmente bem poucos os animais
que haviam atendido ao seu apelo.
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– Venham! Venham comigo! – chamou de
novo. –Será que, depois que deixei de ser o seu
rei, vocês todos ficaram covardes?
– Não temos coragem! — soluçavam
dezenas de vozes. – Tashlam pode enfurecer-se
conosco. Livre-nos da ira de Tashlam!
– Onde estão todos os cavalos falantes? –
perguntou Tirian ao javali.
– Nós sabemos! Nós sabemos! –
guincharam os ratos. – O macaco colocou-os para
trabalhar. Estão todos presos, lá no fundo do vale.
– Então, meus amigos miudinhos, escutem
aqui: todo mundo que sabe mordiscar, os
comedores de nozes e todos os roedores, corram o
mais rápido que puderem até onde estão os
cavalos e perguntem se estão do nosso lado. Se
disserem que sim, metam os dentes nas cordas e
roam até libertá-los, e tragam-nos imediatamente
para cá.
– Com todo o prazer, senhor – disseram as
vozinhas. E, num abrir e fechar de olhos, lá se
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foram aqueles bichinhos de olhos aguçados e
dentes afiados. Tirian sorriu, amoroso, ao ver
sumir num instante aquele monte de rabinhos
empinados. Agora, porém, era preciso pensar em
outras coisas. Rishda Tarcaã já estava dando suas
ordens.
– Vamos! – dizia ele. – Peguem todos
(vivos, se possível) e atirem-nos dentro do
estábulo... Ou então encurralem todos para lá.
Quando estiverem lá dentro, vamos atiçar fogo no
estábulo e oferecê-los em sacrifício ao grande
deus Tash!
– Ah! – disse Sagaz consigo mesmo. –
Então é assim que ele espera ganhar o perdão de
Tash pela sua descrença? !
A linha inimiga (cerca de metade das forças
de Rishda) já começava a avançar, e Tirian mal
tivera tempo de dar suas ordens.
– Jill, vá para a esquerda e tente atingir
todos quantos puder antes que nos ataquem. Você,
urso, e você, javali, fiquem perto dela. Poggin,
fique aqui à minha esquerda, e você, Eustáquio, à
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minha direita. Precioso, guarde a ala da direita.
Fique ao lado dele, Confuso, e use os cascos. E
você, Sagaz, fique planando e ataque por cima.
Cães, fiquem atrás de nós e, assim que começar o
jogo das espadas, entrem no meio deles e ataquem
para valer. Que Aslam nos ajude!
O coração de Eustáquio só faltava sair pela
boca; ele torcia para que, na hora H, não lhe
faltasse coragem. Embora já tivesse visto um
dragão e uma serpente do mar, nunca nada lhe
dera tanto frio na barriga quanto aquela fileira de
homens de rosto escuro e olhos brilhantes. Havia
uns quinze calormanos, além de um touro falante
de Nárnia, a raposa Ladina e o sátiro Brigão. De
repente ele escutou um zunido à sua esquerda e
um calormano caiu no chão. Logo a seguir, um
novo zunido, e desta vez foi o sátiro quem
tombou.
– Muito bem, irmãzinha! Bravo! – gritou
Tirian. E então o inimigo avançou contra eles.
Eustáquio nunca soube dizer o que se
passou nos dois minutos seguintes. Foi tudo como
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um pesadelo (daqueles que a gente tem quando
está queimando de febre), até que ele escutou a
voz de Rishda Tarcaã gritando lá longe:
– Recuem! Voltem aqui e formem fila de
novo! Aos poucos, Eustáquio foi recuperando os
sentidos e viu os calormanos disparando de volta
para perto dos companheiros. Mas nem todos.
Dois deles estavam mortos, um traspassado pelo
corno de Precioso e o outro pela espada de Tirian.
A raposa jazia morta aos pés de Eustáquio, sem
que este soubesse dizer ao certo se fora ele ou não
quem a matara. O touro também estava morto,
com uma flecha de Jill espetada num olho e um
lado estraçalhado pelas presas do javali.
Do lado de cá, no entanto, também havia
perdas. Três cães estavam mortos e um quarto
vinha mais atrás, ganindo e manquejando sobre
três pernas. O urso jazia no chão, mal
conseguindo se mover. Na sua voz rouca,
murmurou aturdido diante do fim: “Eu... eu não...
compreendo...”; pousou a enorme cabeça sobre a
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grama, tão suavemente quanto uma criança que
adormece, e nunca mais se mexeu.
De fato, o primeiro ataque havia falhado.
Eustáquio nem parecia alegrar-se com isso, pois
estava com uma sede terrível e seu braço doía
muito.
À medida que os calormanos derrotados
voltavam para perto do seu comandante, os anões
começaram a zombar deles:
– E então, morenos, estão satisfeitos? –
debochavam, em coro. – Não gostaram, não é?
Por que é que o seu poderoso tarcaã não vem lutar
ele mesmo, em vez de empurrar vocês para a
morte? Pobres morenos!
– Anões! – esbravejou Tirian. – Venham
para cá e usem as espadas em vez da língua!
Ainda é tempo! Anões de Nárnia, sei que vocês
sabem lutar muito bem! Onde está a sua lealdade?
– Bah! – escarneciam os anões. – Nem
pense nisso! Vocês são tão embusteiros quanto
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essa outra cambada! Não queremos rei nenhum.
Vivam os anões! Buuuuuu!
Nesse instante, os tambores começaram:
não o tamborilar típico dos anões, mas um grande
e surdo rufar de tambores calormanos, que as
crianças detestaram logo de saída: bum! bum!
bum-bum-bum!!! E o teriam detestado muito mais
se soubessem o seu significado. Tirian sabia.
Significava que, em algum lugar nos arredores,
havia outras tropas calormanas e que Rishda
Tarcaã as chamava em seu auxílio. Tirian e
Precioso se entreolharam, desanimados. Já tinham
alguma esperança de sair vencedores naquela
noite. Agora, porém, se chegassem reforços para o
inimigo, seria o seu fim.
O rei olhou à sua volta, desesperado. Vários
narnianos estavam do lado dos calormanos, fosse
por traição ou por terem realmente medo de
Tashlam. Outros limitavam-se a observar quietos,
pasmos, sem se decidir por nenhum dos lados. Os
animais, entretanto, já eram bem menos: o grupo
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era muito menor. Muitos, aliás, haviam escapulido
de mansinho durante o combate.
Bum! bum! bum-bum-bum!!!, ouvia-se o
apavorante rufar dos tambores. De repente, um
barulho diferente começou a misturar-se ao dos
tambores.
– Escutem! – disse Precioso, e logo
acrescentou: – Vejam!
Um minuto mais tarde já não havia mais
dúvidas quanto ao que se passava. Com um
estrondo de cascos, as cabeças altivamente
atiradas para trás, as ventas dilatadas e as crinas
agitadas ao vento, um verdadeiro batalhão de
cavalos falantes de Nárnia disparava colina acima.
Os roedores haviam cumprido sua missão.
Poggin e as crianças abriram a boca para
saudá-los, mas a saudação nem lhes chegou aos
lábios. De repente o ar se encheu do som de arcos
zunindo e de flechas sibilando. Eram os anões que
atiravam – e (no primeiro instante, Jill mal podia
acreditar nos próprios olhos), o que é pior,
atiravam contra os cavalos. Os anões são
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arqueiros mortais. Um após outro, os cavalos
foram rolando ao chão. Nem um sequer daqueles
nobres animais chegou a alcançar o rei.
– Porquinhos miseráveis! – estourou
Eustáquio, tremendo de raiva. – Gentinha imunda,
nojenta, brutinhos traidores!
– Senhor, quer que eu corra atrás daqueles
anões e espete uns dez de cada vez com o meu
chifre? – disse Precioso, fora de si.
O rei, porém, cujo rosto estava rígido como
uma rocha, respondeu:
– Calma, Precioso! E você, minha querida
(referia-se a Jill), se vai mesmo chorar, vire o
rosto para o lado e cuide para não molhar a corda
do arco. Você, Eustáquio, controle-se e não fique
aí xingando feito um moleque de rua! Um
guerreiro nunca diz palavrões. Palavras corteses e
golpes duros são sua única linguagem.
Entrementes, os anões começaram a
debochar de Eustáquio:
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– Pegamos você de surpresa, não foi,
garotinho? Pensava que estávamos do seu lado,
hein? Nem se iluda! Não queremos saber de
cavalos falantes! Para nós tanto faz ganharem
vocês ou a outra corja. Vocês não nos enganam!
Vivam os anões!
Rishda Tarcaã continuava parado,
conversando com seus homens, provavelmente
combinando tudo para o próximo ataque e, quem
sabe, lamentando não ter mandado a tropa inteira
logo da primeira vez. Os tambores continuavam a
rufar. Então, para o seu desespero, Tirian e os
amigos escutaram, bem fraquinho, como se viesse
de muito longe, um rufar de tambores em
resposta. Uma outra turma de calormanos captara
o pedido de socorro de Rishda e estava vindo em
seu auxílio. O rosto de Tirian, porém, não deixava
entrever o mínimo sinal de que houvesse perdido
as esperanças.
– Escutem – disse ele, com uma voz de
quem não está muito preocupado –, é melhor
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atacarmos agora, antes que esses canalhas
recebam reforços de seus amigos.
– Senhor – disse Poggin –, é bom levarmos
em consideração que, aqui, temos às nossas costas
a parede do estábulo. Não acha que, se
avançarmos, eles tentarão nos rodear, separandonos
uns dos outros com as suas lanças?
– Concordo, anão – respondeu Tirian. –
Mas não acha que é justamente isso que eles
querem, encurralar-nos para entrarmos no
estábulo? Quanto mais longe ficarmos daquela
porta maldita, melhor.
– O rei tem razão – disse Sagaz. – Para
longe desse maldito estábulo e seja lá o que for
que está lá dentro... E a todo custo!
– Isso mesmo – disse Eustáquio. – Só de
olhar para ele, já fico com raiva.
– Bom – falou Tirian. – Agora olhem lá
adiante, à nossa esquerda. Estão vendo aquele
rochedo bem grande que, à luz da fogueira, parece
branco como mármore? Pois bem. Em primeiro
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lugar vamos cair em cima daqueles calormanos.
Você, senhorita, fique sempre à nossa esquerda e
atire o mais rápido que puder contra as fileiras
inimigas. Você, Sagaz, voe direto contra os rostos
deles, pela direita. Enquanto isso, atacaremos.
Quando estivermos tão perto deles que não der
mais para você atirar, Jill, pelo risco de nos
atingir, volte correndo para o rochedo branco e
espere lá. Quanto aos outros, mantenham-se
alertas, mesmo enquanto estiverem lutando.
Temos de dar um jeito neles em poucos minutos
ou então nada feito, pois somos bem menos.
Assim que eu gritar “Recuar!”, corram ao
encontro de Jill no rochedo branco. Assim
teremos proteção à nossa retaguarda e poderemos
respirar um pouco. Agora, Jill, vá!
Sentindo-se terrivelmente só, a menina saiu
correndo, afastou-se uns seis metros e colocou a
perna direita para trás e a esquerda para a frente,
ajustando uma flecha no arco. Bem que ela
gostaria que suas mãos não tremessem tanto... “Lá
se vai um tiro perdido!”, pensou ela, quando a
primeira flecha passou raspando sobre as cabeças
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dos inimigos. Em um segundo, porém, já havia
outra flecha no arco: ela sabia muito bem que,
naquele momento, o importante era a rapidez.
Avistou alguma coisa grande e preta arremetendo
contra os rostos dos calormanos: era Sagaz.
Primeiro um homem, depois mais um, deixou cair
a espada, levantando as mãos para defender os
olhos. Então uma das flechas de Jill atingiu um
deles e uma outra atingiu um lobo narniano que,
ao que parecia, juntara-se ao inimigo. Contudo,
apenas alguns minutos após ter começado a
disparar, ela teve de parar. Com um flamejar de
espadas e o brilho das presas do javali e do corno
de Precioso, e entre o ruidoso latido dos cães,
Tirian e sua turma avançaram contra o inimigo,
como se fossem corredores disputando uma
corrida de cem metros.
Jill surpreendeu-se com a falta de preparo
demonstrada pelos calormanos. Nem se deu conta
de que isso era fruto do trabalho feito por ela e
pela águia. Não é nada fácil continuar olhando
atentamente para a frente quando se está sendo
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atacado por flechas no rosto, de um lado, e por
bicadas de uma águia, do outro.
– Isso! Bem feito! Bem feito! – gritava Jill.
A turma do rei avançava direto para o meio
do campo inimigo. O unicórnio atirava homens
para todo lado, como quem atira feno com um
forcado. Até mesmo Eustáquio (pensava Jill, que,
para dizer a verdade, não entendia lá muito bem
de esgrima) parecia estar lutando de maneira
brilhante. Os cães investiam contra a garganta dos
calormanos. Estava dando tudo certo! Finalmente,
estavam vencendo.
Com um profundo calafrio, Jill percebeu
algo estranho: embora a cada golpe de espada dos
narnianos tombassem novos calormanos, parecia
que estes nunca diminuíam. De fato, agora já
havia muito mais calormanos do que no início da
batalha. E a cada segundo apareciam mais. Estes
surgiam de todas as direções: eram novos
calormanos, desta vez portando lanças. Havia
tantos que ela mal conseguia enxergar seus
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próprios amigos. Foi então que ouviu Tirian
gritar:
– Recuem! Corram para o rochedo!
O inimigo recebera reforços. Os tambores
haviam cumprido sua missão.
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12
PELA PORTA DO
ESTÁBULO
Já era para Jill ter-se escondido atrás do
rochedo branco. No entanto, com a excitação de
assistir ao combate, esquecera completamente
esse detalhe das instruções recebidas. De repente
ela se lembrou. Deu meia-volta e desatou a correr,
chegando ao rochedo apenas uns segundos antes
dos outros. Então, por uma questão de instantes,
aconteceu de todos eles estarem de costas para o
inimigo. E, ao atingirem o rochedo, todos
voltaram-se de uma vez, ainda a tempo de assistir
a uma cena terrível e inesperada.
Um calormano ia correndo na direção do
estábulo, carregando alguma coisa que chutava e
se debatia desesperadamente. Quando passou
entre eles e a fogueira, conseguiram divisar
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claramente a forma do homem e o que ele
carregava: era Eustáquio!
Tirian e o unicórnio saíram em disparada a
fim de libertá-lo. O calormano, porém, já estava
mais perto da porta do que eles. Assim, antes que
recobrassem metade da distância, o soldado já
havia atirado Eustáquio lá dentro, batendo a porta
às suas costas. Atrás dele já vinham correndo uns
seis outros calormanos, que formaram uma
barreira no espaço aberto na frente do estábulo.
Agora não havia mais chance de chegar lá.
Mesmo naquela hora, Jill lembrou-se de
manter o rosto voltado para o lado, bem afastado
do arco. “Ainda que eu não consiga parar de
chorar, não vou molhar o arco!”, disse ela.
– Cuidado com as flechas! – gritou
subitamente Poggin.
Todos abaixaram rapidamente a cabeça,
puxando bem o elmo sobre o nariz. Os cães
saíram rastejando na direção de onde vinham as
flechas. Entretanto, embora algumas tivessem
passando raspando por eles, logo perceberam que
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o alvo era outro. Grifo e sua turma entravam
novamente em ação; só que, desta vez, atiravam
friamente contra os calormanos.
– Vamos lá, garotos! – gritava Grifo. –
Todo mundo junto! E com cuidado! Chega de
morenos por aqui! Abaixo os macacos, os reis e
os leões! Vivam os anões!
Pode-se dizer o que quiser sobre os anões,
mas não que são covardes. Eles bem que
poderiam ter-se safado para algum lugar seguro.
No entanto, preferiram ficar e matar quantos
pudessem dos dois lados, exceto quando ambos
eram amáveis o suficiente para matar uns aos
outros, poupando-lhes trabalho. Os anões queriam
Nárnia só para eles.
O que eles provavelmente não levaram em
consideração era que os calormanos estavam
protegidos por cotas de malha, enquanto os
cavalos não tinham proteção alguma. Além disso,
os calormanos tinham um líder. A voz de Rishda
Tarcaã ressoou do lado de lá:
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– Trinta de vocês fiquem de olho naqueles
tolos lá perto do rochedo branco. Os outros
venham comigo, que eu quero ensinar uma lição a
esses vermezinhos!
Tirian e seus amigos, ainda arquejando da
luta e gratos por aqueles poucos minutos de
descanso, ficaram parados, olhando, enquanto o
tarcaã e seus comandados investiam contra os
anões.
A cena era um tanto estranha. A fogueira,
quase apagada, pouco iluminava, produzindo
apenas um clarão avermelhado. Até onde se podia
ver, a clareira das reuniões estava agora vazia, à
exceção dos anões e dos calormanos. Com aquela
luz, quase não dava para ver o que se passava.
Pelo barulho, parecia que os anões estavam
empenhados numa boa luta. Tirian conseguia
distinguir a voz de Grifo soltando palavrões e, de
vez em quando, a do tarcaã gritando: “Peguem
todos quantos puderem, vivos! Quero eles vivos!”
Mas a luta não durou muito tempo. Todos os
ruídos desvaneceram. Então Jill viu o tarcaã voltar
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para o estábulo, seguido de onze homens
arrastando onze anões amarrados. (Se os outros
haviam sido mortos ou se alguns conseguiram
fugir, nunca se soube.)
– Joguem-nos no santuário de Tash! –
ordenou Rishda.
Os onze anões, um após o outro, foram
atirados porta adentro no meio da escuridão, aos
chutes e pontapés. Após fechar novamente a
porta, o tarcaã fez uma reverência na direção do
estábulo, dizendo:
– Ó grande Tash! Estes também são para
ser queimados em vossa homenagem!
E todos os calormanos, fazendo um grande
barulho com suas espadas, gritaram exclamando:
“Tash! Tash! Grande Tash! Inexorável Tash!”
(Agora já não havia mais nenhum sentido em falar
em Tashlam.)
O grupinho do rochedo branco assistia a
tudo aquilo entre cochichos. Eles haviam
encontrado um filete de água que descia pela
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rocha e todos beberam sofregamente: Jill, Poggin
e o rei beberam com as mãos, ao passo que os
animais lamberam da poça que se formava ao pé
da pedra. Estavam com tanta sede que aquela lhes
pareceu a bebida mais deliciosa de toda a sua
vida. E beberam com tanta alegria que não
conseguiam pensar em mais nada naquele
momento.
– Tenho a forte impressão de que, antes do
amanhecer, todos nós passaremos por aquela
porta, um a um – disse Poggin. – E pela minha
cabeça passam mil tipos de mortes que eu
preferiria a essa...
– De fato, é uma porta repugnante –
observou Tirian. – Parece até uma boca.
– Oh! – disse Jill, com voz trêmula. – Não
há nada que a gente possa fazer para evitar isso?
– Não, minha querida – respondeu
Precioso, acariciando-a gentilmente com o
focinho. – Para nós, aquela porta pode muito bem
ser a passagem para a terra de Aslam. E quem
sabe até possamos cear à mesa dele hoje à noite...
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Rishda Tarcaã voltou as costas para o
estábulo, encaminhando-se lentamente para um
ponto em frente ao rochedo branco.
– Prestai atenção – disse ele. – Se o javali,
os cães e o unicórnio vierem até aqui e se
renderem à minha misericórdia, suas vidas serão
poupadas. O javali irá para uma jaula nos jardins
do Tisroc. Os cães irão para os canis de Tashbaan.
E o unicórnio, depois que eu lhe arrancar o chifre,
puxará uma carroça. Agora, a águia, as crianças e
aquele que foi um dia o rei de Nárnia, estes serão
oferecidos a Tash hoje à noite.
A única resposta foram uns grunhidos.
– Avante, guerreiros – ordenou então o
tarcaã. – Matai os animais; os humanos, porém, eu
quero vivos.
Foi aí, então, que se iniciou a última batalha
do último rei de Nárnia.
O que lhe tirava a esperança, sem falar no
número desigual de combatentes, eram as lanças.
Os calormanos que haviam estado com Manhoso
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quase desde o comecinho não possuíam lanças,
pois tinham vindo para Nárnia sozinhos ou em
duplas, fingindo ser pacíficos mercadores; por
isso, naturalmente, não poderiam trazer lanças,
pois uma lança não se pode esconder tão
facilmente. Esses outros deveriam ter vindo mais
tarde, depois que o macaco já se havia fortalecido,
e por isso podiam marchar abertamente. A
diferença estava toda nas lanças. Com uma lança
comprida pode-se matar um javali antes que se
esteja ao alcance de suas presas, ou matar um
unicórnio antes que ele nos atinja com o chifre –
isso se a pessoa for muito ágil e atenta. Agora
aquelas lanças afiadas vinham se aproximando de
Tirian e de seus últimos amigos. Em questão de
segundos já estavam lutando para defender suas
vidas.
Num certo sentido, até que não foi tão ruim
como se poderia imaginar. Quando se está dando
o máximo de cada músculo – ora se esquivando
por baixo da ponta de uma lança, ora saltando por
cima, arremetendo daqui, desviando-se de lá,
dando guinadas e rasteiras –, não se tem muito
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tempo para sentir tristeza ou cansaço. Tirian sabia
que, agora, nada podia fazer pelos outros: estavam
todos igualmente condenados. Viu vagamente o
javali tombar ao seu lado e Precioso lutando
furiosamente do outro lado. Por um canto do olho
viu, de relance, um enorme calormano arrastando
Jill pelos cabelos para algum canto. Agora,
porém, mal dava para pensar nisso: seu único
pensamento era vender a própria vida o mais caro
possível. O pior de tudo era que não estava
conseguindo manter a posição na qual iniciara,
por detrás do rochedo branco. Quando um homem
está enfrentando uma dúzia de inimigos ao mesmo
tempo, deve aproveitar as mínimas chances: tem
de golpear onde quer que aviste um peito ou um
pescoço inimigo desprotegido. Às vezes são
necessários apenas alguns golpes para nos afastar
do ponto inicial. Tirian logo descobriu que estava
desviando-se cada vez mais para a direita,
aproximando-se do estábulo. Alguma coisa lhe
dizia que havia uma boa razão para manter-se
longe daquele lugar. Mas, no momento, não podia
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lembrar que razão era essa. E, de qualquer forma,
nem dava mais para evitar.
De repente, tudo se tornou completamente
claro. Deu-se conta de que estava lutando contra o
próprio tarcaã. A fogueira (aliás, o que restava
dela) estava bem à sua frente. De fato,
encontrava-se bem na entrada do estábulo, pois
este fora aberto e dois calormanos seguravam a
porta, prontinhos para batê-la às costas de Tirian
assim que ele estivesse lá dentro. Agora se
lembrava de tudo; e aí percebeu que, desde o
começo da luta, o inimigo vinha tentando
encurralá-lo para dentro do estábulo. Tudo isso
ele pensava enquanto lutava contra o tarcaã, com
todas as forças possíveis.
Então ocorreu-lhe uma nova idéia.
Deixando cair a espada, atirou-se para a frente
com uma guinada, evitando assim o golpe da
cimitarra do tarcaã, e atracou-se à cintura do
inimigo com as duas mãos; depois deu um pulo
para dentro do estábulo, gritando:
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– Vamos! Venha você mesmo ao encontro
de Tash!
Ouviu-se um barulho ensurdecedor. Assim
como quando o macaco fora atirado lá para
dentro, a terra estremeceu e uma luz ofuscante
brilhou.
Os soldados calormanos que estavam de
guarda guincharam: “Tash! Tash!”, e bateram a
porta. Se Tash queria o seu capitão, ele que o
tivesse agora. Eles é que não queriam nem
conversa com Tash.
Tirian ficou um instante sem saber direito
onde estava, nem tampouco quem ele era. Então,
passados alguns segundos, se recompôs:
endireitou-se, piscou os olhos e olhou ao redor.
Dentro do estábulo não era escuro como
imaginava. Ao contrário, havia uma luz
fortíssima: por isso é que estava piscando os
olhos. Voltou-se, tentando olhar para Rishda
Tarcaã; mas Rishda não estava olhando para ele.
O capitão deu um longo gemido, apontando para
alguma coisa; depois cobriu o rosto com as mãos
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e caiu pesadamente no chão. Tirian olhou na
direção que ele havia apontado e então
compreendeu.
Uma figura terrível vinha vindo na direção
deles. Era muito menor do que a coisa que tinham
visto da torre, embora fosse ainda muito mais alta
que um homem. Mas era a mesma criatura. Tinha
uma cabeça de abutre e quatro braços. O bico
estava aberto e os olhos fumegavam. Um
grasnado rouco saiu-lhe do bico:
– Rishda Tarcaã, tu me chamaste para
Nárnia. Aqui estou. O que tens a dizer?
O tarcaã, porém, nem sequer ergueu o rosto
do chão ou soltou uma palavra. Tremia como uma
vara verde. Numa batalha ele era corajoso de
verdade. Contudo, metade da sua coragem havia
sumido bem mais cedo naquela noite, desde que
começara a suspeitar de que poderia realmente
existir um Tash de verdade. Agora, o restinho da
coragem tinha ido embora.
Com um movimento brusco (igual a uma
galinha quando estaca de repente para catar uma
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minhoca), Tash agarrou o pobre Rishda, enfiandoo
entre os dois braços direitos. Depois virou a
cabeça para o lado fixando Tirian com um dos
seus pavorosos olhos: pois, naturalmente, como
tinha cabeça de ave, não podia olhar direto para
ninguém.
No mesmo instante, porém, forte e tranquila
como um mar de verão, ouviu-se uma voz soar
por detrás dele:
– Suma daqui, monstro! Volte para o seu
lugar e carregue o que por direito lhe pertence!
Em nome de Aslam e do Grande Pai de Aslam, o
Imperador-de-Além-Mar!
A horrenda criatura evaporou, ainda com o
tarcaã debaixo do braço. Tirian voltou-se para ver
quem havia falado. E o que viu fez seu coração
disparar e bater como nunca havia batido em
qualquer batalha.
Sete reis e rainhas estavam parados à sua
frente, todos eles com coroas na cabeça e vestes
resplandecentes; os reis, porém, usavam também
finas cotas de malha e empunhavam espadas.
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Tirian inclinou-se, numa reverência, e já ia
falando quando a mais jovem das rainhas desatou
a rir. Ele a encarou firmemente e, de súbito,
prendeu a respiração, atônito, pois a conhecia. Era
Jill! Não como ele a vira pela última vez, com o
rosto todo sujo e manchado de lágrimas, usando
um velho vestido de brim com um ombro meio de
fora. Agora parecia calma e bem-disposta, limpa e
fresca como quem acaba de tomar um banho. E
primeiro achou que ela parecia mais velha, mas
depois achou que não – e nunca conseguiu chegar
a uma conclusão quanto a isso. Depois viu que o
rei mais jovem era Eustáquio: mas este também
estava diferente, assim como Jill.
Subitamente Tirian sentiu-se embaraçado
por encontrar-se ali, no meio daquelas pessoas,
ainda todo empoeirado, suado e sujo de sangue da
batalha. Naquele momento, porém, notou que já
não se encontrava mais naquele estado. Estava
fresco, limpo, bem-disposto e trajado como se
fosse para ir a uma grande festa em Cair Paravel.
(A propósito, em Nárnia, as roupas boas não eram
desconfortáveis como muitas que a gente usa. Os
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narnianos sabiam fazer roupas que eram bonitas e,
ao mesmo tempo, deixavam a gente bem à
vontade: nada de tecido engomado, sapatos
apertados e ternos fechados, com gravatas e essas
coisas.)
– Senhor – disse Jill, adiantando-se e
fazendo uma bela cortesia –, deixe-me apresentá-
lo a Pedro, o Grande Rei sobre todos os reis de
Nárnia.
Tirian nem precisou perguntar qual deles
era Pedro, pois lembrava-se bem do rosto que vira
em seu sonho (se bem que, agora, parecesse muito
mais nobre). Deu um passo à frente, dobrou-se
sobre um dos joelhos e beijou a mão de Pedro.
– Majestade – disse ele. – Seja muito bemvindo.
E Sua Majestade fê-lo levantar-se e beijoulhe
as faces, como convinha a um grande rei.
Depois conduziu-o até a mais velha das rainhas
(que, mesmo assim, não parecia velha, pois não
tinha cabelos brancos na cabeça nem rugas na
face), dizendo:
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– Senhor, esta é Lady Polly, que veio a
Nárnia no Primeiro Dia, quando Aslam fez as
árvores crescerem e os animais falarem. – Em
seguida conduziu-o para perto de um homem cuja
barba dourada descia-lhe pelo peito e cuja
expressão era cheia de sabedoria.
– Este aqui – disse – é Lorde Digory, que
estava com ela naquele dia. E este é o meu irmão,
rei Edmundo. E esta é minha irmã, rainha Lúcia.
– Senhor – disse Tirian, após saudar a todos
–, a não ser que eu tenha entendido mal as
crônicas, deve haver mais alguém. Vossa
Majestade não tem duas irmãs? Onde está a rainha
Susana?
– Minha irmã Susana – respondeu Pedro,
breve e gravemente – já não é mais amiga de
Nárnia.
– É verdade – completou Eustáquio. – E
cada vez que se tenta conversar com ela sobre
Nárnia ou fazer qualquer coisa que se refira a
Nárnia, ela diz: “Mas que memória extraordinária
vocês têm! Continuam no mundo da fantasia,
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213
pensando nessas brincadeiras tolas que a gente
fazia quando era criança!”
– Essa Susana! – disse Jill. – Agora só
pensa em lingeries, maquilagens e compromissos
sociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para ser
gente grande.
– Gente grande, pois sim! – disse Lady
Polly. –Gostaria que ela crescesse de verdade.
Quando estava na escola, passava o tempo todo
desejando ter a idade que tem agora, e agora vai
passar o resto da vida tentando ficar nessa idade.
Tudo em que ela pensa é correr para atingir a
idade mais boba da vida o mais depressa possível
e depois parar aí o máximo que puder.
– Está bem, não vamos mais falar sobre
isso agora – interveio Pedro. – Vejam! Ali há
umas árvores com frutas muito apetitosas. Por que
não provamos algumas?
Então, pela primeira vez, Tirian olhou à sua
volta e percebeu quão fantástica estava sendo essa
sua aventura.
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13
OS ANÕES NÃO SE
DEIXAM TAPEAR
Tirian pensara – ou pelo menos teria
pensado, se tivesse tido tempo para isso – que eles
se encontravam dentro de uma pequena cabana de
palha medindo uns quatro metros de comprimento
por dois de largura. Na realidade, porém, estavam
pisando na grama, tendo ao alto um profundo céu
azul, e a brisa que soprava suavemente nas suas
faces lembrava um dia de início de verão. Não
muito longe deles erguia-se um bosque de árvores
de folhas muito espessas, por baixo das quais se
via o dourado ou o amarelo-pálido, o roxo ou o
vermelho vivo de frutas nunca vistas neste nosso
mundo. Ao avistar as frutas, Tirian teve a
impressão de que já era outono. Mas havia alguma
coisa no ar que lhe dizia que poderia ser, no
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máximo, o comecinho do verão. Todos
começaram a caminhar na direção das árvores.
Cada um deles ergueu a mão para apanhar a
fruta que mais lhe apetecia, e então todos pararam
por um instante. As frutas eram tão lindas que
todos tiveram o mesmo pensamento: “Estas frutas
não são para mim... Certamente não podemos
colhê-las!”
– Tudo bem – disse Pedro. – Eu sei o que
todos estão pensando. Mas tenho certeza, absoluta
certeza, de que não precisamos nos preocupar.
Tenho a impressão de que nós chegamos àquele
país onde tudo é permitido.
– Pois, então, mãos à obra! – disse
Eustáquio. E todos começaram a comer.
E o gosto das frutas? Infelizmente, sabor
não se descreve. Só posso dizer que, comparado
àquelas frutas, o pêssego mais polpudo e
fresquinho não teria gosto algum; a laranja mais
suculenta pareceria seca; a pêra mais macia,
daquelas de derreter na boca, ainda seria dura e
fibrosa; e o abacaxi mais docinho e maduro seria
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azedo. E elas não tinham sementes, nem pedras,
nem vespas. Depois de se provar uma fruta
daquelas uma única vez, a sobremesa mais
deliciosa do mundo inteiro teria gosto de remédio.
Mas não dá mesmo para descrever. O único jeito
de se saber como elas são é ir até esse lugar e
experimentá-las.
Depois de comerem até se fartar, Eustáquio
disse ao rei Pedro:
– Você ainda não nos contou como
chegaram até aqui. Quando estava começando a
nos dizer, o rei Tirian apareceu.
– Não há muito o que contar – respondeu
Pedro. – Edmundo e eu estávamos em pé na
estação quando vimos o trem de vocês chegando.
Lembro-me de ter achado que ele estava fazendo
a curva rápido demais. Outra coisa de que me
lembro é que pensei como seria divertido se por
acaso todo o nosso pessoal estivesse no mesmo
trem.
– Seu pessoal, Grande Rei? – estranhou
Tirian.
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– É, meu pai e minha mãe, de Lúcia e de
Edmundo...
– E por que isso? – interrompeu Jill. – Não
vai me dizer que eles sabem alguma coisa sobre
Nárnia? !
– Oh, não! Isso nada tinha a ver com
Nárnia. Eles estavam de viagem para Bristol. A
única coisa que sabia é que iriam naquela manhã.
Mas Edmundo disse que era bem provável que
eles estivessem naquele trem. (Edmundo era o
tipo de pessoa que entende de viagens de trem.)
– E daí, o que aconteceu? – perguntou Jill.
– Bem, não é assim tão fácil de descrever,
não é, Edmundo?
– Não muito – respondeu Edmundo. – Não
foi nada parecido com aquela vez em que fomos
atirados para fora do nosso próprio mundo por
mágica. Houve um pavoroso estrondo e alguma
coisa me atingiu violentamente; mas não doeu.
Acho que, mais do que assustado, eu fiquei...
bem, fiquei excitado. E então aconteceu uma coisa
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fantástica. Eu estava com um joelho machucado,
por causa de uma partida de futebol. De repente
notei que a ferida tinha sumido. E daí eu me senti
muito leve. E depois... Bem, aqui estamos nós.
– Foi exatamente isso o que aconteceu com
a gente dentro do trem – disse Lorde Digory,
limpando os últimos resíduos de fruta da sua
barba dourada. – Só que eu acho que você e eu,
Polly, sentimos principalmente que o nosso corpo
foi rejuvenescido. Vocês, jovens, não
compreendem isso. Mas deixamos de nos sentir
velhos.
– Jovens, pois sim! – exclamou Jill. –
Como se aqui vocês dois fossem muito mais
velhos do que nós!
– Bem, pelo menos éramos – disse Lady
Polly.
– E depois que chegaram aqui, o que
aconteceu? – perguntou Eustáquio.
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219
– Bem – respondeu Pedro. – Durante um
bom tempo (pelo menos me pareceu muito tempo)
nada aconteceu. Depois a porta se abriu...
– A porta? Que porta? – perguntou Tirian.
– A porta por onde você entrou... ou saiu,
sei lá... Já se esqueceu?
– Mas, onde está ela?
– Veja! – disse Pedro, apontando.
Tirian olhou e viu a coisa mais estranha e
ridícula que se possa imaginar. A apenas alguns
metros de distância, completamente visível à luz
do sol, erguia-se uma porta de madeira e, ao redor
dela, o umbral – nada mais, nem paredes, nem
telhado, nada. Atônito, Tirian encaminhou-se para
lá, seguido pelos outros, que ficaram olhando para
ver o que ele ia fazer. Tirian deu a volta para o
outro lado da porta. Do lado de lá, era justamente
a mesma coisa: ele ainda estava ao ar livre, em
uma manhã de verão. A porta simplesmente
erguia-se sozinha, como se tivesse crescido ali,
igual a uma árvore.
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– Meu caro senhor – disse ele ao Grande
Rei –, isto é simplesmente espantoso!
– É a porta por onde você passou com
aquele calormano há poucos minutos – disse
Pedro, sorrindo.
– Mas eu passei da floresta para dentro do
estábulo, não foi? Esta porta, no entanto, parece ir
de nenhum lugar para lugar algum!
– É o que parece se você ficar aí a rodeá-la
– disse Pedro. – Agora, dê uma espiadinha ali por
aquela fresta que há entre as duas tábuas de
madeira.
Tirian encostou o olho no buraco. A
princípio, nada conseguiu ver além da escuridão.
Mas, depois que seus olhos foram se acostumando
ao escuro, ele divisou a luz fraca e avermelhada
de uma fogueira que estava quase se apagando. Lá
em cima via-se um céu negro coberto de estrelas.
Depois percebeu uns vultos que se moviam para
lá e para cá, e havia outros em pé entre ele e a
fogueira. Dava para ouvi-los conversando:
pareciam vozes de calormanos. Então se deu
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conta de que estava olhando através da porta do
estábulo, para fora, na escuridão do Ermo do
Lampião, onde se dera sua última batalha. Os
homens estavam discutindo se deveriam entrar no
estábulo à procura de Rishda Tarcaã (nenhum
deles, no entanto, estava disposto a fazer isso), ou
se seria melhor atiçar fogo à cabana.
Tirian olhou à sua volta mais uma vez e
mal pôde acreditar no que via. Acima de sua
cabeça havia um céu muito azul; à sua frente um
imenso gramado espalhava-se em todas as
direções, até onde a vista alcançava; e, ao redor,
seus novos amigos, todos sorrindo.
– Quer dizer, então – disse Tirian para si
mesmo –, que o estábulo visto por dentro e o
estábulo visto por fora são dois lugares
completamente diferentes?
– É verdade – disse Lorde Digory. – Por
dentro ele é maior do que por fora.
– Isso mesmo – disse a rainha Lúcia. – No
nosso mundo também já aconteceu uma vez que,
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222
dentro de um certo estábulo, havia uma coisa que
era muito maior que o nosso mundo inteiro.
Era a primeira vez que ela falava, e, pela
vibração da sua voz, Tirian logo imaginou a
razão. Ela estava muito mais embevecida com
tudo aquilo do que qualquer um dos outros. Até
aquele momento estivera feliz demais para falar.
Tirian queria ouvir a voz dela de novo, por isso
disse:
– Por gentileza, senhorita, conte-nos.
Conte-me toda a sua aventura.
– Depois do choque e do estardalhaço –
disse Lúcia –, nos encontramos aqui. E ficamos
aturdidos com a porta, assim como você. Então
ela se abriu pela primeira vez (e tudo o que vimos
foi a escuridão), deixando passar um homenzarrão
com uma espada desembainhada. Pelos braços
dava para ver que era um calormano. Ele se
postou ao lado da porta com a espada erguida,
pousada sobre o ombro, pronto para decepar o
primeiro que entrasse. Fomos ao seu encontro e
falamos com ele, mas nem sequer pareceu notar a
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nossa presença. Não se voltou uma única vez para
contemplar o céu, a luz do sol ou o gramado; até
parecia que nem enxergava nada disso. Ficamos
então esperando, durante um bom tempo. Até que
ouvimos a tranca abrir-se mais uma vez do outro
lado da porta. Mas enquanto o homem não viu
quem vinha vindo, não se dispôs a usar a espada.
Por isso imaginamos que ele fora instruído para
atacar uns e poupar outros. Porém, no momento
em que a porta se abriu, nada mais, nada menos
que o próprio Tash apareceu do lado de cá da
porta, sem que nenhum de nós soubesse de onde
ele surgira. E pela porta entrou um enorme gato.
Assim que viu Tash, ele disparou para fora,
tentando salvar a pele – e bem a tempo, pois Tash
arremeteu-se contra ele e a porta bateu-lhe no
bico, ao se fechar. Só então o guarda enxergou
Tash. Imediatamente ficou muito pálido e
prostrou-se aos pés do monstro, mas este se
desvaneceu.
– Depois disso, esperamos de novo por
mais algum tempo. Finalmente a porta abriu-se
pela terceira vez e entrou um jovem calormano.
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Gostei dele. O homem que estava à porta ficou
atônito, e pareceu muito surpreso ao vê-lo. Tenho
a impressão de que esperava ver alguém
completamente diferente...
– Agora entendi tudo! – disse Eustáquio
(ele tinha a péssima mania de interromper quando
alguém estava falando). – O gato era quem
deveria entrar primeiro, e o sentinela tinha ordens
para não lhe fazer mal algum. Depois o gato
deveria sair e dizer que havia visto o abominável
Tash, fingindo estar apavorado, a fim de assustar
todos os animais. Mas o que Manhoso jamais
poderia suspeitar é que o verdadeiro Tash
acabasse aparecendo; e então Ruivo saiu
realmente apavorado. Depois disso, Manhoso
deve ter resolvido mandar entrar alguém de quem
queria se ver livre, para que o sentinela o matasse.
E depois...
– Meu amigo – disse Tirian, com brandura.
– Você está atrapalhando a narração da senhorita.
– Bem – continuou Lúcia –, o sentinela
ficou surpreso. Isso deu ao homem o tempo
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necessário para colocar-se em guarda. Os dois
lutaram e o jovem matou o sentinela, atirando-o
porta afora. Então encaminhou-se lentamente para
onde estávamos. Ele conseguia ver a gente e tudo
o mais à sua volta. Tentamos falar-lhe, mas ele
parecia estar em transe. Ficava só dizendo: “Tash,
Tash, onde está Tash? Quero ver Tash!” Então
desistimos e ele saiu andando por aí,
desaparecendo por aquelas bandas. Gostei dele!
Depois disso... Argh! (E aqui Lúcia fez uma
careta.)
– Então – disse Edmundo –, alguém
arremessou um macaco porta adentro. E aí Tash
apareceu de novo. Minha irmã tem o coração
muito mole e por isso não quer contar que Tash
devorou o macaco de uma só bicada.
– Bem feito para ele! – vibrou Eustáquio. –
Para aprender a não brincar com Tash!
– Então – continuou Edmundo –,
apareceram uns doze anões. E depois Jill,
Eustáquio e, finalmente, você, Tirian.
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– Tomara que Tash tenha devorado os
anões também! – disse Eustáquio. – Aqueles
porquinhos imundos!
– Não, não devorou – disse Lúcia. – E não
seja tão repugnante! Eles ainda estão por aí. Na
verdade, dá para vê-los daqui. Já fiz várias
tentativas de fazer amizade com eles, mas não
adianta.
– Fazer amizade com eles? ! – vociferou
Eustáquio.
– Se você soubesse tudo que esses anões
fizeram!
– Pare com isso, Eustáquio! – disse Lúcia. –
Venha cá, vamos vê-los. Rei Tirian, quem sabe
você consegue alguma coisa com eles.
– Bem, não ando lá muito amante de anões
hoje – respondeu Tirian. – Mas a pedido seu,
senhorita, faria muito mais do que isso.
Eles acompanharam Lúcia e logo todos
avistaram os anões. O comportamento deles era
muito estranho. Não estavam andando à toa ou se
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divertindo (embora as cordas com que haviam
sido amarrados parecessem ter-se evaporado),
nem mesmo deitados ou descansando. Pelo
contrário, estavam sentados bem pertinho uns dos
outros, formando um círculo apertado, um de cara
para o outro. Nunca olhavam ao redor, nem
sequer pareceram notar os humanos à sua volta, a
não ser quando Lúcia e Tirian chegaram tão
pertinho deles que dava para tocá-los. Então todos
os anões sacudiram a cabeça como se não
conseguissem ver ninguém, mas estivessem
escutando atentamente e tentando adivinhar pelos
ruídos o que se passava.
– Ei, cuidado! – disse um deles, numa voz
azeda. – Por que não olham por onde andam? Não
caminhem por cima da gente!
– Tá bom, tá bom! – disse Eustáquio,
irritado.
– Não somos cegos. Nossos olhos
funcionam muito bem.
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– Pois devem ser mesmo muito bons para
enxergar aqui dentro! – disse o mesmo anão, cujo
nome era Ranzinza.
– Aqui onde? – perguntou Edmundo.
– Ora, seu tapado, aqui dentro, é claro! –
respondeu Ranzinza. – Aqui neste buraco deste
está-bulo fedorento, apertado e escuro como breu.
– Você está cego? – perguntou Edmundo.
– E quem não fica cego nesta escuridão? –
resmungou Ranzinza.
– Mas aqui não está escuro coisa nenhuma,
seus anõezinhos estúpidos! – disse Lúcia. – Será
que não percebem? Vamos, levantem o rosto!
Olhem ao seu redor! Será que não vêem o céu, as
árvores e as flores? Vocês não estão me vendo?
– Ora, vá tapear outro! Como é que eu
posso ver uma coisa que não existe? E como é que
eu posso vê-la (ou você a mim) nesta escuridão de
breu?
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– Mas eu estou vendo você! – disse Lúcia.
– Quer que eu prove? Você está com um
cachimbo na boca.
– Qualquer um que conheça cheiro de
tabaco poderia dizer isso – replicou Ranzinza.
– Pobrezinhos! Que coisa terrível! –
exclamou Lúcia. Então ela teve uma idéia. Saiu e
colheu algumas violetas silvestres.
– Escutem aqui, anões – disse ela. –
Embora seus olhos estejam com algum problema,
quem sabe o nariz esteja funcionando bem. Que
cheiro é este?
Ela inclinou-se e aproximou do narigão de
Ranzinza as flores frescas, ainda úmidas de
orvalho. Entretanto, teve de dar um pulo para trás
a fim de evitar um soco do punhozinho pesado do
anão.
– Mas que ousadia! – berrou ele. – Onde já
se viu me passar um monte de palha imunda na
cara? ! E, ainda por cima, cheio de carrapicho!
Parece a gororoba de vocês! Afinal, quem é você?
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– Seu verme! – interveio Tirian. – Ela é a
rainha Lúcia, enviada para cá por Aslam, vinda de
um passado longínquo. E é só por amor a ela que
eu, Tirian, seu leal rei, não lhes arranco a cabeça
dos ombros, seus traidores, provada e
comprovada-mente traidores!
– Mas isso é o cúmulo! – exclamou
Ranzinza. –Você ainda continua insistindo nessa
baboseira toda? Seu maravilhoso Leão não veio
lhe dar uma mãozinha, hein? Eu sabia! E, ainda
assim, mesmo depois de ter sido derrotado e
enfiado aqui neste buraco escuro, igualzinho a
qualquer um de nós, você ainda insiste nesse
velho jogo? ! E agora me aparece com uma nova
mentira, não é? Tentando fazer a gente acreditar
que ninguém aqui está trancado e que não está
escuro, e sabe-se lá o que mais...
– Não existe buraco escuro coisa nenhuma,
a não ser na sua própria cabeça, seu imbecil –
berrou Tirian. – Saia daí, vamos! – E, inclinandose
para a frente, Tirian agarrou Ranzinza pelo
cinto e o capuz, arrancando-o de perto dos outros
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anões e colocando-o bem longe. Mas, assim que
tocou o chão, Ranzinza disparou de volta para o
mesmo lugar no meio dos outros, esfregando o
nariz e gritando:
– Ui! Ui! Por que você fez isso? Me atirou
de cabeça contra a parede! Por pouco não me
quebrou o nariz!
– Oh, não! – disse Lúcia. – O que vamos
fazer com eles?
– Deixe-os para lá! – disse Eustáquio. Mas
enquanto ele falava a terra estremeceu. A doce
atmosfera tornou-se ainda mais doce e um clarão
brilhou ao lado deles. Todos se voltaram. O
último a se virar foi Tirian, porque estava com
medo. Ali estava o anseio de seu coração, enorme
e real: o Leão dourado, o próprio Aslam. Os
outros já se encontravam ajoelhados em círculo
em volta de suas patas dianteiras, com as mãos e o
rosto enterrados na sua juba, enquanto ele
abaixava a cabeçorra para afagá-los com a língua.
Então fixou os olhos em Tirian, que se
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aproximou, tremendo, e atirou-se aos pés do Leão.
Este o beijou, dizendo:
– Muito bem, último dos reis de Nárnia,
que permaneceu firme até na hora mais escura!
– Aslam – disse Lúcia, entre lágrimas –,
será que você não podia... por favor... faça algo
por estes pobres anões...
– Minha querida – disse Aslam –, vou
mostrar-lhe tanto o que eu posso quanto o que eu
não posso fazer.
Aproximando-se dos anões, Aslam deu um
leve rugido: leve, mas mesmo assim fez o ar
vibrar. Os anões, porém, disseram uns aos outros:
– Escutaram só? Deve ser a turma do outro
lado do estábulo. Estão tentando nos assustar.
Devem ter feito esse barulho com algum tipo de
máquina. Não vamos nem dar bola. Desta vez não
nos enganam mais.
Aslam ergueu a cabeça e sacudiu a juba. No
mesmo instante, um maravilhoso banquete
apareceu aos pés dos anões: tortas, assados, aves,
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pavês, sorvetes e, na mão direita de cada um, uma
taça de excelente vinho. Mas de nada adiantou.
Eles começaram a comer e a beber com a maior
sofreguidão, mas notava-se claramente que nem
sabiam direito o que estavam degustando.
Pensavam estar comendo e bebendo apenas coisas
ordinárias, dessas que se encontram em qualquer
estrebaria. Um deles disse que estava comendo
capim; outro falou que tinha arranjado um pedaço
de nabo velho; e um terceiro disse que havia
achado uma folha de repolho cru. E levavam aos
lábios taças douradas com rico vinho tinto,
dizendo:
– Puááá! Muito bonito! Beber água suja,
tirada do cocho de um jumento! Nunca pensei que
chegássemos a tanto!
Mas logo cada anão começou a desconfiar
de que o outro havia conseguido algo melhor que
ele, e daí começaram a se agarrar e a discutir, e a
briga foi ficando cada vez mais feia, até que, em
poucos minutos, todos estavam engalfinhados
numa verdadeira luta livre, e todas aquelas
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iguarias espalharam-se por seus rostos e roupas e
esparramaram-se pelo chão. Mas quando
finalmente se sentaram de novo, cada qual
esfregando seu olho roxo ou o nariz sangrando,
começaram a dizer:
– Bem, pelo menos aqui não há nenhuma
trapaça. Não deixamos ninguém nos levar no bico.
Vivam os anões!
– Viram só? – disse Aslam. – Eles não nos
deixarão ajudá-los. Preferem a astúcia à crença.
Embora a prisão deles esteja unicamente em suas
próprias mentes, eles continuam lá. E têm tanto
medo de serem ludibriados de novo que não
conseguem livrar-se. Mas, venham comigo, meus
filhos. Tenho um outro trabalho a fazer.
Aslam dirigiu-se para a porta, seguido de
todo o grupo. Então levantou a cabeça e rosnou:
– O tempo é chegado. Agora! Tempo! – E
depois rosnou mais alto. – Tempo! – E depois tão
alto que até as estrelas estremeceram: – TEMPO!
Então a porta se abriu.
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14
CAI A NOITE SOBRE
NÁRNIA
Todos pararam em pé, à direita de Aslam, e
olharam através da porta aberta.
A fogueira havia se apagado. Tudo na terra
era completa escuridão: se não fosse pela escura
silhueta das árvores sob o brilho das estrelas, nem
dava para saber que ali havia uma floresta.
Quando Aslam deu um novo rugido, uma outra
mancha negra surgiu à esquerda deles. Quer dizer,
uma outra sombra apareceu onde não havia
estrelas, e foi subindo e ficando cada vez mais
alta, até que assumiu a forma de um homem, o
mais imenso dos gigantes. Todos conheciam
Nárnia o bastante para imaginar onde ele deveria
estar pisando: nos altos pântanos que se estendiam
para o Norte, depois do rio Veloz. Então Jill e
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Eustáquio lembraram-se de que certa vez, muito
tempo atrás, nos subterrâneos daqueles pântanos,
tinham visto um enorme gigante adormecido; e
alguém lhes contara, na ocasião, que o nome dele
era Pai Tempo e que acordaria no dia em que o
mundo acabasse.
– Sim – disse Aslam, embora nenhum deles
tivesse falado qualquer coisa. – Enquanto ele
dormia, seu nome era Tempo. Mas, agora que
acordou, vai ganhar um novo nome.
Então o gigante levou à boca uma trombeta.
Sabiam disso porque a silhueta dele contra as
estrelas mudara de formato. Depois disso – mas só
um pouquinho, já que o som se propaga mais
devagar –, ouviram o som da trombeta, alto e
terrível, se bem que de uma beleza estranha e
fatal.
Imediatamente o céu ficou cheio de estrelas
cadentes. Uma única estrela cadente já é algo
lindo de se ver. Desta vez, porém, eram dúzias
delas, e depois um monte, e depois centenas, até
que mais parecia uma chuva de prata – e assim
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continuou, aumentando cada vez mais. Quando
finalmente o espetáculo parou por um instante,
alguém do grupo teve a impressão de que uma
nova sombra aparecera no céu, assim como a do
gigante. Agora, porém, era num lugar diferente, lá
em cima, bem no “teto” do céu, por assim dizer.
“Talvez seja só uma nuvem”, pensou Edmundo.
De qualquer forma, naquele ponto do céu não
havia estrelas, só escuridão. Entrementes, em todo
lugar à volta o espetáculo de estrelas continuava.
Então a mancha sem estrelas começou a crescer,
espalhando-se cada vez mais, a partir do centro do
céu. Agora já um quarto de todo o céu estava
escuro, e depois a metade, e finalmente só se via a
chuva de estrelas cadentes, lá embaixo, na linha
do horizonte.
Com um misto de espanto e terror, todos
subitamente estremeceram ao se darem conta do
que estava realmente acontecendo. A escuridão
que se propagava não era nuvem coisa nenhuma:
era simplesmente um vazio. A parte negra do céu
era o lugar onde já não havia mais estrelas. Todas
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elas estavam caindo. Aslam as chamara de volta
para casa.
Os derradeiros instantes que antecederam o
fim da chuva de estrelas foram muito
emocionantes. Estrelas começaram a cair ao redor
deles. Naquele mundo, no entanto, as estrelas não
são essas grandes bolas incandescentes do nosso
mundo. Lá elas são pessoas (Edmundo e Lúcia já
haviam encontrado uma, certa vez). Portanto, eles
se viram rodeados de pessoas resplandecentes,
todas elas com longos cabelos que pareciam prata
em chama e com lanças como que de metal
branco ardente, precipitando-se do céu negro na
direção deles, mais velozes do que raios. Elas
sibilavam ao bater no chão, queimando a grama. E
todas aquelas estrelas que passavam voando por
eles iam ficando de pé em algum lugar mais atrás,
um pouco à direita.
Ainda bem, pois, do contrário, agora que já
não havia mais uma única estrela brilhando no
céu, tudo estaria completamente escuro e não
daria mais para ver coisa alguma. E assim a
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multidão de estrelas atrás deles emitia uma
fortíssima luz esbranquiçada, que refletia por cima
de seus ombros. Eles podiam ver quilômetros e
quilômetros de florestas narnianas estendidas à
sua frente, como se fossem iluminadas por
potentes holofotes. Cada moita e quase cada
folhinha de grama deixava atrás de si uma sombra
negra. Cada folha destacava-se tão afiada e com
tanta nitidez, que se tinha a impressão de que se
poderia cortar o dedo caso se tocasse nelas.
A própria sombra deles projetava-se na
grama à sua frente. Mas impressionante mesmo
era a sombra de Aslam. Esta espalhava-se à sua
esquerda, enorme e assustadora. E tudo isso se
passava sob um céu que, a partir de agora, nunca
mais teria nenhuma estrela.
A luz que vinha de detrás deles (e um
pouco para a direita) era tão forte que chegava a
iluminar até mesmo as encostas dos pântanos do
Norte. Lá, alguma coisa estava se movendo.
Animais enormes vinham descendo em direção a
Nárnia, rastejando ou deslizando vagarosamente:
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eram dragões imensos, lagartos gigantes, pássaros
sem penas com asas de morcego. Desapareceram
no meio da mata e, durante alguns minutos, só
houve silêncio. Depois (a princípio muito
distante) ouviram-se gemidos, e então, vindos de
todas as direções, um roçar, um bater de patas e
um farfalhar de asas. E vinham se aproximando
cada vez mais. Logo tornou-se possível distinguir
entre o ruído de pezinhos miúdos e o barulho
surdo de grandes patas, entre o clac-clac de
patinhas leves e o trovejar de cascos graúdos. Em
seguida, milhares de pares de olhos brilharam na
escuridão. Finalmente, saindo da sombra das
árvores e correndo vertiginosamente colina acima
para salvar a vida, aos milhares e aos milhões,
surgiram criaturas de todos os tipos: animais
falantes, anões, sátiros, faunos, gigantes,
calormanos, homens da Arquelândia, monópodes
e até estranhos seres sobrenaturais, vindos das
Ilhas Solitárias ou das terras desconhecidas do
Ocidente. Todos corriam em disparada rumo ao
portal onde se encontrava Aslam.
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De toda a aventura, essa foi a única parte
que mais pareceu um sonho, naquele momento, e
a mais difícil de ser lembrada mais tarde.
Especialmente, ninguém podia dizer quanto
tempo durara. Às vezes tinha-se a impressão de
que durara apenas alguns minutos, mas outras
vezes parecia que se haviam passado anos e anos.
E óbvio que, a menos que a porta tivesse se
tornado imensamente maior, ou que as criaturas
subitamente tivessem diminuído ao tamanho de
mosquitos, uma multidão daquelas jamais teria
sequer tentado passar por ela. Naquele momento,
porém, ninguém pensou nisso.
As criaturas precipitaram-se para a porta e,
à medida que se aproximavam das estrelas ali
paradas, seus olhos tornavam-se cada vez mais
brilhantes. Ao chegarem perto de Aslam, no
entanto, uma entre duas coisas se passava com
cada uma delas. Todas olhavam direto para a face
do Leão (aliás, acho que nem havia alternativa).
Quando algumas olhavam, a expressão de seus
rostos mudava terrivelmente, com uma mistura de
temor e ódio, exceto na cara dos animais falantes:
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nestes, tanto temor quanto ódio duravam apenas
uma fração de segundos, pois, na mesma hora,
deixavam de ser animais falantes, tornando-se
simples animais comuns. E todas as criaturas que
olhavam para Aslam daquele jeito desviavam-se
para a direita (isto é, à esquerda dele),
desaparecendo no meio da sua imensa sombra
negra, que (como já lhes disse) se espraiava para a
esquerda, do lado de fora do portal. As crianças
nunca mais viram essas criaturas. Não sei o que se
passou com elas. Outras, porém, olhavam para a
face de Aslam e o amavam, embora algumas
ficassem ao mesmo tempo muito assustadas. E
todas essas criaturas entravam pela Porta,
colocando-se ao lado direito de Aslam. Entre estas
havia também alguns seres meio estranhos.
Eustáquio até reconheceu um dos anões que
haviam ajudado a atirar nos cavalos falantes. Mas
ele nem teve tempo de pensar nisso (e, de
qualquer forma, não era mesmo da sua conta),
pois a grande alegria que o invadia impedia-o de
pensar em qualquer coisa desse tipo. Entre as
felizes criaturas que agora se reuniam ao redor de
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Tirian e de seus amigos, encontravam-se todos
aqueles que ele julgara estarem mortos. Lá
estavam o centauro Passofirme, o unicórnio
Precioso, o bondoso javali, o querido urso, a águia
Sagaz e os queridos cães e cavalos, sem contar o
anão Poggin. – Avançar! Para a frente e para
cima!
Quem gritou foi Passofirme, que disparou
ruidosamente a galope rumo ao Ocidente. E
embora ninguém o tivesse entendido, foi como se
aquelas palavras fizessem tilintar tudo à volta
deles. Ao escutá-las, o javali grunhiu alegremente.
O urso já ia abrindo a boca para dizer que ainda
não estava compreendendo nada, quando seus
olhos bateram nas árvores frutíferas bem atrás
deles. Saiu gingando para o pomar o mais
depressa possível e lá, com certeza, encontrou
algo de que ele entendia muito bem. Os cães,
porém, continuaram ali, abanando as caudas,
como também Poggin, que cumprimentava todo
mundo com um enorme sorriso no rosto bondoso.
Precioso recostou a cabeça alva como a neve no
ombro do rei, que lhe cochichou alguma coisa ao
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ouvido. Então todos voltaram novamente para a
Porta, para ver o que se passava do lado de lá.
Agora os dragões e os lagartos gigantes
haviam se apoderado de Nárnia. Iam de um lado
para outro, arrancando as árvores pelas raízes e
devorando-as como se fossem moitas de capim.
Em poucos minutos as florestas haviam
desaparecido. A terra inteira ficou completamente
exposta, deixando à mostra cada elevação, cada
concavidade, cada buraquinho, na forma mais nua
e grotesca que se poderia imaginar. A grama
secou. Tirian viu-se contemplando um mundo de
rochas despidas e terra vazia. Mal se poderia
acreditar que algum dia já existira vida ali. Os
próprios monstros começaram a envelhecer e cair
ao chão, mortos. Sua carne secou e os ossos
apareceram. Logo não passavam de gigantescos
esqueletos atirados aqui e acolá sobre pedras
mortas, como se tivessem morrido há milhares de
anos. Durante um longo tempo tudo ficou em
silêncio.
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Finalmente, alguma coisa branca – uma
longa linha plana de brancura, que brilhava à luz
das estrelas que ali estavam – começou a moverse
na direção deles, vindo do fim do mundo, do
lado do Oriente. Um estranho ruído quebrou o
silêncio: a princípio era um murmúrio, depois um
trovejar distante e, por fim, um grande
estardalhaço. E então eles viram que aquilo que se
aproximava com tanta rapidez era uma coluna
espumejante de água. O mar estava inundando a
terra. Naquele mundo despido de árvores dava
para ver muito bem. Todos os rios foram ficando
cada vez mais largos e os lagos tornando-se
maiores; os lagos separados juntaram-se num só,
os vales transformaram-se em novos lagos, os
montes viraram ilhas e estas também finalmente
desapareceram. Os altos pântanos à esquerda
deles e as montanhas mais altas, à direita,
desintegraram-se com um barulho ensurdecedor
no meio da água que se avolumava. A água veio
jorrando aos borbotões até bem pertinho da
entrada da Porta (mas sem nunca ultrapassá-la),
tão perto que espirrava espuma nas patas
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dianteiras de Aslam. Agora, tudo era uma só
extensão de água, desde onde eles se encontravam
até o ponto onde a água encontrava o céu.
Então, lá longe, começou a clarear. Uma
faixa de tênue alvorada espalhou-se ao longo do
horizonte, e foi aumentando e brilhando cada vez
mais, até que por fim mal se notava a luz das
estrelas atrás deles. Afinal, o Sol apareceu. Ao vê-
lo, Lorde Digory e Lady Polly se entreolharam
significativamente: os dois já haviam visto, em
um outro mundo, um sol moribundo; assim, na
mesma hora compreenderam que aquele sol
também estava morrendo. Era três vezes – vinte
vezes – maior do que deveria ser e vermelhoescuro.
Quando os seus raios tocaram o gigante
Tempo, este também ficou vermelho; e, aos
reflexos desse sol, toda aquela vastidão de águas
sem praia parecia sangue.
Então a Lua apareceu, numa posição
completamente errada, bem pertinho do Sol; e ela
também estava vermelha. E, assim que ela surgiu,
o Sol começou a lançar-lhe umas chamas
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enormes, como se fossem serpentinas de fogo
carmesim; parecia um polvo tentando puxá-la
para perto de si com seus tentáculos. E talvez
tenha sido isso mesmo o que aconteceu, pois a
Lua se aproximou dele, a princípio devagar,
depois mais rápido e cada vez mais depressa, até
que afinal as compridas chamas a envolveram
totalmente e os dois se fundiram, transformandose
numa bola de fogo colossal. E daquela enorme
brasa ardente começaram a pingar pedaços de
fogo, que caíam no oceano levantando nuvens de
vapor. Então Aslam disse:
– Que agora haja um fim!
O gigante lançou ao mar sua trombeta.
Depois esticou um braço (era negro e parecia ter
milhares de quilômetros de comprimento) através
do céu, até que sua mão alcançou o Sol. Ele o
pegou e espremeu com a mão como quem
espreme uma laranja. E, no mesmo instante, fezse
total escuridão.
Todos, com exceção de Aslam, deram um
pulo para trás, ao sentir o impacto do frio gelado
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que começou a soprar através da Porta, a qual já
estava ficando coberta de pingentes de gelo.
– Pedro, Grande Rei de Nárnia – disse
Aslam. – Feche a porta.
Tiritando de frio, Pedro adiantou-se para a
escuridão e empurrou a Porta. Esta se fechou
ruidosamente, raspando o gelo que já avançava
por baixo. Depois, um tanto desajeitado (pois no
mesmo instante suas mãos tinham ficado roxas e
dormentes de frio), Pedro pegou uma chave de
ouro e trancou a Porta.
Eles já haviam visto bastantes coisas
esquisitas através daquela Porta. O mais estranho
de tudo, porém, foi quando olharam ao redor e se
viram cercados pela calorosa luz do dia; acima o
céu azul, flores aos seus pés e um sorriso nos
olhos de Aslam. Este virou-se, rapidamente,
abaixou-se ainda mais, deu uma rabanada e,
estalando a cauda contra o próprio corpo, disparou
zunindo como uma flecha dourada.
– Vamos! Continuem avançando!
Continuem subindo! – gritou, por cima dos
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ombros. Mas quem poderia acompanhá-lo naquela
velocidade? Eles começaram a caminhar rumo ao
Ocidente, tentando acompanhá-lo.
– E assim – disse Pedro – cai a noite sobre
Nárnia. O quê, Lúcia? ! Não me diga que está
chorando! Com Aslam à nossa frente e todo
mundo aqui junto? !
– Não tente me impedir, Pedro – disse ela.
– Aslam certamente não faria isso. Tenho certeza
de que nada há de errado em chorar por causa de
Nárnia. Pense só em quanta coisa está ali por trás
daquela porta, tudo morto e congelado...
– É mesmo – disse Jill. – Eu bem que
gostaria que aquilo tudo durasse para sempre. Eu
sei que o nosso mundo não poderia durar, mas
nunca imaginei que Nárnia pudesse acabar um
dia.
– Eu vi quando Nárnia começou – disse
Lorde Digory. – Mas nunca pensei que viveria o
suficiente para vê-la morrer.
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– Senhores – disse Tirian –, as senhoras
fazem muito bem em lamentar. Eu mesmo estou
chorando, vejam. Acabo de assistir à morte de
minha própria mãe; pois que outro mundo, além
de Nárnia, eu já conheci? Deixar de pranteá-la não
seria virtude alguma, e, sim, descortesia.
Foram se afastando da Porta e também dos
anões, que continuavam amontoados no seu está-
bulo imaginário. E, à medida que caminhavam,
relembravam antigas guerras, a paz dos velhos
tempos, os reis da antiguidade e todas as glórias
de Nárnia. Os cães continuavam com eles. Às
vezes participavam da conversa, mas não tanto,
pois estavam muito ocupados correndo para cá e
para lá, cheirando a grama a cada instante e com
tanta intensidade que acabavam espirrando. De
repente, farejaram algo que os deixou muito
excitados. Começaram todos a discutir: “É, sim!”
– “Não é, não!” – “Foi isso que eu acabei de
dizer! Qualquer um é capaz de identificar esse
cheiro.” – “Tire essa fuça daí e deixe os outros
farejarem também!”
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– O que está acontecendo, primos? –
perguntou Pedro.
– Um calormano, senhor – disseram vários
cães ao mesmo tempo.
– Então, levem-nos até ele – disse Pedro. –
Seja ele de paz ou de guerra, será bem-vindo.
Os cães saíram em disparada e pouco
depois estavam de volta, correndo como se suas
vidas dependessem disso e latindo bem alto para
dizer que, de fato, tratava-se de um calormano.
(Os cães falantes, como qualquer cão comum,
comportam-se como se pensassem que o que estão
fazendo no momento, seja lá o que for, é de suma
importância.)
Os outros acompanharam os cães e
encontraram um jovem calormano sentado
debaixo de uma castanheira, ao lado de uma
límpida fonte de água. Era Emeth, que se levantou
de um salto e curvou-se em profunda referência.
– Senhor – disse, dirigindo-se a Pedro –,
não sei se és meu amigo ou meu inimigo. De
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qualquer forma, é uma grande honra encontrá-lo.
Como disse um poeta, “um inimigo nobre é a
melhor dádiva depois de um amigo nobre”.
– Senhor – disse Pedro –, que eu saiba não
há razão alguma para haver qualquer guerra entre
nós.
– Diga-nos quem é você e o que lhe
aconteceu –acrescentou Jill.
– Se vamos ouvir uma história, por que não
tomamos um pouco de água e nos sentamos? –
latiram os cães. – Estamos completamente
exaustos.
– E claro que vocês ficarão exaustos se
continuarem choramingando desse jeito – disse
Eustáquio.
Assim os humanos sentaram-se na grama. E
os cães, depois de beberem ruidosamente na fonte,
sentaram-se todos empertigados, ofegando, com a
língua de fora e a cabeça um pouco inclinada para
um lado, prontos para escutar a história. Precioso,
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porém, ficou de pé, esfregando o chifre contra o
flanco.
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15
PARA CIMA E AVANTE!
– Ó reais guerreiros, e também vós, gentis
senhoras, cuja beleza ilumina o universo! –
começou o calormano. – Sabei que sou Emeth, o
sétimo filho de Harpha Tarcaã, da cidade de
Tashbaan, situada no Ocidente, além do deserto.
Cheguei a Nárnia recentemente, junto com nove e
mais outros vinte calormanos, comandados por
Rishda Tarcaã. Assim que soube que deveríamos
marchar contra Nárnia, enchi-me de regozijo, pois
já ouvira falar muitas coisas sobre a vossa terra e
grande era o meu desejo de encontrar-vos em
batalha. Mas quando descobri que deveríamos ir
disfarçados de mercadores (o que é um
vergonhoso traje para um guerreiro e filho de
tarcaã) e agir usando mentiras e artifícios, então
todo o gozo me abandonou. O pior foi quando
descobri que estaríamos a serviço de um macaco.
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E quando começaram a dizer que Tash e Aslam
eram um só, então o mundo se escureceu aos
meus olhos, pois desde criança eu servira a Tash,
e meu grande desejo era saber mais sobre ele, se
possível encontrá-lo face a face. O nome de
Aslam, porém, era detestável aos meus ouvidos.
– Então, como vistes, noite após noite
éramos todos convocados a reunir-nos do lado de
fora daquela cabana de palha, e acendia-se a
fogueira, e o macaco tirava da cabana uma coisa
de quatro pernas que eu nunca conseguia ver
direito. Aí todos, inclusive os animais,
inclinavam-se e prestavam homenagem àquilo.
Eu, porém, pensava: “O tarcaã está sendo
ludibriado pelo macaco, pois aquela coisa que sai
do estábulo não é Tash nem deus algum.” Mas
quando, certa vez, olhei para o rosto do tarcaã,
prestando atenção a cada palavra que ele dizia ao
macaco, mudei de idéia, pois percebi claramente
que nem ele próprio acreditava em tudo aquilo.
Foi então que compreendi que ele não acreditava
em Tash, pois, do contrário, como ousaria
escarnecer dele?
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– Quando me dei conta disso, fui tomado de
uma fúria imensa e me perguntei por que o
verdadeiro Tash não mandava cair fogo do céu
para destruir tanto o macaco quanto o tarcaã. No
entanto, escondi minha ira, controlei minha língua
e resolvi esperar para ver como tudo acabaria. Na
noite passada, porém, como alguns de vós devem
saber, o macaco, em vez de exibir aquela coisa
amarela, disse que todos que quisessem ver
Tashlam (pois, a essa altura, eles já haviam
juntado os dois nomes para fingir que os dois
eram um só) deveriam entrar um a um na palhoça.
Então disse para mim mesmo: “Sem dúvida
alguma, aí vem uma nova decepção.” Mas depois
que o gato entrou na cabana e saiu apavorado,
pensei: “Com certeza o verdadeiro Tash, a quem
chamaram sem conhecer nem acreditar, veio para
o meio de nós e agora vai se vingar.” Embora,
dentro de mim, meu coração estivesse derretido
de temor perante a grandeza de Tash, ainda assim
o desejo de vê-lo era mais forte. Então, com um
esforço tremendo para não deixar que meus
joelhos tremessem ou que meus dentes batessem,
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decidi encarar Tash face a face, mesmo que ele
me matasse. Assim, ofereci-me para entrar no
estábulo. E o tarcaã, mesmo contra a vontade, me
permitiu entrar.
– Assim que passei por aquela porta, minha
primeira surpresa foi que me encontrei no meio
dessa grande claridade, ainda que, visto do lado
de fora, o interior da cabana parecesse
completamente escuro. Nem tive tempo de
maravilhar-me com isso, pois no mesmo instante
me vi forçado a lutar contra um dos nossos
próprios homens para defender a minha vida.
Assim que o vi, percebi que o macaco e o tarcaã o
haviam colocado ali para matar qualquer um que
entrasse e que não estivesse a par de seus planos.
Esse homem, portanto, devia ser um outro
mentiroso, um trapaceiro, e não um verdadeiro
servo de Tash. Por isso eu o enfrentei com o
maior prazer. E, após matar o vilão, atirei-o para
trás de mim, porta afora.
– Depois olhei à minha volta e vi o céu e
toda esta amplidão e aspirei o aroma da terra.
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Então disse: “Por todos os deuses, que lugar
agradável! Devo ter chegado ao país de Tash.” E
comecei a percorrer esta estranha terra,
procurando por ele.
– Passei por muita grama e muitas flores e
encontrei saudáveis e deleitosas árvores de todos
os tipos, até que, em um lugarzinho estreito entre
dois rochedos, avistei vindo ao meu encontro um
enorme Leão. Tinha a velocidade do avestruz e o
tamanho do elefante; sua cabeleira era como ouro
puro e o brilho de seu olhar como ouro quando
arde na fornalha. Era mais temível que a
Montanha Ardente de Lagur, e sua beleza
superava tudo que há no mundo, mesmo a rosa em
botão cuja beleza supera a areia do deserto. Então
prostrei-me aos seus pés, pensando: “Esta é
certamente a hora da minha morte, pois o Leão
(que é digno de toda a honra) bem saberá que,
durante toda a minha vida, tenho servido a Tash e
não a ele. No entanto, melhor é ver o Leão e
depois morrer do que ser Tisroc do mundo inteiro
e viver sem nunca havê-lo encontrado.” Porém, o
glorioso ser inclinou a cabeça dourada e me tocou
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a testa com a língua, dizendo: “Filho, sê bemvindo!
” Mas eu repliquei: “Ai de mim, Senhor!
Não sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash!”
“Criança”, continuou ele, “todo o serviço que tens
prestado a Tash, eu o considero como serviço
prestado a mim.” Então, tão grande era o meu
anseio por sabedoria e conhecimento, que venci o
temor e resolvi indagar o glorioso ser: “Senhor, é
verdade, então, como disse o macaco, que tu e
Tash sois um só?” O Leão deu um rugido tão forte
que a terra tremeu (sua ira, porém, não era contra
mim), dizendo: “É mentira! Não porque ele e eu
sejamos um, mas por sermos o oposto um do
outro é que tomo para mim os serviços que tens
prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes,
que nenhum serviço que seja vil pode ser prestado
a mim, e nada que não seja vil pode ser feito para
ele. Portanto, se qualquer homem jurar em nome
de Tash e guardar o juramento por amor a sua
palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo
sem saber, e eu é que o recompensarei. E se
algum homem cometer alguma crueldade em meu
nome, então, embora tenha pronunciado o nome
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de Aslam, é a Tash que está servindo, e é Tash
quem aceita suas obras. Compreendes isto, filho
meu?” Eu respondi: “Senhor, tu sabes o quanto eu
compreendo.” E, constrangido pela verdade,
acrescentei: “Mesmo assim, tenho aspirado por
Tash todos os dias da minha vida.” “Amado”,
falou o glorioso ser, “não fora o teu anseio por
mim, não terias aspirado tão intensamente, nem
por tanto tempo. Pois todos encontram o que
realmente procuram.”
– Depois ele soprou sobre mim e fez cessar
todo o tremor do meu corpo, firmando-me outra
vez sobre os meus pés. Após isso, não disse mais
muita coisa, a não ser que voltaríamos a nos
encontrar e que eu deveria seguir sempre para a
frente e sempre para cima. Então voltou-se como
uma tempestuosa rajada de ouro e subitamente
desapareceu.
– E desde então, ó reis e damas, ando
perambulando à procura dele, e minha felicidade é
tão imensa que até me enfraquece como uma
ferida. E a maravilha das maravilhas é ter ele me
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chamado de amado – a mim, que não passo de um
cão...
– Epa! Que estória é essa? ! – exclamou um
dos cães.
– Senhor – desculpou-se Emeth –, é apenas
uma forma de dizer usada na Calormânia.
– Bem, para dizer a verdade, ela não me
agrada nem um pouquinho – resmungou o
cachorro.
– Ele não quis ofender ninguém – disse um
cão mais idoso. – Afinal de contas, lá em casa
chamamos nossos filhotes de meninos quando não
se comportam direito...
– Nós também chamamos – disse o
primeiro cachorro. – Ou de meninas...
– Psiu!!! – disse o velho cão. – Isso não é
jeito de falar. Lembre-se de onde você está!
– Olhem! – disse Jill, de repente.
Alguém vinha vindo, meio timidamente, ao
encontro deles. Era uma criatura graciosa, de
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quatro patas e cor cinza-prateada. Todos a fitaram,
boquiabertos, durante alguns instantes, até que
cinco ou seis vozes exclamaram ao mesmo tempo:
“É o velho Confuso!” Eles nunca o haviam visto à
luz do dia, sem a pele de leão, e isso fazia uma
grande diferença. Agora era ele mesmo: um
bonito jumento de pêlo tão cinzento e macio, e
com uma expressão tão honesta e bondosa, que se
você o tivesse visto teria feito exatamente o que
Lúcia e Jill fizeram: saíram correndo ao encontro
dele e lançaram os braços em volta de seu
pescoço, beijando-lhe o focinho e afagando-lhe as
orelhas.
Quando perguntaram por onde tinha
andado, Confuso disse que havia entrado pela
porta junto com todas as criaturas, mas que...
Bem, para dizer a verdade, vinha evitando
encontrá-los o máximo possível, e especialmente
evitando encontrar Aslam. A visão do verdadeiro
Aslam o deixara com tanta vergonha de toda
aquela bobagem de se vestir com uma pele de
leão, que ele nem sabia onde meter a cara. Mas,
ao ver todos os seus amigos seguirem rumo ao
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Ocidente, pegou umas boas bocadas de capim
(“Nunca provei capim tão gostoso em toda a
minha vida!”, declarou Confuso), encheu-se de
coragem e decidiu acompanhá-los.
– Agora, o que vou fazer se tiver mesmo
que encontrar Aslam, isso eu garanto que não
sei... – acrescentou.
– Quando o encontrar vai estar tudo bem,
você vai ver – disse a rainha Lúcia.
Então seguiram todos juntos, sempre para o
Oeste, pois esta parecia ser a direção indicada por
Aslam quando ele gritou: “Continuem avançando!
Continuem subindo!”
Havia muitas outras criaturas movendo-se
na mesma direção. No entanto, como aquela terra
era um imenso gramado, não havia aglomerações.
Parecia ser ainda muito cedo e sentia-se no ar a
frescura da manhã. De vez em quando paravam
para olhar ao redor ou então para trás – em parte
porque tudo era incrivelmente lindo, mas em parte
também porque havia ali alguma coisa que não
conseguiam compreender.
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– Pedro – disse Lúcia –, que lugar é este?
Você tem alguma idéia?
– Não sei – respondeu o Grande Rei. – Ele
me faz lembrar alguma coisa, mas não consigo
saber o quê. Não seria algum lugar onde
estivemos de férias alguma vez, quando éramos
bem pequenos?
– Se foi, deve ter sido um feriado muito
agradável – disse Eustáquio. – Aposto que, no
nosso mundo, não existe um lugar como este.
Vejam só que cores! No nosso mundo não dá nem
para imaginar um azul igual ao azul daquelas
montanhas.
– Será que não é o “país de Aslam? – disse
Tirian.
– Mas não é como o país de Aslam lá no
topo daquela montanha, além do extremo oriental
– disse Jill. – Lá eu já estive.
– Se querem saber – disse Edmundo –, isto
aqui lembra algum lugar de Nárnia. Vejam
aquelas montanhas ali na frente. E aquelas outras,
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enormes e cobertas de gelo, lá mais adiante. Não
se parecem com as montanhas que se viam lá de
Nárnia, aquelas que ficavam para o lado do
Ocidente, depois da cachoeira?
– É, parecem mesmo – concordou Pedro. –
Só que estas são maiores.
– Aquelas ali eu não acho parecidas com
coisa alguma de Nárnia – disse Lúcia. – Mas
olhem acolá! (Ela apontou para o Sul, à esquerda
deles; todos pararam e viraram-se para olhar.)
Aquelas colinas, lá, cobertas de florestas, e
aquelas azuis, lá atrás... Não são iguaizinhas às da
extremidade sul de Nárnia?
– I-guai-zi-nhas! – exclamou Edmundo,
após um momento de silêncio. – Puxa, são
exatamente iguais! Vejam! Lá está o Monte Piro,
com seu cume bifurcado, e depois o desfiladeiro
que vai dar na Arquelândia e tudo o mais.
– E ainda assim não é a mesma coisa –
disse Lúcia. – É tudo diferente. Tudo é muito mais
cheio de cores e parece muito mais longe do que
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eu recordava, e os montes são mais... mais... Oh!
Não sei explicar!
– Muito mais reais – opinou Lorde Digory,
baixinho.
De repente, Sagaz abriu as asas e saiu
voando. Planou no ar a uns dez ou doze metros de
altura, voou em círculos e depois pousou no chão
novamente.
– Reis e rainhas – exclamou –, estávamos
todos cegos! Estamos apenas começando a
perceber onde nos encontramos. De lá de cima dá
para enxergar tudo: o Espelho d’Água, o Dique
dos Castores, o Grande Rio, e Cair Paravel ainda
resplandecendo às margens do Mar Oriental.
Nárnia não morreu. Isto aqui é Nárnia!
– Mas como? ! – disse Pedro. – Aslam disse
que nós, os mais velhos, nunca mais
regressaríamos a Nárnia; e aqui estamos nós!
– Isso mesmo – concordou Eustáquio. – E
vimos tudo ser destruído e o sol se apagar.
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– E tudo é tão diferente! – acrescentou
Lúcia.
– A águia tem razão – disse Lorde Digory.
– Ouça, Pedro. Quando Aslam disse que vocês
nunca mais poderiam voltar a Nárnia, ele se
referia à Nárnia em que vocês estavam pensando.
Aquela, porém, não era a verdadeira Nárnia. Ela
teve um começo e um fim. Era apenas uma
sombra, uma cópia da verdadeira Nárnia que
sempre existiu e sempre existirá aqui, da mesma
forma que o nosso mundo é apenas uma sombra
ou uma cópia de algo do verdadeiro mundo de
Aslam. Lúcia, você não precisa prantear Nárnia.
Todas as criaturas queridas, tudo o que importava
da velha Nárnia foi trazido aqui para a verdadeira
Nárnia, através daquela Porta. Tudo é diferente,
sim; tão diferente quanto uma coisa real difere de
sua sombra, ou como a vida real difere de um
sonho.
Enquanto ele falava essas palavras, sua voz
fez todo mundo estremecer, como ao som de uma
trombeta. Mas quando ele acrescentou: “Está tudo
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em Platão, tudo em Platão... Caramba! Gostaria de
saber o que essas crianças aprendem na escola!”,
os mais velhos desataram a rir. Era exatamente
isso que ele costumava dizer muito tempo atrás,
naquele outro mundo, onde sua barba era grisalha
em vez de dourada. Ele sabia por que eles
estavam rindo, por isso começou a rir também.
Mas não tardaram a ficar sérios de novo, pois,
como você sabe, existe um certo tipo de felicidade
e assombro que faz a gente ficar séria. É bom
demais para se estragar com piadinhas.
É tão difícil explicar a diferença entre essa
terra ensolarada e a antiga Nárnia, quanto dizer
que gosto tinham as frutas daquele país. Talvez
você consiga ter alguma idéia se pensar no
seguinte: faça de conta que está em uma sala cuja
janela dá para uma bonita baía, ou para um vale
verdinho que se perde de vista entre as
montanhas. Na parede oposta à janela existe um
grande espelho. Agora olhe pela janela. Ao se
voltar, você se depara com a mesma vista do mar
ou do vale no espelho. E, no espelho, o mar ou o
vale são, num certo sentido, exatamente a mesma
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coisa que os reais. Ao mesmo tempo, porém,
existe algo diferente: são mais vivos, mais
maravilhosos, mais parecidos com os lugares de
uma história que você, apesar de jamais ter
ouvido, gostaria muitíssimo de escutar. Pois bem:
a diferença entre a Nárnia antiga e a nova era algo
assim. Os campos da nova Nárnia eram muito
mais vivos: cada rocha, cada flor, cada folhinha
de grama parecia ter um significado ainda maior.
Não há como descrevê-la: se algum dia você
chegar lá, então compreenderá o que quero dizer.
Foi o unicórnio quem resumiu o que todos
estavam sentindo. Cravou a pata dianteira no
chão, relinchando, e depois exclamou:
– Finalmente voltei para casa! Este, sim, é o
meu verdadeiro lar! Aqui é o meu lugar. É esta a
terra pela qual tenho aspirado a vida inteira,
embora até agora não a conhecesse. A razão por
que amávamos a antiga Nárnia é que ela, às vezes,
se parecia um pouquinho com isto aqui. – E
acrescentou, soltando um longo relincho: –
Avancemos! Continuemos subindo!
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Então sacudiu a crina e partiu a todo galope
–um galope de unicórnio, que, se fosse em nosso
mundo, o teria feito desaparecer em pouquíssimo
tempo. Mas foi aí que aconteceu a coisa mais
estranha. Todos os outros começaram a correr
também e, para sua própria surpresa, descobriram
que conseguiam acompanhá-lo – não somente os
cães e os humanos, mas também o gorducho
Confuso e até o anão Poggin, com suas perninhas
curtas. O vento golpeava-lhes o rosto como se
estivessem viajando em alta velocidade em um
carro sem pára-brisas. Os campos passavam
voando como se fossem vistos das janelas de um
trem-bala. E, embora corressem cada vez mais
rápido, ninguém sentia calor, nem cansaço, nem
ficava sem fôlego.
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16
ADEUS ÀS TERRAS
SOMBRIAS
Acho que, se a gente pudesse correr sem
nunca se cansar, nunca mais iria querer parar. Mas
às vezes existem razões muito especiais para se
parar. E foi por um motivo especial que Eustáquio
gritou, a certa altura:
– Cuidado, pessoal! Vejam para onde
estamos indo!
E fez muito bem. Logo à frente deles estava
o Lago do Caldeirão e, mais adiante, os altos,
íngremes e inescaláveis penhascos, dos quais
desabavam toneladas e toneladas de água a cada
segundo: em alguns lugares, brilhando como
diamantes; em outros, parecendo vidro verde. Era
a grande cachoeira, cujo barulho ensurdecedor já
lhes chegava aos ouvidos.
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– Não parem! Continuem avançando! Não
desanimem!
Mal se ouvia a voz do unicórnio, tal era o
trovejar da água. E, no momento seguinte, todos o
viram precipitar-se nas águas do lago. Logo atrás
dele, esguichando água para todo lado, os outros
fizeram o mesmo.
A água não estava fria de doer como todos
(principalmente Confuso) esperavam: ao
contrário, parecia uma espuma fresquinha e
deliciosa. E logo todos perceberam que estavam
nadando direto ao encontro da catarata.
– Isto é uma loucura total! – disse
Eustáquio a Edmundo.
– Eu sei. Mesmo assim... – respondeu ele.
– Não é maravilhoso? – exclamou Lúcia. –
Vocês já notaram que não dá para ficar com
medo, mesmo que se queira? Experimentem!
– Caramba! É mesmo! – disse Eustáquio,
depois de tentar.
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O primeiro a chegar ao pé da cascata foi
Precioso, seguido logo atrás por Tirian. A última
foi Jill, por isso ela pôde ver tudo muito melhor
que os outros. Avistou uma coisa branca
movendo-se cachoeira acima. Era o unicórnio.
Não dava para dizer se ele estava nadando ou
escalando, mas continuava subindo, subindo, cada
vez mais alto. A ponta de seu chifre repartia a
água acima de sua cabeça, fazendo-a jorrar como
duas cataratas, refletindo as cores do arco-íris em
volta de suas espáduas. Logo atrás dele vinha o rei
Tirian, que movia os braços e as pernas como se
estivesse nadando, mas seguindo direto para cima,
como quem sobe nadando as paredes de uma casa.
Os mais engraçados eram os cães. Durante
toda a corrida não haviam perdido o fôlego uma
única vez. Agora, porém, à medida que
ziguezagueavam cachoeira acima, só se ouviam
espirros e era uma bulha tremenda à sua volta.
Acontece que continuavam latindo, e cada vez
que o faziam ficavam com a boca e o focinho
cheios de água. Antes, porém, que Jill tivesse
tempo de prestar muita atenção a esses detalhes,
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viu-se ela própria subindo pela cachoeira. Era o
tipo de coisa que seria completamente impossível
de acontecer no nosso mundo. Mesmo que não se
afogasse, a gente acabaria toda estraçalhada lá
embaixo, esmagada pelo peso terrível das águas
contra os incontáveis entalhes dos penhascos. Mas
naquele mundo, não. Você continuava subindo,
subindo, com luzes de todo tipo refletindo sobre
você e toda sorte de pedras coloridas
resplandecendo através da água (como se você
estivesse escalando a própria luz) – e isso cada
vez mais para cima, até que a sensação de altura o
deixasse apavorado (se isso fosse possível), e
então era gloriosamente excitante.
Finalmente, chegaram à agradável e suave
curva verde de onde a água despencava rochedo
abaixo e descobriram que estavam sobre a
superfície do rio, acima da cachoeira. A
correnteza continuava às suas costas; eles, porém,
como exímios nadadores, simplesmente seguiam
nadando contra a correnteza. Em pouco tempo,
todos estavam na margem, ensopados mas felizes.
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Um imenso vale estendia-se à sua frente, e
grandes montanhas nevadas, agora muito mais
próximas, erguiam-se contra o céu.
– Continuem avançando! Mais para cima e
mais para dentro! – exclamou Precioso. Num
instante estavam todos a caminho novamente.
Encontravam-se agora fora de Nárnia, em
pleno deserto ocidental, numa região que nem
Tirian, nem Pedro, nem mesmo a águia jamais
haviam visto antes. Lorde Digory e Lady Polly,
porém, já haviam estado lá. “Você se lembra?
Você se lembra?”, diziam de vez em quando um
ao outro, numa voz firme que não revelava o
mínimo sinal de cansaço, embora o grupo inteiro
estivesse agora correndo mais rápido que uma
flecha.
– O quê, senhor? ! – disse Tirian. – Então é
mesmo verdade, como dizem as lendas, que vocês
dois estiveram aqui exatamente no dia em que o
mundo foi criado?
– É verdade – respondeu Digory. – E para
mim é como se tivesse sido ainda ontem.
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– E isso num cavalo voador? – indagou
Tirian.
– Isso também é verdade?
– Certamente – disse Lorde Digory.
Os cães, entretanto, começaram a latir:
“Rápido! Rápido! Mais rápido!”
Assim, aceleraram o passo, cada vez mais
depressa, a tal ponto que mais pareciam estar
voando que correndo; nem mesmo a águia, que os
sobrevoava, parecia estar indo mais rápido que
eles. E passaram por vales sinuosos, um após o
outro, escalaram encostas escarpadas de enormes
precipícios e, cada vez mais velozes, desceram
pelo outro lado, seguindo o rio e às vezes
atravessando-o. Deslizaram por lagos sobre as
montanhas como lanchas-voadoras, até que,
finalmente, na extremidade mais distante de um
lago cujas águas pareciam turquesa, chegaram a
uma montanha verde e plana. Seus lados eram tão
íngremes quanto os lados de uma pirâmide, e bem
no topo, e ao redor dele, havia uma muralha
verde. Acima da muralha, erguiam-se galhos de
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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árvores cujas folhas pareciam de prata e os frutos,
de ouro.
– Continuem avançando! Continuem
subindo! – bradou mais uma vez o unicórnio.
Todos se precipitaram para o pé da
montanha e então se viram disparando montanha
acima, quase como as águas de uma onda que
rebenta contra uma rocha na beira da praia.
Embora o declive fosse tão íngreme quanto a
parede de uma casa, e a grama tão lisa quanto uma
pista de boliche, ninguém escorregava. Somente
depois de atingir o topo da montanha é que
diminuíram a velocidade – e isso só porque deram
de cara com uns enormes portões de ouro. Por uns
momentos, nenhum deles foi suficientemente
corajoso para testar os portões e ver se abriam ou
não. Todos tinham a mesma sensação que haviam
experimentado quanto às frutas: “Será que
ousamos, ou não? É certo fazer isso? Será que
podemos entrar?”
Mas enquanto hesitavam, em pé, ouviu-se o
som de uma grande trombeta, maravilhosamente
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alto e doce, vindo de alguma parte lá de dentro do
jardim cercado de muros. Então os portões se
escancararam.
Tirian ficou parado, com a respiração presa,
imaginando quem iria aparecer. E o que apareceu
foi a coisa que ele menos esperava: um pequenino
e lustroso rato falante, de olhos brilhantes,
trazendo um diadema com pluma vermelha na
cabeça e a pata esquerda levemente pousada sobre
o punho de uma comprida espada. O rato
inclinou-se, numa graciosa reverência, e disse na
sua vozinha estridente:
– Bem-vindos, em nome do Leão!
Continuem avançando! Continuem subindo!
Então Tirian viu o rei Pedro, o rei Edmundo
e a rainha Lúcia colocarem-se imediatamente de
joelhos e saudarem o rato, todos exclamando:
“Ripchip!” A surpresa foi tamanha que o coração
de Tirian disparou, quase sem poder respirar, pois
ele se deu conta de que ali, à sua frente, estava um
dos grandes heróis de Nárnia: Ripchip, o Rato,
que lutara na grande Batalha do Beruna e que,
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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depois disso, navegara até o fim do mundo em
companhia do rei Caspian, o Navegador. Estava
ainda meio atordoado, quando sentiu dois fortes
braços rodearem seus ombros e um beijo com
barba tocar-lhe a face; e ouviu uma voz da qual se
lembrava muito bem:
– Puxa, rapaz! Estás muito mais robusto e
mais alto do que quando te abracei a última vez!
Era seu próprio pai, o bom rei Erlian. Não,
porém, como Tirian o vira pela última vez,
quando fora trazido para casa pálido e ferido da
sua luta com o gigante, nem mesmo como o
recordava nos seus últimos anos, um velho
guerreiro de cabelos grisalhos. Aquele ali era o
seu pai; o jovem alegre e jovial de quando Tirian
não passava ainda de um menininho e com o qual
brincava nos jardins do castelo de Cair Paravel,
nas noites de verão, antes de ir para a cama. O
mesmo cheiro de pão com leite que costumavam
comer ao jantar veio-lhe outra vez à memória.
Precioso pensou consigo: “Vou deixá-los
conversando um pouco e ver se encontro o bom
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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rei Rilian para cumprimentá-lo. Quantas maçãs
suculentas ele me deu quando eu não passava de
um potrinho!” Mas, no mesmo instante, mudou de
idéia, pois à entrada do portão surgiu um cavalo
tão imponente e nobre, que faria até mesmo um
unicórnio sentir-se tímido na sua presença: era um
enorme cavalo alado. Ele olhou um instante para
Lorde Digory e Lady Polly e então relinchou:
– Priiimos! Vocês? ! – Os dois
exclamaram:
– Pluma! Pluma, velho de guerra! – e
saíram correndo ao seu encontro para beijá-lo.
Entrementes, o Rato estava novamente
apressando-os a entrar. Assim, todos transpuseram
os portões dourados e ingressaram no jardim,
onde os envolveu um delicioso aroma. A luz do
sol mesclava-se suavemente com a sombra das
árvores, e eles caminhavam sobre um relvado
primaveril salpicado de florzinhas brancas. A
primeira coisa que chamou a atenção de todos foi
que o lugar era muito maior do que parecia, visto
do lado de fora. Ninguém, contudo, teve tempo de
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pensar nisso, pois de todas as direções começaram
a aparecer pessoas para saudar os recémchegados.
Todo mundo que se possa imaginar (isto é,
quem conhece a história desses países) parecia
estar ali: a coruja Plumalume e o paulama
Brejeiro; o rei Rilian com seu pai, o rei Caspian, e
sua mãe, a filha da Estrela; e, bem pertinho deles,
Lorde Drinian e Lorde Bern, o anão Trumpkin e o
Caça-trufas, o bom texugo, bem como o centauro
Ciclone e centenas de outros heróis da grande
guerra da libertação.
E então, de um outro canto, surgiu o rei Cor
da Arquelândia junto com seu pai, o rei Luna, e
sua esposa, a rainha Aravis; com eles estavam o
príncipe Corin Mão-de-Ferro, o cavalo Bri e a
égua Huin. Em seguida apareceram, de um
passado ainda mais remoto, os dois bons castores
e o fauno Tumnus – o que, aos olhos de Tirian, foi
a maravilha das maravilhas. E só se ouviam
cumprimentos, beijos, apertos de mãos e velhas
brincadeiras (vocês nem imaginam como é bom
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contar de novo uma velha piada, depois de uns
quinhentos ou seiscentos anos!). E o grupo inteiro
foi se movendo lentamente para o centro do
pomar, onde a fênix estava pousada no alto de
uma árvore, contemplando-os. Ao pé daquela
árvore havia dois tronos e, nestes, um rei e uma
rainha tão majestosos e belos que todos se
inclinaram perante eles. E fizeram muito bem,
pois aqueles dois eram o rei Franco e a rainha
Helena, de quem descendiam todos os reis mais
antigos de Nárnia e da Arquelândia. Tirian sentiuse
como você também se sentiria caso fosse
trazido à presença de Adão e Eva em toda a sua
glória.
Cerca de meia hora mais tarde (ou bem
poderia ter sido uns cinqüenta anos mais tarde,
pois o tempo ali não é como o tempo aqui), Lúcia
encontrava-se ao lado do fauno Tumnus, o mais
antigo de seus amigos narnianos. Juntos,
contemplavam, por cima do muro do jardim, a
terra inteira de Nárnia estendida lá embaixo. Ao
olhar lá de cima, perceberam que aquela
montanha era muito mais alta do que imaginavam:
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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descia milhares de quilômetros de reluzentes
precipícios abaixo deles, e as árvores naquele
mundo lá embaixo mais pareciam grãozinhos de
sal verde. Lúcia virou-se outra vez para dentro e,
de costas para o muro, contemplou o jardim.
– Ah! – disse afinal, pensativa. – Agora
estou percebendo. Este jardim é como o estábulo.
É muito maior do lado de dentro do que parece
visto de fora.
– Naturalmente, Filha de Eva – disse o
fauno. – Quanto mais se sobe e mais se entra,
maior tudo vai ficando. O interior é muito maior
que o exterior.
Depois de olhar atentamente para o jardim,
Lúcia percebeu que, na verdade, aquilo não era
jardim coisa nenhuma. Era, isto sim, um
verdadeiro mundo, com seus próprios rios,
florestas, mares e montanhas. Estes, porém, não
lhe eram estranhos: ela os conhecia todos.
– Agora estou entendendo – disse ela. – Isto
aqui ainda é Nárnia, e muito mais real e formosa
do que aquela Nárnia lá embaixo, da mesma
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forma que aquela parecia bem mais real e bonita
do que a Nárnia que se via do lado de fora da
porta do estábulo. Agora estou entendendo... Um
mundo dentro de outro mundo, uma Nárnia dentro
de uma outra Nárnia...
– Isso mesmo – concordou o fauno. – Igual
a uma cebola, só que ao contrário: quanto mais
para dentro, maior o anel.
Lúcia começou a olhar de um lado para
outro e logo descobriu que algo novo e lindo lhe
acontecera. Quando mirava alguma coisa,
qualquer que fosse e por mais distante que
estivesse, uma vez que fixasse firmemente os
olhos, esta tornava-se perfeitamente visível e tão
próxima como se ela estivesse olhando através de
um telescópio. Ela enxergava perfeitamente todo
o Deserto do Sul e, mais adiante, a grande cidade
de Tashbaan. Olhando para o Oriente dava para
ver Cair Pa-ravel à beira do mar e até mesmo a
janela do quarto que um dia havia sido seu. E lá
longe, no mar, descobriu as ilhas, uma após outra,
até chegar ao fim do mundo; e lá, depois do fim
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C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. VII
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do mundo, a imensa montanha que costumavam
chamar de País de Aslam. Agora, porém, percebia
que esta fazia parte de uma grande cadeia de
montanhas que formavam um anel à volta do
mundo inteiro. A sua frente pareciam estar bem
pertinho.
Depois ela desviou os olhos para a esquerda
e viu o que lhe pareceu ser uma grande nuvem
colorida, separada deles por um espaço vazio. Ao
olhar com mais atenção, viu que não era nuvem
alguma, e, sim, uma terra de verdade. E após fixar
firmemente os olhos em um ponto específico
daquela terra, exclamou, de repente:
– Pedro! Edmundo! Venham ver uma coisa!
Depressa!
Eles vieram e olharam, pois seus olhos
também haviam se tornado como os dela.
– Não pode ser! – exclamou Pedro. – É a
Inglaterra! E olhem só a casa... a velha casa do
professor, lá no campo, onde começaram todas as
nossas aventuras!
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– Eu pensei que aquela casa havia sido
destruída – disse Edmundo.
– E foi – disse o senhor Tumnus. – Mas o
que você está vendo agora é a Inglaterra dentro da
Inglaterra, a verdadeira Inglaterra, do mesmo jeito
que isto aqui é a verdadeira Nárnia. E naquela
Inglaterra interior nada de bom pode ser
destruído.
Subitamente, desviaram os olhos para outra
direção, fixando-os num outro ponto. Então
Pedro, Edmundo e Lúcia arregalaram os olhos,
boquiabertos e perplexos, e começaram a gritar e
acenar com as mãos, pois do lado de lá do grande
e profundo vale avistaram seu pai e sua mãe
acenando também para eles.
– Como é que vamos conseguir chegar lá? –
perguntou Lúcia.
– Isso é fácil – disse o fauno. – Tanto esta
terra quanto aquela (como todos os países de
verdade) são apenas pontinhas salientes das
grandes montanhas de Aslam. Só precisamos
caminhar ao longo da cordilheira, subindo e
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descendo até que as duas terras se encontrem.
Escutem! É a trombeta do rei Franco. Está na hora
de subirmos, todos nós.
Logo se viram caminhando (e atrás deles
uma enorme e brilhante procissão), subindo rumo
a montanhas mais altas do que jamais se poderia
imaginar neste mundo, mesmo que existissem e
pudessem ser vistas aqui. Naquelas montanhas,
porém, não havia neve: só florestas, doces
pomares, cachoeiras reluzentes, uma acima da
outra, subindo para sempre. E à medida que
subiam, a terra por onde passavam ia se tornando
cada vez mais estreita, com um vale profundo de
cada lado. E, do outro lado do vale, a terra que era
a verdadeira Inglaterra ia ficando mais e mais
perto.
A luz adiante foi ficando cada vez mais
forte, e Lúcia notou que uma infinidade de
penhascos multicoloridos erguia-se à frente deles,
como uma escadaria gigante. Mas então ela
esqueceu de tudo o mais, pois Aslam estava
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chegando, descendo, saltando de um rochedo para
outro como uma cascata viva de beleza e poder.
E a primeira pessoa que Aslam chamou
para perto de si foi o jumento Confuso. Nunca um
jumento pareceu tão bobo e sem jeito quanto
Confuso ao se dirigir ao encontro de Aslam. Ao
lado deste, ele mais parecia um gatinho perto de
um cão São Bernardo. O Leão abaixou a cabeça e
sussurrou para o jumento algo que fez murcharem
suas compridas orelhas. Mas, logo em seguida,
Aslam lhe disse algo que fez suas orelhas se
empinarem de novo. Os humanos não conseguiam
escutar coisa alguma. Então Aslam voltou-se para
eles, dizendo:
– Vocês ainda não parecem tão felizes
como eu gostaria.
– É que estamos com medo de ser
mandados embora, Aslam! Já fomos mandados de
volta ao nosso próprio mundo muitas vezes.
– Não precisam ter medo – disse o Leão. –
Vocês ainda não perceberam?
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Sentiram o coração pulsar forte e uma leve
esperança foi crescendo dentro deles.
– Aconteceu mesmo um acidente com o
trem –explicou Aslam. – Seu pai, sua mãe e todos
vocês estão mortos, como se costuma dizer nas
Terras Sombrias. Acabaram-se as aulas: chegaram
as férias! Acabou-se o sonho: rompeu a manhã!
E, à medida que Ele falava, já não lhes
parecia mais um leão. E as coisas que começaram
a acontecer a partir daquele momento eram tão
lindas e grandiosas que não consigo descrevê-las.
Para nós, este é o fim de todas as histórias, e
podemos dizer, com absoluta certeza, que todos
viveram felizes para sempre. Para eles, porém,
este foi apenas o começo da verdadeira história.
Toda a vida deles neste mundo e todas as suas
aventuras em Nárnia haviam sido apenas a capa e
a primeira página do livro. Agora, finalmente,
estavam começando o Capítulo Um da Grande
História que ninguém na terra jamais leu: a
história que continua eternamente e na qual cada
capítulo é muito melhor do que o anterior.
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Fim do Vol. VII
Deslumbrante!!!!!!!!Espetacular!!!Encantador!!!
ResponderExcluirse isso virar filme acho que vou ter uns 80 anos se ainda estiver viva..
ResponderExcluirAlguém em 2019?
ResponderExcluirIncrível! Apaixonante!
ResponderExcluirObrigada por disponibilizar!
Já acabou?? Que pena, muito bom
ResponderExcluirQuem é cristão sabe o verdadeiro significado desse livro!!!
ResponderExcluirMaranata!!!!
E eu tô com um vazio acaba que o livro acabou....
ResponderExcluir